Premissa
O ensino secundário, como observado por Marie-Madeleine Compère (1995) em um estudo comparativo sobre a história da educação europeia parece ser o fantasma da historiografia, pois, não constituindo uma área autônoma de pesquisa como, por exemplo, a infância, a alfabetização ou a universidade, é até mesmo problemática a sua definição.
Voltando recentemente ao assunto, W. Frijhoff (2009) não deixou de apontar que sua aplicação nos tempos modernos é completamente anacrônica: se, por um lado, “o ensino dos colégios, escolas latinas, grammar schools e gymnasia não constituíam a continuação lógica da educação elementar, da qual, muitas vezes, incorporava elementos relativamente importantes” (FRIJHOFF, 2009, p. 86, tradução nossa), do outro lado, “na percepção de muitos contemporâneos próprios, o colégio, ou a escola latina, não era considerado como uma instituição secundária, mas como parte do ensino superior, do qual representava a fase preparatória, a primeira etapa” (FRIJHOFF, 2009, p. 85, tradução nossa). O anacronismo do conceito de “ensino secundário” para a era moderna e sua auto-evidência para nós contemporâneos criou uma persistente confusão conceitual na literatura relativa à história dos processos educacionais.
É conhecido como Compère (2001), ao abordar e situar historicamente a problemática, identifica a origem do ensino secundário no “Colégio de humanidades” do século XVI, tirando, com Savoie (2001), as seguintes conclusões:
A escola não se resume, pensamos ter mostrado, a uma conveniência lógica. Sua organização, a lógica de seu desenvolvimento, seu governo, sua própria existência tiveram um efeito de primeira ordem em toda a instituição educacional. Desempenhava, assim, um papel histórico fundamental na estruturação do ensino secundário, do qual o advento para escolarização é apenas a consequência distante - só a partir da década de 1830 que a própria expressão do ensino secundário entra na prática administrativa - do sucesso dos liceus criados em 1802 e se tornaram, não sem dificuldades e adaptações, os estabelecimentos modelos do colégio de humanidades, mas também da própria escola. A história do ensino secundário e a dos estabelecimentos estão, portanto, intimamente ligadas. Este parece-nos ser o melhor argumento a favor dos estudos históricos centrados nos estabelecimentos secundários (COMPÈRE, 2001, p. 20, tradução nossa).
Não há dúvida de que a história do Etablissement scolaire (Instituição escolar) - ao qual Compère (2001) dedicou um extenso programa de pesquisa que resultou no monumental repertório sobre Les Collèges francais (XVIe-XVIIIe siècle) (Os Colégios Franceses - séculos XVI a XVIII), em colaboração com Dominique Julia (2001), trouxe elementos e abordagens de fundamental importância para a história da educação; no entanto, ao estabelecer uma relação simbiótica entre a história do ensino secundário e a história dos colégios, corre-se o risco de colocar em segundo plano o reformismo napoleônico, que parece ser fundamental para a elucidação do problema do ensino secundário e, de forma mais geral, para uma renovada análise histórica dos processos de modernização na Europa.
De fato, nos últimos anos houve uma renovação dos estudos sobre a política napoleônica que começa a ser estudada com referência ao contexto europeu, superando assim o modelo historiográfico francês2.
Esses estudos convergem no reconhecimento da modernização do aparelho estatal e do estabelecimento de uma nova relação entre Estado e sociedade civil para o reformismo napoleônico, efeito que irá além do trabalho temporal de sua dominação:
Durante o período napoleônico, a Europa fez a transição do antigo regime para o período moderno […] Napoleão não era apenas um conquistador e um ditador explorador. De fato, foram as políticas de reforma de Napoleão que deixaram o maior impacto no continente […] A reforma mais bem-sucedida de Napoleão foi a criação do estado central moderno […] O crescente poder e eficácia do Estado alterou significativamente as relações entre Estado e sociedade civil. […] Em suma, uma compreensão do legado napoleônico é essencial para a compreensão do estado e da sociedade europeia do século XIX (GRAB, 2003, p. 204, tradução nossa).
No contexto da atual renovação metodológica e crítica, o presente trabalho visa elucidar o reformismo napoleônico no campo da educação, com foco na gênese do ensino secundário como arquitrave de um sistema educacional moderno, implantado na França imperial e estendido aos estados satélites.
O período revolucionário
Antes de abordar os núcleos reformistas da política escolar napoleônica, convém relembrar brevemente as medidas adotadas durante o período revolucionário, que constituíram, no nosso discurso, a pars destruens do processo de modernização da educação.
Com as medidas tomadas durante a Assembleia Constituinte e o Decreto Legislativo, o sistema de ensino do Antigo Regime foi definitivamente suprimido, para o qual foi necessário partir das ideias expressas e dos projetos formulados, entre 1789 e 1793, para configurar uma nova organização escolar, que se fez necessária devido às intervenções fragmentárias realizadas no mesmo período. A reforma foi implementada, durante a Convenção, essencialmente através dos seguintes textos legislativos:
1) O decreto de 30 de outubro de 1793, que estabeleceu um princípio de organização geral: ensino primário gratuito e admissão de alunos a partir dos seis anos; obrigação de estabelecer uma escola primária em localidades com população entre 400 e 1500 habitantes; qualificação de professores como funcionários públicos assalariados;
2) O decreto de 19 de dezembro de 1793, ou decreto Bouquier, que promoveu um “plano nacional de educação”, baseado na gratuidade, obrigatoriedade e laicidade do ensino primário, conformado a princípios revolucionários através da adoção de textos aprovados pela Convenção; também estabeleceu o princípio da liberdade de ensino;
3) O decreto de 17 de novembro de 1794, o chamado decreto Lakanal que, tendo abandonado a obrigatoriedade, previa a fundação de escolas primárias em municípios com população superior a 1000 habitantes e introduzia, pela primeira vez, um programa de ensino: leitura, escrita, declaração de direitos, constituição, elementos da gramática francesa, aritmética, noções de agricultura, noções de história natural e recitação de canções heroicas;
4) O decreto de 25 de fevereiro de 1795, que regulamentou as escolas secundárias com a criação de “escolas centrais” (1 para cada 300.000 habitantes), distribuindo o ensino na forma de cursos centrados em literatura, artes e ciências. Ao nível do ensino superior, a Convenção estabeleceu “escolas especiais”, institutos de investigação e formação independentes e independentes, tais como: o Museu, o Conservatório de Artes e Ofícios, as Escolas Médicas, a Escola de Línguas Orientais e as obras públicas;
5) Finalmente, a lei de 25 de outubro de 1795, ou lei Daunau, considerada a carta escolar da Revolução, que vigorou durante os anos do Diretório, que previa: o estabelecimento de uma ou mais escolas primárias por localidade, ensino primário não obrigatório nem gratuito, com professores pagos pelos alunos e escolhidos e supervisionados pelo “júri do ensino”, designado pelas autarquias e departamentos; a organização de escolas centrais (pelo menos uma para cada departamento, com programa e ciclo de estudos bem definidos). A lei Daunau também reorganizou o ensino superior, enumerando as Écoles (escolas) que compunham o grau superior e fundando o Institut National des sciences and des arts (Instituto Nacional de ciências e artes), com três ramos: ciências físicas e matemáticas; ciências morais e políticas; literatura e belas-artes3.
A instituição do Liceu (1802)
A Lei de número 11 Floréal, ano X (1 de maio de 1802), geralmente definida pelos historiadores franceses como loi sur les lycées (Lei sobre os Liceus), surge, como debateu Boudon, “na origem de uma primeira tentativa de organização completa do sistema educacional na França napoleônica” (BOUDON 2004, p. 07, tradução nossa)4. Tornada necessária para regular a confusa sobreposição de intervenções no setor da educação pública, consequência da política escolar do período revolucionário, a lei confiou o ônus da educação primária aos municípios e dividiu o ensino secundário entre os liceus estatais e as escolas secundárias financiadas por municípios ou particulares, intervindo também no setor superior com o reforço das chamadas “escolas especiais".
O liceu que substituiu as escolas centrais do período revolucionário, embora evocasse em seu nome o plano formulado por Condorcet em 1791, não representou uma ruptura com o Antigo Regime, mas uma recuperação de seu legado: essa tese historiográfica, mesmo no aparente paradoxo de sua formulação, no estrabismo entre o “velho” e o “novo” regime, é hoje um ponto fixo da historiografia francesa resultante dos estudos realizados por Compère (1985) e Savoie (2001)5: “O Liceu é o retorno, para a formação geral das futuras elites, ao estabelecimento escolar no sentido pleno do termo (tradução nossa)”, e seu protótipo enraizado no antigo colégio jesuíta do século XVI. Segundo Savoie (2001), a mudança não deve ser traçada no plano de estudos proposto, mas no próprio estabelecimento “o que implica uma orientação pedagógica e um modelo de vida escolar” (SAVOIE, 2001, p. 41, tradução nossa), segundo a tradição dos colégios jesuítas, adequados a formar “um conjunto estruturado em classes cuja sucessão forma um currículo definido e oferece uma variedade de serviços associados ao ensino (supervisão, repetição de aulas e supervisão de trabalhos escritos, cursos e atividades auxiliares)” (SAVOIE, 2001, p. 41, tradução nossa).
O internato, portanto, constituía a fórmula pedagógica do ensino secundário em que o internato era o principal objetivo educacional, embora o instituto também fosse aberto a alunos externos que pudessem usufruir de parte dos cursos.
Entre os motivos que levaram ao ressurgimento do modelo colegial jesuíta, remodelado por Napoleão segundo a disciplina das escolas militares modernas, a historiografia francesa identificou o fracasso das escolas centrais instituídas em 1795 e organizadas, no mesmo ano, pela Lei Daunau, que previa a presença de pelo menos uma escola central em cada departamento, com plano de estudos, alargado por três ciclos, com vocação científica específica6.
No projeto geral, as escolas centrais constituíam a passagem intermédia entre o ensino básico e o ensino superior, mas, o excessivo fosso cultural entre as escolas primárias e centrais, a dificuldade em recrutar um corpo docente qualificado, a fixação do plano de estudos científicos - sentida pela nova classe burguesa desqualificada em relação à cultura humanista -, a desconfiança das famílias em relação a uma instituição completamente laica, contribuiu para o fracasso da mesma, apesar de sua presença atestada em cerca de cem unidades (JULIA, 1987), determinando o sucesso das escolas particulares, laicas ou eclesiásticas, pensionatos, que forneciam formação e ensino mais tradicionais, baseados na educação cristã e na cultura clássica.
Não enquadrada na gestão direta do Estado, a primeira tentativa de organização de um “setor secundário” levou a uma desordem generalizada causada pela concorrência de institutos de formação públicos e privados em direções díspares, que a lei de 1 de maio de 1802 pôs fim:
Enquanto os regulamentos de 1795 deixaram completamente de lado a questão da concorrência, os de 1802 pretendem colocar essa concorrência em um sistema com estabelecimentos do Estado para controlá-la, transformá-la e, ao fim, colocá-la a serviço da instrução pública (SAVOIE, 2001, p. 43, tradução nossa).
Podendo contar com a centralização administrativa, com o Ministério do Interior de que dependia o ensino público e com uma organização hierárquica departamental, instituída no ano VII (1800), colocada sob o controle de prefeitos e subprefeitos, a lei, estabelecendo escolas secundárias colocou as diretrizes fundadoras do segundo grau do ensino público, que era deficiente no sistema escolar revolucionário, em detrimento dos municípios ou particulares; os liceus representavam o terceiro grau:
Que é aproximadamente o das antigas escolas centrais e as escolas especiais do nível superior. De fato, os liceus recrutam alunos ainda jovens e de nível acadêmico comparável aos das escolas secundárias. O que determina sua superioridade é o nível de suas classes superiores (SAVOIE, 2001, p. 43, tradução nossa).
Esta relação entre escola secundária e liceu requer alguns detalhes explicativos7: uma parte das vagas do liceu era reservada a alunos financiados com bolsas e recrutados entre filhos de soldados e oficiais, um terço, e entre os melhores alunos do ensino secundário, dois terços, que ingressavam nas classes superiores por seleções, para “despertar a emulação entre os diretores das escolas secundárias e incentivá-los a concordar com os esforços necessários para atualizá-los e colocá-los em conformidade”, com o objetivo dos redatores da lei de “fazer das escolas secundárias os satélites dos Liceus” (SAVOIE, 2001, p. 43, tradução nossa).
Este sistema de rede pressupunha uma presença limitada de liceus (já não previstas, como as escolas centrais, em uma divisão departamental, mas apenas onde estivessem presentes os tribunais de apelação) ladeadas por uma presença conspícua de escolas secundárias: a primeira visava a formação de uma elite, os outros chamaram a fornecer educação limitada à formação de quadros intermediários.
Entre 1802 e 1806, foram promulgadas as regras de aplicação para a organização pedagógica e administrativa dos liceus e das escolas secundárias, para dar um aspecto definitivo aos dois tipos de estabelecimento (GONTARD, 1984).
No que diz respeito aos liceus, por decreto de 27 de Outubro de 1802, fixou-se a divisão de pessoal e o vencimento salarial; com o decreto de 10 de dezembro de 1802, a organização pedagógica foi regulamentada: os ensinamentos-chave foram identificados em latim e matemática; todas as demais se organizaram em torno delas, dispensadas da sexta classe inicial, até a primeira.
O curso de latim foi confiado a 3 professores que asseguravam 2 aulas por dia, de manhã e à tarde. Na sexta série ensinavam-se latim e os primeiros elementos de cálculo; na quinta, o latim e as quatro operações aritméticas; na quarta, foi ministrado um ensino complementar de geografia e, nas demais aulas, de história. Da mesma forma, o curso de matemática foi confiado a três professores: no sexto, o ensino da matemática e as primeiras noções de história natural; na quinta, os elementos da esfera; na quarta, física e nas três últimas aulas, respectivamente, astronomia, química e mineralogia.
No final das seis aulas, era possível aceder aos dois cursos superiores, repartidos por dois anos e, respectivamente, confiados a um professor de literatura: para aprender latim e francês e “belas literaturas”; e na ciência: para aprender matemática transcendente (cálculo diferencial e princípios gerais da física). Além desses ensinamentos, havia também aulas de caligrafia, desenho, ginástica, dança e música ministradas por professores na presença de um capelão.
A organização era de tipo militar: os alunos eram divididos em grupos de 25, chefiadas por um sargento e 4 cabos escolhidos entre os melhores alunos.
Com o decreto de 10 de Junho de 1803, a administração e a vida interna do liceu foram organizadas. A administração foi confiada a dois conselhos e três administradores: o primeiro, chefiado pelo prefeito, controlava a gestão financeira; o segundo, ou o conselho de administração, era presidido pelo reitor, que também era o diretor do liceu. Além disso, foi introduzida a antiga figura do inspetor, chamada a supervisionar os alunos para a conduta e o progresso, e as figuras dos professores a ele sujeitas. A gestão financeira foi atribuída ao advogado responsável perante o conselho de administração.
O corpo docente também foi regulamentado e, por fim, foi regulamentada a vida interna do estabelecimento: a programação diária das atividades dos internos, o calendário escolar, penalidades e recompensas.
O programa de estudos das escolas secundárias, já estabelecido pela lei de 1 de maio de 1802, limitava-se a “a língua latina e francesa, os primeiros princípios da geografia, história e matemática”8. Separados em escolas secundárias particulares ou municipais, ambos estavam sob a vigilância do prefeito. Com o decreto 19 vendémiaie ano XII, foram dadas regras precisas para seu controle, para a nomeação de professores e do diretor, e a vida interna do internato foi regulamentada de acordo com as regras já estabelecidas para o liceu, mas com um caráter menos militar.
Entre 1802 e 1805, 29 liceus foram estabelecidas, havia 370 escolas secundárias municipais e 377 escolas particulares, muitas das quais eclesiásticas, especialmente seminários menores, autorizadas após a assinatura da Concordata (CHEVALLIER, GROSPERRIN, MAILLET, 1968-1971): aparentemente o setor secundário definitivamente decolou. Na realidade, existiam inúmeras dificuldades administrativas, pedagógicas e disciplinares nos liceus mas sobretudo, como salientou Gontard (1984, p. 78, tradução nossa), “os obstáculos essenciais experimentados pelos liceus em seu nascimento eram de ordem psicológica e política”: a disciplina marcial levou muitos chefes de família a acreditar que os futuros soldados seriam treinados e houve inúmeras queixas de irreligiosidade e frouxidão moral do pessoal empregado por aqueles que mal toleraram o novo instituto de treinamento. Ao mesmo tempo, o sucesso das escolas secundárias evidenciou dois grandes problemas: a incapacidade de dar homogeneidade às várias instituições, muitas das quais acabaram por ser pouco mais do que escolas primárias; o surgimento dos inúmeros seminários que, como subordinados, assumiram o papel de protagonistas na formação, com o risco de distorcer a educação pública (GONTARD, 1984).
Uma primeira solução foi tentada retocando, a partir de 1805, o regime disciplinar dos liceus e resolvendo os problemas relacionados com o recrutamento, mas não escapou a Napoleão e aos seus colaboradores mais próximos, incluindo o diretor do ensino público, Fourcroy, pai da lei de 1.º de maio de 1802, o ponto fraco do regime educacional: ser absolutamente desprovida de cérebro. Na reforma implementada, o ensino superior, com suas muitas escolas especiais e autônomas, era quase independente do setor secundário, constituindo uma simples quarta série do ensino. No que lhe concerne, o setor secundário, embora planejado em dois níveis distintos e interligados - ensino secundário e liceus - sem um ponto para o qual direcionar, permaneceu inviável, caindo, entre outras coisas, no antigo regime competitivo entre público e privado dentro dele, na oposição dicotômica nunca superada entre o leigo e o eclesiástico. Fourcroy apontou em seu relatório ao imperador de março de 1806, possível escapar do impasse, tornando: “o estudo nos liceus necessários para várias esferas da sociedade, como antigamente nas universidades, para alcançar o sacerdócio, as licenças de direito e medicina, educação pública e talvez os primeiros lugares de administração” (DIRETOR GERAL DA INSTRUÇÃO PÚBLICA, 1806, s/p). Para isso, alertou Fourcroy, era essencial restabelecer um diploma como o da antiga maîtrise ès-arts: “Restauraremos assim o que existiu outrora na Universidade”9. Estavam assim lançadas as bases para a posterior e completa organização do sistema de ensino público.
L’Université impériale: moderno sistema de educação pública
O modelo das antigas universidades do Antigo Regime constituiu a referência histórica e legítima para a implementação de uma reforma educacional visando a criação de um sistema de ensino público moderno e funcional, capaz de fechar o círculo reformista do período napoleônico.
O sistema de educação pública foi redefinido com a lei de 10 de maio de 1806 que, no primeiro de seus três artigos, estabeleceu a Université impériale (Universidade Imperial), concebida como uma comunidade corporativa de associados: “Será formada, sob o nome de Université impériale, um órgão incumbido exclusivamente do ensino e da educação pública em todo o Império” (SAVOIE, 2001)10.
O novo sistema educacional napoleônico nasceu, portanto, sobre dois pilares: a corporação da antiga universidade de Paris e o modelo de estruturação hierárquica da congregação jesuíta. O próprio Napoleão observou:
Haveria um corpo docente se todos os diretores, inspetores, professores do Império tivessem um ou mais dirigentes como os jesuítas tinham um general, provincianos, etc., se houvesse na carreira de magistério uma ordem progressista que mantivesse a emulação e mostrar, nos diferentes períodos da vida, um alimento e um objetivo de esperança […] Todos sentiram a importância dos jesuítas, não tardaremos a sentir a importância da carreira do ensino (Correspondance de Napoléon, Tome X, 15 février 1805, tradução nossa).
Nesse conjunto orgânico de interdependência mútua entre as duas estruturas de sustentação, a hegemonia do Estado se colocaria como única homologadora do ensino e das respectivas habilitações acadêmicas recuperadas das antigas universidades e divididas nos três graus progressivos: bacharelado, licença e graduação.
Na prática, a Université impériale (instituída pela lei de 1806 e organizada pelos decretos de 1808), era constituída por um sistema de ensino público fundado em dois pressupostos essenciais: a prerrogativa estatal do ensino e a exclusividade dos graus: a primeira, assegurada pela agregação de cada instituição de ensino à Université impériale: “Nenhuma escola, nenhum estabelecimento de ensino, pode ser formado fora da Université impériale e sem a autorização de seu chefe”11; a segunda, garantida pelas faculdades universitárias reconstituídas.
Os dois pressupostos desenvolveram a possibilidade de recriar o corpo docente: “Ninguém pode abrir uma escola nascida para ensinar publicamente sem ser membro da Université impériale e se formar em uma de suas faculdades”12.
O decreto de 17 de março de 1808 reformou as ordens escolares, estabelecendo no artigo 5 que:
- As faculdades, dedicadas ao ensino das ciências e únicas que deliberam os graus acadêmicos correspondentes;
- Os liceus que ensinavam línguas antigas, história, retórica, lógica e os elementos de matemática e física;
- Os colégios, entendidos como a redefinição das escolas secundárias municipais pelo decreto 1802, em que se ensinavam “elementos de línguas antigas e primeiros princípios de história e ciência” (tradução nossa);
- Os institutos ou escolas particulares em que “o ensino é semelhante ao das faculdades” (tradução nossa);
- Os pensionatos, também escolas particulares, mas “dedicados a estudos menos intensos que os das instituições” (tradução nossa); - escola primária, em que “onde se aprende a ler, a escrever e as primeiras noções do cálculo” (tradução nossa).
Ficaram excluídos da Université impériale e de seu controle direto: o College de France (Colégio da França), o Museum (Museu), as escolas especiais (Polytechnique, Navale, Art et Métiers, a accademia militare de Saint-Cur) e os seminários (GONTARD, 1984).
A Université Impériale como instituição do Estado incorporando em seu seio escolas públicas e privadas de todos os tipos e níveis, e capaz de constituir um corps inseignante (corpo docente) por uma formação de “grau acadêmico’, necessitava necessariamente de uma organização administrativa poderosa, que se previa dividida em três ordens: administração central, acadêmica e provincial (CHEVALLIER, GROSPERRIN, MAILLET, 1984).
No que respeita à administração central, três altos funcionários foram colocados no topo da Université impériale: o grand maître, com funções administrativas e disciplinares, nomeou o pessoal, concedeu as bolsas, aprovou as autorizações para a abertura dos novos institutos, aprovou os graus e sanções impostas; o escrivão, com funções administrativas, e o tesoureiro responsável pelas questões financeiras. O grand maître presidia o Conselho Universitário, composto por trinta membros, com funções administrativas, disciplinares e pedagógicas e responsável, entre outras coisas, pela elaboração de regulamentos, assuntos disciplinares e assuntos didáticos, como a escolha dos textos a serem adotados. A administração central era completada pelo corpo de inspetores gerais, nomeados diretamente pelo grand maître, responsáveis pelas inspeções das faculdades, liceus e colégios. Na administração acadêmica (constituída por 27 academias correspondentes aos cursos), o reitor foi colocado à frente, presidente do conselho académico, composto por dez membros, chamado a examinar as tarefas dos liceus e colégios e a lidar com disputas relativas às escolas e academias. Também foram estabelecidos inspetores acadêmicos que, além de controlar as faculdades, asseguravam inspeções em faculdades, institutos, pensões e escolas primárias. A administração da prefeitura foi incumbida de um controle adicional e, se necessário, os subprefeitos poderiam ser delegados pelo prefeito para supervisionar faculdades, liceus e institutos.
Na reativação das antigas faculdades do “Estudo Geral”: medicina, direito, teologia, letras e ciências, ao lado das escolas especiais preservadas, formou-se o segmento superior, expressamente destinado à formação de quadros do Estado e da sociedade: militares na academia e nas escolas politécnicas; técnicos nas escolas de engenharia; pessoal administrativo, financeiro e jurídico da faculdade de direito; docentes e gestores intermédios nas faculdades de literatura e ciências; profissionais das faculdades de medicina e direito e quadros eclesiásticos da faculdade de teologia (CHEVALLIER, GROSPERRIN, MAILLET, 1968-1971).
Napoleão estava firmemente convencido de que a razão de ser do ensino superior deveria ser a utilidade profissional13. A qualificação apresentou-se, portanto, como o instrumento mais adequado para garantir o nascimento de uma “aristocracia do intelecto” que garantisse a estabilidade política e social e conseguisse de assegurar a própria existência do Estado administrativo, pois era o único capaz de garantir ingresso em carreiras e profissões através de um controle sobre as habilidades que temporalmente se tornarão um ponto forte da Universidade.
Inevitavelmente, o novo regime universitário impôs uma mudança radical no equilíbrio de poder entre o liceu e escolas secundárias que não resultou em ruptura com o projeto de 1802: “O que está mudando [...] é a relação do Estado com os estabelecimentos privados” (SAVOIE, 2001, p. 48, tradução nossa), finalmente colocados em regime complementar com as instituições públicas, em um sistema de ensino gerido, controlado e fiscalizado pelo próprio Estado. Do ponto de vista educacional, um plano de estudos completamente remodelado foi devolvido à tradição humanística estabelecida pelos jesuítas, e abandonado o cenário dado em 1802, que previa para o liceu um caminho voltado para o latim e a matemática: o novo curso médio incluía dois anos de gramática, dois anos de humanidade, um de retórica e um de matemática e física14; dessa mesma extensão dos estudos, foi fácil estabelecer, por decreto de 15 de outubro de 1811, uma hierarquia entre os estabelecimentos, proporcionando, para os colégios e institutos, ensinamentos que atingiam as classes da Humanidade, e, para os pensionatos, até as aulas de gramática15.
Tendo estabelecido o grau de bacharel em letras como qualificação necessária para poder atingir qualquer grau acadêmico nas faculdades16 com um decreto de 17 de outubro de 1808 a preparação para o exame de bacharelado em letras foi transferido das faculdades para o liceu: “Para ser recebido como bacharel na faculdade de letras, será necessário ter dezesseis anos, responder sobre tudo o que é ensinado nas classes superiores dos liceus. Também será necessário apresentar um certificado dos professores de um liceu indicada pelo diretor e que comprove a frequência de dois anos” (PIOBETTA, 1937, p. 24, tradução nossa). O liceu, no novo sistema, assumiu uma posição hegemônica, fortalecido em seu papel-chave pelas medidas de 1811, terceira e última fase da legislação escolar napoleônica: as disposições implementadas com os 193 artigos do decreto de 15 de novembro de 1811, descrito pela historiografia francesa como medidas draconianas, destinadas a fortalecer o direito definitivo reservado ao Estado sobre a educação após a proliferação de instituições educacionais confessionais, especialmente seminários menores, que escaparam do controle estatal. Em seu conteúdo, o decreto anunciava a criação, entre 1812 e 1813, de 100 liceus no território imperial. Além disso:
Para as escolas laicas, é feita uma distinção entre instituições ou pensionatos localizadas em cidades com tais estabelecimentos. As instituições da primeira categoria lecionarão até as aulas de humanidades inclusive, enquanto os pensionatos se deterão ao nível das aulas de gramática (mais alguns elementos de aritmética e geometria) (art. 16). Instituições rivais de um liceu ou escola só podem ensinar os primeiros elementos (leitura, escrita) (art. 15). Pensionatos nas mesmas condições de localização só podem ter pensionistas com idade superior a nove anos, desde que escolas e faculdades não possam acomodá-los (CHEVALLIER, GROSPERRIN, MAILLET, 1968-1971, p. 53, tradução nossa).
Além disso, os seminários menores também foram regulamentados, colocando-os sob o controle direto da Universidade (artigo 15), limitando sua presença a um por departamento, proibindo-os no campo (artigos 27-29)17.
Estas disposições, apesar do pragmatismo que as motivava (em particular, a proliferação de institutos eclesiásticos), entravam plenamente no projeto básico estabelecido a partir de 1806: criar um sistema de ensino público enquadrado em uma concepção laica, capaz de tornar o setor público inclusive os particulares e as eclesiásticas, nas quais o liceu teve que assumir o papel de topo do segmento secundário e base do segmento superior.
O processo de reforma iniciado em 1802 e concluído em 1811 garantiu à França imperial um sistema de ensino público, gerido e controlado pelo Estado, com um sistema prospectivamente dividido em três graus (primário, secundário e superior), destinado à formação profissional ancorada ao título de estudo através do mecanismo de graus acadêmicos (licenciatura e bacharelado).
Após a reforma implementada na França, nos estados satélites do império, foram criadas comissões de educação pública, a partir de 1809, encarregadas de formular planos de reforma para uma adaptação do modelo francês às diversas realidades territoriais: Giuseppe Bonaparte estabeleceu-o na Espanha, Luigi Bonaparte na Holanda, Gioacchino Murat em Nápoles e medidas semelhantes também apareceram no Ducado de Varsóvia18.