Contra a representação, [...], segundo a qual o texto existe em si, separado de toda materialidade, é preciso lembrar que não há texto fora do suporte que lhe permite ser lido (ou ouvido) e que não há compreensão de um escrito, qualquer que seja, que não dependa das formas pelas quais atinge o leitor (Chartier, 1991, p.182).
Introdução
A imprensa periódica, entendendo-se por esse termo o gênero editorial representado, sobretudo, por jornais e revistas impressos (Luca, 2014), tem se tornado uma fonte privilegiada para estudos e pesquisas sobre a História da Educação em seus vários aspectos, incluindo-se aí as práticas, apropriações e representações vivenciadas e/ou promovidas pelos diversos agentes e instituições educacionais. Não obstante, como explica Luca (2014), a recorrência à imprensa como fonte de pesquisa só começou a tornar-se significativa, em nosso país, não sem alguma relutância, depois da década de 1970, no contexto de uma renovação vivenciada, internacionalmente, pelo campo historiográfico (Cf. Le Goff, 1990; Pesavento, 2003). Nos domínios da História da Educação, pode-se dizer que o interesse pela imprensa periódica para a realização de estudos e pesquisas com caráter historiográfico sobre a educação brasileira foi ainda mais recente, pois remete ao final da década de 1980, intensificando-se na década seguinte (Cf. Catani, 1996), a partir de quando essa produção tornou-se expressiva no meio acadêmico (Cf. Biccas, 2008; Campos, 2012; Castro, Borges & Castellanios, 2020; Catani, 1996, 2003; Catani & Bastos, 2002; Catani & Faria Filho, 2002; Martinez, 2009; Pinto, 2008, 2013, 2017; Rodrigues & Biccas, 2015; Silva, 2012; Zanlorenzi, 2010; Zanlorenzi & Nascimento, 2020, entre outros).
Até fins dos anos de 1980, Catani (1996, p. 120) afirma que “[...] o acesso às fontes que discutiam ou operavam análises sobre revistas de ensino era ainda bem restrito”, conquanto já houvesse “[...] a pressuposição, muitas vezes corroborada a partir de então, de que a imprensa periódica especializada se constitui em instância privilegiada para a compreensão e funcionando do campo educacional” (Catani, 1996, p. 120). Nas palavras de Martinez (2009, p. 23-24, grifos meus), “Com base na leitura de Lopes e Galvão (2001)1, o uso de jornais e revistas como fonte na pesquisa historiográfica teve seu prestígio validado há mais tempo na preferência dos pesquisadores da História”. Todavia, como continua a mesma autora, “No caso da História da Educação, muitos têm se dedicado, desde a década de 1990, ao estudo dos impressos que circulam junto ao público escolar. O trabalho com a Imprensa Pedagógica, seja
como fonte ou objeto de estudo, tem se tornado cada vez mais frequente [...]” (Martinez, 2009, p. 24), com o delineamento de metodologias, técnicas e abordagens teóricas para esse trabalho.
Do exposto, decorre que já se estabeleceu um consenso entre os historiadores e historiadores da educação acerca da relevância e pertinência dos impressos periódicos para a pesquisa histórica. Cada vez mais, revistas de educação e ensino, em especial, têm sido escrutinadas em teses e dissertações que compõem o acúmulo dos conhecimentos de nossa historiografia da educação, sendo tais impressos abordados e tratados pelos pesquisadores, em suas pesquisas, tanto como fonte ou como fonte e objeto. Particularmente, as inovações teórico-epistemológicas da Nova História Cultural, difundidas no Brasil especialmente a partir dos trabalhos do historiador francês Roger Chartier, “[...] vem impactando e marcando a produção historiográfica contemporânea e de modo particular a história da educação” (Biccas, 2008, p. 27), no sentido de apresentar indicações e possibilidades sobre como abordar impressos periódicos em estudos historiográficos que se valem dessa abordagem.
Foi justamente nessa perspectiva de trabalho, decorrente da Nova História Cultural, que desenvolvi minha tese de doutoramento em educação, vinculada à linha de pesquisa História da Educação, Memória e Sociedade, ao estudar representações e estratégias dos apaeanos2 acerca da educação de excepcionais3, conforme difundidas, de 1963 a 1973, no e pelo impresso periódico Mensagem da Apae (Bezerra, 2017). Antes de produzir a tese e para torná-la possível, descrevi um itinerário de localização, coleta, organização, arquivamento e tratamento sistematizado das várias edições desse impresso e das suas cópias, estas produzidas por mim com vistas ao desenvolvimento do relatório final de pesquisa. Socializar o modo como empreendi tal itinerário, a fim de colaborar com pesquisadores do campo da História da Educação, sobretudo aqueles iniciantes e ou que tenham como intuito manejar fontes da imprensa periódica à luz da perspectiva mencionada, em especial no caso das revistas impressas, é, portanto, o objetivo precípuo deste texto. Como advertência inicial, porém, ressalto que não se trata, aqui, de evidenciar um trabalho arquivístico ou com qualquer pretensão de sê-lo.
Antes, o intuito é apresentar a pesquisadores iniciantes ou com pouca familiaridade ao universo dos impressos periódicos e da coleta histórico-documental possibilidades de iniciar a compilação, armazenamento, manipulação e análise de exemplares desses impressos, sobretudo em contextos com recursos financeiros escassos, ausência de serviços e ou conhecimentos especializados em informática e manipulação digital, Arquivologia ou de arquivos já devidamente constituídos com seus acervos catalogados e disponibilizados para consulta aos estudiosos. No caso da História da Educação, em que os pesquisadores têm começado a reunir coleções e séries de revistas da imprensa pedagógica, muitas vezes constituídas a partir de exemplares dispersos, encontrados ao acaso, não sistematicamente armazenados em instituições escolares/educacionais ou mediante doações e empréstimos obtidos perante diversos atores sociais, sem catalogação especializada, esses mesmos pesquisadores, também minoritariamente historiadores de formação no caso brasileiro, têm sido compelidos a construir seus próprios acervos, instrumentos e bancos de dados, a fim de organizar a coleta e a análise desse material com base em seus referenciais. Ademais, tal tarefa nem sempre parece tão evidente a mestrandos e doutorandos em educação que se iniciam nessa seara e precisam incorporar concepções e práticas da historiografia educacional, ao mesmo tempo em que são desafiados a localizar suas próprias fontes. Assim, não trago, portanto, discussões sobre elaboração de um arquivo histórico propriamente dito, mas partilho um roteiro, produzido de um determinado lugar teórico, a partir de minhas necessidades de pesquisa, considerando que “Toda reflexão metodológica se enraíza, com efeito, numa prática histórica particular, num espaço de trabalho específico” (Chartier, 1991, p. 178). Este foi o meu trabalho, e espero que, de alguma maneira, possa trazer contribuições aos pesquisadores de impressos periódicos em História da Educação, suscitando novas reflexões teórico-metodológicas.
1. O impresso periódico como objeto-fonte
De início, no tocante às reflexões que embasaram o itinerário de minha pesquisa, é mister ressalvar que o próprio Chartier não tem discorrido acerca dos impressos periódicos de modo específico e declarado. Não obstante, a recorrência do autor a temáticas concernentes à cultura gráfica e sua historicidade (Chartier, 1990, 2002a, 2007, 2014), de modo a atribuir “[...] a cada sociedade o conjunto dos objetos escritos e das práticas que os produzem ou empregam [...]” (Chartier, 2007, p. 10), com vistas “[...] a compreender as diferenças existentes entre as diversas formas de escrita, contemporâneas umas das outras, e a inventariar a pluralidade de usos dos quais se encontra investida” (Chartier, 2007, p. 10), tem fundamentado proficuamente estudos acerca dos periódicos, bem como sobre outros objetos escritos da cultura escolar, como cadernos, livros, diários, manuais didáticos, dentre outros. Mesmo não abordando diretamente o trabalho com revistas e jornais, por se deter, sobretudo, na própria história do livro, da leitura e da edição (Chartier, 1990, 1991, 2002a,b; 2007, 2014), as análises desse historiador, ampliadas a “[...] todos os objetos que contêm a comunicação do escrito” (Chartier, 1991, p. 178), têm possibilitado mediações conceituais e metodológicas para o avanço e qualificação de pesquisas com tal enfoque (Bezerra, 2017; Biccas, 2008).
Um de seus pressupostos teórico-metodológicos mais significativos, dos quais tem se beneficiado a pesquisa histórica com o uso de impressos periódicos, é justamente a consideração simultânea destes como fonte e objeto gráfico, isto é, como produtos culturais dotados de textualidade e materialidade próprias. Nesse sentido, retomando, aqui, as considerações de McKenzie (1986), o historiador já não pode se prender às “[...] definições unicamente semânticas dos textos [...]” (Chartier, 2002b, p. 244), vale dizer, não pode se contentar meramente com os conteúdos escritos do impresso, abstraídos de quaisquer suportes e dissociados das próprias condições de sua produção, circulação e recepção. A crítica documental, quando restrita à literalidade, ao percurso argumentativo da linguagem escrita, é insuficiente ao tratamento analítico dos objetos da cultura gráfica, porquanto deixa de lado “[...] o valor simbólico dos signos e das materialidades” (Chartier, 2002b, p. 244). Disso decorre que, nessa vertente, não se coloca como uma opção, ao pesquisador, analisar o impresso periódico como fonte desprovida de materialidade, isto é, fora de sua condição própria de objeto cultural - e isso não é, necessariamente, afirmar que tal impresso seja, em si mesmo, o próprio objeto investigativo da pesquisa. Antes, trata-se de considerar que o impresso periódico, em seu estatuto ontológico, é sempre um objeto que se dá a ver e a ler, em sua performance material e gráfica.
Ainda que se diga que a pesquisa é sobre um determinado tema, explorado em e/ou a partir de um periódico - e não sobre o impresso em si -, não há como tomar o conteúdo escrito por si só, “[...] separado de toda forma física particular e reduzido à sua estrutura verbal apenas” (Chartier, 2002b, 249). Esse conteúdo só se torna inteligível à medida que se entende seu pertencimento a um tipo específico de suporte, o qual impõe cerceamentos e condicionamentos à própria escrita e a tudo o mais nele veiculado graficamente. Em outras palavras, “Tanto a imposição como a apropriação do sentido de um texto dependem, pois, de formas materiais cujas modalidades e ordenações, consideradas por muito tempo como insignificantes, delimitam as compreensões desejadas ou possíveis” (Chartier, 2002b, p. 244). Logo, no processo de indagação dos impressos periódicos, separações ou dicotomias entre textualidade e materialidade - quando presentes à luz de estudos que se autovinculam à concepção de Chartier - resultam mais de uma incompreensão das proposições e noções empregadas por esse autor do que de uma escolha metodológica pertinente.
Como o próprio historiador francês assevera, isso “advém, sem dúvida, de uma falsa querela ou de uma questão mal colocada. Efetivamente, uma obra sempre é lida ou ouvida em um de seus estados particulares” (Chartier, 2007, p. 15-16). Por conseguinte, Chartier convida-nos a realizar uma crítica documental, “[...] que constitui a mais duradoura e a menos contestada das características da história [...]” (Chartier, 2002b, 240), capaz não apenas de interrogar a fonte por seu conteúdo imediato, mas também por sua forma, já que o intercâmbio entre essas dimensões é que conforma os sentidos mediatos do documento, indispensáveis para a compreensão histórica. Nesses termos, o historiador não é aquele que meramente faz uma análise de conteúdo dos textos escritos - procedimento já realizado e normatizado por outras abordagens de pesquisa - mas é também um estudioso dos conteúdos veiculado nas e pelas formas gráfico-materiais que, em cada momento histórico, compõem esses textos e lhes asseguram inteligibilidade. Logo, trata-se de “[...] não dissociar a análise das significações simbólicas daquela das formas materiais que as transmitem” (Chartier, 2007, p. 10). Consoante o pensamento de McKenzie (1986), cabe sempre o alerta de que “[...] contra a tirania das abordagens estritamente linguísticas, [...] as determinações em curso no processo de construção de sentido são plurais” (Chartier, 2002b, p. 13). Nessa acepção, é preciso empreender um giro epistemológico, possibilitado pelas realizações da Nova História Cultural, rechaçando-se “[...] a divisão que separou, por muito tempo, as ciências da interpretação e da descrição, a hermenêutica e a morfologia” (Chartier, 2007, p. 10). Em outras palavras, é imprescindível “[...] nunca separar a compreensão histórica dos escritos de uma descrição morfológica dos objetos que os contêm” (Chartier, 2014, p. 20).
Não se quer dizer, com isso, que o pesquisador deva se perder em descrições minuciosas e pitorescas sobre um impresso, mas o desafio consiste justamente na tese de que, para “ler” esse tipo de fonte, tendo em vista sua definição ontológica, é imprescindível compreender sua materialidade, o que pode até mesmo dar-se em diferentes níveis e recortes, conforme as possibilidades de acesso aos originais do periódico, aos objetivos da pesquisa histórica e às perguntas postas à investigação. Assim, quando se evidencia a necessária atenção à materialidade dos impressos não se defende “[...] uma análise estritamente morfológica dos objetos [...]” (Chartier, 2002a, p. 64) o tempo todo e de forma isolada; antes, trata-se de realizar
uma interrogação sobre a função expressiva dos elementos não verbais que intervêm não apenas na organização do manuscrito, ou na disposição do texto impresso, mas também na representação teatral, na recitação, na leitura em voz alta etc. - o que D. F. MacKenzie (1986) designa como “the relation of form to meaning” (Chartier, 2002a, p. 64, grifos no original).
Para exemplificar o exposto, saber o nome e a gramatura exata do papel pode não ser relevante em uma pesquisa sobre a educação de crianças de uma instituição, como divulgado por uma revista em dada época, mas, certamente, perscrutar as mediações gráficas inscritas nesse suporte, como os destaques, as cores empregadas ou não, o arranjo das fotografias, se existentes, enfim, todo o layout das páginas, é um procedimento irrenunciável. Afinal, tais elementos comunicam diversas informações que transcendem o texto escrito, complementam-no ou até se opõem a ele, demandando um olhar acurado do pesquisador para tais relações. Já se o intento é justamente entender o ciclo de vida desse impresso e suas estratégias de inserção em determinado campo de atividades, saber sobre o tipo de papel usado, para continuar com o exemplo citado, pode ser imprescindível para se entender o (des)prestígio desse periódico em relação a seus concorrentes, sua projeção no mercado editorial, seus investimentos técnicos, os quais podem demarcar fases de sua existência, e os impactos disso nos conteúdos publicados. Em ambos os casos, porém, a consideração simultânea do impresso como fonte e objeto peculiar de uma cultura gráfica, no desenvolvimento do percurso metodológico e das análises interpretativas resultantes, é condição sine qua non para o êxito das pesquisas históricas. Isso porque:
Atento ao sentido das formas, o procedimento histórico pode abordar os textos canônicos [e quaisquer outros] que o intimidaram por muito tempo e deles propor uma interpretação que respeite a historicidade de sua produção e de sua apropriação. Em uma época em que reflui a onipotência das abordagens formalistas, estruturalistas ou não, tal programa carrega a promessa de uma compreensão inédita, mais densa e mais complexa, das obras e das práticas (Chartier, 2002b, p. 202, grifos meus).
Por isso, cabe ao historiador da educação compreender que, nos domínios da Nova História Cultural, estamos diante de uma exigência metodológica sui generis para o trabalho historiográfico com impressos periódicos, dadas as características específicas desses objetos e a “[...] atenção renovada pelos textos [...]” (Chartier, 2002b, p. 13). Nesse sentido,
Por muito tempo relegados à posição ancilar de ciências auxiliares, esses saberes técnicos, que propõem descrições rigorosas e formalizadas dos objetos e das formas, tornam-se (ou tornam-se novamente) essenciais, já que os documentos já não são mais considerados somente pelas informações que fornecem, mas são também estudados em si mesmos, em sua organização discursiva e material, suas condições de produção, suas utilizações estratégicas” (Chartier, 2002b, p. 13, grifos meus).
É isso que significa perscrutar o documento impresso, em especial os periódicos, como fontes materiais, de forma a “[..] sempre associar na mesma análise os papéis atribuídos à escrita, às formas e suportes da escrita e aos modos de leitura” (Chartier, 2014, p. 21, grifos meus). Disso resulta que as operações de descrição e interpretação nunca podem ser dissociadas, mas são dois procedimentos mutuamente implicados na operação historiográfica (Certeau, 2002) com tais objetos da cultura gráfica. Conseguintemente, para problematizar o impresso periódico, é preciso partir do pressuposto de que o próprio conceito de texto, tanto quanto o de documento, torna-se, assim, ampliado, performativo e relacional. Conforme melhor esclarece Chartier (2002b, p. 244, grifos meus), inspirado nos estudos de McKenzie (1986),
Essa ampliação conduz, em retorno, a uma maneira nova de considerar os textos escritos. [...]. Um texto (aqui na definição clássica) está sempre inscrito em uma materialidade: a do objeto escrito que o porta, a da voz que o lê ou o recita, a da representação que o dá a ouvir. Cada uma dessas formas é organizada de acordo com estruturas próprias que desempenham um papel essencial no processo de produção do sentido. Para ficar no escrito impresso, o formato do livro [e, por analogia, pode-se dizer também dos impressos periódicos], as disposições da paginação, os modos de recorte do texto, as convenções tipográficas são investidos de uma “função expressiva” e sustentam a construção da significação.
Destarte, ao eleger um impresso periódico para estudo, particularmente as revistas, o pesquisador comprometido com o referencial da Nova História Cultural precisa, então, iniciar sua análise interrogando-se não só a respeito do tema e do problema que o movem a tomar esse periódico como fonte de informações históricas ou como texto “desmaterializado”, mas indagar-se sobre a morfologia mesma que define ou marca um impresso periódico, quais convenções editoriais o distinguem de outros impressos e como esse tema e problema são apresentados e representados pela dinâmica das formas e dos (con)textos do(s) periódico(s) em análise, em sua organização discursiva e material. Não se pode perder de vista que um impresso, seja ela qual for, enquanto objeto cultural, institui um espaço físico, uma temporalidade, cadência e códigos próprios de sua decifração, o que pressupõe entender minimamente como se constitui esse que, doravante, chamo de objeto-fonte, situando-o no cruzamento de relações temporais sincrônicas e diacrônicas.
Por isso, já no momento de localização do impresso nos vários acervos possíveis e de sua organização em um banco de dados pessoal para o desenvolvimento de uma pesquisa histórica com esse objeto-fonte, o pesquisador precisa cercar-se dessa compreensão epistemológica e de cuidados técnicos que não só facilitarão seu trabalho interpretativo como, de fato, torná-lo-ão exequível na vertente apresentada, mesmo que não esteja, a todo momento, com os exemplares à mão. Além disso, se essa etapa inicial seguir determinados protocolos, terá informações para responder, eventualmente, a alguns objetivos de investigação que sejam acrescentados no decorrer da qualificação da pesquisa e de novas perguntas que lhe forem postas. É sobre isso que discorro no item seguinte, partilhando minha experiência de pesquisa.
2. O processo metodológico de manipulação do impresso como objeto-fonte
Uma vez explicitadas as implicações do entendimento de Chartier sobre os objetos da cultura gráfica, dentre eles os impressos periódicos, posso, então, descrever o itinerário de minha pesquisa, a fim de apresentar aos pesquisadores interessados, sobretudo àqueles iniciantes, como organizei, desde o começo, o processo metodológico de manipulação do impresso Mensagem da Apae para assegurar sua análise como fonte e objeto na tese (nesse caso, em particular, tanto como objeto material quanto investigativo). Tal preocupação se justifica porque, ao pesquisarmos periódicos, nem sempre teremos os exemplares impressos ao nosso alcance o tempo todo. Estes podem estar em acervos de instituições particulares ou públicas, pertencerem a colecionadores ou a determinadas pessoas que, por motivações diversas, guardaram-nos. Nesse sentido, é bem provável que esse material nos seja disponibilizado apenas para empréstimo temporário, com o qual devemos ter cuidado na utilização, manipulação e conservação durante todo o período em que nos foi cedido, ou, então, enquanto se permitiu sua consulta supervisionada in locu.
É possível que algumas pessoas, ao reconhecerem nosso interesse acadêmico por algumas revistas “velhas” sob sua posse até nos presenteiem com elas, o que, porém, não é sempre esperado e, também, deve ser cuidadosamente avaliado e documentado, já que a pessoa pode ter um grande laço afetivo com esses objetos, como seus lugares de memória; ou, ainda, talvez não seja a única autorizada a decidir sobre uma possível doação, como no caso de pessoas vinculadas a instituições, devendo todos os envolvidos estarem de acordo formalmente. Essas ponderações éticas não devem ser ignoradas pelo pesquisador e, caso lhe seja dada a posse dessas revistas, é oportuno que o material seja, depois, disponibilizado, fisicamente, em algum acervo público e ou em repositórios online de acesso aberto, a fim de que outros estudiosos tenham conhecimento de tais documentos e se efetue sua preservação como patrimônio da cultura gráfica.
Dito isso, toda oportunidade de contato com o impresso considerado na investigação deve ser otimizada e documentada, porquanto múltiplas informações serão requeridas no momento de escrita do relatório de pesquisa. Como estabelecido anteriormente, esse contato do pesquisador com o suporte onde se inscrevem os textos não é algo fortuito ou supérfluo, mas é a exigência mesma da pesquisa. Aliás, nas palavras de Chartier (2002b, p. 248, grifos meus), “Corolariamente, a constatação, segundo a qual, as formas afetam o sentido deve levar a considerar normal e necessária a consulta dos textos em sua materialidade original”. Partindo desse pressuposto, em janeiro de 2015, empreendi viagem do interior de Mato Grosso do Sul até Brasília-DF, a fim de visitar a sede da Federação Nacional das Apaes, onde, após contatos anteriores por e-mails e as devidas autorizações, soube que estava armazenada, na biblioteca interna dessa entidade, a maior parte das edições da revista Mensagem da Apae, já definida como meu objeto-fonte de estudo, pelas razões explicitadas em minha tese (Bezerra, 2017).
Certamente, eu não poderia trazer os exemplares da revista comigo, nem teria como retornar outras vezes ao local para consultá-los novamente, e precisava, de algum modo, garantir meios de reproduzi-los e armazená-los para a análise na tese, nos momentos posteriores à fase de coleta documental, registrando impressões, dados e informações obtidos somente na circunstância empírica. Nesse processo, gastei duas semanas para visitar todos os dias, de manhã e à tarde, a instituição, a qual me deu franco acesso à sua biblioteca, em horário de expediente, a fim de que eu tivesse esse contato com as revistas lá armazenadas. Estas ficavam guardadas em prateleiras de aço abertas, agrupadas em pequenos blocos, com certa organização temporal, como, por exemplo, revistas da década de 1970 em um mesmo bloco. Isso, porém, nem sempre era confirmado quando de sua conferência, porque, nesses blocos, podia haver outros materiais impressos e revistas de outros períodos misturadas. Não obstante, dadas as dimensões modestas do acervo, essas circunstâncias, por si sós, não impactaram significativamente como empecilho à etapa de coleta documental.
Apenas, como o acervo não estava organizado a partir de critérios muito exatos ou técnicos, tratei, inicialmente, de localizar, separar e identificar todos os exemplares de Mensagem da Apae disponíveis, fazendo seu inventário, com o cuidado de manter o arranjo inicial, como encontrado no espaço da biblioteca. Por fim, excluindo-se as repetições, lá encontrei 115 exemplares da revista, cada um deles representando uma edição diferente do periódico, no período de 1963 a 2014, como divulguei em apêndice de minha tese (Bezerra, 2017). Essa temporalidade, naquele momento, abrangia da origem à “última” edição do impresso, cujas atividades editoriais até hoje não foram encerradas, muito embora tenham migrado para o formato online a partir de 2015. Como meu recorte temporal de estudo ainda não estava precisamente delimitado e a noção de conjunto revelava-se fundamental para compreender, diacronicamente, as características materiais do impresso, optei por trabalhar, no acervo, com registros de toda essa coleção. Tal estratégia foi decisiva, depois, para eu justificar, com base nas variações do próprio objeto-fonte, a delimitação de uma das fases de Mensagem da Apae como foco de análise, operando com uma série documental mais restrita, composta pelas edições de 1963 a 1973 (Cf. Bezerra, 2017).
Uma vez compilados os exemplares, era preciso garantir uma forma de seu registro. A princípio, eu previra realizar apenas anotações escritas e cópias fotográficas das revistas, o que se mostrou um trabalho ingente, pois seria necessário fotografar todas as páginas dos impressos. Isso demandaria muito tempo e, posteriormente, dificultaria o manuseio desses dados, gerando muitos arquivos separados de imagem. Fotografar páginas de revistas, ainda que seja uma técnica importante para determinados objetivos de pesquisa, pode nem sempre ser uma opção razoável para pesquisadores sem assistentes, com tempo escasso ou com pouca habilidade nessa tarefa. Dentre as objeções possíveis, está a exigência de controle da luminosidade, já que alguns papéis usados na impressão podem ser brilhosos, criando reflexos e sombras na imagem captada, ou podem ser pouco opacos, de modo a criar confusões entre o que está impresso no anverso e verso da folha4; bem como se demanda atenção ao foco, ao tamanho e à resolução das imagens obtidas, mais o processo de identificação e agrupamento destas em pastas virtuais. Sendo assim, pode haver, sobretudo nos primeiros momentos, necessidade de refazer diversas vezes a mesma foto, e nem sempre com garantias de bom resultado. Seguramente, tais tentativas consomem um tempo valioso do pesquisador, sobretudo quando este financia a própria pesquisa e atua sozinho.
Por meio dessas tentativas, pude compreender, também, que fotografar a revista aberta, evidenciando duas páginas por vez, é uma estratégia importante para ganhar tempo e, de quebra, para se captar, depois, no momento da análise, sobretudo se o pesquisador não tiver mais a posse física do impresso, a sequência gráfico-textual proposta ao leitor, com suas mediações editoriais e seus efeitos de sentido. Desse modo, pode ser melhor visualizado o diálogo entre as formas, as imagens, os recursos e intervenções tipográficos adotados, o texto escrito e seus conteúdos, enfim, a mise en page que faz o impresso funcionar como tal, com seus protocolos de leitura. Essa combinação de elementos cria, sempre, um discurso que não pode ser ignorado. Todavia, preciso alertar para o fato de que essa mesma estratégia pode comprometer a resolução da fotografia, dificultando a leitura posterior do conteúdo escrito, a depender do tamanho real das páginas fotografadas, dos elementos existentes na página, do enquadramento visado e da qualidade da câmera, pois tudo isso pode impactar no alcance de foco do equipamento. Por isso, se não houver outras possibilidades, o ideal é fotografar o impresso aberto, mas, também, para melhor leitura posterior, é imprescindível o registro individual de cada página ou, pelo menos, daquelas pouco nítidas. Esse material deve ser compilado em pastas virtuais devidamente designadas de acordo com cada edição do impresso (Figura 1). Internamente, os arquivos das fotos devem ser identificados pelos números das páginas originais que representam ou, então, das partes fotografadas, como capas e encartes, por exemplo (Figura 2).
As circunstâncias, no entanto, acabaram jogando a meu favor, de modo que, no meu caso, as fotografias acabaram se tornando um complemento no processo de coleta documental. Como a sede da Federação Nacional das Apaes ficava em um complexo de prédios comerciais, havia, no local, lojas copiadoras com oferta de serviços de escaneamento, o que permitiu agilidade na obtenção de cópias das revistas. Desse modo, pude investir na digitalização, em arquivos do tipo Portable Document Format (PDF), de todo esse material, imediatamente armazenado em pen-drives e, por segurança, também em drives online, pois a perda ou qualquer violação da mídia física pode comprometer todo o andamento de uma pesquisa, ao que deve atentar-se o pesquisador desde o início de sua coleta. Devo ressaltar que isso só foi possível porque instituição permitiu, generosamente, que, a cada período do expediente, eu retirasse da biblioteca uma quantidade de exemplares e levasse à copiadora do mesmo complexo, devolvendo-os até o final do dia, sob conferência institucional. Do contrário, é bem provável que fotografar cada impresso, na sua totalidade, fosse a melhor alternativa possível, apesar de mais demorada. Logo, essa atitude representou uma colaboração essencial da entidade ao meu processo de pesquisa, pois, enquanto algumas revistas eram digitalizadas, eu dedicava-me a organizar informações a respeito das outras que permaneciam no recinto da biblioteca, perscrutando sua “materialidade original”5, sem perda de tempo.
Para tanto, organizei um arquivo editável em meu notebook denominado “Dados técnicos das revistas Mensagem da Apae encontradas na Federação”. Dessa forma, passei a estruturar, já no local do acervo, um banco virtual de dados, que, depois, foi muito útil na análise do impresso, inclusive para compreender variações de sua periodicidade, suas características gráficas, protocolos sugeridos de leitura, mediações editoriais empregadas, condições técnicas de produção, bem como, a partir desses mesmos dados, demarcar fases e ou momentos de cada fase do impresso, na relação intrínseca entre formas, materialidades e conteúdos. Nesse processo, cada exemplar localizado era, então, submetido a um protocolo6, cujo modelo fica autoexplicativo nos exemplos seguintes, retirados do banco de dados que compus:
Dados Técnicos da revista Mensagem da Apae
Localização: Federação Nacional das Apaes/Brasília - DF.
Ano II, n. 1, período: janeiro a março de 1964
Capa: em preto, branco e azul, contendo uma ilustração do símbolo da Federação Nacional das Apaes, título do periódico, sua periodicidade e a inscrição: “órgão da Federação Nacional das Apaes”.
Segunda, terceira e quarta capas em preto e branco. Na quarta capa, apenas a indicação da editora - Ave Maria - de São Paulo.
Miolo: Todo em preto e branco, com apenas uma fotografia também em preto e branco, a de J. F. Kennedy. Todas as folhas são usadas no anverso e verso. Páginas internas: papel de gramatura consistente, dura, mais espesso que o A4, facilitando o manuseio. Está envelhecido e amarelado.
Capa e quarta capa: papel mais fino e flexível que o miolo.
Encadernação: grampeada (lombada canoa)
Dimensões: 16,4 x 23,3 cm
Estado de conservação: Satisfatório, mas com risco de se desfazer a encadernação.
Encartes para pedido de assinatura: Não
Número de folhas (inclui as capas): 16
Dados Técnicos de Mensagem da Apae
Localização: Federação Nacional das Apaes/Brasília - DF.
Ano IV, n. 1 a 4 (na mesma edição), período: jan. - dez de 1966 (única edição do ano).
Capa: em preto, branco e azul-acinzentado, com ilustração de menina soltando balão, título e periodicidade do periódico, símbolo oficial da instituição e a inscrição: órgão da Federação Nacional das Apaes.
Segunda capa: em preto e branco (publicidade).
Terceira capa: preto e branco (Divulgação de congresso da Apae).
Quarta capa: preto e branco (publicidade).
Miolo: preto e branco, com fotos em preto e branco. Todas as folhas são usadas no anverso e verso. Páginas internas: papel de gramatura fina e flexível, mas não chega a ser liso ou sedoso a ponto de não se poder passar as páginas com facilidade. Papel apresenta-se envelhecido e amarelado, podendo se rasgar facilmente.
Capa e quarta capa: papel pouco mais espesso que o miolo, de melhor qualidade, mas flexível. Não é cartonado.
Encadernação: grampeada (lombada canoa)
Dimensões: 15,9 x 23 cm.
Estado de conservação: Bom
Encartes para pedido de assinatura: Não
Número de folhas (inclui as capas): 18
Dados Técnicos de Mensagem da Apae
Localização: Federação Nacional das Apaes/Brasília - DF.
Ano 1, n. 1, período: novembro de 1974
Capa: em preto, branco e vermelho, com título e periodicidade do periódico, destaques da edição, dentre os quais a profissionalização do excepcional, e fotografia (em preto e branco) de “excepcional” trabalhando em um torno. Presença do símbolo oficial da instituição.
Segunda capa: em azul e branco (conteúdo publicitário).
Terceira e quarta capas: em preto e branco (conteúdo publicitário).
Capa e quarta capa: papel mais espesso (cartonado)
Miolo: em preto e branco, com presença de várias fotografias. Todas as folhas são usadas no anverso e verso.
Páginas internas: papel mais espesso e mais duro que folha A4, porém mais fino que a capa e quarta capa. Fácil manuseio. Nesta edição, o papel apresenta-se mais brilhoso nas páginas internas.
Encadernação: páginas grampeadas e coladas, com a encadernação fazendo uma lombada quadrada.
Dimensões: 21 x 28,1cm (novo formato material, mediante novo projeto gráfico-editorial em relação às origens na década de 1960).
Estado de conservação: ruim e em risco de deterioração (a encadernação se desfez, pois as páginas estão soltas internamente, pondo em risco a preservação da edição de 1974).
Encartes para pedido de assinatura: Não
Número de folhas (inclui as capas): 41
Esse protocolo, que pode ser aprimorado e aplicado por outros pesquisadores na fase de coleta documental, garantiu que, mesmo na ausência física dos exemplares, após meu retorno da instituição, eu tivesse elementos técnicos para perceber mudanças e permanências nos modos de edição e apresentação do impresso, compreendendo sua discursividade material e gráfica. Além disso, seu uso assegura sempre a identificação do local onde o pesquisador encontrou determinados exemplares, esclarecendo minimamente sobre seu estado de conservação, o que é uma informação importante para outros pesquisadores interessados na localização do mesmo impresso, bem como para a elaboração do relatório de pesquisa, dado ser imprescindível explicitar os locais de encontro, as condições de guarda e as técnicas de manuseio das fontes, enquanto parte da operação historiográfica (Certeau, 2002). Logo, não basta apenas a mera digitalização do impresso, pois, em si mesma, essa técnica não garante o conjunto de dados necessários para a análise pretendida. Afinal, “O estabelecimento das fontes solicita, também, hoje, um gesto fundador, representado, como ontem, pela combinação de um lugar, de um aparelho e de técnicas (Certeau, 2002, p. 82). Dito de outro modo, tais dados não falam por si sós, mas, certamente, carecem de ser objeto de problematização historiográfica, a partir dos próprios objetivos, do problema e dos referenciais da pesquisa efetivamente conduzida.
Ademais, como forma de ilustrar e complementar os dados dessas fichas técnicas e dos exemplares digitalizados em PDF, estabeleci, também, um protocolo para fotografar parcialmente as edições, sendo todas fotografadas nesta ordem os seguintes elementos: capa, capa e quarta capa (com a revista aberta para evidenciar a encadernação), miolo, quarta capa7. Vale lembrar que a digitalização tende a diminuir a percepção de características físicas, identitárias e organizacionais do impresso, dadas as consequências da mudança de suporte e meio de registro. Por isso, a fotografia ajuda a compensar algumas dessas perdas, ainda que tenha suas próprias limitações. No caso de haver, por exemplo, informações na lombada quadrada de uma revista, a digitalização, em geral, não as preservará, mas uma fotografia do impresso aberto, evidenciando sua capa e quarta capa será bastante útil para o resgate de tal conteúdo. Todos esses arquivos complementares de imagem foram inseridos nas mesmas pastas virtuais identificadas pela edição correspondente da revista (Figura 3).
Cabe, aqui, explicitar que o destaque dado às capas, fotografadas de forma adicional, não foi aleatório. Antes, a ênfase nas capas é uma dimensão basilar no trabalho com impressos periódicos, pois “A imagem de uma capa de revista pode ser considerada um protocolo de leitura e, como tal, tem por propósito comunicativo sugerir ao leitor uma maneira de ler e produzir uma significação do texto” (Fraga, 2013, p. 74). Como sabemos, a capa e a quarta capa são as partes mais externas e imediatamente visíveis de um periódico, estabelecendo códigos de decifração do impresso, investimentos editoriais, mensagens temáticas, apoios publicitários, informes, vinculações institucionais ou identitárias e indícios das condições de produção material da cultura gráfica de uma dada época. Consoante Fraga (2013, p. 73),
No mundo dos impressos, características específicas são criadas e a capa é uma delas. Ela se torna essencial no gênero revista, proporcionando-lhe um perfil e uma marca distintiva, principalmente para se diferenciar do jornal. Uma capa pode ser composta por elementos linguísticos verbais e não verbais, que compõem a diagramação da mesma, tais como, imagens, cores no plano de fundo, formato e cores das letras, qualidade do papel.
Já no caso do miolo, a fotografia funcionou como uma amostra dos recursos gráficos utilizados na composição do impresso, inclusive no tocante aos modos de apresentação dos conteúdos, de propagandas (quando havia) e das formas de encadernação do suporte. Não se pode esquecer que boletins e revistas tendem a ser abertos pelo meio, onde os grampos saltam à mostra e, portanto, editores podem privilegiar essa parte do miolo para apresentar determinado conteúdo ou publicidade. Nesses termos, privilegiei justamente as páginas da metade exata do impresso para o registro fotográfico. Tal procedimento permitiu que eu tivesse um acervo de imagens, a serem mobilizadas no momento da análise do objeto-fonte, porquanto, para melhor resolução, trabalhar com imagens obtidas de fotografia do que apenas uma digitalização disposta em PDF. Isso porque o arquivo de imagem, para iniciantes, pode ser manipulado com mais rapidez e facilidade em programas mais acessíveis e conhecidos que, se necessário, melhoram sua nitidez, ampliam detalhes, permitem recortes específicos e garantem melhores condições de reprodutibilidade, como, por exemplo, no caso de inserção de figuras em uma tese. Sem um banco de imagens assim, o pesquisador precisará trabalhar, pelo menos, com prints de tela do arquivo digitalizado em PDF para obter uma imagem, a qual já será a reprodução da reprodução, tornando a qualidade cada vez mais ruim e desfocada, mesmo com edições posteriores para ajustá-la.
Por fim, é preciso ressalvar que a digitalização em formato PDF também apresenta suas vantagens e desvantagens, sendo tão importante o complemento de outros procedimentos técnicos, como a fotografia. Tal formato não permite, por exemplo, a facilidade das edições e dos ajustes de qualidade permitidos pelos arquivos de imagem, recursos que podem ser necessários para os pesquisadores entenderem melhor alguns detalhes, textos ou técnicas do impresso. Não obstante, os arquivos em PDF asseguram melhor nitidez e facilidade para leitura dos textos escritos. Além disso, a digitalização, se realizada na forma de escaneamento contínuo, permite que, em um único arquivo, devidamente nomeado, o pesquisador tenha toda a revista, facilitando a organização em bancos de dados virtuais (Figura 4). Preferencialmente, deve-se digitalizar a revista aberta, pelas mesmas razões já elencadas no tocante à fotografia das páginas abertas. Por isso, não é recomendado digitalizar página por página, a menos que isso seja absolutamente indispensável por questões de dimensão da folha do impresso e a capacidade das máquinas de digitalização, pela preservação do material, entre outros impedimentos. Se o escaneamento for de página individual, o tempo para essa atividade é maior e será preciso organizar uma pasta própria, com cada arquivo nomeado pelo número da página correspondente ou pelo nome da parte do exemplar original (Figura 5).
Ainda no caso do escaneamento contínuo, com as páginas da revista abertas, é fundamental, antes de devolver o impresso, quando não se tem sua posse definitiva, realizar a checagem, a fim de verificar se não houve cortes, especialmente quando as dimensões do impresso ultrapassam os limites do dispositivo empregado no escaneamento, bem como notar se algum encarte não ocultou conteúdos, no processo de digitalização. Se essa atividade é delegada a alguma empresa ou assistente, a checagem é imprescindível, pois nem sempre estes se preocuparão com esses detalhes, além do risco de páginas “puladas” por distração ou falhas de aparelhos empregados. No meu caso, diversas revistas vieram com páginas cortadas ou com seus conteúdos tapados pela sobreposição de encartes, além de algumas terem sido omitidas, o que tornou necessário, para maior rapidez, fotografar apenas essas páginas com problemas ou esquecidas involuntariamente pelo digitalizador, a fim de que, depois, eu tivesse tais cópias para consulta. Caso não tivesse checado os arquivos in locu, eu poderia comprometer a problematização e análise do objeto-fonte no momento da escrita da tese. Como se depreende, também nessas situações, a digitalização do impresso em PDF se complementa e se beneficia com o recurso técnico da fotografia.
É preciso considerar, ainda, que o processo de escaneamento, contínuo ou não, realizado em determinadas máquinas, pode pressionar excessivamente o impresso, bem como demandar seu manuseio repetido por um operador. Ademais, mesmo movimentos automatizados de alguns desses equipamentos podem não ser suficientemente delicados. Todas essas circunstâncias tendem a provocar ou agravar danos físicos no material, sendo imprescindível prevê-los e evitá-los para resguardar a integridade do impresso, sobretudo quando não há profissionais especializados para conduzir a tarefa. Por isso, a fotografia, nesses casos, a depender do estado de conservação de um periódico encontrado, pode, novamente, revelar-se uma das opções mais prudentes, rápidas e baratas, muito embora existam as desvantagens já aqui mencionadas, pelo seu menor grau de intervenção e impacto no suporte. Quando localizei os impressos para minha pesquisa, deparei-me com alguns em estado crítico de conservação (Figura 6) e, de modo algum, seria pertinente retirá-los do espaço de guarda, submetê-los a máquinas de escaneamento e a operadores não especializados em manipulação de documentos históricos. O protocolo que organizei foi, portanto, fundamental para essa tomada de decisão e para eu entender, depois, os caminhos que segui para reproduzir digitalmente os objetos-fontes de pesquisa, conforme suas próprias condições materiais. Um caso emblemático foi este, no qual a capa se soltava do miolo e a encadernação estava ameaçada, o que fez optar pelo registro fotográfico:
Além da opção de fotografar o documento, manipulando-o cuidadosamente no próprio local de guarda, a fim de não deteriorar ainda mais o original, já existem equipamentos com tecnologia sofisticada de digitalização suspensa. Desse modo, livros, revistas ou cadernos podem ficar apoiados sobre uma mesa de trabalho, enquanto o aparelho, sem contato direto com o impresso, capta a imagem e a digitaliza, bastando o operador mudar as páginas, como se estivesse folheando o documento, sem o uso de movimentos bruscos, além de o próprio aparelho realizar correções automáticas de distorções. Aplicativos baixados em aparelhos de telefone celular também desempenham funções semelhantes a essa, por meio das câmeras e flashes do dispositivo, inclusive com recurso de digitalização em sequência, o que poupa tempo e facilita a organização dos materiais reproduzidos pelo pesquisador. Todavia, no caso do escâner de digitalização suspensa, o custo, sobretudo para pesquisadores iniciantes e ou sem financiamento, pode não ser muito atrativo.
Já em relação aos aplicativos de celular, muitos têm suas funções limitadas nas versões gratuitas, exigindo o pagamento de licenças para se obter os resultados desejados, aparelhos mais sofisticados para sua instalação e funcionamento, bem como podem não estar disponíveis em idioma português, por exemplo. Apesar de realizarem correções automáticas e ou permitirem ajustes pelo usuário, é fundamental, também, garantir bom enquadramento da página a ser digitalizada pela câmera do celular e, ainda, o controle da luminosidade. Em que pesem essas ressalvas, tais aplicativos podem ser muito úteis no caso de o pesquisador se deparar com impressos frágeis que precisam de cuidados em seu manuseio para evitar maiores desgastes. Escâneres portáteis de mão, embora tenham seu uso cada vez mais substituído por esses aplicativos de celular, também são ferramentas potencialmente vantajosas sob tais circunstâncias, muito embora representem um custo adicional.
Considerações Finais
Neste artigo, a partir de experiências que vivenciei durante a etapa de coleta documental para a posterior escrita de minha tese de doutoramento em educação, tive o intento de sistematizar e apresentar, em especial aos pesquisadores iniciantes, procedimentos metodológicos e técnico-operativos para a compilação de impressos periódicos e sua reprodução digital em bancos de dados, segundo as exigências da pesquisa histórica, considerando o referencial da Nova História Cultural, na acepção de Roger Chartier. Esse trabalho, quando bem planejado e registrado, favorece a consulta e a análise ulteriores do material, mesmo sem sua presença física. Nem sempre, porém, o pesquisador precisará produzir arquivos e bancos de dados digitais próprios sobre os impressos de seu interesse, pois estes talvez já estejam disponíveis em repositórios, centros de documentação e domínios virtuais de livre acesso, organizados por profissionais da arquivística e historiadores já empenhados nessa tarefa.
Ainda assim, como a pesquisa com periódicos, nessa vertente, pressupõe que o pesquisador tenha, também, algum contato com a versão impressa do seu objeto-fonte, a fim de melhor interrogá-lo e compreendê-lo, ressalto que, em muitas situações, é importante que o investigador, ao localizar os impressos, organize o próprio acervo digital, estabelecendo protocolos específicos e condizentes aos seus objetivos de estudo, o que não se confunde, certamente, com os propósitos e com o métier da Arquivística, cujas técnicas de gestão documental são regidas por conhecimentos sistemáticos e com finalidades de uso coletivo. Além disso, como sabemos, cada arquivo, seja online ou físico, tem suas próprias regras de elaboração e funcionamento, que nem sempre são as mais pertinentes aos nossos intentos de estudo. Tanto que, como adverte Certeau (2002, p. 82), “[...] não há trabalho que não tenha que utilizar de outra maneira os recursos conhecidos e, por exemplo, mudar o funcionamento de arquivos definidos, até agora por um uso religioso ou ‘familiar’”.
Na impossibilidade de algum contato direto com a materialidade original do suporte, é imprescindível que o pesquisador mencione essa circunstância em seu relatório, explicitando sempre de que repositório, biblioteca, arquivo ou acervo digital localizou os “impressos periódicos” para análise. Tais repositórios digitais, por sua vez, devem, sempre que possível, indicar, de forma protocolar, os dados técnicos desses suportes, conforme a materialidade original que gerou sua reprodução virtual, a fim de permitir melhor inteligibilidade do objeto-fonte. Afinal, mesmo na ausência desse contato, a pesquisa não está de todo interditada na vertente aqui em destaque, a depender dos objetivos e problemas propostos à investigação, ou até mesmo da (in)disponibilidade de acesso aos originais.
Diante dessas situações, caberá ao pesquisador o cuidado de problematizar, nos limites e mutações do objeto-fonte impostos pelo processo de digitalização, as inter-relações preservadas entre o conteúdo escrito e as disposições gráficas de sua apresentação, vale dizer, o mise en page, tentando identificar as condições de produção desse impresso, em suas similaridades e diferenças a outros que lhe sejam coetâneos. De modo algum, sob tais circunstâncias, deverá perder de vista que, de objeto material, passará a operar com um objeto apenas virtual, o que interfere na apreensão dos sentidos dos textos, sendo imperativo reconhecer que:
Contra a tendência que almeja substituir a comunicação dos documentos originais por aquela dos substitutos fotográficos e digitais, é preciso lembrar que dar a ler um texto em uma forma que não é sua forma primeira é mutilar gravemente a compreensão que o leitor pode dele ter (Chartier, 2002b, p. 248).
Não há, por assim dizer, uma fórmula pronta para compensar “[...] as deformações que acarreta inelutavelmente toda mudança de suporte” (Chartier, 2002b, p. 248), a exemplo do que ocorre quando um impresso periódico é digitalizado e, sequer, se pôde consultá-lo em sua materialidade original. Não obstante, a noção ampliada de texto, nesses casos, torna-se uma diretriz ainda mais importante a ser observada, como já abordado aqui, devendo o pesquisador se precaver contra as armadilhas do anacronismo. De fato, se não houver vigilância, estas serão uma ameaça constante, que podem induzi-lo a resultados enviesados e descontextualizados. Como também já alertou Chartier (2002a, p. 64, grifos meus),
Em primeiro lugar, é contra essa desmaterialização dos textos que é preciso trazer toda produção escrita, seja qual for seu gênero ou estatuto, às categorias de citação de designação e de classificação de acordo com o tempo e o lugar que lhe são próprios e, ao mesmo tempo, às formas materiais de sua inscrição e de sua transmissão. Esquecer essa dupla historicidade do escrito significa arriscar o anacronismo que impõe aos textos antigos formas e significados que lhes eram totalmente estranhos e que os desfigura [...].
Logo, na abordagem historiográfica de impressos periódicos, a partir dos pressupostos de Chartier, a problematização dos temas, dos objetos de pesquisa e a consecução dos objetivos de estudo lançados dependem das relações e nexos entre o escrito, o inscrito e suas formas materiais. Por isso mesmo, problematizar tais objetos da cultura gráfica exige, cada vez mais, na tradição crítica do Annales, que, enquanto pesquisadores, assumamos como pressuposto a interdisciplinaridade operativa do procedimento histórico, sem o qual poderemos ficar desprovidos de noções, conceitos, indagações e abordagens pertinentes para mediar nosso trabalho. Essa exigência, portanto, é “[...] aquela que obriga a história a travar um diálogo com outros questionamentos - filosóficos, sociológicos, literários, etc. Somente através desses encontros a disciplina pode inventar questões novas e forjar instrumentos de compreensão mais rigorosos” (Chartier, 2002b, p. 18).
Isso posto, para aqueles que desejam estudar impressos periódicos, os híbridos e inventivos caminhos da Nova História Cultural, doravante em suas interfaces com a Literatura, a Semiologia, a Bibliografia, a Arte, as teorias da Imagem, da Linguagem e da Comunicação, as Ciências da Informação, os saberes da publicidade, dos processos de edição e design gráficos, dentre outros, parecem uma alternativa bastante promissora no cumprimento desse apelo epistemológico. Todavia, não é demais ressalvar que essa alternativa, conquanto muito profícua, representa uma leitura determinada, a qual não exclui possibilidades, operações e abordagens outras de pesquisa histórica com os diversos objetos da cultura gráfica nos vários domínios da História e da História da Educação.