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Reflexão e Ação

versión On-line ISSN 1982-9949

Rev. Reflex vol.29 no.2 Santa Cruz do Sul mayo/ago 2021  Epub 02-Oct-2023

https://doi.org/10.17058/rea.v29i2.15197 

Artigos do Fluxo

Docências escrava e nobre: filosofia e educação

Slave and noble teachings: philosophy and education

Docencia esclavo y noble: filosofía y educación

Gilberto Silva dos Santos1 
http://orcid.org/0000-0003-4616-9891

Samuel Edmundo Lopez Bello2 
http://orcid.org/0000-0002-3857-9121

1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS - Porto Alegre - Rio Grande do Sul - Brasil.

2 Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS - Porto Alegre - Rio Grande do Sul - Brasil.


RESUMO

A partir da discussão filosófica de Friedrich Nietzsche em torno das tipologias escrava e nobre, compomos as docências escrava e nobre como modos de perspectivar discussões no campo da educação. Ao desenvolver um procedimento genealógico, tensionamos valores que sustentam a Pedagogia da Realidade. Para tal analítica, apresentamos discussões acerca da presença discursiva do real no campo educacional. Destarte, discutimos modos de interpelar a nós mesmos, educadores, entre negar e afirmar a vida: as docências escrava e nobre.

Palavras-chave: Docência; Docência escrava; Docência nobre; Educação; Aula

ABSTRACT

Based on Friedrich Nietzsche’s philosophical discussion about slave and noble typologies, we create slave and noble teaching as ways to foresee discussions in the education field. When developing a genealogical procedure, we tension the values that support the Pedagogy of Reality. For such analytics, we present discussions about the real discursive presence in the educational field. Therefore, we discuss ways to challenge ourselves, educators, between denying and supporting life: slave and noble teaching.

Keywords: Teaching; Slave teaching; Noble teaching; Education; Class

RESUMEN

A partir de la discusión filosófica de Friedrich Nietzsche sobre las tipologías esclavas y nobles, compusimos las docencias esclavas y nobles como formas de ver las discusiones en el campo de la educación. Al desarrollar un procedimiento genealógico, tensionamos los valores que sustentam la Pedagogía de la Realidad. Para tal analítica, presentamos discusiones sobre la presencia discursiva de lo real en el campo educativo. De esta manera, discutimos formas para desafiar a nosotros mismos, educadores, entre negar y afirmar la vida: las docencias esclavas y nobles.

Palabras clave: Docencia; Docencia Esclava; Docencia Noble; Educación; Aula

PARA INICIAR A CONVERSA

Tratamos das docências. Plurais. Singulares. Provisórias. Os valores que as interpelam no contemporâneo são interpretações temporais. Na provisoriedade há movimento; relações de poder, com as quais propomos o presente estudo. Se docência é relação, composição, como compor modos de pensar as docências no contemporâneo?

Com a filosofia de Nietzsche, perspectivamos os conceitos das tipologias escrava e nobre. A partir dessas discussões problematizamos maneiras de pensar a vida e produzir avaliações. Nessa feitura, cunhamos as docências escrava e nobre como modos de interpretá-las no campo da Educação.

O procedimento desenvolvido para constituição dessa pesquisa é o genealógico (MARTON, 1993). Acreditamos que a perspectiva do filósofo alemão Friedrich Nietzsche procede a uma genealogia. Seus conceitos “aparecem” de forma dispersa ao longo de seus escritos. Tal procedimento decorre do rompimento da linearidade discursiva com a qual o autor se propõe a pensar. Ao proceder genealogicamente, o autor escancara a privisoriedade das verdades, das essências, do Ser ao romper com a transparência linguística (MOSÉ, 2017). Por vezes, faz-se necessário o estudo etimológico de palavras como escravo e nobre para perceber como a história das palavras contribui para um sistema de pensamento contemporâneo.

O procedimento desenvolvido dá conta de viabilizar maneiras de pensar, dizer, bem como aquilo que (não) pode ser dito (FOUCAULT, 2012) nos discursos educacionais acerca das docências. Por problematizar seus valores, as docências tornam a repetir enunciados que gozam de saúde e boa fé. O que pretendemos discutir é o elemento diferencial (AZEREDO, 2016) que opera e movimenta ferramentas para pensar as docências entre negar ou afirmar a vida. Para perspectivar os modos de interpretar e diferenciar ou igualar - identidade e a diferença - organizamos nossa analítica em torno das produções etnomatemáticas em função da presença do real em suas discussões.

TIPOLOGIAS ESCRAVA E NOBRE

Ao perambular por distintas interpretações morais, o filósofo encontrou “certos traços que regularmente retornam juntos e ligados entre si” (NIETZSCHE, 2005, p. 155). Entre as ligações e dispersões, ele problematizou dois tipos básicos: “uma moral dos senhores e uma moral dos escravos” (NIETZSCHE, 2005, p. 155). Não obstante, em culturas superiores ou não, aparecem traços de ambas as morais. Há, igualmente, mediações entre ambas, bem como possíveis “coexistências” - inclusive “num homem, no interior de uma só alma” (NIETZSCHE, 2005, p. 155).

Para fins de escrita, iniciaremos pela moral escrava para, em seguida, discutirmos a moral nobre. Cabe destacar que os modos de avaliar do escravo não são antítese às valorações nobres, mas sua correlação. Uma se constitui, se prolifera à medida que a outra emerge e se faz presente. Deslocando-se do lugar da representar para apontar a hierarquia necessária para que uma seja privilegiada em relação à outra.

ESCRAVO/BAIXEZA

Escravo é aquele “cativo, servo”, “indivíduo que vive em estado de absoluta servidão” (CUNHA, 1986, p. 317). É do estado de “absoluta servidão” que a perspectiva nietzschiana apropriar-se-a para pensar a tipologia escrava como àqueles que se tornam servos, úteis a determinados modos de pensar. Etimologicamente, escravo deriva de scrauo, escrauo, ambos datados do século XV. Também possui emergências no latim medieval sclavus, “cuja acepção primitiva era ‘eslavo’”. Entre os séculos VIII - IX, “Carlos Magno e seus sucessores aprisionaram grande número de eslavos, tornando-os cativos”. No francês e no inglês, o termo escravo pode ser datado a partir do século XII, mas em línguas como o português e o castelhano esse termo surge a partir do século XV, em função do concorrente cativo. O termo escravidão aparece no século XVII e o verbo escravizar no século XIX. (CUNHA, 1986, p. 317).

Para o filósofo, escravo não é o sujeito privado de sua liberdade; prisioneiro da lógica exploratória da mão de obra, mas aquele que resolve seguir o bando; que decide conservar-se; cativo ao instinto de rebanho. Para ele, atribui-se “tudo que era baixo, de pensamento baixo, e vulgar e plebeu” (NIETZSCHE, 2009, p. 17-19).

O impulso de autoconservação é característico do tipo escravo, pois “uma criatura viva quer antes de tudo dar vazão a sua força - a própria vida é vontade de potência ” (NIETZSCHE, 2005, p. 19). Ao passo que conservar-se pressupõe estacionar, negar o movimento do por vir, acreditando no permanecer, na essência. Algo que caberia à tipologia escrava, que nega a vida ao seguir o rebanho para resistir.

O escravo é aquele que partilha os significados, as interpretações. Que torna “tudo claro, livre, leve e simples”, que sabe dar aos sentidos um passe livre para tudo o que é superficial, e ao pensamento “um divino desejo de saltos caprichosos e pseudoconclusões!” (NIETZSCHE, 2005a, p. 29). Essa tipologia torna-se responsável por conduzir as condutas daqueles que interpretam o coletivo como forte, potente e seguro.

A baixeza não enxerga a solidão como algo bom - mas ruim -, pois o escravo avalia os valores segundo avaliações que conservam o bando. Ele vincula aquilo que serve somente a si como algo ruim, que deterioriza o homem, enquanto aquilo que condiz com todos é visto como bom, como um sentimento cabível a todos.

Felicidade e virtude, para Nietzsche (2009), não são argumentos para defender as avaliações da tipologia escrava. Da mesma forma, infelicidade e maldade também não deveriam ser contra-argumentos. Mas, para uma avaliação da tipologia vil, justamente o sofrimento é visto como contra-argumento para sua coletividade.

A tipologia vil prende-se à inversão dos valores nobres ao tomar como bem aquilo que corresponde a sua força massiva. Ao ponto que o mal vai tornando-se tudo aquilo que o nobre é. Escravo “acorrentado” aos valores que negam a criação e, por negar a produção dos valores, nega a vida. A condição das avaliações da baixeza é a vontade de potência negativa, aquela que insiste em negar seus instintos. Tornando como forte sua numerosidade e não sua coragem.

A baixeza compartilha a linguagem. Usa da representação como artifício para reverberar uma avaliação. A presença do real nas discussões educacionais torna-se um valor escravo, pois cerca as docências a acreditarem em suas seduções. Ingenuamente o valor de uma matemática que esteja em tudo rompe com suas produções históricas, generalizando uma interpretação singular. A moral escrava faz exatamente isso: generaliza avaliações singulares para que o rebanho siga suas interpretações; compartilhando modos de pensar e de falar sobre si, sobre os objetos, sobre a educação. Em suma, a moral escrava vinculada-se ao concenso.

Torna-se característico do servo, proliferar valores totalizadores, inclinando as avaliações humanas e interpretando suas verdades a partir dos valores oriundos do seu tempo. Cabe destacar que o escravo não suspeita de si mesmo, pois instituciona os valores coletivos como seus; como avaliações atemporais e recorre à linguagem (especialmente a gramática) para produzir prescrições entre o “eu” e o que se espera que seja o “eu”.

O escravo faz da vida décadence. Não obstante, o escravo “se revela contra o gosto nobre, que parece negar o sofrer” (NIETZSCHE, 2005, p. 48), pois, pela angulação escrava, afirmar o sofrimento é negá-lo e o escravo nega ferrenhamente o sofrimento para eliminá-lo, o que o torna fraco, pois suas alegrias estão associadas aos valores da felicidade e não a vida. O escravo entende que a vida é sofrimento e a alegria - plena - só poderá ser atingida no além.

O vil segue uma ascese . “A baixeza é, no sentido mais grosseiro ou no mais sutil, o meio indispensável também para a disciplina e cultivo espiritual” (NIETZSCHE, 2005, p. 77). Há exercício, há esforço na baixeza. Ela é um modo de avaliar a vida. Podemos pensar que a religião, por exemplo, prescreve uma dieta a base da solidão, jejum e abstinência sexual. Tais prescrições “transformam-se em convulsão de penitência e negação do mundo e da vontade” (NIETZSCHE, 2005, p. 49).

Tal cultivo espiritual implica o exercício do rebanho de entender-se enquanto corpo que prende, sufoca, violenta a alma. Alma, por sua vez, como a essência, a imutabilidade do homem. Não obstante, tal encarceramento da alma implica uma “liberdade excessiva”, uma implementação de “horizontes limitados das perspectivas” e a “estupidez como condição de vida e crescimento” (NIETZSCHE, 2005, p. 77-78). Em suma, obedecer. De preferência, por muito tempo e sem tensionar, apenas obedecer. Jamais comandar.

O homem que segue o novo testamento não passa de um “minguado animal doméstico, e conhece apenas necessidades de animal doméstico” (NIETZSCHE, 2005, p. 52). Como seguidor da moral doméstica, apenas lê livros rasos. Os nobres digerem suas leituras, distanciando de superficialidades. Para os rasos, apenas o superficial. Profundidade é para os fortes.

Para Nietzsche, os judeus nasceram “para a baixeza”, pois fizeram uma inversão de valores na qual, “a vida na Terra adquiriu um novo e perigoso atrativo por alguns milênios”. De sua inversão, atribuíram os valores de “rico, ateu, mau, violento e sensual” à nobreza, instaurando, pela primeira vez, “cunho vergonhoso à palavra mundo”. “Pela sua inversão, atribuíram ao termo pobre, o significado de santidade e amizade” (NIETZSCHE, 2005, p. 83). Interpretaram o efetivar das forças como algo em decaimento; o instinto de rebanho, o alimentar-se pelos verdes pastos como valor superior.

No percurso da tipologia escrava, Nietzsche interpreta a obediência como a “coisa mais longamente exercitada e cultivada entre os homens” (NIETZSCHE, 2005, p. 85). Obediência que impregna na moralidade para inverter-se no “você deve” (NIETZSCHE, 2005, p. 85). Uma interjeição produto de interpretações vis que se justifica por si em relação a sua conservação.

O rebanho esqueceu-se de interpelar como determinadas avaliações ocupam lugares e reverberam modos de pensar. A maquinaria que produz e (re)afirma o servo, articula-se de tal maneira que as produções são aparadas para que uma avaliação seja natural. Mal, violento - por fim, nobre - esse que é “atrevido” ao ponto de perguntar, indagar o “você deve”. Mas como poderíamos chamar você deve? Segundo a perspectiva nietzschiana, de valor humano, demasiado humano.

Sem a pretensão de encerrar a discussão da moral do servo, passamos a tratar da moral do senhor. A separação entre baixeza e nobreza se fez necessária enquanto procedimento de escrita. Servo e senhor interseccionam-se e, ao invés de serem dualidadas, contituem imbricamentos. Em resumo, baixeza e nobreza podem coexistir em um mesmo homem; em uma mesma forma moral: seja a coletiva ou aquela que supera a si mesma.

NOBRE/NOBREZA

Etimologicamente, o termo “nobre” origina-se do latim nobilis e se refere àquele “que tem título nobiliárquico, sublime, indivíduo da nobreza” (CUNHA, 1986, p. 550). Do latim nobilitare, emerge “nobreza” e ambos pertencem ao século XIII. Nobreza é usada para designar os pertencentes à monarquia. Cabe salientar que a monarquia institui o vocábulo “realeza” - o qual, por tratar das designações ditas do rei e da rainha, abarca aquilo que é real por pertencer à realeza. “Alteza”, como antônimo de baixeza, é um termo utilizado para designar membros da monarquia (CUNHA, 1986).

Em grego, a palavra nobre, bom, “significava, segundo sua raiz, alguém que é, que tem realidade, que é real, verdadeiro; depois, numa mudança subjetiva, significa o verdadeiro enquanto veraz” (NIETZSCHE, 2009, p. 19), transformando-se em conceito e lema “distintivo da nobreza, e assume inteiramente o sentido de ‘nobre’, para diferenciação perante o homem comum mentiroso” (NIETZSCHE, 2009, p. 19).

A palavra “bom” deixa transparecer, inicialmente, a “nuance cardeal pela qual os nobres se sentiam homens de categoria superior” (NIETZSCHE, 2009, p. 19), muito em função de sua superioridade (ao utilizar o artigo definido em “o superior”, “o nobre”, “o aristocrata”) ou até mesmo pelo “signo mais visível desta superioridade, por exemplo, ‘os ricos’, ‘os possuidores’” (NIETZSCHE, 2009, p. 19). Trata-se de “um traço típico de caráter” (NIETZSCHE, 2009, p. 19) que interessa a Nietzsche, pois o nobre em sua filosofia é aquele capaz de constituir seus próprios valores.

Podemos “interpretar o latim bonus como ‘o guerreiro’ [...] Bonus, portanto, como homem de disputa, da dissensão (duo)” (NIETZSCHE, 2009, p. 20). A nobreza estaria imbricada na ideia de guerreiro, de lutador; daquele espírito que disputa mais força, mais potência. Guerreiro capaz de enfrentar suas crenças, seus valores.

O nobre como ponte, processo, um vir a ser e não enquanto essência, finalidade. Indivíduo que faz o trabalho grosseiro; que seja duro consigo mesmo para martelar os ideais que o circunscrevem no percurso de criar seus próprios valores, afirmando a vida; o agora; o instante. Se a baixeza inventa um mundo suprassensível, o nobre afirma o presente como única existência, apontando para a alegria de viver o instante.

“Todo homem seleto procura instintivamente seu castelo e seu retiro, onde esteja salvo do grande número, da maioria, da multidão; onde possa esquecer a regra ‘homem’, enquanto exceção a ela” (NIETZSCHE, 2005, p. 31). O senhor nega os valores morais a menos que tal indivíduo seja “empurrado para essa regra” (NIETZSCHE, 2005, p. 31). Talvez, seja inserido a ela tal como Nietzsche foi à moral cristã para, posteriormente, suspeitar dos preceitos religiosos.

Onde a baixeza vê cansaço, o homem nobre vê força, coragem, disciplina, solidão e consegue, nesse percurso de ir ao fundo de si mesmo, afirmar a vida enquanto nega a regra homem. Ao negar essa moral humana, demasiada humana, o nobre afirma a vida através da negação da moral.

O filósofo interpreta a moral nobre como afirmação da vida. Caso ela não seja afirmação, poderá ser transvalorada em escrava da mesma forma que, no impulso de se constituir forte, a baixeza pode vir a ser nobre. Essa relação entre nobre e escravo que perspectivamos como o impulso, elemento diferencial da vontade de potência: negar ou afirmar a vida, ambas com potencial para intercambiar suas avaliações.

A maquinaria valorativa extrai do servo os impulsos que seriam condição para torná-lo senhor. Nenhuma nobreza é forte o suficiente que não possa se tornar escrava de si mesma, pois se o senhor escravizar-se pelos seus valores, aquilo que o tornava criador aprisiona-o nas avaliações que são conservadas por ele.

Como exemplo, o sacerdote que inicialmente tem uma natureza nobre, mas seu exercício visa à liderança de uma cadeia de servidões. Seus esforços prevalecem à posição de mandoobediência na qual sua vontade inverte-se em algo negativo, décadence. “Há livros que têm valor inverso” (NIETZSCHE, 2005, p. 35-37) dependendo de quem os utiliza, se os homens que afirmam ou que negam a vida. Como asceta que suspeita da moral, o homem nobre terá a missão denominada de “autossuperação da moral” (NIETZSCHE, 2005, p. 35-37).

A nobreza não é ensinada, ela é um exercício (uma ascese segundo Souza (2009)) singular, solitário. Ela não está fora da grande razão, numa utilidade; ela circula, se efetua na luta das forças. A nobreza não é uma força ela é o efetuar das forças, múltiplas que constituem a grande razão. O corpo torna-se resultado do somatório consciência + inconsciência = grande razão. O escravo, por sua vez, pensa com a alma.

Há vontade na nobreza e na baixeza, pois “a vida mesma é essencialmente apropriação, ofensa, sujeição do que é estranho e mais fraco, opressão, dureza, imposição de formas próprias, incorporação e, no mínimo e mais comedido, exploração” (NIETZSCHE, 2005, p. 154).

A vida é luta por empoderamento. Vida como vontade, “não devido uma moralidade ou imoralidade qualquer, mas porque vive, e vida é precisamente vontade de potência” (NIETZSCHE, 2005, p. 154-155). Baixeza e nobreza não se excluem; não se eliminam. Complementam-se no percurso da vontade de potência própria da vida. Escravo como aquele que vê sua potência reduzida em decaimento. O nobre, em ascensão.

O nobre não opera uma inversão, mas um distanciamento afirmando sua diferença em relação ao rebanho. Tornar-se outro, distinto da baixeza. O nobre não se “reconhece” escravo; o nobre não se identifica com a gregariedade (NIETZSCHE, 2005, p. 156).

Enquanto o escravo nega sua força, o nobre potencializa seu agir. “Exigir da força que não se expresse como força, que não seja um querer-dominar, um querer-vencer, um querer-subjugar, uma sede de inimigos, resistências e triunfos, é tão absurdo quanto exigir da fraqueza que se expresse como força” (NIETZSCHE, 2009, p. 33). Não há como privar as forças de agir, de efetuarse. Cabe destacar que, a partir do pensamento das forças, “não existe um tal substrato; não existe ‘ser’ por trás do fazer, do atuar, o devir; ‘o agente’ é uma ficção acrescentada à ação - a ação é tudo” (NIETZSCHE, 2009, p. 33); o ser é uma invenção da linguagem. Não há um sujeito da ação, mas tão, somente a ação mesma. Não se trata da ação em si, mas de um querer-mais-ação que não joga sobre o sujeito à responsabilidade de uma determinada ação. Sujeito é ação, é quantum de forças (AZEREDO, 2003).

Se há apenas ação, o que configura a tipologia escrava? Na angulação nietzschiana, baixeza é inversão de forças, apropriação e enfraquecimento em função da hierarquização das forças fracas. Se a ação é das forças, então a baixeza é o empoderamento das forças reativas, não por querer-mais-força, mas por superar as forças ativas em quantidade (DELEUZE, 2018). O impulso da baixeza reside na aglomeração. Logo, se Nietzsche problematiza que a perspectiva do rebanho superou e prevaleceu, ela não eliminou a nobreza, mas apenas tornou-se forte no somatório de fraquezas. “[...] ‘nós, fracos, somos realmente fracos; convém que não façamos nada para o qual não somos fortes o bastante’ [...] graças ao falseamento e à mentira para si mesmo, próprio da impotência, tomou a roupagem pomposa da virtude que cala, renúncia, espera [...]” (NIETZSCHE, 2009, p. 34).

A fraqueza olha para si como mérito, respeito e bondade. O sujeito ocupa o preenchimento de um vazio que se dá pela negação da natureza das forças (comandar e obedecer). Alma como enclausuramento dos instintos; como negação e distanciamento da animalidade humana em prol de uma humanidade coletiva, una. Apagam-se o corpo e a aparência em prol de uma essência que aprisiona os instintos, os impulsos, as forças que buscam mais forças.

O vil denomina o além como lugar privilegiado dos valores baixos à vida. Diria-nos Nietzsche que o escravo ri e acredita (de forma arbitrária) poder escolher o rebanho. Engana-se ao acreditar que seu ser é efeito de uma causa primeira: “seu eu”. Enquanto o vil cultiva um homem que promete, o senhor potencializa o esquecimento. “Esquecer não é uma simples vis enertiae [força inercial], como creem os superficiais, mas uma força inibidora ativa, positiva no mais rigoroso sentido” (NIETZSCHE, 2009, p. 43). Esquecimento como condição para experimentar a afirmação. Ao distanciar-se das memórias e reconhecimentos, o senhor potencializa suas vivências para tornar-se o que se é; superar a si mesmo.

Assumindo os valores como perspectivos, provisórios, a transvaloração produz impulso à vontade de criar avaliações singulares. As criações pulsam com as forças e a vontade de potência. As forças querem e a vontade de potência pode. Como vimos, o escravo nega enquanto o nobre afirma a vida. As docências escrava e nobre emergem da correlação entre negar e afirmar a vida em meio à docência.

AS DOCÊNCIAS ESCRAVA E NOBRE

Toda relação é resultado da luta das forças e expressa seu querer: afirmar ou negar a vida. “A força simplesmente se efetiva, melhor ainda, é um efetivar-se” (MARTON, 1993, p. 62). No efetivar-se, não vemos as forças, mas a resultante de suas lutas. O resultado é o que as forças podem: vontade de potência. Ela é a resultante do jogo de forças, ela é o que a relação de forças pode.

Força quer

Vontade de Potência pode

Mostrar o percurso de um valor resulta em problematizar a qual vontade ele volta-se: àquela que nega ou afirma a vida. Manter uma interpretação; fazê-la durar produz uma vontade de potência negativa; uma vida em declínio de suas forças. Criar interpretações singulares dá condições à vontade de potência afirmativa, produtora de vida em expansão, impulso através das forças.

No embricamento daquilo que as forças querem e do que a vontade de potência pode, emergem as docências escrava e nobre. Através da existência de uma Pedagogia da Realidade , não há anulação entre uma e outra. Uma é correlação a outra. À medida que produzimos a docência escrava seguimos - em paralelo - a feitura da docência nobre. Enquanto a primeira busca ancorar-se num viés seguro e firme de verdades, negando o cansaço e tendo fé aos valores do campo da educação, sem tencioná-los, a segunda institui um espaço movente no percurso de afirmar.

Se a docência nobre institui saltos para criar seus valores superando a si mesmos, no menor passo seguinte, ela pode vir a ser escrava de si. Orgulhar-se com a nobreza pode-se instituir uma baixeza. A repetição de uma baixeza pode produzir suspeita e instituir outros modos de valorar uma docência passando a ser nobre em sua baixeza, pois a negação da negação pode produzir uma afirmação.

Vivemos a docência que está no meio, como passagem, segundo a perspectiva nietzschiana. Entre docências escrava e nobre e não nos polos. Em cada mo(vi)mento da docência, uma acaba se sobressaindo em relação à outra. Nosso objetivo é pensar os instantes pelos quais a Pedagogia da Realidade nos interpela e nos torna efeito de suas enunciações. Ao tornar efeito, nos diferencia entre baixeza e nobreza. Ao diferenciar, mobiliza o pensamento a escapar das produções identitárias acerca do que sejam as docências escrava e nobre a fim de perspectivar os espaços que preenchemos ao ocupar a docência.

Pensar para além da Pedagogia da Realidade não pressupõe uma passagem, um portal idealizado, mas nos coloca no percurso de suspeitar dos valores que limitam as produções de outramentos de nós. Como expansão dos limites de uma perspectiva, pois toda interpretação resulta de uma luta que tem como caráter intrínseco a expansão (MOSÉ, 2017).

Nessa passagem, per(man)ecer os/com universais que nos interpelam requer tempo, exercícios rigorosos. Pausas. Isolamentos. Solidões para enxergar o que estava conosco a ingenuamente nos constituir. Pedagogia da Realidade versa sobre as perspectivas das docências contemporâneas.

As avaliações se dão em vida entre baixeza e nobreza. Os valores deveriam passar pelo crivo da vida (NIETZSCHE, 2009). Não há como suspeitar das docências escrava e nobre sem imbricar-se nas avaliações que produzem vida. Ao ruminá-las produzimos rupturas à constituição das docências. Não podemos trabalhar com reconhecimentos, identificações acerca das baixezas e nobrezas, mas com impulsos, expansão de forças.

Com a Pedagogia da Realidade, suspeitamos dos valores que nos interpelam no campo da Educação. A partir das produções etnomatemáticas, a presença do real adquire lugar e legitimidade para preencher espaços das docências escrava e nobre. Nessa suposta ingenuidade, interpretamos resultados de lugares pelos quais ocupamos com a docência. Uma prática, uma docência não se modifica apenas em função de um documento-livro-texto.

A docência é preechida pelos discursos que produzem a prática e não pela ação do sujeito ao efetuar alguma prática. Não há como prescrever o instante pelo qual cambiamos as docências. Conceituamos docência como espaço-tempo não vazio a ser preenchido, espaço de tensionamento. Campo de relações de forças.

A docência é ruminação; percurso cíclico que insiste em retornar, mas afirmando sua repetição, produzindo um acaso afirmativo. Docência não versa sobre habilidades e competências. Não transcende a escola; não rompe supostos muros excludentes da relação escola-mundo. Docência é relação entre uma vida que afirma ou nega; relação entre as forças, à vontade de potência.

As docências escrava e nobre são modos de avaliar, interpretar a docência a partir da perspectiva de vida: negativa ou afirmativa. Para nós, a aula torna-se o elemento diferencial capaz de produzir variações nas docências. Aula como tempo-matéria da docência.

Em aula, produzimos redes, interpretações que negam ou afirmam valores. A aula dá condições de existência às docências escrava e nobre. No entanto, a docência não se dá apenas com a aula, pois embora o problema da docência seja a aula (SANTOS, 2015), a composição da docênca é pensada através de fragmentos diversos tais como:

[...] observação de práticas pedagógicas usuais e persistentes em condutas docentes na escola, lembranças de uma professora, conversas com colegas, vivências da sala de aula, dos corredores e das salas dos professores, demais situações que envolvam elementos relacionados com a docência, etc. (AURICH, 2017, p. 16)

Com o viés da filosofia da diferença, não nos cabe classificar, produzir identidades acerca do que sejam as docências escrava e nobre. Propomos modos de perspectivar a docência a partir das tipologias estudadas. Elas, escrava e a nobre, são os modos de avaliar, ocupar o espaço-tempo não vazio da docência.

Uma avaliação torna-se crença e perdura ao longo do tempo, se não soubermos digerí-la. Ao tensionar os percursos, suas rupturas, sins e nãos, discutimos as avaliações que nos interpelam. Docenciar como o modo de pensar os valores da docência contemporânea. Docenciar a docência; colocá-la em movimento.

Dançar com os modelos, as representações, buscando pistas daquilo que dizemos que somos, que nos tornamos e que insistimos em carregar. Perspectivas das quais afirmar não implica carregar valores, mas sim constituí-los. Se nos tornamos distintos de nós mesmos, então sejamos corajosos para diferenciar a docência = docenciar.

Como pensar as docências escrava e nobre? Através da aula. É a aula que mobiliza a docência a negar ou afirmar a vida. Uma vez que a filosofia de Nietzsche propõe uma criação que afirma a diferença, não caberia produzir receitas, passos ou critérios para atingir determinada tipologia da docência, mas traçar campos de forças que possibilitam que uma tipologia seja visível, enunciável.

A Docência escrava, por estar imersa nos valores vigentes da Pedagogia da Realidade, passa a tornar suas as valorações exteriores. Estima o valor vigente como a-histórica e sempre presente. Faz da diferença, uma negação. Conforme a perspectiva deleuziana, ao invés de valorar, a docência escrava visa reagir às avaliações.

A docência escrava acredita nos valores universais por interpretar tais avaliações como pesos que precisam ser carregados a fim de atingir determinados modelos, padrões de escola e de docência. Acredita em cada medida, valorando de forma vazia interpretações universais. Tomemos como exemplo as prescrições em relação à Base Nacional Comum Curricular - BNCC - (BRASIL, 2017). Para a docência escrava, as orientações da BNCC servem como medida, peso, cansaço necessário para atingir mensurações instituídas a partir de padrões e estatísticas que quantificam, numeram as aprendizagens.

Entre a baixeza há isso: crença em carregar peso. Como um camelo que suporta carregar pesos e mais pesos ao longo do deserto, assim se filia aos seus valores, uma docência carregadora de pesos. A docência escrava carrega a presença do real acreditando que tal valoração deve insistentemente repetir o mesmo cansaço. A interpretação do valor vil: cansaço é resultado de dedicação para atingir os valores desejados.

Embora a docência escrava acredite criar seus valores, sua criação é da ordem da vontade de potência que nega a vida. Tal negativa elabora uma aceitação, assumindo as interpretações gerais como particulares. Uma vez sustentada pelo conhecimento e pela recognição, a docência escrava interpreta o conhecimento como reconhecimento, expurgando o diferente para as fronteiras dos seus modos de interpretar.

Atentos às valorações, a docência escrava é impulso à docência nobre, pois na formação inicial, o espaço não vazio a ser preenchido precisa constituir valores para si. Não há como escapar das prescrições e dos modelos vigentes. A docência escrava repete por negar a diferente excluindo qualquer possibilidade de criação e mesmo de crítica aos valores.

Por negar a vida e reagir, tornando-se reativo aos valores, o escravo pode transmutar-se em seu exercício de negação. Por carregar seus fardos acreditando que se está afirmando, acaba transmutando-se pelas forças reativas. “Ao serem elas mesmas negadas, tornam-se ativas; a negação se transforma, converte-se no trovão de uma afirmação pura, o modo polêmico e lúdico de uma vontade que afirma e se põe a serviço de um excedente de vida!” (DELEUZE, 2011, p. 132- 133).

A docência escrava carrega o fardo de “contextualizar o ensino”, “trabalhar com questões significativas aos estudantes” pelo viés da negação. No entanto, ao carregar seus pesos se depara com a aula e os movimentos imbricados nas relações oriundas do espaço-tempo aula: a insustentabilidade de apresentar a todo instante uma matemática que esteja em tudo. Ao revisitar seus valores e buscar afirmá-los à medida que as aulas variam, a docência escrava interpela-se no esvaziamento do valor de contextualizar, aplicar, produzir sentidos recorrentes à natureza.

Ao estar sozinha consigo mesma, a docência escrava interpela-se no intuito de buscar sua afirmação. Caso ela consiga afirmar seus valores, parte satisfeita a mais uma aula, outras tantas procurando não escapar as variações que lhe interpelam. No entanto, caso não consiga afirmar seus valores, passa a negá-lo, pois é de sua natureza, negar. Uma vez negado, produz a negação da negação, pois estava valorada pela reação.

“A alma torna-se ativa [...] o que acreditava ser uma afirmação não passava de um disfarce, uma manifestação do pesadume, uma maneira de acreditar-se forte porque se carrega e se assume” (DELEUZE, 2011, p. 133). No impulso de negar a negação, a docência escrava produz a afirmação, transvalorando o seu valor.

A docência nobre se constitui por um ato corajoso. Ela suspeita dos valores vigentes, das avaliações no campo educacional e produz outras interpretações. Para Nietzsche, filosofia é arte, mas arte de interpretar, de avaliar. E é esse modo que a docência nobre interpreta: produzindo uma criação.

Negar a negação, invertê-la até produzir um modo de afirmar: aqui reside a perspectiva da diferença e por sua vez, o impulso a retornar. Quem afirma, afirma de tal modo o seu retorno, como a criança (NIETZSCHE, 2018) que joga com todas as forças apostando uma única chance (DELEUZE, 2018).

A docência nobre rompe com a fixidez da docência escrava. Metamorfoseia os valores, como o camelo que possui força para carregar seus pesos até o deserto. Solitária, se transforma em leão para dizer o Não afirmativo, sorrindo para o acaso. Por fim, surge a criança com sua capacidade de gargalhar, dançar. O corajoso sim produtor de valor que escapa ao universal, singularizando-se (NIETZSCHE, 2018).

Para exemplificar nossas discussões, passamos a tratar, brevemente, da educação matemática. A etnomatemática como arte ou técnica [tica] de explicar, compreender [matema] uma realidade socio-histórico-cultural [etno] (D’AMBROSIO, 2006) nos autoriza pensar as docências escrava e nobre. Para além de sua presença do real, pensá-la como forma de variar as perspectivas da docência. Ao ler o trabalho de Maestri (2006) acerca do uso da calculadora em um assentamento do movimento sem terra, perspectivamos a aula para pensar o que pode o uso da calculadora na escola básica, por exemplo.

Como explorar a calculadora na escola? Quais os desafios acerca dos seus usos? Como aprende aquele que usa a calculadora? Será que a calculadora rompe com o imaginário da matemática calculista? Por que a calculadora ainda é um monstro? Em suma, quais as distinções entre quem sabe e quem não sabe usar a calculadora? Com os referidos exemplos, preenchemos o espaço-tempo não vazio ora pela perspectiva da baixeza, ora da nobreza.

Para aquém dessas questões, podemos problematizar aquilo que aprendemos com os alunos de inclusão. Desenvolver matemática na escola básica, hoje, é estar inserido em questões que pautam adaptações curriculares para que as inclusões possam ser efetivadas. Quais as potências, as aprendizagens que nós, educadores, (de)formamos em prol das inclusões escolares? Incluir é abrir espaços ao currículo para que outras demandas possam emergir? Seria a inclusão, no campo da educação, o elemento diferencial que afirma ou nega a vida? E as lágrimas? Por que a inclusão faz chorar? Pelo não reconhecimento? Pela ruptura com a cognição? Ou talvez pela sua potencialidade de agir? De tornar movimento, artte, técnica de explicar, descrever uma realidade?

No campo das amarras e das solturas, saltam a nós, educadores, as docências escrava e nobre. Ao movimentar o que faz variar as docências, a aula, diferenciamos as perspectivas. Do campo da formação inicial à continuada, percorremos pistas entre lugares não vazios a serem preenchidos ora pelas amarras da baixeza, mas ora pelas solturas da nobreza. Relação. Docência como relação entre nobrezas e baixezas.

A docência nobre aposta em suas avaliações. Institui interpretações criativas e que cabem a si. Faz da docência pesquisa, dançarina, afirmativa. Vive e faz viver a docência. Se a docência nobre é diferença, então essa diferença ri de si, dos seus sins e nãos. Transmuta peso em leveza, sofrimento em alegria, baixo em alto (DELEUZE, 2018).

Outramentos de nós: o desejo de continuar existindo/resistindo ao que nos estrutura. Ao que nos petrifica” (SANTOS, 2018).

Não há separação binária entre as docências escrava e nobre. Elas valoram e se diferem pela vida. A escrava, nega a vida, pois está ancorada aos valores que acredita. A nobre sorri a vida, buscando sins e nãos que criam seus modos de interpretar. Afirma a vida; o acaso. “Numa relação solitária, fria, mas afirmativa”, que a docência transvalore-se. “No acaso do inseguro, que a docência tenha firmeza para afetar-se pelas produções singulares de si.

Não defendemos a existência da Pedagogia da Realidade como uma teoria contemporânea. Não há teoria a ser desvelada ou descoberta. Ela não esteve sempre à espera do homem (moderno? Contemporâneo?). Ela não é aparição, descoberta, mas produção, assim como o conceito de mamífero (NIETZSCHE, 2012), por exemplo.

Como uma aranha, ela tece uma rede que (entre)cruza. Que institui e constitui docências, produzindo valores. Ela sustenta verdades. Produz. Qual o seu produto? O valor (LIMA, ITAPARICA, 2014). Moedas. Trocas. Ao pesquisar os valores da docência contemporânea, tensionamos crises, fraudes. Não há a procura de algum culpado. Somos nós, vizinhos; resultado das malhas valorativas, os responsáveis por não olhar o que está posto, imposto (cobrado? Quantificado? Mensurado?) disposto, exposto sob-sobre nós.

PARA ENCERRAR A CONVERSA

Como pensar a Pedagogia da Realidade pelo viés interpretativo das docências escrava e nobre? Como romper com uma hegemonia da realidade? O que ela opera? O que faz a realidade diferenciar-se de si mesma?

A realidade é uma interpretação provisória. Não cabe a todos e talvez a nenhum, pois não conseguimos generalizar a vida. A escola, a turma, a aula faz recortes específicos e pontuais de tais realidades. Ela não funciona como uma salvação à educação básica enquanto insistirmos em esquecer as vidas.

A inclusão escolar nos apresenta o que a escola insiste em esquecer: a diferença existe e ela produz potência. Não o mesmo. Enquanto a realidade insistir em recortar o mesmo, em generalizar, em procurar um denominador comum, uma mesma habilidade, um mesmo parâmetro, seguiremos falhando com o mote educacional: a vida.

Ao pensar os valores e suas condições de existência, vimos o elemento diferecial capaz de mudar as perspectivas avaliativas: a vida. Nietzsche nos apresenta duas tipologias humanas que diferem os modos de interpretar: escrava e nobre. Enquanto a primeira difere suas avaliações pela negação da vida, a segunda sustenta uma afirmação da vida.

Ambas as tipologias podem coexistir numa perspectiva, como a etnomatemática, por exemplo, num mesmo homem. Nietzsche diria em uma mesma alma -. Uma é condição para a outra. A emergência de uma é a emergência da outra.

Modos de encarar e angular a vida. Uma afirmando o viver (nobreza) enquanto a outra, nega o existir em prol de um por vir (baixeza). Nobre enquanto livre de um por vir. Escravo aprisionado, amarrado por um por vir. Pois, “um homem forte”, o nobre, “digere suas vivências [...] como suas refeições, mesmo quando tem de engolir duros bocados” (NIETZSCHE, 2009, p. 110).

A docência como espaço-tempo não vazio a ser preenchido não precisa ser cansativa, mas para isso - se é que algum modo de interpretar seja possível de ser ensinado/ensinare/ensinar/ensaiar/dançar/AR - precisamos enfrentar a nós mesmos. A cada espaço-tempo preenchido, a cada tempo-matéria, a cada aula, como enfrentar? Como questionar os livros, os penduricalhos (AURICH, 2017) que carregamos?

Acredita-se que a potencialidade do trabalho desenvolvido possibilitará que educadoras e educadores suspeitem dos seus valores. Não é um exercíco tranquilo esfacelar certezas, verdades. Mas, talvez, seguir uma mesma perspectiva possa tornar-se demasiadamente aprisionador. Pensar o que fomos, o que somos e o que iremos constituir é um dos nossos convites a pensar a educação entre as docências escrava e nobre. O exercício reside menos na discussão identitária (será que sou escravo ou nobre?) e mais na produção de parâmetros entre baixezas e nobrezas.

Seja escravo, seja nobre, não há peso-leveza que dure para sempre, pois o que dura é a vida e ela é finita. Em meio à vida, as docências escrava e nobre nos colocam a dançar, mas somos nós - repetimos: somos nós - que fechamos os olhos aos valores; que insistimos em reproduzir - sem repetir e afirmar a diferença - modos de interpretar a docência contemporânea. Que esse artigo seja AR para que possamos, a cada espaço-tempo, afirmar outros valores; a vida; o viver.

Aforismo

Sobre as pontes:

Animal Super-homem

Pedagogia da realidade Docenciar

Permanecer Perecer

Passado-futuro Presente

Quer mais viver Quer viver

Despreza a si mesmo Supera a si mesmo

REFERÊNCIAS

AURICH, Grace Da Ré. Reescrita de Si: a Invenção de uma Docência em matemática. Porto Alegre, 2017. 152f. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação. Faculdade de Educação. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2017. [ Links ]

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Recebido: 01 de Junho de 2020; Aceito: 31 de Março de 2021

Gilberto Silva dos Santos Doutorando em Educação em Ciências PPGEC/UFRGS; Professor de Matemática da rede municipal de Porto Alegre

Samuel Edmundo Lopez Bello Professor dos Programas de Pós-Graduação em Educação em Ciências PPGEC/UFRGS e em Educação PPGEdu/UFRGS

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