É crescente o interesse por abordagens no campo da história da Política Educacional brasileira centradas em questões locais, num movimento inverso ao relevo frequentemente dado às análises em perspectiva ampliada, como as grandes reformas educacionais, fato este que já dá a obra Políticas Públicas de Educação no Âmbito do Federalismo Pós-Constituição de 1946 um caráter transgressor por propor em si um movimento inverso, ao ter como eixo de estudo as políticas públicas de educação no município de Vitória da Conquista, Bahia, no período entre 1945 e 1963, e as mudanças ocorridas na educação local nesta época em destaque. Fruto de uma tese1 de doutorado defendida na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, PUC/MG, foi recentemente publicado, em formato físico e E-book, pela Editora Appris, o livro Políticas Públicas de Educação no Âmbito do Federalismo Pós-Constituição de 1946, de autoria de Elenice Silva Ferreira. A obra faz parte da Coleção Educação, Tecnologias e Transdisciplinaridade e apresenta as políticas públicas orientadas para o ordenamento da educação no município conquistense em algumas dimensões específicas, a saber: dos projetos de criação das escolas à organização do ensino, sem ocultar as estratégias articuladas pela intelectualidade e dirigentes locais, em favor de uma estrutura educacional que incluísse o município de Vitória da Conquista no conjunto dos municípios desenvolvidos. Nesse aspecto, na escrita da obra em questão, a autora não deixou de reconhecer o município como entidade político-administrativa com vida própria, entretanto, articulado com as ações políticas e educacionais em nível estadual/nacional, inerentes ao modelo de Estado federativo (FERREIRA, 2019).
Dividida em cinco capítulos, harmonicamente distribuídos ao longo da obra, a autora apresenta suas reflexões embasadas num trabalho investigativo que analisa a conexão entre educação e desenvolvimento na cidade de Vitória da Conquista e sua direta relação entre a cultura política de tratamento da questão educacional pelo poder público local, sobretudo, pela atuação da Câmara de Vereadores do município. A partir de uma concepção dialética da realidade, a obra parte de uma análise geral do cenário brasileiro no contexto de “redemocratização”, entre 1945 a 1963, decorrente de um processo de desgaste e consequente fim do governo ditatorial de Getúlio Vargas conhecido como Estado Novo, discutindo os desdobramentos da reconquista da democracia para as políticas estaduais e municipais para, a partir daí, aprofundar-se nas especificidades locais. O convite é evidente: olhar para a educação escolar sob a ótica municipal, traçando uma relação direta entre a Constituição Federal de 1946 e a Constituição Estadual da Bahia de 1947, abrindo possibilidades para um caminho inverso ao comum: partiremos nesta obra da parte, para fortuitamente enxergar melhor o todo.
Ora, não foi exatamente das cidades de onde partiu o que hoje entendemos por Política? A palavra política deriva do grego politikós, àquilo que é da cidade, da pólis, como era chamada na Grécia Antiga, espaço de interesse comum do ser humano no exercício de sua cidadania (BOBBIO, et al., 1998). A obra reforça a importância do estudo do tempo passado como perspectiva orientadora do tempo presente e do tempo futuro, apresentando a análise histórica não como uma narrativa engessada e sim como potência interpretativa, delimitando os anos entre 1945 e 1963 como sua realidade histórica central, período nacional e baiano, rico em acontecimentos políticos de rupturas e permanências. Cita, na introdução, Paul Ricoeur (2007) para destacar a importância da preservação da memória educacional local, sobretudo ao apontar a memória como campo incessante de disputas.
No primeiro capítulo, a autora versa sobre o Estado em seu conceito e formação, ampliando para o surgimento do Federalismo no Brasil e as Políticas Públicas neste contexto. Numa análise densa e didática, apresenta as formas de intervenção do Estado em sociedade através do modelo federalista e via políticas públicas, com determinações diretas no reordenamento da educação brasileira a partir da Constituição Federal de 1946. Territorialmente com dimensões continentais, o Brasil passou a ser um país federativo através da Constituição de 1891, modelo através do qual supõe-se compartilhamento do poder e a autonomia relativa entre os entes - União, Estados e Municípios, via princípio da não centralidade do poder e sim de autonomia, interdependência e cooperação recíproca. Ente nas divisões políticas e administrativas, cabe ao município as menores divisões administrativas da República, com certa autonomia de operar e legislar (CURY, 2014). O município de Vitória da Conquista é o centro do segundo capítulo, que versa desde a origem do conceito de município no Brasil até as especificidades de Vitória da Conquista. Dedica-se a formação das cidades na perspectiva jurídica, política e administrativa e aponta os impactos do Movimento da Escola Nova na educação local conquistense.
A forma como a Educação institucionalizada para a ser desenhada em Vitória da Conquista é eixo do capítulo três, onde a autora passa pelas primeiras escolas primárias e pelo primeiro Ginásio do município. Parte do estudo de uma realidade educacional precarizada pelo poder público local e com evidente incipiência como movimento estrutural para educação pública da cidade apontando ainda o protagonismo do ensino privado no início do século XX.
Neste bojo a autora constrói o quarto capítulo, onde aborda as políticas públicas de educação em Vitória da Conquista no período entre 1945 e 1963. Argumento central da obra, é neste capítulo que é apresentada a conjuntura social e política estabelecida no município na formulação de políticas públicas educacionais. Dedicando-se ao estudo da legislação municipal da época, compreende a organização escolar e as políticas educacionais que lhes deram sustentação.
O eixo histórico da obra é a Constituição Federal de 1946 que, com suas limitações, é considerada o documento que institui a primeira experiência democrática do Brasil, resultado da derrubada do Estado Novo, com a deposição de Getúlio Vargas. Na Constituição Federal de 1946 a educação escolar primária, gratuita e obrigatória como direito garantido aos cidadãos e cidadãs era apresentada como competência dos Estados federados e aos municípios. Na Bahia, foi em 1947 o reflexo da Constituição Federal de 1946, quando o então secretário estadual de Educação e Saúde era Anísio Teixeira, um dos protagonistas na elaboração do capítulo da Educação e Cultura, na Constituição baiana da época. A Carta Magna nacional deu maiores responsabilidades educacionais aos entes federados, ainda que limitadas à regulamentação da União, responsável por legislar sobre as diretrizes e bases da educação nacional, instituindo um certo processo de descentralização. Na Constituição baiana, com ideias democráticas e de descentralização do ensino, determinou a organização de conselhos, dentre eles os Conselhos Municipais, órgãos autônomos e administrativos da educação local.
No quinto capítulo são os recursos públicos destinados à educação municipal que ganham foco, apresentando os dilemas do financiamento da educação local, a relação entre Estado/Município na manutenção do ensino primário, secundário e normal e a relação entre público-privado. Campo de disputas permanentes, toda conjuntura das políticas educacionais foi diretamente impactada pela estrutura política maior, implicando o federalismo num movimento muito mais amplo que o da tão propagada descentralização.
À guisa de conclusões, é visível a análise comprometida na relação entre educação e desenvolvimento local tecidas ao longo da obra. A autora aponta: é impossível discutir o viés local, sem o embasamento nacional num país que tem o federalismo como princípio gestor, um sistema que até hoje não foi instituído no Brasil, barreira que aprofunda desigualdades sociais, jurídicas e políticas, longe da proposta de igualdade federativa. Como entidade político-administrativa autônoma, o município é apresentado na obra como articulador diretamente ligado às ações políticas e educacionais dos estados e da União, com base no modelo vigente de Estado Federativo. A educação baiana é tratada com farta documentação de fonte primária e com comentaristas do período, é evidente a rigorosidade do método analítico e a robustez das reflexões teóricas. Pela consistência das análises e modos de tratar as fontes, denota-se que o livro congrega importantes características de relevância para o cenário de estudos e pesquisas em Educação, História da Educação e na direta relação entre Estado, Política e Educação. Traz, portanto, um interessante panorama e instrutivo do exercício historiográfico que se define mais pela perspectiva de estudos que enfatizam a importância das análises locais no que concerne a operacionalização de políticas públicas educacionais. Para o campo da História da Educação, a obra com abordagem do global - local - global tem o potencial de revelar aspectos da operacionalização das políticas educacionais brasileiras no âmbito municipal.
Demonstrando profundo potencial das abordagens históricas em perspectivas locais, a obra traz, com propriedade, o protagonismo dos municípios como operadores das políticas públicas educacionais, orientando hábitos, condutas, espaços, discursos, normas e alterando o cotidiano dos munícipes destinatários destas políticas. O livro é formado por capítulos que congregam uma ampla variedade temática e mobilizam um conjunto diversificado de fontes de análise, o que dão a ele ainda mais caráter de importante documento de consulta, análise e reflexões.
O livro nos aponta caminhos para novas investigações similares em outros municípios, sobretudo no viés analítico quanto ao discurso sobre a princípio da autonomia no contexto federativo. Também, consiste em poderosa fonte de memória para história do município de Vitória da Conquista. Além disso, é fonte para pesquisadoras(es) que buscam modos de operacionalizar o trabalho com a história através de investigações fundamentadas e bem relacionadas.
A educação como direito conquistado é ainda longe de ser direito garantido, o que nos apresenta um longo caminho para o fortalecimento da cidadania, do poder local e de seu autêntico exercício da autonomia e de relação dialógica com os demais entes federativos. Se, em acordo com a autora, que coaduna com Hanna Arendt, a “tarefa e objetivo da política é a garantia da vida no sentido mais amplo” (1998, p. 46), ao Federalismo cabe a garantia do equilíbrio entre autonomia e interdependência, tendo o desenvolvimento e o bem viver local como objetivo fundamental.