O livro “História da Educação na Amazônia Colonial: instituições e práticas educativas” é resultado do IX Seminário GHEDA - Grupo de Pesquisa História da Educação na Amazônia -, ocorrido em 2019, que reuniu pesquisadores apresentando suas pesquisas no âmbito da História da Educação. Tendo como motivação o fato de ser o período colonial brasileiro ainda pouco explorado por pesquisadores, a obra tem como objetivos socializar pesquisas sobre congregações religiosas e educação na Amazônia; refletir sobre o cotidiano, rituais e sociabilidades; e incentivar estudos no campo da história da educação escolar e não escolar na Amazônia. Na obra, estruturada pelas pesquisadoras Maria Betânia Barbosa Albuquerque, Maria do Perpétuo Socorro Gomes Avelino de França e Jane Elisa Otomar Buecke, constam: a apresentação das organizadoras; o prefácio do historiador Mauro Cezar Coelho, que, ao discorrer sobre a contribuição do objeto de análise desta resenha, destaca que não se trata de uma história das ações metropolitanas, mas sim, das várias práticas educativas experimentadas pelos habitantes da região; seis capítulos; índice remissivo; notas sobre os autores e autoras.
O primeiro artigo, intitulado Práticas de sociabilidade do passado em cartas e relatos de viagem: o caso das beberagens Tupinambá, situado entre as páginas 19 e 36, de autoria de Maria Betânia Barbosa Albuquerque, apresenta um estudo de natureza histórica, baseado em fontes documentais e bibliográficas, em diálogo com intelectuais do campo da história da alimentação. A análise da autora lança olhar sobre a educação não escolar no período colonial a partir das cartas e relatos de cronistas e viajantes. O artigo tem por objetivo dar visibilidade às cartas dos viajantes, percebidas pela autora como rede de comunicação global na sociedade colonial, constituindo-se como principal fonte para o entendimento das sociabilidades do passado, como é o caso das práticas de consumo do cauim entre os Tupinambá.
A autora destaca, a partir das análises de documentos, o processo educativo presente nas sociabilidades mediadas pelo consumo do cauim, bebida fermentada embriagante produzida pelas mulheres índias a partir de frutos ou raízes. O consumo desse tipo de bebida estruturava o cotidiano indígena e caracterizava-se como instância de socialização fundamental. Segundo a autora, “atreladas a diversos e significativos momentos da vida cotidiana, no interior dessa prática um conjunto de saberes era posto em circulação, valores eram afirmados e a memória coletiva ativada, características essas que lhe conferia um caráter eminentemente educativo” (p.19).
Em “Descer demônios”, plantas medicinais e venenos: lições de pajelança e trocas culturais na Amazônia Colonial, localizado entre as páginas 37 e 51, Carlos Henrique Alvez Cruz analisa o protagonismo de homens e mulheres indígenas no conhecimento sobre as propriedades terapêuticas e venenosas de plantas; e as tensões religiosas entre missionários e pajés no espaço social da cura, no cotidiano da Amazônia colonial. Numa instigante imersão sobre processos inquisitoriais e relatos de missionários, atrelados a uma revisão bibliográfica, sob a contribuição dos campos da História, Antropologia e Educação, o autor explica que, sob o olhar da Igreja Católica, a figura do pajé estava associada ao demônio, e a sua prática mágico-religiosa, relegada a marginalização, embora com ela as missões religiosas tivessem aprendido sobre a fauna e a flora da Amazônia setecentista num processo de intensas trocas culturais e práticas educativas.
Nessa senda, o texto discorre sobre trocas culturais entre os rituais católicos e gentílicos, nos quais os indígenas pareciam ter certo interesse pelo rito cristão. Mas, sobretudo, para manutenção de sua representatividade social entre a população, como o emblemático registro sobre a relação entre o capuchinho Ives D’Evreux e o pajé Tupinambá Pacamão, na região do Maranhão. Do mesmo modo, a circularidade cultural sentida nas trocas simbólicas, ritualísticas fez dos pajés e missionários peças importantes na reinvenção dos modos de cultuar, curar, educar na colônia.
No revela-esconde das fontes inquisitoriais, o autor descreve diversos momentos em que elementos do culto cristão se entrelaçavam com as pajelanças realizadas pelos pajés. Isso foi interpretado pelo autor como possível fonte de inovação cultural e tradução indígena do sagrado cristão. Daí a sua abordagem sobre a experiência de mulheres índias, exímias na arte de curar, que compartilhavam o cotidiano do espaço da cura com os pajés e outros agentes, a exemplo da enigmática índia Sabina que em suas práticas mesclava elementos das pajelanças com os do cristianismo.
Em suas considerações, o autor retoma a questão sociocultural dos pajés como um tema ainda pouco explorado por historiadores. Todavia, questões ligadas às representações que esses atores fazem de si ante os discursos da Igreja Católica parecem singrar novas águas. Nessa direção, o fenômeno educativo presente nas fontes inquisitórias também conforma uma tendência gestada por estudos mais recentes que sinalizam entre as relações interétnicas tecidas na colônia uma “verdadeira escola multicultural” (p. 46).
O terceiro artigo é Racionalidade teológica medieval e as práticas educativas da ordem de N. Sra. das Mercês no Grão-Pará, situado entre as páginas 53 e 68, de Thaís Cybelle Araújo da Silva. O objetivo do texto é discutir pontos da racionalidade teológica do período medieval europeu e as características de suas dinâmicas educativas bem como sua influência no processo de colonização da Amazônia.
A autora analisa as ações catequéticas e missionárias das ordens religiosas - jesuítas, franciscanos, carmelitas e mercedários - nos conventos e hospícios, ressaltando estrutura, método e organização dos saberes ensinados na Amazônia colonial, entre os séculos XVI e XVIII. Conforme afirma a autora, “Tais ordens, nasceram e se desenvolveram tendo por base a racionalidade teológica medieval, e esta direcionou sua forma de catequizar e educar” (p. 54). Sob esta perspectiva filosófica e doutrinária, a Ordem dos Mercedários, assim como as demais ordens religiosas, se estabeleceu na Amazônia e desenvolveu suas ações para catequizar os povos indígenas que ali habitavam, evidenciando que sua prática educativa tinha como principal objetivo engendrar e consolidar saberes e valores da cultura europeia-cristã.
Por meio da pesquisa historiográfica e documental, a autora vislumbrou o processo de introdução da educação europeia no Grão-Pará, e, assim, identificou similaridades nos métodos implementados nas práticas educativas no Convento de Santa Maria de Belém e nos hospícios, fundada pelos mercedários em Vigia e em Santa Cruz de Cametá, que se ocupavam de ensinar as primeiras letras para os filhos dos colonos.
Em sua análise, a autora destaca que a educação na Ordem dos Mercedários fundamentava-se na racionalidade teológica, pautada na Segunda Escolástica (ou Escolástica Barroca), a qual orientou uma educação voltada para o conhecimento da fé, mas que, ao mesmo tempo, se preocupava em explicar Deus a partir da razão.
As práticas pedagógicas medievais europeias foram os modelos educacionais dos conventos das ordens religiosas no Brasil colônia, mormente os que tinham os cursos de filosofia e teologia voltada para o clero e para elite, reafirmando-se como heranças da racionalidade teológica europeia na Amazônia. A autora evidencia como contraponto a educação para os colonos e indígenas, que se assemelhava às paróquias medievais e era voltada para ensinar as primeiras letras, a fazer contas, música e a catequese, pois a principal forma de controle social era através dos dogmas de fé.
No quarto capítulo, intitulado “Viagem ao Norte do Brasil” do capuchinho Yves D’evreux no século XVII: cultura e educação, localizado entre as páginas 69 e 87, Maria do Perpétuo Socorro Gomes Avelino de França e Mário Allan da Silva Lopes analisam o relato de viagem desse religioso ao Norte do Brasil, destacando aspectos de sua vida e obra, no recorte histórico no Maranhão do século XVII. Para desenvolver essa pesquisa, os autores apresentam a obra “Relato de Viagem de Claude D’Abeville”, referência da historiografia brasileira, que trata da ação educativa desse missionário no Norte de Brasil.
A importância dessa produção está no fato de os autores trazerem ao conhecimento dos leitores a criação da Ordem dos Padres Menores Capuchinhos na Itália, sua expansão para outros países e sua chegada ao Brasil do século XVII. Cabe destaque aos desafios da viagem às terras brasileiras, a chegada dos frades ao Maranhão, o cotidiano dos índios mearinenses (nome dado aos grupos indígenas da localidade), no que diz respeito às práticas culturais, aos costumes, às práticas educativas, ao trabalho e aos rituais festivos que aconteciam cotidianamente na aldeia, as ações para civilizar os “selvagens” evidenciando os processos educacionais produzidos nas trocas culturais entre eles. Dessa forma, a vinda desses religiosos para a Região Norte se deu por motivos religiosos, territoriais, políticos e econômicos, no período em que a França exercia domínio sobre o Estado do Maranhão.
O texto do professor Karl Arenz, estudioso do período colonial, intitulado A educação jesuítica na Amazônia Colonial: Ad Intra e Ad Extra (século XVII), localizado entre as páginas 89 e 107, é uma análise sobre o sistema educacional jesuítico implantado na região amazônica, sinalizando no recorte histórico dois focos educativos que os jesuítas praticavam na ordem, não somente a formação religiosa, mas também a formação de filhos de colonos e indígenas. Dessa forma, duas dimensões, interna e externa, são consideradas: a interna, ligada à formação de candidatos a vida religiosa e missionária, de acordo com as diretrizes nas bases do padre Inácio de Loyola e a geração fundadora, e a externa, que consistiu nas múltiplas atividades de cunho pedagógico junto a população de catecúmenos e neófitos indígenas e filhos de colonos que eram instruídos nos ensinamentos cristãos para serem batizados.
A análise se baseia em obras historiográficas, como o Ratio Studiorum, as cartas do padre Antônio Vieira, crônicas do padre João Felipe Bettendorff, as obras clássicas de Serafim Leite (1943) e João Lúcio de Azevedo (1901) e em produções mais recentes que tratam do tema. A implementação das diversas formas de educação na missão resultou em enormes desafios aos jesuítas. Apesar dos esforços dos religiosos, a falta de docentes, mantimentos e a frequente mudança dos índios devido a fugas e os religiosos serem enviados a outros setores trouxeram certas insatisfações. Todavia, houve êxito considerável no processo educativos dos indígenas, visto pelo autor como provável motivo, o trabalho dos jesuítas Antônio Vieira e João Felipe Bettendorff que se esforçaram para trazer uma educação e uma catequese com mais significado e envolvente para seus aldeados, filhos de colonos, de modo que “as atividades educativas não tivessem somente um teor religioso-intelectual, mas também sociopolítico com impactos diretos na sociedade colonial, por sua vez, ainda em vias de consolidação” (p. 85).
No sexto e último capítulo, Jane Elisa Otomar Bueck, em A educação na Amazônia seiscentista, analisa processos educativos a partir da experiência sociocultural de grupos indígenas e missionários tecidos no cotidiano da colônia. Trata-se de uma pesquisa histórica de cunho bibliográfico e documental, baseada em crônicas de religiosos como Claude D’Abbeville e Yves D’Évreux, cartas do Padre Antônio Vieira e ainda crônicas do Padre João Felipe Bettendorff. O fenômeno educativo flagrado pela autora nas entrelinhas das fontes revela um projeto de sociedade forjado pela Igreja no qual as populações indígenas, sobretudo as crianças, eram peças-chave. Para tanto, a criação de instituições religiosas, como o colégio de Nossa Senhora da Luz, em São Luís, e depois o Colégio de Santo Alexandre, em Belém, são algumas iniciativas que demarcaram um momento de formação de missionários para pôr em prática a ação civilizadora sobre os indígenas nos aldeamentos.
Os aldeamentos representavam um núcleo de organização política social, atuando na disseminação da cultura europeia e da fé cristã, mas também como espaço de mestiçagens culturais. Nesses espaços, missionários atuavam na cristianização de populações indígenas, bem como no ensino dos costumes europeus. Certamente, essa empreitada não passou sem que houvesse resistências e dissidências por parte dos nativos, que já possuíam seus códigos morais, culturais e educativos antes mesmo da invasão colonial. Nesse sentido, essa relação, segundo a autora, “foi permeada por trocas culturais, pois na intenção de ganhar as almas dos nativos, e ao buscarem em seus métodos evangelísticos se aproximar da cultura dos índios, os padres se expunham à inevitável influência deles” (p. 118). Entre os elementos que compunham os processos educativos experimentados pelos indígenas e missionários, no contexto colonial, estavam a linguagem, a memória, o silêncio, a atenção, a imitação, as danças, os rituais religiosos, a catequese, as beberagens, os ritos de passagem, os ofícios, ler, escrever, para citar alguns. Esses elementos se mesclavam em maior ou menor incidência, revelando o cotidiano como educativo em suas teias interculturais, contrariando, de certo a lógica eurocêntrica do saber educar.
O livro que ora resenhamos é mais uma importante contribuição à história da educação na Amazônia, trazida à luz pelo GHEDA. Mobiliza um reconhecido conjunto de fontes, que nos instiga a explorar as muitas possibilidades de compreensão acerca das experiências socioeducativas nesta parte da américa portuguesa, ainda pouco exploradas. Com abordagens inovadoras sobre os processos educativos inscritos fora da circunscrição da pedagogia formal, a coletânea de artigos que conforma a obra percorre as sabenças de pajés e missionários no espaço da cura, os modos de educar entre as populações indígenas, as mesclas culturais entre a linguagem nativa e a religiosa cristã e registros biográficos de religiosos missionários.
No âmbito das instituições religiosas, os códigos pedagógicos, filosóficos e morais, que formariam homens de Deus para levar salvação aos gentios e reconvertê-los de suas práticas gentílicas, somam-se ao elenco de temas e possibilidades de pesquisa. Nessa senda, concordamos com Mauro Cezar Coelho ao afirmar que este livro foge da armadilha de perceber a História da Educação como o estudo das iniciativas de formação reguladas pelo Estado ou pelas elites. Pelo contrário, reconhece outras práticas formativas como parte dos processos que demarcaram a trajetória da Educação no passado colonial.
Entendemos que a investigação sobre a educação no período colonial, sobretudo na Amazônia, deve levar em consideração a diversidade e as particularidades dessa sociedade. Isso implica colocar no centro da problematização a existência de homens e mulheres, ideias, modos de fazer, práticas educativas, concepções pedagógicas, sejam elas institucionalizadas, propostas pela metrópole, sejam aquelas não escolares, posto que a reflexão sobre a aprendizagem também deve passar pela percepção da educação em sentido alargado, como cultura.
Diante dos ataques constantes à educação brasileira, aos grupos indígenas de diferentes etnias e aos movimentos sociais, políticos, temos na contemporaneidade, no desafio de revisitar o passado, o compromisso científico de descortinar para implodir a colonialidade de corpos e mentes, impactados pelo opressor desde a invasão colonial. Aceitar o desafio da pesquisa histórica em perseguir os fios e os rastros deixados no passado, relendo e reencontrando as fontes, ou ainda na formação de agências e grupos de pesquisa, a exemplo do GHEDA, pode ser um caminho possível que a história nos apresenta nesses dias trabalhosos para reinventar-nos hoje.