Em O Mestre-Escola: retalhos da vida de Giovanni Trentini em Rio dos Cedros, cujos lançamentos ocorreram em março e em junho de 2022, Norberto Dallabrida constrói uma narrativa em torno dos caminhos e das escolhas do imigrante italiano Giovanni Trentini, desde sua chegada ao Brasil, em 1878, até a sua morte, em 1919. Aos 40 anos de idade, viúvo e com duas filhas pequenas, Giovanni Trentini emigrou da Itália para o Brasil e se estabeleceu em Rio dos Cedros (SC). Nessa localidade foi agricultor, renomado líder religioso, professor, escreveu poesias, construiu uma capelinha em honra a Nossa Senhora de Lourdes; após a morte da filha Angelina aos 20 anos de idade, a que sobreviveu na travessia do Atlântico, em 1902, ele casou-se com a vizinha, também viúva. Esses são os principais aspectos da biografia de Giovanni Trentini abordados no livro e são tomados pelo autor como urdiduras para construir a trama histórica e (re)contextualizar, em nível macro e micro, o dramático contexto da imigração italiana e da colonização da região do Médio Vale do Itajaí-Açu, especialmente a partir de 1875.
A narrativa do professor Norberto conduz o leitor a compreender tempos e espaços, pautando-se num significativo conjunto de variadas fontes documentais. Tal prática evidencia o seu compromisso de historiador, o de ser o mais fiel possível ao trabalho investigativo com vistas à (re)constituição da realidade do cotidiano dos rio-cedrenses, sem cometer anacronismos e de estar ciente dos limites na produção de conhecimento sobre tempos pretéritos, pois o trabalho de escrita da história é interminável. Norberto Dallabrida é licenciado e mestre em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, é professor no Curso de Pedagogia e no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).
A perspectiva historiográfica em relação a Giovanni Trentini está assentada na biografia histórica que, reatualizada, tem como método identificar as relações entre indivíduo e sociedade, isto é, por meio de uma pessoa, conhecer uma época e a sociedade em que ela viveu, mostrar as relações entre passado e presente, entre memória e projetos individuais e coletivos. Com maestria e por dever de ofício, Norberto trabalha com o personagem e uma cronologia a ele relacionada com o cuidado de não atrelar a sua trajetória à linearidade cronológica, pois a vida não segue uma sequência coerente de acontecimentos. A biografia é trabalhada no sentido de permitir a compreensão dos conflitos e tensões no referido contexto, pois entender e explicar a vida de uma pessoa exige atenção a um amplo conjunto de aspectos aos quais ela se entrelaça.
No decorrer da leitura de O Mestre-Escola, é possível estabelecer uma analogia do historiador Norberto ao narrador de Benjamin, no sentido de ambos serem guardiões, produtores e transmissores de memórias e de histórias da cultura e do cotidiano das pessoas. Benjamin elogia o escritor russo Nicolai Leskov pela profundidade como apresenta os costumes, a cultura e a experiência cotidiana do povo. Ressalvados os diferentes contextos, as possíveis analogias estão no fato de a narrativa de Norberto estar vinculada às tradições dos imigrantes trentinos e italianos e de seus descendentes. Nesse sentido, revisita narrativas memorialísticas e inclui, em seu livro, expressões do dia a dia dos imigrantes e, quando em língua italiana ou em algum dos seus dialetos, acrescenta a respectiva tradução. Também inclui poemas e fragmentos de hinos e outros “retalhos” recortados da realidade que de longa data investiga.
Ainda, essa digressão de aproximação da experiência do narrador benjaminiano se dá pela via de o autor ter nascido em Rio dos Cedros. O cultivo de vínculos com o mundo e as memórias da infância, com a vida comunitária dos rio-cedrenses, das práticas de socialização e o seu compromisso com os processos de escolarização, étnicos e culturais foi importante para selecionar partes da vida do Mestre-Escola a serem contadas no livro. Nessa direção, a experiência consistiu em percorrer caminhos e adquirir conhecimentos. Gagnebin (2009, p. 58), estudiosa de Benjamin, diz que a experiência entendida como Erfahrung significa, por meio de seu radical farh, “atravessar uma região durante uma viagem”. Etimologicamente, experiência (Erfahrung) quer dizer deslocar-se, colocar-se a caminho, viajar, atravessar uma região. Assim, o narrador é exemplificado por Benjamin como sendo, ao mesmo tempo, camponês sedentário e marinheiro viajante.
O livro está organizado em dez capítulos que apresentam densidade e entrecruzam as temporalidades e os contextos dos processos de imigração e de colonização e neles vai evidenciando a singular trajetória de Giovanni Trentini. O primeiro capítulo, Rememoração nostálgica, toma como ponto de partida o período em que se iniciam os festejos da chegada dos primeiros imigrantes vindos da província italiana da região do Trentino-Alto Adige porque, segundo Dallabrida, a migração de Giovanni Trentini “precisa ser compreendida à luz da nostalgia comunitária experimentada em meados da década de 1970” (p. 20). A detalhada narrativa conduz o leitor a adentrar na programação da “festa do centenário” realizada em Rio dos Cedros entre 29 de novembro e 8 de dezembro de 1975. A partir dessa época, tem início um processo de reavivamento étnico-cultural com instituição de associações como os circolos trentinos, ligados à Associação Trentini nel Mondo, entre outras. É na onda de homenagens aos imigrantes que, em Rio dos Cedros, a Escola Básica Padre Aleixo é transformada em Colégio Estadual Professor Giovanni Trentini.
O segundo capítulo, Imigração, entremeia aspectos da vida de Giovanni Trentini relacionando ao contexto socioeconômico da miséria e das doenças por ela provocadas e da propaganda imigratória. Entre os agentes recrutadores do período destacam-se os de Caetano Pinto que, em dez anos, convenceram 100 mil imigrantes a vir ao Brasil, país no qual, segundo a propaganda, havia fartura e nele facilmente se fazia fortuna, o que culminou na criação de um imaginário de uma vida edênica existente na América. Todavia, esse paraíso nunca fora encontrado pelos homens, mulheres e crianças que sobreviveram, apesar das péssimas condições dos navios e da sofrida travessia do Atlântico. Entre muitos cadáveres, vítimas de alguma febre epidêmica, que tiveram de ser lançados ao mar sem poder contar com a perpetuação da memória presentificada num túmulo, esteve o de uma das filhas de Giovanni Trentini.
O terceiro capítulo, Colonização, reconstitui o cenário do estabelecimento de Giovani Trentini, em 1878, na propriedade rural da Encruzilhada, lote 95, da Estrada de Pomeranos, da Colônia Blumenau, denominação dada pelos diretores da Colônia em decorrência de os primeiros imigrantes serem da Pomerânia. Caracteriza a região e o processo de colonização ocorrido no Sul do Brasil na segunda metade do século 19, em que os imigrantes europeus adquiriam pequenos lotes de terra, onde a mão de obra era familiar e utilizada no cultivo de produtos agrícolas diversificados; grande parte para a própria subsistência e sendo quase que autossuficiente. Giovanni Trentini, entre outros produtos, dedica-se ao cultivo de videiras e fabricação de vinho. Houve empenho dos imigrantes na construção de oratórios e das primeiras capelas, o capelão leigo era uma figura de destaque nesse tempo de ausência e/ou de visitas esporádicas de algum padre às localidades. Nessas pequenas capelas funcionaram as primeiras escolas, cujos mestres-escolas eram escolhidos entre os colonizadores emigrados com alguma formação. Antes de emigrar, Giovanni Trentini havia se formado na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, de Pádua, e servido o exército ao longo de sete anos.
O quarto capítulo, Capelão leigo, esmiuça o espaço geográfico da região, a localização de oratórios, de capelas, inicialmente construídas em pau a pique, depois de madeira e, por volta das primeiras décadas do século 20, de alvenaria; e a atuação de Giovanni Trentini, como capelão leigo, por escolha dos moradores da Capela de Nossa Senhora das Dores, prática comum em outras capelas de imigrantes trentinos e italianos. Geralmente era escolhido entre os que tinham liderança natural e tivessem integrado o Coral da Itália. Era o Capelão quem liderava as rezas, os cultos aos domingos, ensinava o catecismo, preparando as crianças para a 1ª Comunhão, que ocorria quando da visita de algum padre. Giovanni Trentini angaria prestígio social por se destacar como capelão leigo, ter devoção católica exemplar, ser portador de cultura letrada, por manter-se celibatário desde a viuvez, por ter sido o primeiro membro da Ordem Terceira Franciscana na área do vale do rio dos Cedros, associação que, sob a direção de um sacerdote, era formada por leigos tanto casados quanto celibatários. Os membros cultivavam devoção a São Francisco de Assis, faziam reuniões mensais, recitavam orações diárias, cuidavam dos doentes, entre outras atividades.
O quinto capítulo, Mestre-Escola, discorre sobre os percursos de Giovanni Trentini como professor ambulante em várias comunidades; ele percorria a pé cerca de 20 km todos os dias e ainda ensinava à noite. Ressalta que, como Mestre-Escola, Giovanni Trentini destoa de uma prática usual da época por não submeter os seus alunos a castigos físicos. Com a implantação das escolas paroquiais decorrente da presença da Ordem dos Frades Menores (OFM) na região desde 1892, Giovanni Trentini, sempre de acordo com os padres franciscanos, também assume a função de supervisionar e orientar os professores dessas escolas nas ocasiões em que o padre-diretor não pudesse estar presente. O capítulo também aborda o período em que houve conflitos entre as escolas paroquiais e a rede de escolas étnicas Dante Alighieri, especialmente nas duas primeiras décadas do século 20.
O sexto capítulo, O Capitel de Nossa Senhora de Lourdes, versa sobre um dos costumes dos imigrantes italianos, em sua maioria católicos, que era a construção de capelinhas em homenagem e devoção a algum santo, tanto em agradecimento quanto para rogar proteção. Trata-se de um imaginário com características de uma manifestação da cultura popular católica; o capitel transformava-se num local de peregrinação e de devoção nas propriedades ou nas beiras de estradas. Foi em 1890 que Giovanni Trentini erigiu em terreno de sua propriedade um oratório em homenagem a Nossa Senhora de Lourdes. Dentre os motivos estão os de ter sido em cumprimento a uma promessa feita em meados do século 19 quando fora soldado e de os imigrantes trentinos e italianos serem devotos dessa santa. Atualmente a imagem de Nossa Senhora de Lourdes encontra-se no interior da Capela Nossa Senhora das Dores, em Rio dos Cedros, para lá transladada em 1944 quando da demolição do capitel original devido à falta de recursos para restaurá-lo. Entretanto, em memória a Giovanni Trentini e à sua promessa, em 1913, um novo oratório foi construído no local do capitel que havia sido erigido por ele em 1890.
O sétimo capítulo, Casamento de viúvos, trata sobre o processo pessoal que levou Giovanni Trentini casar-se pela segunda vez e do alvoroço entre os moradores da localidade ao tomarem conhecimento do casamento com a também viúva Madalena Negri, realizado na capela central da Imaculada Conceição, em uma segunda-feira do ano de 1902. Giovanni Trentini tece uma ruptura da vida cotidiana e da ordem social e de suas regras, incluindo afirmações feitas no passado por ele mesmo: de não mais se casar, não ter empregada e não abandonar a própria casa. Ademais, não segue a tradição de os viúvos casarem-se na quarta-feira. Dallabrida aponta ter sido uma estratégia, não bem-sucedida, para fugir do estardalhaço que seria provocado pelo chaviari, costume praticado na Europa que, aproximadamente, perdurou até os anos 1940, e que consistia numa espécie de festa e/ou serenata com rituais satíricos e marcados pela inversão de valores. Em Rio dos Cedros, o único “chaviari de segundas núpcias” dos quais se tem registros é o de Giovanni Trentini e Madalena Negri.
O oitavo capítulo, Poesias, apresenta Giovanni Trentini escritor de poesias, escritas e publicadas por ocasião de comemorações do município de Blumenau e de Rio dos Cedros, como no cinquentenário de criação da Colônia Blumenau e na bênção da terceira e imponente capela de alvenaria construída em Rio dos Cedros. Apenas duas de suas poesias encontram-se conservadas e, além de incluí-las neste capítulo, Dallabrida busca captar os sentidos nelas contidos, em grande parte relacionados ao universo cultural e religioso dos imigrantes. Também esclarece que algumas poesias atribuídas a Giovanni Trentini, na realidade, são de autoria do professor Virgílio Campestrini.
O nono capítulo, Encruzilhada, conta a respeito de uma das muitas desavenças semelhantes havidas entre os imigrantes nas áreas de colonização italiana, grande parte delas ocorrida por discordâncias em relação ao local escolhido para a construção da capela; por não haver atendimento religioso de sacerdote conacional; por causa da implantação de escolas paroquiais, étnicas Dante Alighieri e públicas; além de uma longeva divisão entre trentinos e italianos. O título do capítulo remete tanto ao nome da localidade na qual Giovanni Trentini se radicou desde o final do século 19 - Encruzilhada, no Caminho dos Pomeranos, quanto à contenda, que em registros aparece como “a questão da Encruzilhada”. Esse foi um conflito nos anos de 1915 e 1916, com intervenção policial por mais de uma vez, gerado por divergências acerca do local de construção da nova capela. O grupo opositor, inclusive, desconsiderou o conselho e aprovação do bispo, e começou a reconstruir a capela velha, situada na planície; e, mesmo diante da presença de quatro policiais, não permite que objetos, como, vasos, paramentos e a imagem de Nossa Senhora das Dores, sejam retirados e transferidos para a nova Capela, construída sobre a principal colina. Nessa época, Giovanni Trentini contava com mais de 70 anos de idade e era do grupo que apoiava a construção da nova capela, até mesmo porque sempre esteve afinado às decisões dos franciscanos. O “velho mestre”, como se refere o autor, certamente nunca imaginara vivenciar tal polarização comunitária. Giovanni Trentini também foi fabriqueiro, isto é, membro da diretoria administrativa da Capela Nossa Senhora das Dores, em 1909. Foi um período de muito trabalho para os administradores em decorrência da substituição das pequenas capelas de madeira por capelas de alvenaria. Essa ação em muito foi levada a efeito pelo estímulo de frei Lucínio Korte, da Ordem Franciscana.
O décimo e último capítulo, Falecimento e fim de uma era, aborda a morte de Giovanni Trentini, em agosto de 1919, aos 81 anos de idade, ocorrida não muito tempo depois da “questão da Encruzilhada” e dos costumes relativamente aos funerais. É o “fim de uma era”, por ser uma época em que a Primeira Guerra Mundial impacta o “imaginário político e cultural dos trentinos e seus descendentes no município de Blumenau” (p. 146), em decorrência de, no seu fim, a região do Trentino ser anexada pela Itália. Além disso, na onda de nacionalização, inicia-se o fechamento de escolas estrangeiras e, como consequência disso, refloresce a rede de escolas paroquiais; ocorre a chegada de padres italianos da Congregação Salesiana, que passam a atender às paróquias de Ascurra e de Luiz Alves; e, embora não indicado pelo autor, é crescente o número de aspirantes a ingressar na agremiação de professoras para as escolas paroquiais, então denominada Companhia das Catequistas, iniciada em Rodeio, em 1913, por iniciativa dos padres franciscanos. Ademais, é uma era em que, finalmente, o bispo diocesano atende aos muitos abaixo-assinados em que os rio-cedrenses reivindicavam o atendimento religioso de um padre italiano. Assim, em 1918, os franciscanos alemães passam a atender à paróquia de Luiz Alves e os padres salesianos estabelecem residência em Rio dos Cedros e começam a atender à Paróquia da Imaculada Conceição, pondo fim aos anos de resistência aos franciscanos pelo fato de serem de nacionalidade alemã.
Além desses dez capítulos, o livro conta com (a) Apresentação, de Sergi Frederico Mengarda, docente da Escola de Educação Básica Professor Giovanni Trentini de Rio dos Cedros. (b) Notas, num total de 234, nas quais o autor indica as referências, os arquivos em que pesquisou e variado conjunto de fontes documentais. (c) Anexos, contendo fotocópia de cinco documentos manuscritos, datados da primeira década do século XX, quais sejam: fragmento de carta de Giovanni Trentini; Abaixo-assinado dos chefes de família da escola paroquial de Pomeranos Central, solicitando suporte do pároco, com assinatura de Giovanni Trentini; histórico da Ordem Terceira Franciscana na área do Vale do Rio dos Cedros; provisão dos conselhos de fábrica das capelas da Paróquia de São Francisco de Assis, de Rodeio, para o ano de 1909; Abaixo-assinado dos pais de família ao Provincial da Ordem Franciscana, confirmando o pagamento de um sacerdote residente em Rio dos Cedros, subscrito por Giovanni Trentini. (d) Agradecimentos, nos quais o autor expressa sua gratidão, apresentando significativa listagem de nomes de várias pessoas e de instituições que colaboraram com sua pesquisa.
Por fim, vale ainda salientar que o livro de Norberto Dallabrida possibilita concretizar a assertiva de Chartier (1990), qual seja, a de que cada leitor acaba também sendo autor. Dentre tantos outros, este é um dos méritos da obra, o leitor-autor Norberto, tal como o narrador benjaminiano, faz do seu ofício experiência e, assim, convida o leitor a continuar a experiência e tornar-se narrador. As palavras preservadas nas práticas culturais e sociais, nas subjetividades dos imigrantes caminhantes/praticantes também estão na arte de narrar e, portanto, cortam o tempo e são reatualizadas tanto pelo narrador/escritor quanto pelo ouvinte/leitor. A releitura do passado feita por Dallabrida passa pela vivência, pelo olhar, pelas mãos e pela escuta; e, feita experiência, é transmitida pela escrita não dissociada da transmissão oral por conta dos muitos eventos de divulgação da própria obra. Como artesão da palavra escrita, (re)cria memórias e histórias com base no conhecimento de vários aspectos da vida cotidiana dos trentinos-ítalo-brasileiros. Assim, em meio às tantas crises e contradições destes tempos contemporâneos, a leitura de O Mestre-Escola é um convite a uma retomada reflexiva a fim de não repetir o passado, mas a olhar diretamente para a realidade e (re)inventar o presente.