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Reflexão e Ação

versión On-line ISSN 1982-9949

Rev. Reflex vol.29 no.2 Santa Cruz do Sul mayo/ago 2021  Epub 02-Oct-2023

https://doi.org/10.17058/rea.v29i2.16411 

Resenhas

Paulo Freire e eu: aprendizagens, transformações e um encontro com a pedagogia da esperança

Paulo Freire and me: learnings, transformations, and a meeting with hope pedagogy

Paulo Freire y yo: aprendizajes, transformaciones, y un encuentro con la pedagogía de la esperanza

Nize Maria Campos Pellanda1 
http://orcid.org/0000-0001-6677-3442

1 Universidade Federal de Pelotas - UFPEL - Pelotas - Rio Grande do Sul - Brasil.


Impossível conviver com Paulo Freire, mesmo que por curtos períodos, sem ficar profundamente afectado. Foi o que aconteceu comigo... O que vou dizer a seguir são minhas memórias afetivas misturadas com aprendizagens significativas de modo inextrincável. O disparador dessas escritas é, sem dúvida, o momento de obscurecimento social que paira sobre o nosso país trazendo um sentimento de desânimo diante de tantas atrocidades. Remeto então, minhas reflexões para Paulo Freire e seu livro “A Pedagogia da Esperança- Um reencontro com a Pedagogia do Oprimido” para lembrar o que ele nos ensinava sobre a esperança como uma forma de resistência: “Como programa, a desesperança nos desmobiliza e nos faz sucumbir no fatalismo onde não é possível juntar as forças indispensáveis ao embate recriador do mundo” (FREIRE, 1992, p.10).

Falo em primeira pessoa porque estou convencida que conhecer é conhecer-se. Faço minhas as palavras de Heinz von Foerster, o pai da segunda cibernética que subverteu o paradigma clássico ao colocar o observador no bojo dos sistemas observado. Diz ele: “De que mais mesmo podemos falar a não ser de nós mesmos?” (von FOERSTER, 2003, p.285) Pois é de mim que vou falar, de minhas afecções, de minhas aprendizagens, de minhas emoções, de minha gratidão. Esse é, portanto, um texto híbrido de depoimento pessoal e resenha do livro sobre esperança.

O que aprendi com esse mestre incrível arauto de uma educação libertadora?

São tantas as aprendizagens carregadas de sentido que tive ao conviver em alguns momentos da minha vida com Paulo que me transformei profundamente como educadora e como ser humano de maneira inseparável. Nunca mais fui a mesma. Hoje no alto dos meus 82 anos de idade, ainda em sala de aula e nas atividades de pesquisa, retomo sempre às questões básicas seminais colocadas por ele.

Paulo Freire nunca foi tão fundamental para os seres humanos mergulhados num negacionismo infame, como é caso dos brasileiros hoje com o triunfo da produção de ignorância. Trata-se de um processo de desdobramento de séculos de opressão e injustiça social herança de um colonialismo implacável. A emergência do modo capitalista de produção nos inícios da modernidade instaura um regime de exploração por parte dos donos do capital que nunca mais deixou de assombrar a civilização. A lógica implícita, como diz Fanon, de quem Paulo tanto gostava, é aquela cujas ações são: “Regidas por uma lógica puramente aristotélica, obedecem ao sentido da exclusão: não há conciliação possível, um dos termos é demais (FANON, 1979, p.28).

E, assim, foi se configurando uma cultura de exploração, de exclusão dos despossuídos com estratégias tão elaboradas que são introjetadas pelo dominado de maneira “natural” porque elas apostam na colonização do ego. Portanto, para muito além do processo político de dominação, a tecnologia colonial hoje vai fundo no sequestro da autonomia/autoria dos sujeitos colonizados, trabalhando ao nível das subjetividades. Ora, essa sempre foi a frente de luta de Paulo Freire: resgatar o protagonismo e a dignidade autoral de cada ser humano para a libertação das classes populares processo esse que deveria ser transpassado de esperança. Albert Memmi, outro autor muito apreciado por Paulo, expressa muito bem o pensamento freiriano sobre dominação subjetiva: “Tal é o drama do homem-produto e vítima da colonização: quase nunca chega a coincidir consigo mesmo” (MEMMI, 1977, p.120). Esse é o grande problema do ataque àquilo que é mais sagrado no ser humano, a autoria de si mesmo, porque essa é sua própria condição biológica. O colonizador/opressor nos tirou isso pois configurou uma cultura esquizofrênica tal que racha os seres humanos por dentro: eu versus eu mesma.

Quando me encontrei com Humberto Maturana e Francisco Varela, os dois neurocientistas chilenos que revolucionaram a Biologia, percebi que a epistemologia freireana encontrava na teoria da Biologia da Cognição a sua justificativa empírica. mostrando que a questão da autoria e da esperança são condições biológicas e ontológicas, que os seres vivos em geral e os humanos em particular são autopoiéticos, ou seja, seres que se produzem a si mesmos ao viver. “Conhecer é viver. Viver é conhecer” - o famoso aforismo de Maturana e Varela (1980) está no coração do método freiriano com seus Círculos de Cultura e a valorização da história de vida e da palavra de cada ser aprendente. Sobre a esperança, Paulo escreve em seu livro: “A esperança é necessidade ontológica; a desesperança, esperança que, perdendo o endereço, se torna distorção da necessidade ontológica” (FREIRE, op cit, p.10). Um outro pressuposto seminal dessa epistemologia é o amor. Maturana (1991,1997) nos chama a atenção para fato de que filogeneticamente os seres humanos são amorosos porque nascem dependentes de cuidados e carinho. Paulo Freire sempre destacou o papel da amorosidade no processo de educar de uma maneira muito visceral.

A efetivação dessa epistemologia se dava por esses caminhos autopoiéticos através da linguagem. Ao dizer a sua palavra, o oprimido estava reinventando a sua realidade e a sua própria vida. Nesse processo, ele vai desocultando verdades impostas que o mantinham dominado. A ontologia da linguagem nos mostra que falar não é simplesmente expressar pensamentos, mas criar mundos com a palavra. A percepção desse fato por Paulo Freire foi genial e ele a levou às últimas consequências em termos de uma epistemologia da palavra de autoria.

E assim fui aprendendo com Paulo elementos seminais de um novo paradigmacomplexidade- que veio para juntar o que fora separado: as emoções do corpo, as emoções e o corpo do processo cognitivo, o sujeito cognitivo de sua própria autoria de seu conhecer, o eu e o outro e assim por diante. Essa fragmentação paradigmática não é neutra. Ela é instrumento poderoso de dominação. O educador precisa hoje, mais do que nunca, ficar atento para perceber até que ponto ele (ela) colabora com os processos perversos e sutis de dominação. São tecnologias perversas que usam estratégias muito sutis de invasão do ego anulando-o através da desesperança, do medo e da tristeza.

Nos momentos de convívio em Porto Alegre ou em outros lugares, me encantava a presença de profunda sabedoria daquele homem. Nesses momentos, Paulo me dava conselhos preciosos para a minha tese de doutorado cujo tema central é exatamente a gênese sutil da dominação ideológica na escola. Ele falava então: - “Nize, lê Fanon (Os Condenados da Terra) e Memmi (Retrato do Colonizado precedido pelo Retrato do colonizador)”. Esses autores, como já referido aqui, fizeram-me entender o alcance subjetivo da dominação pela negação da legitimidade do outro anulando a ação de libertação do oprimido.

Juntos também trabalhamos na fundação da Comissão de Educação Nacional do Partido dos Trabalhadores e da Comissão de Educação do PT- Porto Alegre. Numa ocasião, logo após a morte de Elsa, sua primeira esposa, ele estava muito triste quando veio ao sul para assessorar os (as) trabalhadores/trabalhadoras em educação. Convidei-o então para hospedar-se na minha casa para que ele ficasse em aconchego e não num quarto impessoal de hotel.

Foi Paulo quem me orientou para fazer um doutorado-sanduiche. Sugeriu Peter McLaren que se encontrava na Miami University, em Ohio, nos Estados Unidos para meu orientador. Peter era um estudioso da obra de Freire e, também, seu biógrafo. Peter era líder de um movimento radical para transformar a educação no mundo. Esse era o grupo que era conhecido por Pedagogia Crítica do qual faziam parte importantes educadores de esquerda como Henry Giroux, Joe Kincheloe, Michel Apple entre muitos outros. Minha estada nos Estados Unidos com esse grupo tão engajado numa revolução da educação foi instigante. Paulo Freire era o guru de todos eles. O neoliberalismo nessa época dava seus primeiros passos com Augusto Pinochet no Chile, Margareth Thatcher na Inglaterra e com Ronald Reagan nos Estados Unidos. Eles deixaram uma herança pesada em termos de novas estratégias ideológicas que agora precisavam ser mais refinadas e invasivas pois as classes populares e os estudantes haviam crescido em conscientização e sabiam muito bem o que significa a nova ordem econômica com seu estado mínimo, terceirização e outras maldades. Os donos do capital entregaram então a tarefa ideológica de legitimar um regime tão injusto para os intelectuais orgânicos da direita de plantão na Universidade de Chicago. Milton Friedman e George Stigler foram os principais representantes dessa nova ordem que teve como resultado mais nefasto o aumento da pobreza e a concentração de riqueza. Durante minha permanência em Ohio formaram-se alguns grupos para refletir sobre neoliberalismo e eu frequentava o mais que podia. Às segundas-feiras nos reuníamos em casa de uma professora da Universidade para estudar Frantz Fanon. Foram noites incríveis! Sou muito grata ao Paulo Freire por todas essas vivências.

Nossa grande aventura foi, sem dúvida, a viagem a Bagé (RS) para visitar o acampamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, em Hulha Negra. Paulo fora convidado para dar um curso de fim de semana para aquele grupo interessado em adotar a Pedagogia do Oprimido. Lá fomos nós muito animados acompanhá-lo. Nosso grupo de visitantes era formado, além de Paulo e Nita por Esther Grossi, na época Secretária de Educação de Porto Alegre, eu, Secretária Adjunta da Esther e pelo Prof. Balduíno Andreola da FACED/UFRGS. O evento virou tragédia! Os ruralistas da região, quando souberam da programação, imediatamente se mobilizaram e colocaram seus agricultores contra os agricultores Sem Terra em posição de ameaças e ataques efetivos. Triste de ver! Oprimidos atacando oprimidos. As cenas que se seguiram foram de estarrecer: os homens a serviço dos ruralistas atacavam os membros do MST com requintes de crueldade. Seguíamos mais atras de carro que viajávamos agora com Nita e Paulo. Uma cena patética que nos chocou foi o ataque furioso de um agricultor a um dos Sem-Terra que era músico. Esse se preparava para alegrar o nosso almoço. Um homem, a serviço dos fazendeiros, pegou o violão e o despedaçou batendo-o contra o chão. Não satisfeito pisou nos dedos do músico até quebrá-los. Nita, muito tensa, com a gravidade do momento, com toda a razão, reclamou de todos nós, ter exposto Paulo a tudo isso.

Voltamos para casa muito tristes por ver o alcance do ódio humano. Paulo, porém, não desanimava e com suas palavras plenas de sabedoria nos alertava para não perdermos a esperança. Volto então, ao livro sobre esperança:

Sem um mínimo de esperança não podemos sequer começar o embate, mas sem o embate, a esperança, como necessidade ontológica, se desarvora, se desendereça e se torna desesperança, que às vezes, se alonga em trágico desespero. Daí a precisão de uma certa educação da esperança (FREIRE,1992, p,11)

Na viagem de volta viemos Esther, Balduíno e eu com um motorista que havíamos contratado. Paulo e Nita seguiram noutro carro. Não resistindo ao contexto tão duro, o motorista bebeu muito. Esther e eu, não nos demos conta disso. Entramos no carro e caímos exaustas dormindo estrada afora. Depois de um trecho percorrido Balduíno pediu para parar o carro. Estranhamos um pouco mas concordamos com ele. Esse professor salvou nossas vidas pois mais tarde nos contou a razão de ter tomado a direção - o motorista vinha dirigindo muito mal quase perdendo o controle da direção! GRATIDÃO!

A luta continua ... Na minha idade a pergunta que mais ouço é: “Ainda trabalhas”? “Ainda!” - respondo eu. Trabalho porque tenho um projeto para uma época extremamente perigosa para os valores existenciais e para as condições biológicas dos seres humanos pelo obscurantismo no qual mergulhamos e do qual emergem ameaças brutais num contexto de neoliberalismo e ascensão de uma ultradireita movida pelo ódio e munida de estratégias mortais - a necropolítica tão conhecida de todos (as) nós. Essas ameaças vão desde a sujeição do ego e negação de si incapacitando os oprimidos de ter o controle da própria vida, passam pelo ataque ao ambiente com todas as consequências nefastas incluindo as pandemias até a inviabilização da vida social pela intolerância dos fundamentalismos. O perigo da manipulação ideológica profunda está aqui presente. Uma das ameaças é a disseminação de instituições de ensino em redes internacionais cujos docentes são treinados na manipulação das consciências. No Brasil, eles começam a entrar comprando instituições de ensino infantil, fundamental e médio bem como universidades. Essas instituições perversas se apresentam com um canto da sereia mostrando aos pais os encantos de um novo método. Essas empresas, é claro, se dirigem às classes dominantes para aprender a mandar. No lado das classes populares, o estado neoliberal se encarrega de inviabilizar a educação, seja pelo abandono orçamentário, ou seja, pelo treinamento ideológico dos trabalhadores (as) em educação.

Diante de todos esses perigos que pairam sobre nós é preciso agir. A educação passa hoje pela tarefa urgente dos educadores (as) de trabalhar com vivências de autoria assim como nos ensinou Paulo Freire, com a consideração do “outro como legítimo outro” como costuma repetir Maturana e eu acrescentaria ainda, resgatar as relações cósmicas perdidas. E não “desesperançar” como Paulo alertava. A desesperança, o desânimo do oprimido são as armas do opressor.

Para concluir esse breve relato, volto ao começo: Paulo Freire nunca foi tão necessário como nos dias sombrios que vivemos. Por isso, lembremos a utopia e o sonho do grande mestre para que os acompanhe na luta por uma Educação Libertadora:

Quando muita gente faz discursos pragmáticos e defende nossa adaptação aos fatos, acusando sonho e utopia não apenas de inúteis, mas também de inoportunos enquanto elementos que fazem necessariamente parte de toda a prática educativa desocultadora das mentiras dominantes, pode parecer estranho que eu escreva um livro chamado Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia ido oprimido (FREIRE, 1992, p.9).

REFERÊNCIAS

FANON, F. Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. [ Links ]

FREIRE, P. Pedagogia da Esperança - Um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz de Terra, 1992. [ Links ]

MEMMIA. Retrato do colonizado precedido do retrado do colonizador. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. [ Links ]

Recebido: 31 de Março de 2021; Aceito: 31 de Março de 2021

Nize Maria Campos Pellanda Doutorado em Educação pela UFRGS/M.U. (USA); Pós-doutorado em Epistemologia- UMINHO (Portugal); Estágio Sênior- UMINHO (Portugal); PPGEdu UFERSA; Estágio Sênior- UMINHO (Portugal); Bolsista Produtividade- DT- CNPq; Coordenadora do GAIA (Grupo de Ações e Investigações Autopoiéticas).

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