Introdução
O conjunto de propostas e ações que modificaram o ensino de ciências no Brasil, promovido por educadores e cientistas entre os anos 1950 e 1970, ficou conhecido como movimento de renovação do ensino de ciências (CASSAB, 2015; KRASILCHIK, 2000). Desenvolvido em meio ao processo de institucionalização da ciência no país e à luta pela “modernização” da escola secundária (CASSAB, 2015), e influenciado por projetos curriculares estrangeiros, em especial norte-americanos, esse movimento apostava, entre outros aspectos, na produção de um ensino de caráter mais prático e experimental, na atualização dos materiais e conteúdos didático-científicos, na redefinição do papel do professor de ciências em sala de aula, na implantação de laboratórios, enfatizando a vivência da investigação científica, incentivando a autonomia intelectual do aluno e sua capacidade crítica (ABRANTES, 2008; VALLA et al, 2014; CASSAB, 2015). Também visava preparar os alunos mais aptos para seguir carreira profissional na área das ciências, com o objetivo de impulsionar o progresso científico e tecnológico do país, do qual entendia-se que dependia o processo de industrialização em curso (KRASILCHIK, 2000; ABRANTES, 2008).
Muitos dos atores diretamente envolvidos nesse movimento estiveram agregados em instituições como o Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura (IBECC), a Fundação Brasileira para o Desenvolvimento do Ensino de Ciências (FUNBEC) e os seis Centros de Ciências (CECIs) instalados em Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife e Porto Alegre (MANCUSO; LEITE FILHO, 2006; ABRANTES, 2008; BORGES et al, 2012).
Fundado em 1946 como uma comissão da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), o IBECC foi um marco na divulgação e no ensino de ciências no Brasil, concentrando iniciativas individuais de professores e de cientistas até então esparsas (KRASILCHIK, 2000; ABRANTES, 2008). Com sede inicial nas dependências da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), o IBECC realizou experiências inovadoras como a organização de concursos, clubes e feiras de ciências, a tradução e edição de livros destinados ao ensino de níveis primário e secundário e a elaboração de materiais didáticos e kits de experimentação, com o apoio do governo federal e de secretarias estaduais de educação, assim como de agências internacionais, como a Fundação Ford e a Fundação Rockefeller (ABRANTES, 2008; ABRANTES; AZEVEDO, 2010).
Uma das principais ações do IBECC e do movimento de renovação do ensino de ciências foi a organização de feiras de ciências nas décadas de 1960 e 1970 (MANCUSO; LEITE FILHO, 2006; ABRANTES, 2008). As feiras de ciências foram desenvolvidas como atividade pedagógica extracurricular na primeira metade do século XX, nos Estados Unidos, juntamente a outras iniciativas de reformulação dos métodos e conteúdos do ensino básico (TERZIAN, 2013). No período pós-Segunda Guerra Mundial e Guerra Fria, estas foram impulsionadas pelos investimentos em ciência, tecnologia e ensino de ciências (KRASILCHIK, 2000; TERZIAN, 2013).
Inspirada nas feiras norte-americanas, em 1960 foi realizada aquela que é considerada a primeira feira de ciências brasileira - a I Feira de Ciências de São Paulo (MANCUSO; LEITE FILHO, 2006). Organizada pelo IBECC, a I Feira teve duração de uma semana, reuniu 432 trabalhos de estudantes de 25 escolas da capital paulista e foi visitada por cerca de sete mil pessoas (ABRANTES, 2008). A sua realização materializou a proposta de José Reis, integrante do IBECC, que desde o início da década de 1950 defendia a realização de feiras de ciências no país como uma ferramenta importante para a melhoria do ensino de ciências no país e engajamento de jovens em carreiras científicas (REIS; GONÇALVES, 2007; MASSARANI et al., 2018).
José Reis foi um dos principais nomes da divulgação científica brasileira (MASSARANI et al., 2018). Nos anos 1940, Reis passou a escrever sistematicamente artigos sobre ciência, tecnologia e ensino de ciências para o Grupo Folha, atividade que manteve por 55 anos, até sua morte, em 2002, e ocupou, de 1962 a 1967, o cargo de diretor de redação do jornal Folha de São Paulo. Durante este período, ele engajou ativamente a estrutura do jornal na cobertura, na organização, no financiamento e na premiação das primeiras feiras de ciência no país, tornando-se um dos protagonistas no apoio a esse tipo de atividade pedagógica extracurricular (MASSARANI et al, 2018). Em 1965, Reis publicou o texto Feiras de Ciência: uma revolução pedagógica, no qual condensou sua experiência acompanhando as feiras realizadas no início na década de 1960 e descreveu os principais objetivos pedagógicos de uma feira (Reis, [1965] 2018). Em 1968, o autor incluiu o texto numa coletânea e lançou o livro Educação é Investimento (Reis, 1968), que o alçou como uma referência nos debates da época sobre pedagogia e políticas públicas para educação. Em reconhecimento à sua carreira, recebeu o prêmio Kalinga de divulgação científica em 1975, oferecido pela Unesco. Em 1978, o CNPq criou o prêmio José Reis de divulgação científica em sua homenagem1.
Durante a década de 1960, a Feira de São Paulo ganhou novas edições e as feiras de ciências se difundiram no Brasil, primeiro pelo interior do estado de São Paulo e, em seguida, pelo restante do país (REIS, [1965] 2018). O processo de desenvolvimento e popularização das feiras de ciências no Brasil na década de 1960 ganhou visibilidade por meio da cobertura jornalística, empolgando estudantes e educadores. José Reis descreveu esse processo como um “movimento das feiras de ciências” (cf. REIS, [1965] 2018), parte de um movimento de “renovação pedagógica da ciência” (REIS, 1966, p.1), responsável por tornar a ciência “mais atraente e mais bem ensinada” (REIS, [1965] 2018). Como descreve Abrantes (2008, p.156-157):
A experiência das feiras se ajustou bem à condição precária dos laboratórios das escolas de nível secundário no Brasil, suprindo as deficiências do ensino formal e propondo experimentos adequados à realidade local das cidades onde eram realizados (Reis & Gonçalves, 2000, p. 55), mobilizando a população em cidades do interior e contribuindo para uma integração entre a escola e a sociedade.
Ainda se sabe relativamente pouco sobre a história das feiras de ciências no Brasil, especialmente pela literatura reduzida especificamente sobre esse assunto. Entre as exceções destaca-se um histórico produzido por Ronaldo Mancuso e Ivo Leite Filho para o Programa Nacional de Apoio a Feiras de Ciências (Fenaceb) (MANCUSO; LEITE FILHO, 2006). A maior parte das informações disponíveis se encontra nos textos de José Reis e em trabalhos sobre o movimento renovador do ensino de ciências, nos quais as feiras são tratadas apenas tangencialmente (cf. KRASILCHIK, 2000; ABRANTES, 2008; BORGES et al, 2012; VALLA et al., 2014; CASSAB, 2015). Entre as informações que não conseguimos identificar na literatura, estão o número de edições da Feira de Ciências de São Paulo, nem as razões que levaram ao término dessa iniciativa, que parece ter ocorrido na década de 1970.
Nesse contexto, os jornais da época, que, como mencionado anteriormente, cobriram sistematicamente as feiras de ciência, são uma fonte importante de informações para resgatar os registros das feiras das décadas de 1960 e 1970. Este artigo justamente tem como objetivo analisar a cobertura feita por jornais sobre a Feira de Ciências de São Paulo ao longo de sua trajetória nas décadas em questão. Além da reconstituição de uma parte da história da Feira, buscamos entender como os jornais da época retrataram as feiras de ciência e seu papel de renovação do ensino de ciências e de divulgação científica.
Este estudo se insere no escopo do Instituto Nacional de Comunicação Pública da Ciência e Tecnologia (INCT-CPCT), com apoio do CNPq e da Faperj, e faz parte de uma pesquisa mais ampla sobre a atuação do divulgador científico José Reis no processo de introdução e difusão das feiras de ciências no Brasil. Acreditamos que este estudo traz subsídios para ampliar a compreensão deste processo ainda pouco abordado nas literaturas de história da educação, da ciência e da divulgação científica no país.
1. Metodologia
Para este estudo documental e de natureza qualitativa, realizamos um levantamento no acervo da Hemeroteca Digital Brasileira da Biblioteca Nacional (BNDigital)2. A BNDigital permite o acesso gratuito, por meio da Internet, a um amplo acervo, que inclui diversos jornais, revistas e outros periódicos, bem como documentos cartográficos, iconográficos, manuscritos, bibliográficos e sonoros, que se constitui como uma fonte de grande relevância. Além disso, consultamos os acervos digitais dos jornais O Globo, O Estado de São Paulo e Folha de São Paulo, os três mais representativos em tiragem e alcance na região sudeste e no país. A fim de realizar o levantamento, realizamos buscas utilizando as expressões “feira de ciências”, “feiras de ciências”, “feira de ciência” e “feiras de ciência” no período de interesse. Entre as matérias encontradas, selecionamos apenas aquelas que citam a Feira de Ciências de São Paulo, foco deste nosso estudo. Optamos pela Feira de Ciências de São Paulo por ter sido a primeira feira realizada no Brasil e por constar na literatura sobre a história do ensino de ciências no país como uma importante etapa nas ações do IBECC e na implementação de um ensino mais prático e experimental (ABRANTES, 2008).
Após essa etapa de identificação das matérias, analisamos o conteúdo textual buscando identificar os principais marcos e atores da trajetória do evento. Fizemos o levantamento dos locais e datas em que foram realizadas as edições, o número de participantes e de visitantes, e os apoios e patrocínios que o IBECC angariou para a realização da Feira ao longo dos anos. Observamos também como as edições da Feira foram descritas e quais objetivos para a realização de feiras de ciências são explicitados na cobertura jornalística. Observamos o perfil dos estudantes que expuseram nas edições e as premiações destinadas aos melhores trabalhos. Alguns padrões de trabalhos apresentados foram identificados, bem como alterações com o passar do tempo. Todas essas informações serviram para a reconstituição de um histórico da Feira, visto que a sistematização desses dados é inexistente na literatura. Procuramos dialogar com a bibliografia sobre a história do ensino de ciências no Brasil e sobre as feiras de ciências, de maneira a contextualizar algumas das questões que o material nos apresentou.
2. Resultados e discussão
2.1. A presença da Feira de Ciências de São Paulo nos jornais
Foram encontrados 248 textos que mencionam a Feira de São Paulo entre 1960 e 1976 em 15 jornais diferentes. São estes: Folha de São Paulo (SP) (111 matérias), O Estado de São Paulo (SP) (49 matérias), Jornal do Brasil (RJ) (24 matérias), Correio Paulistano (SP) e Diário da Noite (SP) (14 matérias cada), Correio da Manhã (RJ) (12 matérias), A Tribuna (SP) (9 matérias), Diário de Notícias (RJ) (4 matérias), Última Hora (PR) (3 matérias), A Noite (RJ) e O Jornal (RJ) (2 matérias cada), Última Hora (RJ), O Fluminense (RJ), Jornal do Commercio (RJ) e Jornal dos Sports (RJ) (1 matéria cada).
O jornal Folha de São Paulo foi o que mais cobriu a totalidade das edições da Feira, seguido pelo Estado de São Paulo. Isso se explica, em parte, pela atuação e influência de José Reis no Grupo Folha, como mencionado anteriormente (MASSARANI et al, 2018). No gráfico 1 pode ser observada a distribuição das matérias ao longo dos anos.
Nos três anos iniciais, a Feira teve atenção dos jornais (19 registros em 1960, 33 em 1961 e 13 em 1962). Os jornais Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, Correio Paulistano e Diário da Noite, do estado de São Paulo, foram os que mais cobriram os eventos.
Entre 1963 e 1969, observa-se uma queda no número geral de matérias sobre a Feira. Não identificamos textos de jornais ou de outras fontes referentes ao evento em 1965, o que nos leva a crer que a Feira não ocorreu naquele ano. Trata-se de um ano turbulento, por conta do golpe militar de 1964. O retorno dos registros, em 1966, é majoritariamente de matérias da Folha de São Paulo, então dirigida por José Reis.
No início da década de 1970 observamos um retorno geral da atenção jornalística sobre a Feira. Os anos de 1970 e 1972, com 38 e 39 registros, respectivamente, são os de maior presença do evento nos jornais. Além das coberturas pelos jornais do estado de São Paulo, a Feira de Ciências de São Paulo começou a aparecer em textos do Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro. No mesmo período, o jornal divulgava, apoiava e patrocinava as feiras de ciências do então estado da Guanabara, o que pode justificar o seu interesse pela Feira de São Paulo.
Não encontramos nos jornais textos que se refiram ao fim da Feira. Em 1977, já não há registros. Abrantes (2008, p.280) aponta para mudanças no processo de institucionalização da ciência no Brasil, transformações do próprio IBECC enquanto instituição e alterações da atuação da UNESCO no plano internacional que provocaram a gradativa redução de sua capacidade de ação nas décadas de 1970 e 1980.
Os recursos visuais utilizados nas matérias são, em sua maioria, fotografias. Mapas de localização da Feira no parque do Ibirapuera e mapas da distribuição dos estandes no interior das feiras também aparecem divulgados pelos jornais. As fotos, 59 no total, mostram as mesmas cenas: as Feiras vistas de cima (mostrando a grande anuência de visitantes), autoridades inaugurando ou visitando as feiras, os jovens passeando pelo evento, alunos montando os estandes nos dias anteriores à inauguração e - a ampla maioria das fotografias - os jovens em seus estandes posando com seus experimentos e aparelhos ou demonstrando-os ao público visitante, atento à explicação. Fotos de estudantes observando microscópios ou telescópios também aparecem. A maioria dos jovens retratados nas fotos são brancos e do sexo masculino.
2.2. Histórico e atores envolvidos
A análise do material levantado indica que foram organizadas 15 edições da Feira de Ciências de São Paulo, entre 1960 e 1976. Nos três primeiros anos, a Feira foi realizada na Galeria Prestes Maia, no centro da cidade de São Paulo. Com o crescimento progressivo do número de expositores e do público visitante, a Feira passou a ser realizada, primeiro, na Fundação Cásper Líbero, na Avenida Paulista (1964), em seguida, no Ginásio do Pacaembu (1966-1967) e, por último, no Pavilhão da Bienal, no parque do Ibirapuera, onde foi realizada por nove anos consecutivos (1968-1976).
Os principais organizadores da Feira foram a socióloga e educadora Maria Julieta Ormastroni e o bioquímico Isaías Raw. Ambos foram entrevistados com frequência pelos jornais. Ormastroni é citada como organizadora em quase todas as edições. Outros nomes registrados como coordenadores dos eventos são: Paulo Mendes da Rocha (1962), Cícero Wolfie (1968), João Paulo Brito Serra (1970), Antônio Teixeira (1972) e Jaime Nazário (1974).
Maria Julieta Ormastroni teve grande importância no incentivo às atividades extra-escolares como diretora-executiva da seção São Paulo do IBECC. Junto a Isaías Raw, foi responsável pela criação de diversos programas de ensino não formal de ciências, como o concurso “Cientistas de Amanhã”, realizado anualmente nas reuniões da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Em algumas edições da Feira de São Paulo, é possível constatar que os jovens vencedores eram automaticamente classificados para o concurso. Além disso, Ormastroni foi convidada por Reis a escrever sobre ciência na Folhinha, suplemento infantil da Folha de São Paulo, onde publicou por 25 anos. Alguns dos textos levantados são publicações de Ormastroni na Folhinha com sugestões de experimentos para feiras de ciências, além de anúncios de divulgação das edições da Feira de São Paulo.
Isaías Raw exerceu por muitos anos o papel de liderança em institutos de ciência, divulgação científica e ensino de ciências (RAW, 2007; ABRANTES, 2008). Entre os anos 1950 e 1969, fundou as Editoras da Universidade de São Paulo e da Universidade de Brasília, criou a Fundação Carlos Chagas e o Curso Experimental de Medicina da FMUSP. Foi diretor-científico do IBECC entre 1955 e 1969 e diretor da FUNBEC, liderando os diversos projetos das duas instituições e se tornando uma das figuras mais importantes do movimento de renovação do ensino de ciências. Segundo Abrantes (2008, p.148), Isaías Raw teve “um papel central na dinamização das atividades de divulgação científica do IBECC/SP, assumindo uma liderança carismática engajada numa proposta inovadora de ensino de ciências”. Com a promulgação do Ato Institucional nº5, Raw foi perseguido e exilado pela ditadura militar brasileira em 1969, trabalhando em Israel e em universidades norte-americanas. Voltando ao Brasil em 1979, instalou-se no Instituto Butantan, onde trabalhou até se aposentar.
Analisando as matérias levantadas, foi possível observar como, ao longo do tempo, o IBECC obteve diversas parcerias para a realização do evento. A primeira Feira, em 1960, recebeu o apoio da Campanha de Aperfeiçoamento e Difusão do Ensino Secundário (CADES)3, da Federação das Indústrias de São Paulo (FIESP) e das Secretarias Municipal e Estadual de Educação de São Paulo. Não foram encontradas informações sobre apoios e patrocínios nas quatro edições seguintes. A partir da Feira de 1966, o jornal Folha de São Paulo passou a apoiar e patrocinar o evento. Em 1967, O Estado de São Paulo escreveu um editorial defendendo que os organizadores da Feira recebessem ajuda financeira do poder público: “a nossa Secretaria de Educação não devia continuar ignorando um movimento que se estende por todo o território paulista e não cessa de crescer, a despeito de tudo”, escreveu o jornal (ESTÍMULO…, 1967, p.12). De acordo com os registros, o Governo do Estado de São Paulo só é citado como patrocinador apenas em 1969, junto com a Fundação Roberto Simonsen, instituto mantido pela FIESP, e o Banco do Estado de São Paulo (BANESPA) (E, NESTA…, 1969, p.14). No ano seguinte, registra-se, além destes, o apoio adicional da Fundação Bienal (FEIRA…, 1970d, p.15). Em 1973, a Fundação Padre Anchieta se somou aos patrocinadores anteriores (SÃO…, 1973, p.17). Em 1974, a prefeitura de São Paulo destinou verba de 200 salários mínimos para realização do evento (PAULISTAS…, 1974, p.10). Já em 1976, é registrado o apoio da Organização dos Estados Ibero-americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura (OEI) (FEIRA…, 1976, p.176).
Nas diversas edições da Feira, o IBECC organizou palestras e montou estandes para venda de livros didáticos e demonstrações de experimentos científicos. Alguns nomes de professores ligados ao Instituto são anunciados nas matérias como responsáveis por essas demonstrações, como Myriam Krasilchik, Rachel Gevertz, Fuad Karim Miguel e Odília Palomo Gomes (FEIRA…, 1960, p.6). Além das demonstrações, os professores do IBECC exibiam filmes científicos e realizavam a coleta de sangue para determinação de tipos sanguíneos.
Todas as edições tinham cerimônias de inauguração e de encerramento, algumas com apresentações musicais. A presença de autoridades e personagens importantes da história da ciência e do ensino brasileiros nessas cerimônias é constante nos textos analisados. Uma matéria de 1963, por exemplo, registrou a presença de “diversas autoridades ligadas aos setores educacionais de São Paulo”, como o reitor da USP (A IV…, 1963, p.7). Com o subtítulo de “prestígio”, outra matéria de 1967 registrou a presença do Secretário de Educação do Estado e dos representantes da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (X FEIRA…, 1967, p.10). O musicólogo Renato Almeida, presidente do IBECC e importante figura dos estudos de folclore brasileiro, esteve presente na mesma edição (VII FEIRA…, 1967, p.7).
As comissões julgadoras dos trabalhos também eram costumeiramente compostas por professores da USP e figuras importantes da ciência e da educação. O próprio José Reis compôs as comissões de 1960 e 1962.
Além de ser uma demonstração de prestígio e possivelmente uma estratégia de impulsionamento das Feiras, a presença e participação de autoridades da ciência e da educação tornava o evento um espaço de fortalecimento dos laços entre os atores sociais envolvidos no movimento de renovação do ensino de ciências. Pela quantidade de textos dos jornais, praticamente todas citando o IBECC, acreditamos ser possível afirmar que a Feira se inseriu no processo de legitimação do próprio Instituto entre educadores e na sociedade em geral. Em matéria sobre a III Feira de 1962, por exemplo, é possível ler sobre o “sucesso” do evento representando que “o IBECC dava mais um passo para consolidar sua meta de ampliar a divulgação do ensino científico” (FEIRA…, 1962, p.10).
2.2.1. O perfil dos estudantes expositores
No início, as Feiras eram voltadas para alunos do antigo ginasial e colegial. A partir de 1962, a Feira passou a aceitar trabalhos de alunos do primário (FEIRA…, 1962, p.10). Assim, o perfil majoritário dos estudantes mudou: nas primeiras edições, a maioria dos jovens descritos eram do sexo masculino, tinham entre 15 e 17 anos. Já uma matéria de 1968 registrou que “a idade média dos alunos é de 14 anos” (BOAS…, 1968, p.7).
Nas primeiras edições da Feira, prevaleceram, entre os estudantes descritos pelos jornais, aqueles oriundos de escolas públicas. Ao longo do tempo, as escolas particulares ganharam destaque. Os jornais passaram a dar ênfase aos nomes das instituições de ensino. Em 1970, encontramos algumas propagandas de colégios de São Paulo anunciando os prêmios em feiras de ciências dos alunos e a realização de feiras de ciências internas como um diferencial pedagógico. Esse movimento acompanha o impulso do ensino particular no Brasil durante a década de 1970.
Desde a primeira edição, a Feira recebeu inscrições de alunos da capital e do interior do estado de São Paulo. Com a expansão das feiras de ciências nas cidades do interior, as inscrições para a Feira passaram a ser em duas modalidades: os alunos da capital poderiam se inscrever diretamente na Feira e os alunos vencedores das edições das feiras interioranas no ano anterior se classificavam automaticamente para a Feira da cidade de São Paulo. Como registrou Reis em artigo de 1970:
O movimento das feiras de ciência ganhou todo o Estado de S. Paulo e espalhou-se também por outros Estados brasileiros e vários países da América do Sul, que se inspiram no trabalho do IBECC. Aos poucos a Feira organizada por esse Instituto passou a ser o coroamento das muitas feiras realizadas no Estado (REIS, 1970, p.1).
Em alguns textos é abordada a desigualdade existente entre os estudantes da capital do estado e os do interior. Estes são em geral apresentados como “esforçados” e com trabalhos mais “simples” e “modestos”. Essa desigualdade, entretanto, não impedia que alguns prêmios fossem concedidos aos jovens do interior. Sua presença nas feiras, mesmo com os “meios de estudo e os recursos de pesquisa [...] diminutos”, seria uma demonstração do “extraordinário espírito de sacrifício e abnegação de que estão animados” (ESTÍMULO…, 1967, p.12). Uma matéria de 1969 narrou a conquista do primeiro prêmio da Feira por uma equipe de estudantes de Sorocaba (SP), marcando esta polarização:
Aparecendo com seu material debaixo do braço, os jovens sorocabanos quase desistiram de participar da Feira, ao assistirem à chegada de caminhões e até mesmo jamantas, trazendo equipamentos modernos e complicados para super-estandes. Mesmo assim, instalaram-se com seus grilos, periquitos e a aranha [...], que encheu o estande de teia e ganhou o primeiro prêmio (ARANHA…, 1969, p.26).
Com o tempo, a Feira também se abriu a alunos de outros estados, especialmente do Rio de Janeiro. Na década de 1970, durante cinco edições (1970-1974), registrou-se a participação de alunos da Argentina, que também vinha consolidando suas feiras de ciências. Em 1974, foi registrada a participação de estudantes peruanos (COMEÇA…, 1974, p.14). A presença desses alunos de outros estados e países era apresentada pelos jornais como um indício do desenvolvimento e do prestígio da Feira de São Paulo em relação ao restante do Brasil e da América Latina, bem como uma evidência do avanço do movimento de feiras de ciências iniciado em São Paulo com a Feira. Uma matéria de 1969 registrou que nos seus 9 anos de existência, “a Feira apresentou resultados tão bons que, desta vez, professores da Argentina, Venezuela e Bolívia vão acompanhá-la de perto para depois fazerem mostras iguais” (E, NESTA…, 1969, p.14). Já em 1971, lemos que:
Iniciadas há pouco mais de dez anos no Brasil, mais precisamente em São Paulo, as feiras de Ciências foram vagarosa mas firmemente ganhando adesões, polarizando interesses e cristalizando ideais até tomar conta do meio escolar brasileiro. Hoje, realizam-se por todo o interior de São Paulo e por muitas cidades brasileiras. E de algum tempo para cá, instituições educacionais de países vizinhos, sob direta influência da obra do IBECC, aderiram a esse esforço de renovação de métodos e práticas escolares de ensino de ciências (GRANDE…, 1971, p.152).
De acordo com as matérias, as Feiras contavam com a presença de centenas de expositores e de milhares de visitantes, o que era narrado como um indicador do sucesso da iniciativa. A maioria dos visitantes era composta de jovens estudantes. Outros visitantes são descritos como o “homem comum”, os “professores” e os “pais” dos alunos. O espírito alegre e entusiasmado dos jovens e do ambiente das feiras é bastante presente nas descrições. Segundo os textos, as edições eram bem decoradas e com cores alegres e cuidadosamente organizadas. Cartazes chamativos sobre os trabalhos ficavam espalhados pelos corredores. Além disso, os alunos, muitos dos quais portando jalecos ou aventais brancos, distribuíam panfletos convidando os visitantes aos seus estandes.
2.2.2. Os trabalhos expostos
Os conjuntos de matérias analisadas que cobriam os dias de realização das Feiras e que anunciavam os vencedores de cada edição costumavam apresentar alguns dos trabalhos que haviam sido preparados ao longo do ano letivo e expostos na ocasião. Alguns eram descritos com a clara intenção de promover o evento, de provocar o interesse do leitor para que este se dispusesse a ir visitar a Feira. Já os trabalhos vencedores eram descritos com a intenção de celebrar o potencial dos jovens expositores.
Os trabalhos eram minuciosamente explicados: os jornalistas escreviam sobre o percurso das pesquisas, sua aplicabilidade, o modo como foram demonstrados e os modelos de exposição: cartazes, painéis, ilustrações e maquetes. A maior parte dos trabalhos apresentados nas edições era realizada em grupo. Trabalhos individuais, embora minoritários, também ganhavam destaque nos jornais.
Entre os trabalhos destacados estão coleções de minerais, animais e plantas, demonstrações de princípios científicos e apresentações sobre a história de conceitos e de disciplinas científicas. Trabalhos relacionados a temas de saúde ganhavam destaque. Uma matéria de 1974 chegou a registrar a existência de “uma mentalidade preventiva e educativa no setor de higiene e saúde, com a exibição de filmes e gráficos sobre doenças” na XIV Feira (TERMINA…, 1974, p.22).
Outro padrão de trabalhos com foco nos jornais eram os experimentos com animais expostos pelos jovens ao longo dos anos. Entre esses experimentos, as práticas de vivissecção e dissecação eram constantes4.
Os “aparelhos” construídos pelos alunos - baterias, miniaturas de máquinas à vapor, miniaturas de automóveis elétricos, etc - também chamavam a atenção dos jornais. Entre esses “aparelhos”, ganhavam muito destaque os “robôs” construídos pelos próprios alunos. A Feira de 1973, por exemplo, teria tido um “robô em tamanho natural” (IBECC-UNESCO, 1973, p. 16) como “a grande atração” (UM ROBÔ…, 1973, p.11). As palavras “avançado” e “automático” eram frequentes nas descrições desses robôs e aparelhos, como elementos positivos.
As pesquisas espaciais do final da década de 1960 e a chegada do homem à Lua em 1969 foram também muito marcantes e presentes nas edições da Feira. Foguetes e réplicas de projetos da Agência Espacial dos EUA (NASA), eram frequentes no período. Na Feira de 1968, a miniatura de “um projeto da NASA, de lançamento de foguetes a propulsão eletromagnética” ganhou destaque (VEJA…, 1968, p.8). Já em 1970, “um foguete, com rato a bordo” era “lançado a 300 metros, de meia em meia hora [...] no Parque do Ibirapuera” (FOGUETE…, 1970, p.14).
No final de 1972, a Folha de São Paulo noticiou que a vencedora da Feira de Ciências do ano anterior, com um trabalho sobre a “origem, forma, medida e peso dos pingos de chuva”, foi convidada pela NASA para conhecer suas instalações e assistir ao lançamento do foguete Apollo-17, no Centro Espacial Kennedy, em Cabo Canaveral, nos EUA (NASA…, 1972, p.25). A viagem, que incluiu a visita a outras instituições científicas e tecnológicas do país e aos parques da Disney, foi custeada pela empresa de tecnologia aeronáutica Fairchild Industries. Antes da viagem, a jovem foi convidada para um encontro com o governador de São Paulo, Laudo Natel (1920-2020) (LAUDO…, 1972, p.11), e, em seu retorno, esteve presente em um evento com o então Secretário de Estado dos EUA, William Rogers (1913-2001), e o presidente brasileiro Emílio Médici (1905-1985), a quem entregou uma “pedra lunar” trazida da viagem (MÉDICI…, 1973, p.3).
As principais disciplinas citadas eram Física e Biologia, mas também aparecem trabalhos de Matemática e Química. Trabalhos identificados com campos das disciplinas científicas, como Astronomia, Zoologia, Mineralogia, Botânica etc., apareceram com o tempo.
A maior parte dos trabalhos encontrados na década de 1960 tendia a retratar a ciência de maneira positiva, mostrando suas potencialidades. Os riscos da ciência aparecem mais raramente, sob a forma de riscos de explosões. A inovação e a aplicabilidade dos trabalhos científicos podem ser observadas como expectativas relacionadas aos projetos apresentados pelos estudantes.
A década de 1970 apresentou duas modificações sensíveis no perfil dos trabalhos destacados pela imprensa.
Por um lado, ficou mais acentuada a intenção de que os trabalhos apresentados nas feiras fossem “aperfeiçoados para possível aproveitamento industrial” (IBECC-UNESCO…, 1973, p.16). Para o então representante da FUNBEC, Jaime Nazário, “os projetos que despertarem interesse de empresários poderão ser aperfeiçoados, após a realização de estudos de viabilidade econômica, e produzidos em escala industrial” (NA FEIRA…, 1973, p.41).
Por outro lado, também apareceu pela primeira vez nos anos 1970 a noção de “função social” dos projetos (NA FEIRA…, 1973, p.41). Da mesma forma, trabalhos mais conectados ao meio em que estavam inseridos, como os trabalhos com foco ambiental, apareceram nesta década. Na X Feira de 1970, chamou a atenção do jornalista um trabalho sobre a poluição do ar e da água. Segundo o aluno entrevistado, o trabalho mostrou que “uma das consequências do progresso tecnológico da sociedade moderna é a poluição ambiental. Nosso céu já não é tão azul e nossa água não tão límpida” (FEIRA…, 1970c, p.6). Para outro jornalista, o estande dos jovens seria “um dos favoritos” (FOGUETE…, 1970, p.14). Na Feira do ano seguinte, o jornal A Tribuna registrou que “a maior parte dos trabalhos [...] aborda o problema da poluição do ar, das águas, do solo e do som” (ADULTOS…, 1971, p.5). Em 1972, na XII Feira, um dos objetivos da realização do evento teria sido a “apresentação de projetos que tenham relação com vários aspectos da comunidade e sua vida” (COMEÇA…, 1972, p.14). Na mesma edição, foi registrado pela primeira vez um trabalho com os termos “reflorestamento” e “educação ambiental”, apresentado por alunos de um clube de ciências do Rio de Janeiro, apoiados e enviados à Feira de São Paulo pelo Jornal do Brasil. O projeto tinha o nome de ‘Patrulha da Natureza’ e os estudantes, depois de vários cursos sobre o assunto, plantaram cerca de 7500 árvores (ELES…, 1972, p.20). O trabalho teria sido um dos mais visitados e recebeu menção honrosa na Feira (COLÉGIO…, 1972, p.16). Na Feira de 1973, um trabalho com cartazes explicativos das consequências da poluição do ar de São Paulo ganhou destaque (COMEÇA…, 1973, p.15).
Essa cobertura da mídia e o destaque para os trabalhos voltados à discussão sobre o meio ambiente e os impactos da ciência refletem algumas mudanças do ensino de ciências desse período. A partir dos anos 1970, novos currículos de ensino de ciências foram pensados, sobretudo em países como Inglaterra, EUA, Canadá, Holanda e Austrália, tendo em vista os impactos da ciência e da tecnologia na vida cotidiana, no trabalho das pessoas e no meio ambiente (NORBERTO ROCHA, 2018). No Brasil, é possível observar o mesmo processo, como argumenta Krasilchik (2000, p.89):
entre 1960 e 1980, as crises ambientais, o aumento da poluição, a crise energética e a efervescência social manifestada em movimentos como a revolta estudantil e as lutas anti-segregação racial determinaram profundas transformações nas propostas das disciplinas científicas em todos os níveis do ensino. As implicações sociais da Ciência incorporam-se às propostas curriculares nos cursos ginasiais da época e, em seguida, nos cursos primários.
Também é possível observar como algumas matérias chamaram a atenção para a capacidade de “improviso” e “criatividade” no uso de “peças velhas”, “brinquedos velhos”, “reutilizados” para as experiências científicas. Uma matéria sobre a Feira de 1972, por exemplo, registrou “a improvisação e engenhosidade na utilização de materiais simples e cotidianos para a construção [de um] aparelho” (COLÉGIO…, 1972, p.16). Dois anos antes, O Estado de São Paulo já havia descrito a capacidade de improviso dos jovens como um “esforço de futuros cientistas que trabalham apesar das dificuldades” (E, NESTA…, 1969, p.14).
2.2.3. A abertura da Feira às outras disciplinas e às artes
O material levantado revela igualmente que a Feira foi progressivamente aberta às outras disciplinas escolares, para além das “ciências naturais”, e às artes.
A partir de 1969, é possível constatar a presença de trabalhos de ciências humanas, particularmente de Psicologia. Já em 1970, a X Feira de São Paulo passou a aceitar inscrição de trabalhos artísticos “relacionados a temas científicos”: “assim, poderão se inscrever crianças que tenham pintado quadros ou preparado esculturas de ficção científica ou os que retratam algum avanço pela ciência” (FEIRA…, 1970b, p.9). Segundo o Jornal do Brasil, predominaram “as pinturas alusivas à conquista da Lua pelo homem” (FOGUETE…, 1970, p.14).
Em sua coluna dominical da Folha de São Paulo, José Reis registrou essa aproximação entre ciência e arte promovida na Feira de Ciências como um “importante passo” (REIS, 1970, p.1). No artigo, intitulado A arte comparecerá à Feira de Ciências, Reis escreveu que, se por um lado, o encontro entre os dois campos poderia “humanizar a ciência”, também seria capaz de “reformar ou ampliar os recursos da arte com o convívio e a utilização da ciência” (REIS, 1970, p.1).
A partir de 1972, a Feira incluiu trabalhos de música, com apresentações de corais, bandas e fanfarras (ARTE…, 1972, p.21). Nos objetivos da Feira de 1972, encontra-se o de estimular “a cooperação entre os mestres de matérias diferentes, mesmo das que não são em geral enquadradas como ‘ciências’” (COMEÇA…, 1972, p.14).
No ano seguinte, “uma seção de arte e folclore brasileiros” (COMEÇA…, 1973, p.15) e “uma seção de arte da qual concorrem apenas as crianças”, com “trabalhos de desenho, colagem e pintura” (ESTUDANTES…, 1973, p. 25) foram incluídos na Feira. O evento passou a se chamar “Grande Feira de Ciências e Cultura de São Paulo”, com o acréscimo dos termos “Grande” e “Cultura” ao nome. Já a Feira de 1974 teve um grande “desfile de fanfarras”, composto de 38 estabelecimentos de ensino (A FEIRA…, 1974, p.14). Na Feira de 1976, foram registradas apresentações de peças teatrais encenadas por estudantes e conferências sobre “o teatro na escola” e “por que teatro na escola?” (PRODUÇÃO…, 1976, p.12).
Maria Julieta Ormastroni relatou a ampliação do escopo da Feira: “no início, as feiras eram centradas apenas em ciência. Pensamos: ‘Por que não introduzir teatro, música...?’. Começamos, então, a organizar apresentações musicais e de peças teatrais. O projeto ampliou enormemente”5.
2.2.4. As premiações
As primeiras Feiras (1960-1964) premiavam os alunos responsáveis pelos melhores trabalhos com os “kits” de experimentação científica produzidos pelo IBECC (cf. ABRANTES, 2008), além de menções honrosas e da publicação dos nomes dos vencedores, algumas vezes acompanhados de fotos, em jornais. Nas primeiras edições da Feira, os professores de ciências também eram premiados com 5 mil cruzeiros (equivalente a cerca de 900 reais).
Em 1966, ano em que a Folha de São Paulo passou a patrocinar a Feira, foi instituído o Troféu Folha de São Paulo: “estatuetas representando um menino e uma menina de mãos erguidas sustentando a efígie de um cientista nacional” (TROFÉUS…, 1966, p.17).
A partir de 1969, os jornais começaram a anunciar viagens como prêmios aos melhores trabalhos, como uma viagem a Caxias do Sul (RS), para participação na feira de ciências da cidade (ARANHA…, 1969, p.26). Em 1970, outra viagem foi oferecida, à região Norte, além de medalhas e troféus (PRORROGADAS…, 1970, p.9).
Pela análise dos textos jornalísticos, é possível constatar, na virada da década de 1960 para a década seguinte, a presença de uma ideia de competitividade nas feiras. Em 1967, um jornal anunciou o objetivo da Feira de despertar “o espírito de competição” entre os jovens. Já na Feira de 1970, vemos o relato do jornal de que o encerramento da Feira, quando eram distribuídos os prêmios, “assumiu aspectos de verdadeira disputa, com delegações de colégios portando faixas e torcendo ardorosamente por seus colegas” (FEIRA…, 1970e, p.10).
A questão da competitividade no ensino tem sido debatida na literatura sobre educação e, particularmente, em trabalhos sobre atividades como olimpíadas e feiras de ciências. Rezende e Ostermann (2012), por exemplo, apontam para a necessidade de se interrogar a competitividade enquanto um valor fundamental no ensino de ciências (área de conhecimento historicamente excludente). Para os autores, a competição no ensino baseia-se na ideia de que a construção do conhecimento científico seria fundamentada na contribuição de talentos individuais. A noção de que esses talentos podem ser revelados em competições científicas encontra ressonância na política desenvolvimentista do governo brasileiro desde os anos 1960. Desconsiderando as desigualdades pré-existentes e os impactos que o fracasso nessas atividades pode ter para os estudantes, as competições científicas podem acabar reforçando o papel da escola como reprodutora das desigualdades sociais, segundo os autores. Ademais, apontam, a construção de uma relação entre conhecimento, linguagem científica e as situações reais do cotidiano é questionável nesse tipo de atividade.
Ao analisar a história das feiras de ciências dos Estados Unidos, Terzian (2013) identificou a presença de um pensamento meritocrático que ganhou força no período pós-Segunda Guerra Mundial e durante a Guerra Fria. O autor sugere que essa abordagem intensificou a desigualdade educacional e acabou contribuindo para o problema geral de sub-representação de minorias e mulheres em campos científicos.
Sobre o caso brasileiro, Mancuso e Leite Filho (2006) identificam conflitos relacionados à competitividade na história das feiras que prejudicaram seu valor educativo, gerando inclusive um mal-estar com o nome “feira de ciências” e propostas de substituição por termos como “mostra” ou mesmo a abertura às artes.
Na cobertura da Feira de São Paulo, é possível observar como, em 1972, houve uma tentativa de intervenção na tendência à competitividade entre os alunos, quando a XII Feira anunciou o fim das premiações:
o Instituto Brasileiro de Educação, Ciências e Cultura, promotor do certame, não dará prêmios para os trabalhos classificados, como vinha fazendo nos anos anteriores, pois, como afirma o professor Antônio Teixeira, um dos organizadores, “a distribuição de prêmios nunca agradava a todos e não modificava em nada os objetivos da Feira de Ciências” (SÃO…, 1972, p.10).
No mesmo ano foi anunciado que um dos objetivos da Feira seria o de “desenvolver o espírito de solidariedade entre alunos” (COMEÇA…, 1972, p.14). No lugar dos antigos prêmios, haveria apenas uma premiação: os trabalhos com maior destaque seriam apresentados “durante um programa dedicado à Feira de Ciências”, na “TV Educativa, Canal 2” (IBECC…, 1972, p.22).
No ano seguinte, a Feira de 1973 foi anunciada como tendo “caráter de exposição” e não mais de “competição”, como anteriormente (JOVENS…, 1973, p.16). Ainda assim, alguns trabalhos foram classificados como os “melhores”. Para estes, “os prêmios oferecidos”, anunciou a Folha de São Paulo, seriam “exclusivamente livros, uma vez que a promoção visa, acima de tudo, a despertar o interesse pela cultura em geral” (COMEÇA…, 1973, p.15). Durante a Feira, no entanto, foi anunciada a concessão de “uma viagem a Belo Horizonte e Ouro Preto” como premiação aos seis melhores trabalhos (ÚLTIMO…, 1973, p.18). Em 1974, os organizadores anunciaram no jornal que a Feira não tinha:
nenhuma premiação para os trabalhos apresentados pelos estudantes; porém, [...] todos receberão um certificado pela participação, e será sorteado, entre as seis melhores equipes, uma viagem para Belo Horizonte, onde os vencedores também participarão da feira de ciências daquela cidade (COMEÇA…, 1974, p.14).
Apesar da diminuição das premiações e desses anúncios dos organizadores de que o objetivo da Feira não seria mais a competição, é possível observar como os jornais continuaram dando ênfase às palavras “prêmios”, “competição” e “melhores” até o final da cobertura.
2.3. A Feira de Ciências entre a escola e a sociedade: ensino experimental, formação de cientistas e divulgação científica.
O movimento renovador do ensino de ciências no Brasil se inseriu em meio a debates sobre o modelo e o objetivo da escola e sobre o papel da ciência na sociedade brasileira (CASSAB, 2015). Demandas como a ampliação das escolas e da carga horária das disciplinas de ciências, a capacitação de professores e a substituição dos antigos métodos expositivos de ensino por outros em que os alunos tivessem a experiência de “aprender fazendo”, de modo a formar uma população com formação em ciências, dialogavam constantemente com as propostas de uma escola e um ensino de ciências com um papel cada vez mais central no projeto de desenvolvimento do país. As iniciativas de divulgação científica e construção de um papel social da ciência também vinham se fortalecendo quando da criação do IBECC no final da década de 1940 (ABRANTES, 2008). Como observa Cassab (2015), existia na retórica das propostas de reforma do ensino de ciências a associação entre educação científica deficitária e atraso tecnológico. Essa associação servia como elemento legitimador das ações, de forma que investimento no ensino de ciências, ampliação da comunidade científica e progresso apareciam sistematicamente conjugados e fundamentaram as ações do IBECC no campo da ciência e do ensino de ciências (ABRANTES, 2008; CASSAB, 2015, p.27). Na cobertura jornalística da Feira de Ciências de São Paulo é possível observar as maneiras específicas como essas mesmas associações aparecem nas décadas de 1960 e 1970.
A Feira de São Paulo era apresentada pelos jornais como uma forma de aplicação dos novos métodos de ensino experimental que baseavam o movimento de renovação do ensino de ciências encabeçado pelo IBECC. Em texto sobre a III Feira de 1962, o jornal Correio Paulistano publicou o argumento do Instituto de que “o ensino das Ciências em nossas escolas peca por ser livresco, desinteressante e mesmo desagradável para os alunos, que se vêem obrigados a decorar textos abstratos” (CIENTISTAS…,1962, p.4). Por isso, a entidade organizaria feiras de ciências como parte da luta pela “transformação” e “dinamização do ensino científico” (CIENTISTAS…,1962, p.4). Já em texto da Folha de São Paulo sobre o IBECC e a Feira de 1969, é possível observar o apoio do jornal aos métodos de ensino experimental, quando lemos que “estudar ciência praticando, através da experiência pessoal, é o único jeito de aprender” (IBECC…, 1969, p.40). Os objetivos para a realização de feiras de ciências mais anunciados nos jornais eram os de “despertar o espírito científico, o interesse à vocação científica” entre os estudantes. Algumas matérias focaram na capacidade que os estudantes apresentavam de elaborar e produzir aparelhos e demais experimentos, contando apenas com a orientação dos professores, e de realizar uma exposição clara dos seus trabalhos, dominando conceitos e métodos científicos. É possível ver como os jornais atribuíam essa capacidade aos métodos de ensino prático e experimental que a Feira de Ciências representava, como quando o Estado de São Paulo fala da Feira representando o “esforço de renovação de métodos e práticas escolares de ensino de ciências” (GRANDE…, 1971, p.152) promovido pelo IBECC. Nesse sentido, é possível constatar que os jornais analisados consideravam as feiras de ciências estratégias eficazes de transformação do ensino de ciências no país.
A possibilidade de engajamento dos jovens em carreiras científicas também era um objetivo importante presente nas matérias, especialmente nos editoriais dos jornais e nas falas dos organizadores entrevistados. Logo após a I Feira, O Estado de São Paulo publicou um editorial sobre a iniciativa. Nele, afirmou que os trabalhos expostos nas feiras significavam “o futuro acenando”, “a imagem do Brasil moderno e, sobretudo, a do Brasil do futuro” refletida (NOTAS…, 1960, p.3). É possível verificar esse mesmo otimismo com os resultados a longo prazo das feiras de ciências em outras matérias. Em editorial do Correio Paulistano comemorando o sucesso da I Feira lê-se:
sem cientistas e futuros cientistas, será fantasia, e ilusão remota, e inconcretizável, as aspirações de desenvolvimento econômico do Brasil. A ciência, cultivada por equipes que se renovam e se ampliam [...], é a única segurança, efetiva e real, para o fortalecimento de nossa civilização. [...] Por estas razões, a I Feira de Ciências, dos jovens estudantes, é um fato que merece apoio e incentivo [...]. São os futuros ‘cientistas de amanhã’ de que tanto necessita o Brasil (NOS…, 1960, p.6).
Sete anos depois, é possível verificar a presença do mesmo otimismo em editorial d’O Estado de São Paulo, logo depois da VII Feira de 1967, onde ensino experimental e formação de novos cientistas aparecem conjugados:
[as feiras de ciências] são eloquentes manifestações de que os jovens brasileiros desejam aprender enveredando-se pela escola da experimentação, da prática e dos ensaios de laboratório [...]. Não restou dúvida nenhuma de que, se assistidos e estimulados como convém, os jovens de hoje poderão responder em futuro próximo por uma frutuosa floração da ciência entre nós (ESTÍMULO…, 1967, p.12).
Em 1970, em texto sobre a X Feira, a Folha afirmou: “daqui que sairão os grandes cientistas que orgulharão mais tarde o Brasil” (FEIRA…, 1970a, p.12).
Os jovens estudantes eram constantemente descritos como “cientistas-mirins”, “mini-cientistas”, “jovens-cientistas” ou “cientistas do futuro”. Expressões como “minigênios” ou apenas “cientistas” também estão presentes”. Alguns textos focam na “genialidade” dos melhores estudantes, como no caso de uma matéria de 1969 que registra: “os promotores da Feira estão sempre à procura de novos gênios e é com orgulho que eles dizem que, no passado, já encontraram alguns, que muita gente boa foi descoberta na exposição” (E, NESTA…, 1969, p.14). Na descrição de alguns dos estudantes entrevistados, os jornalistas incluíram as profissões almejadas no futuro. A maioria citou algum ramo das engenharias ou da medicina. Estas referências tinham a clara intenção de comprovar a tese de que aqueles jovens tinham vocação para a ciência e pretendiam seguir carreira científica.
A análise das matérias nos permitiu observar um terceiro aspecto sobre a Feira: ela também era apresentada como tendo a função de ser um meio de divulgação científica. Os jovens expositores eram instigados a apresentar ao público visitante os métodos, execuções, princípios e objetivos da pesquisa científica como uma forma de informar à sociedade sobre o universo da ciência. Como se observa em um dos textos, um dos objetivos das feiras a partir de 1970 é o de “despertar no homem comum o interesse pela ciência” (COMO…, 1970, p. 2). Em 1971, lemos que “adultos podem aprender com jovens expositores da XI Feira de Ciências” (ADULTOS…, 1971, p.5). Já em 1972, é possível observar um texto do Estado de São Paulo sobre a XII Feira intitulada Ciência vai às ruas para educar o povo (CIÊNCIA…, 1972, p.12).
Segundo os textos jornalísticos, o modelo predominante na Feira de São Paulo parece ser o modelo de déficit: predominante na divulgação científica, separa produtores e consumidores do conhecimento e apresenta as atividades de divulgação de maneira linear e unidirecional; a informação fluiria de indivíduos dotados que detêm os conhecimentos científicos para uma massa amorfa e carente de conhecimentos, visando tornar a população melhor educada (BROSSARD; LEWENSTEIN, 2010). Isso é evidenciado nos textos que relatam que os jovens eram aqueles que “expunham”, “apresentavam” e “informavam” ao “público”. Sua capacidade de explicação dos “complicados princípios científicos” com o uso de “linguagem científica” se vê presente (BOAS…, 1968, p.7). Em 1962, o jornalista se surpreendeu com os alunos que “faziam questão de parar os visitantes para lhes ministrar explicações a respeito dos aparelhos, segundo eles, ‘complicados para leigos’” (FEIRA…, 1962, p.9).
Os visitantes eram representados como aqueles que “deviam comparecer” às feiras de ciências para “aprender com os estudantes”, abastecendo-se de conhecimento científico. Também eram apresentados como os que se “surpreendiam” com a capacidade intelectual e expositiva dos jovens. Sua atividade mais ativa era a “pergunta”, embora pouco presente. A legenda de duas fotografias de uma matéria de 1972 ilustra essa posição: os visitantes “ouvem com atenção as explicações minuciosas dos alunos. Todos perguntam, observam, examinam os detalhes do trabalho” (ELES…, 1972, p.20). As duas fotos mostram a mesma cena: homens adultos observam os estandes, enquanto um estudante jovem gesticula.
Considerações finais
A análise do material jornalístico permitiu a sistematização de alguns dados que reconstroem parte da história da Feira de Ciências de São Paulo e seus principais atores. Foi possível constatar que, entre 1960 e 1976, foram organizadas 15 edições da Feira, em quatro locais distintos, com variados apoios e patrocínios e distintas premiações. Tendo à frente Maria Julieta Ormastroni e Isaías Raw, e apoio ativo e fundamental de José Reis, a Feira de São Paulo constituiu-se como um importante evento de demonstração de trabalhos científicos elaborados pelos alunos da capital e do interior do estado durante o ano letivo. Observamos o destaque dado pelos jornais aos trabalhos com animais, “aparelhos”, robôs e foguetes e a expectativa de aplicabilidade tecnológica dos trabalhos. Algumas mudanças nos padrões de trabalhos expostos pelos estudantes, como a introdução de trabalhos artísticos e aqueles preocupados com o meio em que estavam inseridos, como o caso dos trabalhos com temática ambiental, também puderam ser observadas.
A Feira de Ciências de São Paulo teve uma presença importante nos jornais da época e foi tratada pelos jornais como a mais desenvolvida, com mais participantes e público visitante e mais bem organizada do país, servindo de referência para a organização de outras feiras pelo restante do país e mesmo internacionalmente. Por esse motivo, a Feira pode ser considerada a mais importante feira do período e o centro irradiador do movimento de feiras de ciências que se desenvolveu nas décadas de 1960 e 1970 pelo seu tamanho e popularidade.
Um aspecto importante em discussão se refere às altas expectativas existentes em torno das feiras de ciências como parte do movimento de renovação do ensino de ciências, foco de ações do IBECC. Os jornais apresentavam alguns resultados positivos das Feiras para a formação dos estudantes, como sua capacidade de criação de aparelhos e demonstração de métodos e conteúdos científicos, de maneira a defender a eficácia de tais métodos.
Autores contemporâneos discutem em que medida as várias ações e investimentos existentes desde a década de 1950 resultaram numa melhoria de fato do ensino de ciências, no Brasil e em outros contextos. Rezende e Ostermann (2012), por exemplo, apontam que não há, atualmente, um ensino de Ciências adequado nem em termos das necessidades formativas dos cidadãos, do interesse dos alunos ou com relação à formação epistemológica. Ainda assim, diversos autores defendem a importância da realização de feiras de ciências como eventos motivadores para alunos e professores, promotores de uma melhor alfabetização e educação científica e de integração escola-comunidade (MANCUSO; LEITE FILHO, 2006).
A análise das matérias permitiu observar também como os jornais defenderam a tese de que as feiras seriam uma importante estratégia de engajamento dos jovens nas carreiras científicas. Abrantes (2008) argumenta que as ações do IBECC, levadas adiante por cientistas e educadores interessados na reforma educacional e na legitimação da ciência, formularam uma via de inscrição da ciência no projeto de desenvolvimento do país. Nesse sentido, é possível considerar que a presença da Feira nos jornais reforçava sua inserção no interior de um projeto de desenvolvimento nacional baseado no fortalecimento da ciência e da tecnologia.