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Reflexão e Ação

versión On-line ISSN 1982-9949

Rev. Reflex vol.29 no.3 Santa Cruz do Sul set./dic 2021  Epub 11-Sep-2023

https://doi.org/10.17058/rea.v29i3.16862 

Resenhas

Percursos de um arq-vivo: entre arquivos e experiências em história da educação

Paths of a live-file: between files and experiences in the history of education

Recorridos de un archivo-vivo: entre archivos y experiencias en historia de la educación

Susane da Costa Waschinewski1 
http://orcid.org/0000-0002-9024-0539

1 Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC - Florianópolis - Santa Catarina - Brasil.


Fruto de sua incursão no Arquivo da Faculdade de Educação (FACED/UFRGS), em Porto Alegre e de seu processo de pós-doutoramento na UDESC, Dóris Bittencourt Almeida apresenta “ Percursos de um Arq-Vivo: entre arquivos e experiências em História da Educação”. Com título provocativo, reúne um conjunto de artigos que em sua trama se entrecruzam e trazem à superfície importantes análises teóricas e práticas referentes ao estatuto dos arquivos.

Em especial para o campo da História da Educação, pois coloca em perspectiva um campo fértil de investigação, sem romantizar os documentos que repousam nos arquivos, permite que o leitor observe os dilemas e as encruzilhadas típicas do trabalho dessa tipologia documental, em especial daqueles que de alguma forma se relacionaram com seus portadores.

Chama atenção, nesse sentido, a operação historiográfica empregada, que possibilita conhecer experiências, trajetórias pessoais e profissionais, rompendo com os limites disciplinares, as quais realiza aproximações sucessivas com contextos globais, locais, cenários políticos e campanhas educacionais. Todos esses espiados em “sacolas” que parecem carregar migalhas desorganizadas, cuidadosas agendas e cadernos de registros de aula, recortes, anotações e bilhetes, os quais produzem conhecimento histórico.

Ao percorrer as páginas, observamos o cuidado para conduzir o leitor para melhor compreensão do trabalho empreendido na “Torre Azul”, iniciando pela materialidade a escolha das imagens, a organização em duas partes temáticas e a seleção dos artigos que o compõem, tornando a leitura agradável, fluida, além de possibilitar pausas para reflexões e observação dos documentos selecionados em suas pesquisas. A parte I, “Raspas e restos me interessam”, dedicase a narrar seu encontro com esse espaço de memória, dialoga com autores clássicos e com a literatura atual, debatendo concepções e práticas arquivísticas desses espaços. A parte II, “De memórias fizeram-se histórias”, apresenta memórias em arquivos observados em documentos pessoais de professores.

Abrindo a parte I, temos o artigo “O arquivo como questão. Uma morada para memória em papel. Dimensões do guardar e do pesquisar em arquivos”. Com o título da seção inspirado no verso de Cazuza, podemos estabelecer uma analogia do lugar e do desejo do pesquisador de arquivos, em especial de arquivos pessoais. Interessados em documentos ditos “ordinários” (CERTEAU, 2005, p. 12), da ordem do dia a dia, do comum, por diversas vezes condenados ao descarte, têm encontro marcado com o lixo ou as chamas. Os que sobrevivem em grande medida são largados à própria sorte. Muitos têm destino incerto, entretanto, aqueles que habitam os arquivos institucionais podem ser considerados documentos rebeldes, contrariando tal destino, passam a repousar em locais de memória, em espaços de salvaguarda. Como Dóris destaca, a eles são atribuídos diferentes verbos que expressam ação de recolher, classificar, ordenar, dispor. Local que abriga documentos das mais variadas ordens e tipologias, que passam pelo crivo de seus portadores, pela ação de seleção e organização dos funcionários desses espaços, para serem dispostos a consulta pública. Neles “migalhas e restos nos interessam”,

[...] conservam-se materialidades de outrora, que são pensadas no presente, mas almejam a perenidade, ou seja, pretérito, presente e futuro estão urdidos nos Arquivos, que acumulam camadas de tempo, como estratos de experiência, que coexistem em permanente ajustamento (p. 20).

São materialidades do passado que convocam memórias, análises e narrativas do presente, atravessadas pelas múltiplas temporalidades que possibilitam aproximações com cenários do agora.

Dialogando com a história do tempo presente, entre muitas questões levantadas, destaco duas que acredito passar por todos nós em algum momento de nossas vidas: “por que guardamos” e “por que temos o ímpeto de guardar?” (p. 22). Guardamos para preservar momentos, representações de nossa atuação, aspectos que queremos construir e narrar, comprovações que possam testemunhar trajetórias profissionais. “Talvez para nos sentirmos mais confortáveis em relação ao que nos legaram como humanidade e, consequentemente, menos inseguros neste tempo povoado por efemeridades” (p. 22), preservamos papéis, objetos, roupas, tudo aquilo que possa conter rastros para, quando a memória falhar, servir de suporte a ela.

Ao abordar as dimensões do guardar, a autora comenta distintos momentos e projetos iniciais em que teve a intenção de reunir e preservar documentos institucionais da FACED, quando ela e sua equipe começam a ter contato com os documentos e encontram “[...] uma espécie de depósito, estavam caixas de papelão com muitos materiais empilhados, dispostas em estantes, umas sobre as outras, sem possibilidade de deslocamento” (p. 24).

Nesse ímpeto de guardar, mas também tornar público, em 2016 começa a idealizar um espaço de

alcance formativo e acadêmico, frequentado por estudantes e por pesquisadores que lá podem encontrar redes de informações arquivísticas, imagéticas e orais, que, examinados e articulados aos contextos de cada época, permitem a produção de histórias desta Universidade, de seus sujeitos [...] (p. 24).

Local que, mesmo sem nos deslocarmos para conhecer, conseguimos ter noção de sua latência por meio das análises empreendidas por Dóris.

No segundo artigo, “Pelas tramas das memórias orais: arquivar para eternizar”, apresenta o cuidadoso trabalho de constituição e conservação de documentos orais, que tiveram como sujeitos professores e técnicos da FACED e do Colégio de Aplicação (CA). Estes foram desenvolvidos pela história oral, que tem como mirada o registro das experiências daqueles que viveram parte de suas vidas na “Torre Azul”; segundo a autora, os relatos também serviram como recurso para sensibilizálos a remexer em papéis do passado, a fim de realizarem doações ao Arquivo.

“Mas por que o interesse em reunir memórias orais? Não bastariam todos os outros documentos arquivados? (p. 31). Segundo a autora, reunir seus testemunhos por meio da história oral permite que eles narrem pelas lentes da memória as experiências vivenciadas na Universidade. Importante destaque realizado são as dimensões temporais atravessadas nesse processo, passado, presente e futuro, conduzidos pelo tempo presente. Outro elemento importante para reflexão são as observações referentes às narrativas dos entrevistados, como memórias individuais, que se misturam ao coletivo daqueles que compartilham as experiências ali vivenciadas.

O terceiro artigo, “Entre cadernos, agendas, recortes, correspondências, bilhetes..: sensibilidades em arquivos pessoais”, atenta-se sobre o Arquivo da FACED, neutrino um interesse em especial: arquivos pessoais de professores, pois reconhece neles um campo fecundo para pesquisa, em especial de História da Educação, que guardam documentos de diferentes tipologias e por vários motivos, de ordem íntima, mas que revelam sua atuação profissional. Integram gavetas, armários, baús e variados papéis, guardados para comprovar a atuação profissional, rememorar momentos em suas trajetórias, avaliar suas ações cotidianas, atividades de estudantes que se perdem em meio a cadernos e agendas, planos de aula, textos cuidadosamente guardados. Enfim, representam modos como cada um quis guardar e eternizar aspectos de uma vida profissional.

Proporcionando uma visão geral, Dóris nos conduz aos conjuntos documentais cedidos ao Arquivo da FACED. O primeiro é o da professora do CA, Luzia Garcia de Mello (1932-2013): registros de leituras, anotações sobre eventos que participou, observações sobre as semanas de planejamento escolar. O segundo conjunto documental, são 15 cadernos de planejamento de aulas da professora polivalente do CA, Isabel Loss.

O primeiro homem a aparecer por meio de seu arquivamento pessoal é o professor Balduino Andreola, que levou pessoalmente “[...] várias sacolas que continham um emaranhado de itens dispersos, uma infinidade de papéis, aparentemente sem uma organização maior (p. 46). O segundo professor é Alceu Ferraro (1935-2019), que arquivou muitos certificados e diplomas. A professora Maria Helena Camara Bastos doou arquivos e um deles é produto de projetos de pesquisa que desenvolveu na UFRGS e dos anos que lecionou no CA, com planos de aula e livros relativos à História da Educação. Seu segundo grupo compõe documentos sindicais e trabalhos de alunos e orientandos.

Tania Ramos Fortuna doou registros detalhados de suas aulas referentes ao curso de Pedagogia, além de textos, cópias, anotações e diversos convites de formaturas do curso. A professora Beatriz Daudt Fischer doou um conjunto de agendas, textos referentes à reforma do curso de Pedagogia de 1994, fitas gravadas com palestras, uma vasta documentação que foi entregue em dois momentos ao arquivo da FACED.

O último conjunto documental foi doado pelos filhos de Nilton Bueno Fischer, com cadernos, planos de aula de disciplinas da pós-graduação, documentos de suas pesquisas, da Anped (1989-1993), além de documentos do período em que desempenhou função como secretário da Educação de Porto Alegre, durante a gestão de Tarso Genro (PT).

O quarto artigo, “Escrever, recortar, colar: ‘acervo de vivências’ nos cadernos da professora Luzia (1989-2010)”, que abre a parte II do livro, temos a presença de Luzia, que deixou 24 cadernos, produzidos entre os anos de 1989 e 2010, após sua aposentadoria na FACED. Essa organização reuniu sensibilidades de uma professora que parece querer recordar de aspectos de sua trajetória profissional, repletos de colagens, anotações, alguns deles compostos por uma espécie de sumário, anunciando o que se pretende “recordar”, sugerindo uma tentativa de pôr em ordem as rememorações, como quem tenta colocar passagens da vida em papel. A leitura desse capítulo produz sensibilidades, faz pensar sobre a vida e seus percursos, permite observar afetos e, em um dos bilhetes destinados às amigas antes de seu falecimento, há um potente alerta de esperança.

O quinto artigo, “Papéis de uma professora polivalente: miradas para as aulas de história (Colégio de Aplicação/UFRGS, 1978-1986)”, aborda um rico acervo repleto de cadernos de planejamento de uma professora do CA/UFRGS, conservado ao longo de anos, verdadeiras relíquias caminhos fecundos aos pesquisadores para a instauração de múltiplas investigações e abordagens. Algumas delas iniciadas por Dóris, que escolheu alguns exemplares para contar traços de uma professora que se deixa ser observada pelas cuidadosas aulas planejadas, pela escolha dos textos, dos temas, pela forma de conduzir sua classe, indícios que constituem um modo de ser professora. Além disso, seus cadernos carregam marcas do contexto em que viveu os anos marcados pela ditadura militar e todas as alterações produzidas na educação, observando também as mudanças ocasionadas na disciplina de História, que passou a ser incorporada nos Estudos Sociais.

Na mesma direção do artigo anterior, podemos observar os arquivos pessoais multifacetados, repletos de possibilidades do estabelecimento de aproximações, entre seus portadores, suas trajetórias, projeções de si, suas intimidades ou aquilo que eles permitiram a exposição. “’Deixo inteira liberdade...’ O arquivo pessoal do professor Balduino Andreolla” é a rica morada do sexto capítulo. Doados em sacolas, com uma organização que reflete seu modo de arquivar, preservam lembranças de “um tempo de experiência docente na UFRGS, organizados com delicadeza, como uma produção de si” (p. 111). Professor que também ocupou cargos de gestão como a direção da FACED entre os anos de 1988 e 1992, intelectual com trânsito internacional, sua trajetória carrega marcas do pensamento freiriano de seu compromisso com a educação popular, educação do campo, movimentos sociais, em especial o MST. De seu conjunto documental chama atenção a significativa quantidade de papéis sobre o professor Alceu Ferraro, documentos que “ contam” os desdobramentos do processo eleitoral para reitoria da UFRGS, em 1988, quando não pôde ocupar o cargo por impedimento do governo federal.

Outro ponto importante de análise são os bilhetes guardados

se tratarem de comunicações ágeis, correspondem a mensagens breves, reduzidas ao essencial, feitas no calor da hora, sem maiores preocupações com o esmero, tanto na forma como no conteúdo, em que se aproveita o suporte de escrita que estiver mais ao alcance das mãos (p. 121).

Por todas essas características são considerados verdadeiros achados da pesquisa poder conhecer essas escritas que foram produzidas sem tantas preocupações e que geralmente atendem às necessidades cotidianas. Por meio delas foram observadas gentilezas de Balduino.

Fechando com o sétimo e último artigo, “Para não esquecer: apontamentos de uma professora, mãe, mulher e filhas em agendas (1995-2014)”, encontramos 19 agendas (1995-2014) da professora aposentada da UFRGS e Unisinos, Beatriz Daudt Fischer, registros cuidadosamente guardados e que carregam anotações cotidianas, da esfera profissional e questões de ordem íntima, como consultas médicas e lembretes para si.

Neste capítulo, temos a minuciosa análise da materialidade desses objetos, o olhar da autora que percorre as agendas adquiridas pela professora que sempre eram da mesma marca ou do mesmo estilo. Aborda as mudanças que a empresa das agendas realizou na organização do suporte, das frases “motivacionais” ou reflexivas e em seus mecanismos para organização do tempo, Beatriz decorava algumas capas com adesivos de campanhas políticas, movimentos sociais, eventos que possibilitam espiar seus posicionamentos e saber por onde circulou.

Além de todo o investimento da autora em narrar e analisar o suporte das agendas, a análise central do texto nos conduz em observar a professora em seus aspectos íntimos, levandonos a conhecer mulheres em seus múltiplos espaços de tempo, como professora, mãe, mulher e filha. Para além de ser sua agenda profissional, com eventos, anotações, bancas, é também um espaço íntimo para anotar os cuidados médicos, o acompanhamento de sua mãe em exames, os afazeres com os filhos, a necessidade das arrumações na casa, a compra de objetos, ou seja, uma mulher em seus entrelugares.

REFERÊNCIAS

CERTEAU, M. (2005). A invenção do cotidiano. 11. ed. Petrópolis: Vozes. [ Links ]

ALMEIDA, D. B. (2021). Percursos de um Arq-Vivo: entre arquivos e experiências em História da Educação. Porto Alegre: Letra 1. [ Links ]

Recebido: 28 de Julho de 2021; Aceito: 03 de Novembro de 2021

Susane da Costa Waschinewski Possui graduação (licenciatura e bacharelado) em Geografia (2013) pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC), mestrado em Educação na mesma instituição. Especialização em Educação Profissional Integrada à Educação Básica na Modalidade EJA (PROEJA), em 2019 pelo Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC) e doutorado em Educação (2020) pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), na linha de Pesquisa: História e Historiografia da Educação. Membro do Grupo de Pesquisa Ensino de História, Memória e Culturas. Participa do Grupo de Estudos História, Cultura Escrita e Leitura (GEHCEL) vinculados ao Laboratório de Patrimônio Cultural (LapPac - UDESC)

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