Contextualização
Como docente e pesquisadora da alfabetização tenho me aventurado há a algum tempo a percorrer as trajetórias de aprendizagem da leitura e da escrita de gente da literatura e da educação no sentido de compreender como ocorreu este processo, valorizando a perspectiva do aprendiz. Nessa direção, as inquietações que têm provocado essa mobilização têm relação com suas movimentações, sobretudo no que diz respeito as suas inserções no mundo da cultura escrita. Avalio que o conhecimento destes processos pode fortalecer o campo de saberes da história da Alfabetização. Uma área que vem se constituindo, sobretudo, a partir da análise dos materiais didáticos adotados1, principalmente a cartilha e, vinculado a ela, os métodos sintéticos e analíticos.
Mas, há pouca ou insuficiente atenção às narrativas autobiográficas, recursos que podem disponibilizar importantes elementos sobre o ingresso no mundo escrito. E deste modo possibilitar novas fontes e revitalização para a História da Educação. Além disso, podem informar a relação destas aprendizagens aos contextos sociais e educacionais da época e até que ponto essas vivências se relacionam com o que se tornaram.
Assim, nossa atenção acadêmica procurou compreender como ocorreu o ingresso de Paulo Freire na cultura escrita. Inferimos que algumas premissas que fundamentam seus argumentos no processo de construção da leitura e da escrita, estão profundamente relacionadas às origens de sua alfabetização.
O referido estudo foi elaborado no segundo semestre de 2020 como um produto da Linha de Pesquisa Alfabetização & Cultura escrita, vinculada ao Grupo de Pesquisa em Educação na Amazônia (GPEA). Um coletivo de investigação localizado no Departamento de Educação Intercultural (DEINTER) da Universidade Federal de Rondônia, Campus Urupá de Ji-Paraná.
Os procedimentos metodológicos necessários à elaboração deste trabalho levaram em conta a pesquisa bibliográfica, sobretudo nas leituras de Paulo Freire (1989; 1992), textos sobre o autor (1996; 2004; 2005) e as reflexões teóricas sobre a Alfabetização. Outro recurso metodológico importante foi a pesquisa narrativa, como meio de valorização das experiências pessoais: “As pessoas vivem histórias e no contar dessas histórias se reafirmam. Modificam-se e criam novas histórias. As histórias vividas e contadas educam a nós mesmos e aos outros, [...]”. (CLANDININ; CONNELLY, 2011, p. 27).
1 - Práticas culturais da linguagem - oralidade, leitura e escrita.
Há crianças que chegam à escola sabendo que a escrita serve para escrever coisas inteligentes, divertidas ou importantes. Essas são as que terminam de alfabetizar-se na escola, mas começaram a alfabetizar muito antes, através da possibilidade de entrar em contato, de interagir com a língua escrita. Há outras crianças que necessitam da escola para apropriar-se da escrita. (FERREIRO, 1999, p. 23).
Os estudos sobre a Psicogênese da língua escrita têm suscitado importantes considerações sobre as relações entre as práticas culturais da linguagem escrita/oral e o processo de alfabetização. De acordo com Emília Ferreiro, “O desenvolvimento da alfabetização ocorre sem dúvida em um ambiente social. [...]”. (FERREIRO, 1991, p. 24). Pensar a alfabetização e seus entrelaçamentos, oralidade, escrita e leitura exige compreender como estes elementos se presentificaram no dia a dia do menino pernambucano, tempos depois identificado como o educador Paulo Freire: “[...] os meus não-eus pessoais foram meus pais, minha irmã, meus irmãos, [...]. Foi com esses diferentes não-eus que me constituí [...]. Eu fazedor de coisas, eu pensante, eu falante”. (FREIRE, 1995, p. 25).
No “livro do Bebê”, um material com importantes registros da infância de Paulo Freire, sua mãe informou que ele não era de muita conversa: “A primeira palavra que disse foi Papá [...]. Fala muito pouco. [...]. Quando o pai insiste com ele para conversar responde apenas: ‘Não sei falar’. É orgulho só falará quando souber mesmo”. (FREIRE, 2017, p. 48). Esse episódio permite refletir que é comum no início da aquisição da língua oral as crianças pronunciarem palavras diferentes daquelas utilizadas convencionalmente.
Paulo Freire fazia isso ao chamar seu pai de “papá” ou como se referia a sua mãe, “mamãe minha”, confirmando que: “Em língua oral permitimos à criança que se engane ao produzir, tanto quanto ao interpretar, e que aprenda através de suas tentativas para falar e para entender a fala dos outros. [...]”. (FERREIRO, 1993, p. 31). Embora a oralidade e a escrita apresentem características diferentes, situações como esta podem contribuir para repensarmos nossas formas de alfabetização, principalmente no que diz respeito ao tratamento sobre os erros.
O educador reconhecia a importância da língua oral nos processos comunicativos na sociedade e na escola. Sobre o assunto, ao relatar aspectos de sua infância, apresentou elementos que permitem aproximações com a oralidade. Fez lembrar a atenção das crianças diante das conversas dos adultos: “Daquele contexto - o do meu mundo imediato - fazia parte, por outro lado, o universo da linguagem dos mais velhos, expressando as suas crenças, os seus gostos, os seus receios, os seus valores. [...]”. (FREIRE, 1989, p. 13).
Em relação à escrita, temos compreendido que em um ambiente onde os familiares fazem uso da cultura escrita e que a criança participa ativamente a partir dos elementos que dispõe em torno do ler e escrever, é possível que, como em outras situações, construa um entendimento a respeito deste objeto.
Neste sentido, em relação à escrita, é comum desde cedo à criança ter acesso à grafia de seu nome que geralmente está bordado em suas toalhas, lençóis, na porta do quarto, por exemplo, configurando que: “São as situações de uso da leitura e da escrita e o valor que se dá a essas práticas sociais que configuram um ambiente alfabetizador, [...] um espaço de reflexão sobre como funcionam as coisas no mundo da escrita: os materiais em que se lê, as situações em que se escreve [...]”. (SOLIGO, 2002, p. 276).
Ainda nesta direção, Paulo Freire vivenciou um conjunto de ações significativas em relação ao ato de ler, atestando que: “[...] os diferentes grupos de leitores investem na prática de ler. [...]”. (CHARTIER, 1991, p. 179). Estamos nos referindo ao ato rotineiro de ouvir leituras realizadas por adultos antes de dormir ou mesmo em outras situações em que por sua própria iniciativa solicitava estas atividades. Assim, em casa e na rua, nos diversos espaços urbanizados as crianças são interpeladas pela escrita e com isso têm a oportunidade de pensar a respeito:
Como as crianças chegam a compreender estas funções? As crianças que crescem em famílias onde há pessoas alfabetizadas e onde ler e escrever são atividades cotidianas, recebem esta informação através da participação em atos sociais onde a língua escrita cumpre funções precisas. [...], a mãe escreve a lista de compras do mercado, [...] e a consulta antes de terminar suas compras: sem querer está transmitindo informações sobre uma das funções da língua escrita [...]. (FERREIRO, 1993, p. 19).
Diante dessa discussão referente à importância das práticas culturais da linguagem que envolve o ler e o escrever, nos indagamos: como era o contexto em que Paulo Freire vivia? Nita Freire, viúva do autor informa que: “Seu pai não só o fazia dormir cantando, como também lia livros de histórias infantis e mais tarde conversava com Paulo sobre suas convicções éticas e políticas”. (FREIRE, 2017, p. 50). Inferimos que o educador possivelmente acompanhou alguns registros do Livro do Bebê tendo em vista as diferentes datas apresentadas: “[...]. A primeira palavra que disse foi Papá no dia 2 de março de 1922. [...]. Ao meu filhinho Paulo, aos seus 4 anos. [...]. Começou a aprender a ler no dia 15 de julho de 1925 aos 4 anos. [...]”. (FREIRE, 2017, p. 48-49).
Significa afirmar que o contexto de classe média em que Paulo Freire viveu sua infância, apesar das dificuldades financeiras, constituiu um ambiente de valorização da cultura escrita. A vivência das práticas culturais da oralidade, escrita e leitura possivelmente favoreceram o seu processo de alfabetização, avaliação compartilhada pelo autor tempos depois: “Hoje, [...] olhando para trás, para tão longe, percebo claramente como as questões ligadas à linguagem, a sua compreensão, estiveram sempre presentes em mim”. (FREIRE, 2020, p. 90).
2 - Paulo Freire e a casa como local de iniciação ao saber formal
A narrativa mais completa da alfabetização de Paulo Freire foi apresentada em uma das edições do Congresso Brasileiro de Leitura (COLE), Campinas, em novembro de 1981. Nesta ocasião, foi convidado para fazer a abertura do evento por meio do tema: “A importância do ato de ler”. E foi nesta oportunidade que o educador iniciou a reflexão da conferência, a partir das experiências pessoais de como aprendeu a ler e escrever: “[...]. Talvez seja este o sentido mais exato da alfabetização: aprender a escrever a sua vida, como autor e como testemunha de sua história, isto é, biografar-se, existenciar-se, historicizar-se. [...]”. (FIORI, 1987, p. 6).
Ali refletiu sobre suas aprendizagens de leitura e escrita que ocorreu no quintal da casa da família, debaixo das árvores com a colaboração do pai e da mãe: “Fui alfabetizado no chão do quintal de minha casa, à sombra das mangueiras, com palavras do meu mundo, não do mundo maior dos meus pais. O chão foi o meu quadro-negro; gravetos, o meu giz”. (FREIRE, 1989, p. 15). O relato permitiu inferir que a iniciação ao saber formal em casa pelos familiares, possivelmente era um comportamento comum na época para determinados grupos familiares: “[...]. Nasci uns oito anos antes do grande crash - nasci em 1921 - e minha família, de classe média, sofreu muito em consequência disso. [...]”. (FREIRE; HORTON, 2003, p. 53).
No entanto, os estudos referentes à História da Educação brasileira na primeira metade do século XX apresentam poucas informações sobre a alfabetização das crianças em contexto familiar. “Ao iniciar a pesquisa [...], deparei-me com uma imensa lacuna, a educação doméstica, que a historiografia da educação no Brasil parecia não ousar preencher, privilegiando o estudo das instituições formais de educação [...] a cargo do Estado, [...]”. (VASCONCELOS, 2004, p.10).
Estudos recentes apoiados nos recursos da pesquisa autobiográfica têm possibilitado um conjunto de escavações em memoriais de pessoas públicas ou anônimas no intuito de capturar dados que permitam analisar elementos outros da História da Alfabetização. Dentre estes trabalhos, citamos os escritos de Carvalho (2011) que discutem importantes aspectos historiográficos das práticas de aquisição da língua escrita de 14 (catorze) literatos (as) entre o final do século XIX e a primeira metade do século XX.
Nesta perspectiva, a autora destaca a casa como um lócus da aprendizagem inicial da prática cultural da leitura: “Nas memórias de alfabetização aqui focalizadas, retomamos os tempos em que se aprendia ler em casa, de maneira sistemática ou não, com a ajuda de mães e avós, babás, ou governantas de famílias de classe média alta. [...]”. (CARVALHO, 2011, p. 2). Dai a importância da pesquisa narrativa e autobiográfica como um relevante mecanismo de produção de conhecimento. Uma possibilidade de retomar temas a partir de novas perspectivas, uma vez, que: "[...]. A cada nova versão da história, a experiência é ressignificada [...] nos conduz a buscar as relações entre viver e narrar, ação e reflexão, narrativa, linguagem, reflexividade autobiográfica e consciência histórica”. (PASSEGGI, 2011, p.148).
Assim Paulo Freire discutiu o tema leitura tomando como ponto de partida os seus conhecimentos experienciais, o que permitiu a compreensão de aspectos de sua história de alfabetização. Um gesto decolonial que expressa a valorização dos saberes dos sujeitos em sua relação com o mundo. As lembranças deste processo reflexivo constituíram os dispositivos necessários para explicar a conexão que estabeleceu com essa prática cultural, mesmo quando ainda não lia convencionalmente:
A retomada da infância distante, buscando a compreensão do meu ato de ‘ler’ o mundo particular em que me movia - e até onde não sou traído pela memória, me é absolutamente significativa. Neste esforço a que me vou entregando, re-crio, e revivo no texto que escrevo, a experiência vivida no momento em que ainda não lia a palavra. (FREIRE, 1989, p. 9, grifo nosso).
Como um “menino conectivo”, relata o universo circundante na visão infantil, mas possivelmente a partir de palavras emprestadas pelo educador. Uma fresta no texto que permite revelar a fronteira traiçoeira entre o narrador e o narrado. Como explicar em um linguajar de criança a situação econômica difícil e complexa de fome que Paulo Freire vai denunciar em muitos de seus escritos?
Nascidos, assim, numa família de classe média que sofrera os impactos da crise econômica de 1929, éramos ‘meninos conectivos’. Participando do mundo dos que comiam, mesmo que comêssemos pouco, participávamos também do mundo dos que não comiam, mesmo que comêssemos mais do que eles - o mundo dos meninos e das meninas dos córregos, dos mocambos, dos morros. (FREIRE, 2015, p. 51).
A esse propósito, o autor reconhece que, “[...] é impossível escapar à ficção em qualquer experiência de memoriar. [...]”. (FREIRE, 2020, p. 34). Neste sentido, é possível inferir que a compreensão de leitura de Paulo Freire a partir do modo como foi alfabetizado possibilitou a compreensão de que antecedia à leitura do papel. Arriscamos a afirmar que o cenário de sua casa e do ambiente familiar constituiu neste sentido, seu primeiro Círculo de Cultura:
A velha casa, seus quartos, seu corredor, seu sótão, seu terraço - o sítio das avencas de minha mãe -, o quintal amplo em que se achava, tudo isso foi o meu primeiro mundo. Nele engatinhei, balbuciei, me pus de pé, andei, falei. Na verdade, aquele mundo especial se dava a mim como o mundo de minha atividade perceptiva, por isso mesmo como o mundo de minhas primeiras leituras. [...] eu ia apreendendo no meu trato com eles nas minhas relações com meus irmãos mais velhos e com meus pais. (FREIRE, 1989, p. 9).
A forma como estabelece relações dinâmicas e convergentes entre os saberes formais e informais possivelmente contribuiu para a defesa e a construção de argumentos a favor de uma educação de sentidos, onde o: “[...]. ato de ler se veio dando na minha experiência existencial. Primeiro, a ‘leitura’ do [...], do pequeno mundo em que me movia; depois, a leitura da palavra. [...]”. (FREIRE, 1989, p. 9). Saber social e saber formal constituem elementos fundantes da filosofia freireana, que pode ser interpretado em algumas situações com um instrumento didático imediato ou metodológico na busca por aprendizagens significativas:
compreensão crítica do ato de ler, que não se esgota na decodificação pura da palavra escrita [...], mas que se antecipa e se alonga na inteligência do mundo. A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto. (FREIRE, 1989, p. 9, grifo nosso).
Não foi possível localizar detalhes da rotina da alfabetização de Paulo Freire. As evidências que apresenta em sua narrativa, “[...]. Os "textos", as "palavras”, as "letras” daquele contexto - em cuja percepção rio experimentava e, quanto mais o fazia, mais aumentava a capacidade de perceber [...]”. (FREIRE, 1989, p. 9), nos leva a inferir que ali seus pais sistematizaram os termos chaves de sua iniciação à cultura escrita, que palavras seriam? Possivelmente, sanhaçu, bem-te-vi, sabiá, gato, Joli... Um processo que pode ser traduzido como uma etapa de respostas que vinham ao encontro da curiosidade do aprendiz:
E foi com eles, precisamente, em certo momento dessa rica experiência de compreensão do meu mundo imediato, sem que tal compreensão tivesse significado malquerenças ao que ele tinha de encantadoramente misterioso, que eu comecei a ser introduzido na leitura da palavra. A decifração da palavra fluía naturalmente da “leitura” do mundo particular. Não era algo que se estivesse dando superpostamente a ele. [...]. (FREIRE, 1989, p. 11).
Talvez a experiência de Paulo Freire no decorrer da sua alfabetização tenha sido tão enriquecedora ao ponto de provocá-lo e mobilizá-lo no sentido de materializar uma proposição crítica de iniciação à escrita como um direito inegável das pessoas adultas: “Considerava que a alfabetização era o tema mais importante, [...] o nível do analfabetismo no Brasil continuava sendo extremamente alto. [...], me parecia profunda injustiça haver homens e mulheres que não sabiam ler ou escrever. [...]. (FREIRE; MACEDO, 1990, p. 110). Essas inquietações contra o bicho de quatrocentos anos, o analfabetismo tão bem traduzido por Tiago de Mello, constituíram uma luta política e pedagógica que o acompanhou por toda a sua vida.
Assim Paulo Freire nasceu no contexto político da 1ª República no Brasil, em uma época em que a educação se encontrava em fase de organização. Repercutia na sociedade por meio da demanda por escolarização, considerada, deste modo, principalmente pela classe média como um recurso de prestígio social. Nesta direção, como as crianças e jovens da época, o menino pernambucano aprendia o sentido da leitura e da escrita por meio das vivências no ambiente familiar. As aulas com o pai e a mãe debaixo das arvores possibilitavam importantes contribuições nas aprendizagens destas práticas culturais.
3 - Aprendizagens nas escolinhas primárias particulares
outro ponto que não tem merecido ainda a atenção devida [...] as redes de escolarização particulares, desenvolvidas por iniciativa de indivíduos, famílias, grupos e/ou setores sociais diversos, cujas estratégias apontam para a coexistência de práticas educativas plurais em nível local, especialmente nas cidades, mas também nas áreas rurais. (SCHUELER; MAGALDI, 2009, p. 54).
As memórias de alfabetização possibilitadas pelas pesquisas narrativas ou autobiográficas têm possibilitado aproximações com os processos de aquisição da escrita de diferentes sujeitos, temporalidades e espaços. A título de ilustração citamos “As experiências de Lins do Rego” analisadas por Carvalho (2011) em que informa a presença de uma professora particular chamada Sinhá Gorda. Chamamos a atenção para o registro das aulas particulares mencionadas por meio de lembranças que não tem sido incluído nas análises da historiografia da educação brasileira. A presença do professor ou professora particular como responsável pela iniciação ao saber formal através da alfabetização pode ser compreendida em função de dois elementos: a educação era vista socialmente como uma responsabilidade da família em decorrência da inexistência de um sistema educacional público e pelo fato de ser considerado um meio de valorização e ascensão social (CURY, 2002).
É neste contexto que situamos as primeiras iniciativas de Paulo Freire na inserção escrita, momento em que teve aulas particulares com a professora Amália, a meu ver, uma educadora infantil que se aproximava de uma profissional de pré-escolar: “Começou a aprender a ler no dia 15 de julho de 1925 aos 4 anos. Sua primeira mestra foi D. Amália Costa Lima, [...]”. (FREIRE, 2017, p. 51). Um registro que suscita novas questões para pensar, uma vez que a educação nesta época chegava para poucos. Mais um elemento que tornou singular o encontro de Paulo Freire com a educação.
Em diferentes temporalidades, o castigo era considerado quase um “recurso pedagógico” e na 1ª República (1889-1930), isso não foi diferente. Mas uma vez, as memórias se constituíram em relevantes fontes históricas para a educação. Neste sentido, as lembranças de Graciliano Ramos (1994) sobre a infância e a alfabetização evidenciam as relações entre castigos físicos e educação formal. E em relação a Paulo Freire, em alguns momentos a punição foi inevitável: “[...]. Apanhou a primeira palmadinha na noite de 11 de março de 1923, quem deu foi sua mamãe por não suportar mais tantas malcriações. [...]”. (FREIRE, 2017, p. 47). Mas, talvez pela idade essa lembrança não foi a mais importante, a que permaneceu na memória do educador.
Sobre o tema, Paulo Freire registra reflexões relativas às orientações educativas paternas: “[...]. As mãos de meu pai não haviam sido feitas para machucar seus filhos, mas sim ensinar-lhes a fazer coisas”. (FREIRE, 1979, p. 15). Talvez por isso o autor tenha ficado tão inquieto quando já adulto se deparou com o problema dos castigos físicos, no período em que trabalhou no SESI (1947-1957). A descrição das punições que eram feitas diante de comportamentos interpretados como desobediência remetem ao período colonial no livro Casa Grande e Senzala de Gilberto Freyre (1995), em que o castigo era empregado como forma de controle e fator educativo:
Os castigos nas demais áreas variavam entre pôr as crianças amarradas em um tronco de árvore, prendê-las durante horas em um quarto, dar-lhes “bolos” com grossas e pesadas palmatórias, pô-las de joelhos sobre caroços de milho, surrá-las com correia de couro. Este último era o castigo preponderante em uma cidade da Zona da Mata, famosa por sua fabricação de calçados. Por motivos triviais se aplicavam estes castigos e se dizia com frequência aos assistentes de pesquisa: "castigo duro é que faz gente dura, capaz de enfrentar a crueza da vida”. “Pancada é que faz homem macho”. (FREIRE, 1992, p. 11).
Nesta ocasião apresenta um relato emocionante sobre o assunto, a meu ver uma das reflexões que evidencia a humildade pedagógica do educador. Após uma palestra que julgou ser importante sobre os prejuízos dos castigos físicos para a formação das crianças. Nesta ocasião, um dos pais presentes informou a sua dura rotina de trabalhador explorado, estabelecendo diferenças entre as formas de educar em um contexto de classes, interrogando o modo de vida de Paulo Freire:
Ao terminar, um homem jovem ainda, de uns 40 anos, mas já gasto, pediu a palavra e me deu talvez a mais clara e contundente lição que já recebi em minha vida de educador. Não sei seu nome. Não sei se vivo ainda está. Possivelmente, não. A malvadez das estruturas sócio-econômicas do país, que ganham cores mais fortes no Nordeste brasileiro, a dor, a fome, a indiferença dos poderosos, tudo isso deve havê-lo tragado desde há muito. Pediu a palavra e fez um discurso que jamais pude esquecer, que me acompanha vivo na memória do meu corpo por todo este tempo e que exerceu sobre mim enorme influência. Quase sempre, nas cerimônias acadêmicas em que me torno doutor honoris causa de alguma universidade, reconheço quanto devo também a homens como o de quem falo agora, e não apenas a cientistas, pensadores e pensadoras que igualmente me ensinaram e continuam me ensinando e sem os quais e as quais não me teria sido possível aprender, inclusive, com o operário daquela noite. [...]. (FREIRE, 1992, p. 13).
Esta ocorrência certamente constituiu um dos importantes marcadores na trajetória formativa de Paulo Freire, sistematizada por ele como um conhecimento forjado no “saber de experiência feita” (FREIRE, 1992, p. 14). Um conjunto de saberes que são elaborados por meio das vivências e não passam pelo espaço escolar. Essa discussão foi retomada em Pedagogia da Autonomia (1996) para sustentar a importância das famílias no processo formativo de seus filhos. Ali o educador afirma que esta participação não significava conivência com sua prática, mas uma forma de explícita negação do silêncio.
Voltando aos registros das professoras de Paulo Freire, além de Amália Costa Lima, (FREIRE, 2017), educadora particular quando tinha 4 (quatro) anos, Paulo Freire (2020) informa outras contribuições marcantes para a sua vida, caso de Áurea Bahia, quando ainda morava em Recife. Mas a docente mais conhecida em seus trabalhos (FREIRE, 1989; 2020) e nos textos de seus biógrafos (as)2, considerada como sua primeira professora foi Eunice Vasconcelos. Ele a conheceu em 1927: “[...] quando, aos seis anos, cheguei à escolinha de Eunice, minha primeira professora profissional, já lia e escrevia. [...]”. (FREIRE, 2020, p. 58). É na companhia desta docente, dona de uma escola particular que o educador vai aprofundar os saberes da escrita a partir da sistematização das sentenças:
Nunca me esqueço da alegria com que me entregava ao exercício que ela chamava de ‘formar sentenças’. Pedia, primeiro, que alinhasse, em uma folha de papel, tantas palavras quantas eu soubesse escrever e quisesse. Depois, que fosse com elas formando sentenças, cuja significação passávamos a discutir. Foi assim que, a pouco a pouco, fui fazendo a minha intimidade com os verbos, com seus tempos, seus modos, que ela ia me ensinando em função das dificuldades que surgiam. Sua preocupação fundamental não era me fazer memorizar definições gramaticais, mas estimular o desenvolvimento de minha expressividade oral e escrita. (FREIRE, 2020, p. 58).
O “formar sentenças” de que fala Paulo Freire permite inferir aproximações com o método analítico de alfabetização. Essa consideração leva em conta as pistas apontadas na explicação do autor, a começar pela palavra “sentença” e que nesta atividade retoma a escrita de palavras conhecidas e a partir delas elaborava as frases. Um recurso que envolvia a valorização do entendimento infantil sobre o trabalho em curso, uma das preocupações dos métodos analíticos, que:
partem do todo para as partes e procuram romper radicalmente com o princípio da decifração. São mais conhecidos os métodos [...] de sentenciação e o de palavração. Está presente nesse movimento metodológico a defesa do trabalho com sentido, na alfabetização. [...] buscam atuar na compreensão, por entenderem que a linguagem escrita deve ser ensinada à criança respeitando-se sua percepção global dos fenômenos e da própria língua. São tomados como unidade de análise a palavra, a frase e o texto. [...] supõem que, baseando-se no reconhecimento global, como estratégia inicial, os aprendizes podem realizar, posteriormente, um processo de análise de unidades menores da língua. (FRADE, 2005, p. 22).
A orientação da época era a de trabalhar a alfabetização com as crianças através da sentenciação. Nessa direção, a literatura pedagógica do final do século XIX e início do século XX, dentre outras, citamos, o Primeiro Livro de leitura de Maria Guilhermina Loureiro de Andrade (1894) citada por Ferreira e Santos (2014), trabalhava nesta perspectiva. Assim, esta proposição partia da identificação das palavras conhecidas pelos estudantes através das sentenças apresentadas e depois sugeria reorganizar novas sistematizações. Outras referências defendiam iniciar as atividades com uma ilustração acompanhada de uma pequena história ou “historieta”, situação ocorrida no contexto paulista:
O processo baseado na "historieta" foi institucionalizado em São Paulo, mediante a publicação do documento Instrucções praticas para o ensino da leitura pelo methodo analytico - modelos de lições. (Diretoria Geral da Instrução Pública/SP - [1915]). Nesse documento, priorizava-se a "historieta" (conjunto de frases relacionadas entre si por meio de nexos lógicos), como núcleo de sentido e ponto de partida para o ensino da leitura. As cartilhas produzidas no âmbito do 2º momento na história da alfabetização, especialmente no início do século XX, passaram a se basear programaticamente no método de marcha analítica (processos da palavração e sentenciação), buscando se adequar às instruções oficias, [...]. (MORTATTI, 2000, p. 7, grifo nosso).
Embora tenhamos afirmado que o jeito de trabalhar de Eunice Vasconcelos, se aproximava do método analítico da sentenciação, é preciso informar que estamos nos referindo a sua forma de trabalhar, já que não há menção ao uso de nenhum material didático específico no processo de alfabetização de Paulo Freire, nem na escola e nem em sua casa. O educador inclusive expressava uma grande rejeição às metodologias empiristas (WEISZ, 2002): “Em lugar de uma enfadonha cartilha ou, o que seria pior, de uma “Carta do ABC”, em que as crianças tinham de decorar as letras do alfabeto, [...] tive o quintal [...] de minha casa - o meu primeiro mundo - como minha primeira escola. [...]”. (FREIRE, 2020, p. 57-58).
Outro elemento importante no processo de alfabetização de Paulo Freire diz respeito às relações casa e escola. Afirmou que não houve muitas alterações no jeito de aprender e ensinar nestes dois ambientes. Uma ocorrência que reitera estudos sobre o bom desempenho escolar das crianças oriundas de locais que utilizam com frequência as práticas sociais de escrita. Nesta perspectiva, a escola funciona como uma extensão da casa, tal é a familiaridade do aprendiz com a linguagem formal: “Geralmente, crianças de classe média [...], têm um certo conhecimento sobre as funções sociais da escrita. [...]”. (FERREIRO, 1991, p. 72). Nesta linha de raciocínio, trabalhos do próprio autor sobre a relação entre o espaço familiar leitor e a instituição escolar constitui percepção crítica presente em seus textos: “[...]. As crianças dessas famílias são as únicas a ir bem nos exames e a tirar boas notas. [...] têm acesso à ciência e a tecnologia. [...]”.(FREIRE; MACEDO, 1990, p. 120).
Apontamos também como aspecto relevante na sua história de aquisição da língua escrita, a relação docência e discência: “[...]. Eunice continuou e aprofundou o trabalho de meus pais. Com ela, a leitura da palavra, da frase, da sentença, jamais significou uma ruptura com a ‘leitura’ do mundo’. [...]”. (FREIRE, 1989, p. 11).
Essa experiência posteriormente foi teorizada como um elemento de destaque na ampliação e o aprofundamento do saber formal, no que se refere às responsabilidades da docência nos processos formativos: “[...] o bom professor é o que consegue, enquanto fala, trazer o aluno até a intimidade do movimento de seu pensamento. Sua aula é assim um desafio [...]”. (FREIRE, 2002, p. 52). Nita Freire, informou o reconhecimento do educador com a área da linguagem como uma afinidade construída a partir da convivência com a docente:
Quando Eunice me ensinou era uma meninota, uma jovenzinha de seus 16, 17 anos. Sem que eu ainda percebesse, ela me fez o primeiro chamamento com relação a uma indiscutível amorosidade que eu tenho hoje, e desde há muito tempo, pelos problemas da linguagem e particularmente os da linguagem brasileira... mas é como se [ela] tivesse dito a mim, ainda criança pequena “Paulo, repara bem como é bonita a maneira que a gente tem de falar!...”. (FREIRE, 2017, p. 52).
Como já mencionamos, Paulo Freire ingressou na escola em 1927, quando tinha 6 (seis) anos, na 1ª República. Conforme os estudos da História da Educação brasileira, dentre outras características, essa época ficou marcada por apresentar: “[...] um quadro de demanda educacional que caracterizou bem as necessidades sentidas pela população [...], representou as exigências educacionais de uma sociedade cujo índice de urbanização e de industrialização ainda era baixo. [...]”. (ROMANELLI, 1980, p. 45).
Assim podemos compreender que a exclusão social referente o acesso à escola propiciada pelo Estado brasileiro neste período era muito grande, pois, inexistia um sistema escolar organizado: “Não havia uma rede de escolas públicas respeitáveis, e a que existia voltava-se para o atendimento das classes mais favorecidas economicamente”. (GHIRALDELLI JR, 1990, p. 27). Diante deste quadro social, da ausência de escolas públicas acessíveis e possivelmente da idade de Paulo Freire na época, restou a alternativa da escolinha particular de Eunice: “[...] sem uma uniformidade institucional, a aprendizagem dos saberes elementares acontecia na instituição privada, na “escola rural,” [...] com um professor ou professora particular [...]. (ARAÚJO, 2005, p. 3).
Assim, foi possível compreender que a educação formal de Paulo Freire na infância foi marcada pelos trabalhos pedagógicos iniciais de seus pais. Posteriormente, estas ações didáticas foram estendidas às professoras Amália em 1925, quando tinha 4 (quatro) anos e depois, Eunice em 1927 aos 6 (seis) anos. Quando esta última foi transferida para o interior de Pernambuco, o menino Paulo teve o seu primeiro encontro com a escola pública, através do Grupo Mathias de Albuquerque. (FREIRE, 2017).
4 - Aprendizagens no Grupo Escolar Mathias de Albuquerque
A história dos grupos escolares emerge nos anos 90 como fruto do movimento de renovação dos estudos em história da educação e na confluência de duas temáticas ou eixos de investigação para os quais se voltaram os historiadores: a história das instituições educativas e o interesse pela cultura escolar. [...] essa história significou uma redescoberta do ensino primário investigado com base em novas abordagens e interpelações epistemológicas e explorado numa multiplicidade de temas e objetos. [...]. (SOUZA; FARIA FILHO, 2006, p. 15).
O surgimento do Grupo Escolar no cenário brasileiro constitui uma referência de muita importância no contexto da chamada 1ª República (1889 a 1930). Essa perspectiva tem sido redimensionada na História da Educação a partir de um movimento que reexamina este período por meio de outras possibilidades de análise. Nessa direção, “[...] os Grupos Escolares tiveram uma importância singular na construção simbólica de escola primária brasileira e na produção da história da infância no Brasil, [...]”. (VIDAL, 2006, p. 5), sobretudo por representarem uma referência de valorização do saber formal sintetizado em um tempo/espaço determinado. E é este projeto de escola pública, laica e considerada moderna através dos Grupos Escolares que encontra Paulo Freire em Recife e depois em Jaboatão. Uma proposição de educação influenciada pelos ideais iluministas e que buscava construir uma identidade mais próxima ao perfil republicano, como mecanismo de ruptura com o regime anterior:
A institucionalização da escola primária e a produção do saber escolar vincularam-se ao projeto de constituição de nossa nacionalidade. A unidade da língua, dos costumes e das tradições seria um ponto fundamental para unificação do povo brasileiro, naquele momento estilhaçado não apenas pelo grande contingente de imigrantes, mas também pelo que envolve a quebra da continuidade de uma tradição assentada no modo de vida monárquico e a necessidade de conferir legitimidade à vida republicana. (ROSSI, 2017, p. 165).
Neste sentido, o Grupo Escolar como feição da escola pública nascente fez parte da história do educador pernambucano. Ainda quando estava em Recife, Paulo Freire escreveu em Cartas à Cristina (2020) breves registros de sua passagem inaugural na instituição pública: o Grupo Escolar Mathias de Albuquerque. Nesta instituição fez referências à professora Áurea Bahia, como uma das pessoas marcantes em sua formação. Esta escola é mencionada também no livro Professora sim, tia não (1997) onde o educador faz agradecimentos a um amigo de infância: “A Albino Fernandes Vital, com quem experimentei na infância longínqua, no Grupo Escolar Mathias de Albuquerque, no Recife, alguns dos momentos da prática educativa neste livro discutida”. (FREIRE, 1997, p. 4).
Talvez seja deste período os registros de Dona Tudinha, apelido carinhoso de Edeltrudes, mãe de Paulo Freire, que afirmava ser ele um menino, “[...] estudioso e cumpridor de deveres. Não se conformava em ir à aula sem as lições prontas. Chorava demais; sem ter a certeza que sabia, não comparecia à aula, era difícil convencê-lo”. (FREIRE, 2017). Pela expectativa exigida, inferimos que essas preocupações tinham muito mais relações com o Grupo Escolar que as escolinhas particulares em que estudou.
Não foi possível localizar outras informações referentes à experiência de Paulo Freire no Grupo Escolar Mathias de Albuquerque ou nas outras escolas primárias públicas que frequentou posteriormente. Mas, as memórias deste período estão presentes em muitos trabalhos do educador, só que voltadas a uma problemática que marcou sua história de vida através de uma brutal precarização vivenciada pelo autor e sua família, o tempo da fome:
Fome real, concreta, sem data marcada para partir [...]. Quantas vezes fui vencido por ela sem condições de resistir a sua força, a seus “ardis”, enquanto procurava “fazer” os meus deveres escolares. Às vezes, me fazia dormir, debruçado sobre a mesa em que estudava, como se estivesse narcotizado. E quando, reagindo ao sono que me tentava dominar, escancarava os olhos que fixava com dificuldade sobre o texto de história ou ciências naturais - “lições” de minha escola primária - as palavras eram como se fossem pedaços de comida. (FREIRE, 2020, p.40).
Estes difíceis tempos decorrentes das privações financeiras estão, portanto, diretamente relacionados ao início de sua vida escolar em âmbito público, conforme registra um de seus biógrafos: “Eu fiz a escola primária exatamente no período mais duro da fome. Não da ‘fome’ intensa, mas de uma fome suficiente para atrapalhar o aprendizado”. (GADOTTI, 2004, p. 32).
Paulo Freire refletiu estes processos como contextos de compreensão crítica estabelecendo relações entre as temporalidades da infância e da vida adulta “[...]. Experimentei-me, enquanto menino tanto quanto enquanto homem, socialmente e na história de uma sociedade dependente, participando, desde cedo, de sua terrível dramaticidade. [...]”. (FREIRE, 2020, p. 39). Análises nesta direção apontam que este período significou um tempo de duras aprendizagens: “Paulo Freire menino já percebe que, [...] o dominado internaliza e reproduz os valores do dominante [...] esse estado de coisas necessariamente exigirá uma transformação cultural e, mais especificamente, educativa”. (KOHAN, 2018, p. 6).
O amigo de muitas horas Moacir Gadotti informa que aos 8 (oito) anos, o que já foi mencionado neste texto, que a família do pequeno pernambucano foi impactada pela crise econômica de 1929 de tal modo que no início dos anos 1930, tiveram que ir morar em Jaboatão. E após o falecimento de seu pai em 1934 a situação de pobreza que já estava ruim, piorou ainda mais. Esse contexto de precarização repercutiu no atraso de sua escolarização. (GADOTTI, 2004).
Nita Freire, pesquisadora e viúva do educador, sintetizou a sua trajetória na escola primária trazendo os nomes de mais duas professoras: “Foi em Jaboatão, com aulas de reforço de Cecília Brandão e Odete Antunes, que Paulo concluiu a escola primária, depois de ter frequentado as ‘escolinhas’ de Amália Costa Lima e de Eunice Vasconcelos, e, por pouco tempo, o Grupo Escolar Matias de Albuquerque no Recife”. (FREIRE, 2017, p. 57).
Inegavelmente, os nomes de Eunice, Áurea e Cecília (FREIRE, 2001) constituem as referências escolares no âmbito da docência, mais significativas de Paulo Freire conforme apontam as memórias do educador. Acrescento também vinculado a estas lembranças, o Grupo Escolar Mathias de Albuquerque, a única escola pública que foi possível localizar em sua trajetória primária:
Além de Eunice, a professora com quem aprendi a “formar sentenças”, somente Áurea, no Recife ainda e Cecília, já em Jaboatão, realmente me marcaram. As demais escolas primárias por que passei foram medíocres e enfadonhas, ainda que de suas professoras não guarde nenhuma recordação má, enquanto pessoas. (FREIRE, 2020, p. 59).
Posteriormente, com a conclusão dos estudos na escola primária, somente aos 16 (dezesseis) anos é que Paulo Freire passou a frequentar aulas no ensino secundário em Recife, uma vez que não havia escolas assim em Jaboatão. Inicialmente estudou no Colégio Francês Chateaubriand e depois ingressou como bolsista no Colégio Oswaldo Cruz, espaço formativo relevante em sua memória. A trajetória no ensino secundário do educador representa um novo desafio, importante para a História da Educação.
Um estudo que certamente poderá fortalecer as fontes de dados memoriais se o trabalho considerar estas possibilidades que articulam as narrativas do eu pessoal com o eu social (NEVES, 2010). Repercussões do pensamento fecundo do Patrono da Educação Brasileira que necessita de muitas interpretações, muitas leituras de mundo: “Muito se escreveu sobre Paulo Freire. E muito se escreverá. Às vezes me pergunto de onde saem tantos assuntos sobre um autor que insistia em enfatizar que a simplicidade era uma característica fundamental de sua proposta pedagógica”. (CASALI, 1998, p. 95).
Considerações Finais
A História da Alfabetização pode ser pensada e construída na perspectiva de seus aprendizes. Essa possibilidade tem sido viabilizada a partir dos memoriais, fontes historiográficas importantes que podem ser localizadas em narrativas autobiográficas e biográficas. São registros que permitem o acesso a pistas relevantes sobre aspectos particulares referentes às aprendizagens da leitura e da escrita. Essa mobilização foi o ponto de partida para a produção deste estudo.
O interesse acadêmico buscou compreender como Paulo Freire aprendeu a ler e escrever. As práticas culturais da linguagem mediante os usos da oralidade, leitura e escrita foram presentes na vida do educador, sobretudo na 1ª infância. Talvez por esse contexto tenha iniciado a alfabetização com os seus pais no quintal da casa e aos 4 (quatro) anos já frequentava a escola particular de Amália Costa Lima, indo depois para a escola pertencente a Eunice Vasconcelos, tinha 6 (seis) anos até seu encontro com a educação pública no Grupo Escolar Mathias de Albuquerque em Recife. Em Jaboatão, estudou com Cecília Brandão e Odete Antunes e assim pode finalmente concluir a escola primária. Professoras, nunca tias.
As narrativas de Paulo Freire sobre a história de sua alfabetização permitiram compreender que aprendeu a ler e escrever em casa, por seus pais, sem cartilhas, com palavras relacionadas ao seu contexto. Sua concepção de alfabetização desde cedo vislumbrava um conjunto de aprendizagens envolvendo o binômio, condição social e saber formal, aspectos pedagógicos inseparáveis nas diferentes pedagogias que produziu. Rejeitava as proposições mecanicistas da época instalada na discussão educacional, cujas repercussões ecoaram no decorrer de seus trabalhos.
Foi possível observar que alguns elementos observados no contexto da alfabetização de Paulo Freire até a escola primária repercutiram na história de vida e profissão do educador, expressos de várias formas: a busca por uma alfabetização com sentidos para os “esfarrapados do mundo” (1989), a articulação entre a leitura de mundo e o mundo da leitura, a importância da realidade do (a) aprendiz no contexto escolar; as relações indissociáveis entre a oralidade, leitura e escrita, o binômio docência e discência, dentre outros. E fundamentalmente, as vivências solidárias com sua família e docentes talvez tenham sido importantes para que enfrentasse as dores da fome e da pobreza que ao invés de provocar revolta contribuíram para a sua formação política, educacional e humanista.