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Reflexão e Ação

versión On-line ISSN 1982-9949

Rev. Reflex vol.29 no.2 Santa Cruz do Sul mayo/ago 2021  Epub 17-Mayo-2024

https://doi.org/10.17058/rea.v29i2.16417 

Entrevista

Uma vida em defesa da educação popular: entrevista com Danilo R. Streck

A lifetime defending popular education: an interview with Danilo R. Streck

Una vida en defensa de la educación popular: entrevista con Danilo R. Streck

Sandro de Castro Pitano1 
http://orcid.org/0000-0002-9794-1303

Maria Tereza Goudard Tavares2 
http://orcid.org/0000-0002-9856-5098

Danilo Romeu Streck3 
http://orcid.org/0000-0001-7410-3174

1 Universidade de Caxias do Sul - UCS - Caxias do Sul - Rio Grande do Sul - Brasil.

2 Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ - Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil.

3 Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ - Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil.


Danilo R. Streck, nosso entrevistado, nasceu em Nova Palma (RS), em 11 de maio de 1948. Formou-se na Escola Normal Evangélica (hoje Instituto de Educação Ivoti/RS) e iniciou sua trajetória como professor em Não Me Toque (RS). Graduou-se em Letras na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (São Leopoldo), fez mestrado em Teologia no Princeton Theological Seminary e doutorado em Educação na Rutgers University. Realizou estágios de pós-doutorado na Universidade da Califórnia, Los Angeles, e no Max Planck Institute for Human Development, em Berlim. Atualmente é professor do Programa de Pós-Graduação da Universidade de Caxias do Sul, havendo atuado anteriormente na Escola Superior de Teologia (São Leopoldo), na Universidade Metodista (São Bernardo do Campo) e na Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Foi professor visitante na Universidade de Siegen (Alemanha), no Ontarío Institute of Studies in Education da Universidade de Toronto (Canadá), na Universidade Javeriana (Colômbia) e na Sabanci University (Istambul). Suas pesquisas e sua produção acadêmica concentram-se nas áreas de pedagogia latino-americana, educação popular, mediações pedagógicas em processos sociais participativos. Participa do GT de Educação Popular e Metodologias Críticas na América Latina da CLACSO. É editor executivo do International Journal of Action Research.

Sandro de Castro Pitano e Maria Tereza Goudard Tavares: Para iniciar a nossa entrevista, gostaríamos que você nos contasse, mesmo que de forma resumida, quais os principais percursos formativos do professor e pesquisador Danilo Streck? Como se tornou um pesquisador e um formador de jovens pesquisadores no campo da Educação Popular? E quais foram os principais desafios enfrentados na sua trajetória de “intelectual público”?

Danilo R. Streck: Agradeço o convite e a disposição de vocês, Sandro e Maria Tereza, de me ouvir e de compartilhar algumas ideias com os leitores de Reflexão & Ação, um periódico que vem se consolidando como um importante espaço de divulgação científica no campo da educação. Em primeiro lugar, o exercício de falar de si mesmo tem armadilhas bem conhecidas, algumas das quais se pode evitar e outras talvez sejam imperceptíveis para quem conta a sua história. Melhor, quem sabe, é entender a narrativa como um convite a que os leitores e as leitoras se encontrem com suas histórias e assim continuemos tramando uma maior consciência de nosso ser coletivo como educadores e pesquisadores.

Numa palestra proferida por Gadamer (2001) no seu centésimo aniversário, ao se referir à sua formação, ele diz que em realidade se tratou mais propriamente de uma autoformação recíproca. Desde a socialização na família até o círculo de pesquisadores, houve uma vasta gama de interlocuções que acabaram sendo amalgamadas em uma unidade muito própria. Acho que é isso que acontece com a maioria de nós e certamente aconteceu comigo. Posso aqui apenas destacar alguns momentos, sem me alongar muito pelo tempo e espaço da entrevista.

Nascido no município de Nova Palma, no interior do estado do Rio Grande do Sul, as opções para continuar os estudos depois do quinto ano primário eram exíguas, para não dizer inexistentes. Assim com 12 anos de idade foi decidido que eu seria professor porque havia a possibilidade de uma bolsa de estudos na então Escola Normal Evangélica, em São Leopoldo, hoje Instituto de Educação Ivoti. Ao me formar no curso normal em nível de ginásio, com 17 anos (1965), passei a ser professor em uma escola da Rede Sinodal de Educação vinculada à Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil - IECLB, em Não Me Toque (RS). Este fato é importante porque muito cedo conheci - sem compreender muita coisa - a realidade onde havia crianças muito bem vestidas e outras que vinham de pés descalços. Foi uma formação na prática.

Na faculdade (Curso de Letras na Unisinos, junto com um curso de Teologia para formação de professores nas Faculdades EST), entre 1969 e 1972, período forte da ditadura civil militar, eram comuns silêncios nas aulas porque nunca se sabia se havia alguém do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) infiltrado; ou alguém da turma que servisse de informante. Nas aulas de didática e fundamentos da educação uma referência progressista era Lauro de Oliveira Lima. Quero aqui fazer uma pequena digressão sobre este educador, nascido no ano de 1921, o mesmo ano do nascimento de Paulo Freire. O livro, Tecnologia, educação e democracia (LIMA, 1965), publicado em 1965, traz um apêndice com uma descrição detalhada da aplicação do método Paulo Freire nas cidades satélites de Brasília, onde ele começou a frequentar anonimamente os círculos de cultura. É um documento importante de uma autoridade no campo da didática comprovando a eficiência do método. Naquele período, um importante lugar de discussão e de formação era a casa de estudante, por nós organizada e administrada.

Já em 1973 obtive uma bolsa para estudos no exterior e fiz mestrado no Princeton Theological Seminary e o doutorado na Rutgers University, nos Estados Unidos. O seminário de Princeton foi especialmente importante porque entre outros professores com boa vinculação com a América Latina, encontrei e tive aulas com Richard Shaull que havia sido pastor na Colômbia (Orlando Fals Borda trabalhou com ele na comunidade presbiteriana em Barranquilla) e que tinha fortes vínculos com Paulo Freire, tanto assim que foi o prefaciador de Pedagogia do Oprimido nos Estados Unidos. Aí conheci as obras de Paulo Freire, de Gustavo Gutierrez, de D. Hélder Câmara, de Camilo Torres e tantos outros que representaram uma verdadeira reviravolta em minha formação.

Ao regressar ao Brasil trabalhei por quase vinte anos nas Faculdades EST, em São Leopoldo, onde consegui vivenciar a relação entre a Teologia da Libertação e a Educação Popular. Foi um período de intensa atividades formativas promovidas por centros de educação popular e de pastoral no Brasil e na América Latina. Dentre tantas pessoas com quem tive o privilégio de estar e trabalhar destaco o educador e teólogo Matthias Preiswerk (1994) , um suíço radicado na Bolívia. Com ele realizamos cursos em vários países da América Latina e fui me familiarizando um pouco as a diversidade cultural que temos nessa terra. Por exemplo, aprendi com um aimará que para eles o passado não está atrás, mas na frente como orientação; por isso os mortos também são enterrados em lugares altos. Aprendi que há outras concepções de tempo quando combinamos para participar em uma cerimônia maia-quiché que o horário não seria o de nosso cronograma, mas aquele da posição do sol.

Para ser justo, deveria continuar contando a história: os seminários, a caminhada com orientandos e orientandas, os aprendizados no Grupo de Trabalho de Educação Popular da ANPEd, os estágios de pós-doutorado, o envolvimento internacional a partir da revista International Journal of Action Research, entre tantas outras experiências. Algo disso provavelmente aparecerá nas próximas respostas.

Sandro de Castro Pitano e Maria Tereza Goudard Tavares: Pensamos que seria interessante que você nos apontasse, a partir de seus percursos formativos, experiências pessoais e profissionais, e relação com o campo acadêmico-científico, como vê a questão da Educação Popular hoje? Por que se fala atualmente em educações populares e qual seria a importância do plural para os desenvolvimentos futuros?

Danilo R. Streck: Vou começar a responder pela última questão posta: “Por que se fala atualmente em educações populares e qual seria a importância do plural para os desenvolvimentos futuros?” A meu ver se trata do reconhecimento de que a educação sempre foi um movimento políticopedagógico plural. Sendo um movimento, ela não pode ser fixada nem no tempo nem no espaço. Parafraseando José Martí, ela vai onde vai a vida, ou melhor, ela vai onde a vida resiste, se insurge contra injustiças e se recria. Nesse sentido, o fato de falar em educações no plural - uma provocação que Carlos Rodrigues Brandão (1981) já fazia em seu livro O que é educação - faz sentido. A educação popular no singular pode ser vista como um grande rio onde vão desaguando novos afluentes, alguns maiores e outros menores, quem sabe até imperceptíveis, mas que acrescentam muito ao caudal, às vezes nem tanto em termos de volume, mas de renovação e de criatividade.

Se quiséssemos poderíamos também dizer que se trata de um conceito guarda-chuva que acolhe e abriga práticas que se encontram fora dos parâmetros disciplinares clássicos. Pode-se ver isso no próprio GT de Educação Popular da ANPEd que serve de porta de entrada para colegas que a partir daí vão se colocando em outros grupos de trabalho eventualmente com um perfil mais claramente definido. Outra maneira de ver esse potencial unificador seria pela imagem da plataforma, um lugar comum a partir de onde se criam e desenvolvem novas práticas educativas.

O que foi exposto acima já encaminha a resposta à primeira pergunta: “Como vê a questão da Educação Popular hoje?” A pergunta também indica lugares distintos a partir de onde olhar a educação popular. Gosto da versão alargada do popular com que Oscar Jara (1918) aborda a educação popular. Em seu discurso por ocasião da homenagem de doutor honoris causa da UFRGS ele identifica três significados que se complementam. O primeiro deles é de educação pública, no sentido amplo de educação para todos. Essa é a compreensão histórica de educação popular que encontramos em Sarmiento na Argentina, Varela no Uruguai ou Carneiro Leão no Brasil e que ainda faz sentido hoje. A segunda acepção diz respeito à educação com os assim chamados setores marginalizados e discriminados na sociedade como sujeitos privilegiados. A terceira acepção refere-se à inserção no movimento da sociedade, seja pelo trabalho digno, contra discriminações de gênero, raça outras diferenciações transformadas em desigualdade.

São três dimensões que, se olhadas em conjunto, ampliam o leque de compreensão da educação popular e também facilitam a interface com a academia. Vejo isso em inúmeras teses e dissertações nas quais tenho participado como banca em vários lugares do país. Sem me delongar, vou dar três exemplos: uma tese na UFPA (CORDEIRO, 2021) identificou como a cultura popular pode provocar rupturas na “monocultura curricular” nas escolas; uma dissertação da UFRGS (UCHA, 2020) relatou e analisou uma prática educativa através da qual os jovens descobriram junto com sua comunidade que um bairro pobre também tem história, para muito além daquela imagem que aparece nas crônicas policiais; outra tese da UNISC (VERGÜTZ, 2021) analisou como a pedagogia da alternância em uma Escola Família Agrícola potencializa a consciência das mulheres como protagonistas na comunidade, identificando os tipos de silêncios e vozes através das quais essas mulheres se constituem. Assim tem inúmeros trabalhos que vão compondo este movimento que às vezes se forma no subterrâneo, em especial na academia.

Sandro de Castro Pitano e Maria Tereza Goudard Tavares: Como é possível falarmos em Educação Popular e do próprio papel da ciência na atual conjuntura brasileira, em plena crise de uma pandemia avassaladora como a do Corona vírus, com mais de 260.000 mil óbitos, num cenário nacional caótico, tanto político, quanto econômico e total descrença na capacidade de gestão da crise pelo governo Federal?

Danilo R. Streck: Muito se tem dito e escrito sobre a pandemia e o que eventualmente vai ser um novo normal. Algumas coisas estão mudando e com certeza permanecerão em todas as áreas, por exemplo, o trabalho online, reuniões e seminários virtuais e compras pela internet. Na educação teremos um uso mais intensivo das tecnologias digitais na educação, em todos os níveis, mas em especial nas universidades. Ao mesmo tempo sabemos das dificuldades do uso dessas tecnologias, desde o acesso ao equipamento até o acompanhamento das crianças e dos jovens na realização das tarefas. É um tema que merece ser estudado no sentido de se tirar proveito das positividades, evitar as falácias e preparar para alternativas. Isso vale também para a educação popular, seja no contexto escolar ou não escolar.

Mas queria tecer um comentário sobre o papel da ciência e a relação da educação popular com a ciência. O descaso com a ciência ou a sua negação para fazer frente à pandemia por parte de setores de sociedade que tem seu respaldo no atual governo federal, traz um questionamento para a educação popular onde muitas vezes se trabalha com uma visão muito simplificada de “ecologia de saberes” no sentido de que, afinal, todos os saberes têm a mesma legitimidade. Queremos simplesmente aceitar que que a terra é plana? Ou que quem toma vacina vira um bicho? Descontando o fato de que com os fundamentalistas qualquer tipo de argumentação é difícil ou inútil, tenho a impressão que a educação popular, com base em Paulo Freire, desenvolveu o conceito de diálogo de saberes. Com uma postura dialógica consigo dialogar com um aimará que diz que o passado se situa na frente e aprendo com ele, enquanto coloco a visão que eu aprendi na escola de que o passado ficou para trás e em boa medida pode - infelizmente - ser esquecido ou negligenciado. A educação popular possibilita este encontro criativo entre saberes, tornando-os mais densos, mais prenhes de sentido.

Sandro de Castro Pitano e Maria Tereza Goudard Tavares: Por outro lado, estamos no Brasil, e em muitos países da América Latina, Europa e África, bastante mobilizados/as em torno das comemorações do centenário de Paulo Freire (1921-2021). Você poderia nos contar como se deu o seu encontro com a obra, a pessoa e o legado de Paulo Freire? Quase seriam as suas principais reflexões, memórias e afetos desse encontro? Aproveitando sua experiência internacional, como você percebe, atualmente, a incidência de Paulo Freire em outras regiões do mundo?

Danilo R. Streck: É difícil ser breve na resposta a uma pergunta com tantas dobras. Primeiro, pelas circunstâncias nunca tive um encontro pessoal com Paulo Freire (aquele encontro cara a cara). Numa ocasião estava no Instituto Veredas em São Paulo, buscando material para pesquisa (tenho cópia de cartas e outros documentos) e tinha um encontro marcado com ele. Por motivo de saúde de alguém de sua família o encontro não foi possível. Nunca vi isso como um problema e acho que não teria mudado muito de minha relação com ele e com sua obra.

Meu encontro com sua obra foi um tanto constrangedor. Ao ter minha primeira reunião com o orientador de mestrado nos Estados Unidos, ele falou do seminário de Fundamentos da Educação onde entre os 10 livros a serem lidos e resenhados estavam Democracia e educação de John Dewey e Pedagogia do oprimido de Paulo Freire. Acho que para se conectar comigo ele comentou que eu decerto conhecia esse livro de Paulo Freire. Na realidade não conhecia nem o livro e sabia quase nada do autor. Envergonhado, devo ter resmungado alguma coisa e retorcido na cadeira. Mas o fato serviu como impulso para fazer do livro uma âncora para quase tudo que veio depois, tanto assim que na tese tomei Pedagogia do Oprimido e Educação e democracia como base para a análise do método, ambos girando em torno de problema: problem posing e problem solving. Ou seja, um voltado para a problematização da relação com o mundo e o outro mais pragmaticamente para a solução de problemas.

Paulo Freire se tornou uma referência que julgo absolutamente necessária para nossa educação, mas não suficiente. Em outras palavras, não podemos ter uma consistente teoria pedagógica tendo apenas uma referência. Por isso, me envolvi no trabalho bastante intenso com fontes da pedagogia latino-americana para entender como a obra de Paulo Freire não surgiu do nada. Nossa história pedagógica está povoada de educadores e educadoras que infelizmente pouco aparecem nos livros de história, filosofia ou sociologia da educação. O mesmo vale para o alargamento da obra no diálogo com outros autores como Comenius, Rousseau, Lorenzo Milani (Escuela di Barbiana) e outros autores contemporâneos.

Vocês perguntam também sobre como vejo o legado de Paulo Freire em outras regiões do mundo. Tenho relações pessoais e acadêmicas em muitos países e vejo Paulo Freire reconhecido em vários campos, principalmente na educação e na metodologia de pesquisa. Na educação ele é uma referência obrigatória na pedagogia crítica de vários matizes. Na pesquisa ele é muito referido nas metodologias participativas (pesquisa ação, pesquisa participante, sistematização de experiências, entre outras). Mas ele também não deixa de ser referência em outros campos. Destaco a teologia com base em sua atuação junto ao Conselho Mundial de Igrejas durante uma década. Foi a partir desse lugar que ele se tornou efetivamente um educador do mundo, no diálogo com a emergente teologia da libertação que se desenvolveu na América Latina, mas se espalhou para outros continentes.

Sandro de Castro Pitano e Maria Tereza Goudard Tavares: Em seus últimos livros, você vem enfatizando as questões epistemológicas presentes no desenho, métodos e implicações éticas entre os/as diferentes sujeitos da pesquisa. Gostaríamos que nos apontasse as motivações dessa ênfase. Seria uma exigência dos novos cânones e pressupostos epistêmicos de tornar a Educação Popular um campo mais “científico” e menos político? Como podemos dimensionar a importância da Educação Popular e do legado de Freire para a emergência de uma matriz epistêmica do Sul?

Danilo R. Streck: Começando de trás para frente, não vejo como separar o epistêmico do político. Mas enquanto inseparáveis, eles também não são idênticos. O político tem a ver com a maneira de ver o mundo e a sociedade, com a maneira de conceber e exercer o poder, com os compromissos com projetos de sociedade e com a forma de construí-los. O campo epistêmico, em se tratando da academia. tem os seus parâmetros para compreender a realidade, para divulgar os resultados de pesquisas. Em palavras de Paulo Freire, tem as suas exigências de rigorosidade metódica. Não acredito que essas exigências sejam camisas de força, mas elas são necessárias para fazer o diálogo com a comunidade acadêmica num contexto mais amplo. Na pesquisa temos pelo menos três âmbitos de interlocução: o primeiro é comigo mesmo para tornar-me mais consciente de meus pressupostos, o segundo é com os sujeitos com quem realizo a pesquisa e o terceiro é a comunidade na qual insiro o meu trabalho e meu discurso. Entendo também que dentro do campo acadêmico existem diferentes “dialetos” ou formas de expressão.

Retornando à pergunta, enquanto pesquisadores temos uma função problematizadora da realidade que a boa política saberá aproveitar. Por outro lado, a política coloca e enfrenta desafios que precisam ser parte da agenda da educação e da pesquisa. Paulo Freire pode ser um bom exemplo: mesmo sendo um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores e assumindo a Secretaria de Educação da cidade de São Paulo, ele não deixou de ter uma atitude curiosa, aberta e crítica diante da realidade social e educacional.

Tenho enfatizado o papel da pesquisa enquanto uma ação coletiva entre sujeitos que desejam “pronunciar” o mundo. Empresto essa noção de Paulo Freire para sugerir que se trata de conhecer dentro e a partir da ação e da experiência. Para ele a pronúncia do mundo é “palavração”, um neologismo que diz muito para a pesquisa e para a educação. O próprio Paulo Freire, junto com Orlando Fals Borda, são hoje referências internacionais na pesquisa ação, pesquisa participante ou outras modalidades de pesquisa que se agregam na ação coletiva de sujeitos que desejam conhecer e transformar a realidade. Sabemos que na academia há uma série de obstáculos para essa coprodução de conhecimento, a começar pelas agendas de pesquisa, pela disponibilidade de tempo, pelos tempos e prazos diferentes. Mas acredito que seja um caminho a ser explorado se acreditamos que não se trata apenas de democratizar o conhecimento a partir de seus resultados, mas de democratizar a produção de conhecimento. Isso implica ainda em ajudar a sociedade a ver a ciência não apenas como produtora de conhecimentos para usar, mas como uma maneira de se conceber dentro do mundo e com o mundo.

Tenho que mencionar o papel que a sistematização de experiências desempenha nesse contexto. Temos hoje, principalmente no contexto do CEAAL (Consejo Latinoamericano de Educación de Adultos de América Latina), um acúmulo de práticas de sistematização de experiências que a tornam uma metodologia com um estatuto epistêmico próprio. Trata-se de conhecer as experiências para transcendê-las, redimensionando-as dentro da história coletiva e individual dos sujeitos que participam dos processos. O trabalho de Oscar Jara (2012), Alfonso Torres Carrilo (2017) e muitos outros e muitas outras é hoje reconhecido em âmbitos acadêmicos e não acadêmicos, na América Latina e em outros continentes.

Sandro de Castro Pitano e Maria Tereza Goudard Tavares: Retornando ao centenário de Paulo Freire e ao seu legado. Como você avalia a atualidade dos conceitos e do pensamento Freiriano nas problemáticas atuais que atravessam a sociedade brasileira tais como negacionismos, racismo, autoritarismo, xenofobia, feminicídios, degradação ambiental, novas opressões, etc. O que Paulo Freire poderia nos dizer hoje sobre essas questões, quais seriam as possíveis lutas e estratégias que ele estaria a nos convocar?

Danilo R. Streck: Neste ano muitas coisas serão ditas e escritas sobre Paulo Freire e é importante que assim seja. Nessa entrevista eu quero destacar apenas alguns aspectos que me parecem mais relevantes. O primeiro deles é repensar a ideia de humanização, que em Pedagogia do oprimido ele coloca como uma “questão ineludível”. Depois de cinco décadas continua sendo, provavelmente mais aguda. Os sinais de desumanização ou desumanidade estão por toda a parte, desde a naturalização de milhares de morte pela pandemia do novo coronavírus até a depredação do ambiente natural sob o olhar complacente das autoridades, quando não incentivada por elas. Acho interessante que Paulo Freire nunca tenha visto desumanização e humanização como um processo linear de um menos para mais. Vivemos sempre entre a possibilidade de um ser mais ou um ser menos enquanto humanos. Ambas são possibilidades que se realizam na história real e concreta do cotidiano. Será a amorosidade freiriana, que sabemos não ser o amor romântico e fácil, capaz de romper a carapuça dos dogmatismos, fundamentalismos e preconceitos? Se não for, que alternativas temos? José Martí, no mesmo sentido da amorosidade, falava da necessidade de levar ao povo a ternura junto com os conhecimentos científicos, precisamente para fazer correr o sangue congelado nas veias devido a séculos de opressão.

Ligado a isso, eu enfatizaria a necessidade de recuperar o conceito de conscientização, no seu sentido multidimensional. Para Paulo Freire não se trata apenas de um exercício intelectual ou de fomentar conhecimentos acadêmicos e científicos, mas envolve o ser humano com uma integralidade. Tem a ver com a afetividade e com a ação. Tem a ver também com o desenvolvimento da radicalidade em oposição ao sectarismo. O radical, para Freire é um ser aberto para explorar o “fundo” das questões, ir às raízes. Sabemos que quando experimentamos esse exercício de repente vemos que o diálogo produz um conhecimento novo, desafia a uma postura diferente. O sectarismo, pelo contrário, fecha-se na superfície das coisas e impossibilita um diálogo problematizador e curioso. Um, diria Freire, é biofílico e o outro necrofílico.

O centenário é, a meu ver, um bom momento para pensar o significado do legado de Paulo Freire para o futuro da educação. Em recente congresso do WCCES (World Congress of Comparative Education Societies) foram lançadas perguntas provocadoras: A educação tem futuro? Qual seria o futuro da educação? Perguntas que o “peregrino do óbvio” poderá ajudar a responder durante o ano.

Sandro de Castro Pitano e Maria Tereza Goudard Tavares: Para terminar, gostaríamos que você nos falasse de seus projetos e planos de trabalho na atual pandemia. Como está vivendo o seu cotidiano familiar, de trabalho. Quais os seus anseios, medos, aprendizagens e principais desafios enfrentados nesses “tempos pandêmicos”? É possível sonhar outro país? Um outro mundo ainda é possível? E se você tivesse que falar de “lições da pandemia” com jovens militantes e pesquisadores/as da Educação Popular, o que falaria a eles e elas?

Danilo R. Streck: Impossível não perceber como a pandemia afeta a vida de todas as pessoas, mas sobretudo como afeta a vida das pessoas de formas muito diferentes. No meu caso, apesar de sentir falta do contato pessoal com familiares, amigos, estudantes e colegas, consigo realizar grande parte dos trabalhos sentado em minha escrivaninha diante do notebook. Também manter os contatos pessoais, sabendo que nada substitui um abraço de verdade. É uma situação muito diferente da maioria das pessoas: daquelas que precisam se deslocar em transporte público precário, de crianças e jovens privados do contato indispensável com seus professores, dos milhões que formam filas para receber um auxílio emergencial que não dá nem para uma cesta básica, etc. Sem falar daquelas que nesse mês de março de 2021, quando o Brasil se transforma em epicentro da pandemia, não encontram lugar em hospital, sequer para morrer de uma forma digna.

Diante deste quadro, infinitamente agravado pela inoperância e insensibilidade humana dos governantes da esfera federal, não tem como não ser tocado por profundo sentimento de tristeza e indignação. A epidemia está pondo a nu as desigualdades e dando brechas para a manifestação da perversidade humana. Nesse contexto, é difícil imaginar o tipo de mundo e sociedade que surgirá das cinzas da destruição causada pelo vírus e pela imprudência e irresponsabilidade. Mas sonhar um outro mundo é não apenas necessário, é - como diria Freire - um imperativo ontológico. Esse outro mundo não surgirá ao acaso, quando a pandemia tiver passado. Ele terá que ser construído no movimento de superação da epidemia. Na educação, por exemplo, a pandemia está promovendo um outro tipo de relação entre a escola e a família e a comunidade. Assim como o vírus, a solidariedade hoje ultrapassa as fronteiras nacionais e poderá ajudar a construir uma cidadania mundial menos excludente. Mesmo que esteja havendo competição pelas vacinas, há também o reconhecimento de que enquanto tiver um canto do mundo não imunizado o vírus poderá voltar.

Vou me eximir de falar aos “jovens militantes e pesquisadores/as da Educação Popular” como alguém “experiente” que tem uma palavra redentora. Prefiro me colocar junto com esses jovens, com quem cotidianamente aprendo muitas coisas, desde como fazer pesquisa de campo em tempos de pandemia, a como construir redes solidárias, resistir e criar em tempos difíceis, vislumbrar novas perspectivas teóricas. Vejo os jovens na educação popular fazendo o seu caminho com uma bonita combinação de leveza e compromisso. É disso que precisamos. Juntos, os menos jovens e os mais jovens, e emprestando uma metáfora de Margaret Mead (1970), vamos cuidar do futuro como uma mãe cuida da criança ainda não nascida em seu ventre.

Referências

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Recebido: 31 de Março de 2021; Aceito: 06 de Abril de 2021

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