Introdução
Este texto nasce de um convite para compor o painel intitulado “Inclusão escolar e as novas demandas pós-pandemia” no contexto de uma atividade que ocorre anualmente na Universidade do Vale do Taquari: a Semana da Inclusão da Univates4. Considerando a temática em questão e o diálogo que se enlaçou, ficou latente a sensação de que era preciso seguir pensando juntas, aprofundando o debate, movimentando o pensamento. Uma pedagoga, uma professora de educação especial e uma psicóloga, todas pesquisadoras da área do Ensino e da Educação há mais de vinte anos, se encontraram virtualmente para conversar sobre.
Proposto a partir desse convite, gostaríamos que este texto também fosse significado como uma prática para um pensar juntos sobre a intensificação das desigualdades e da vontade de norma tão visíveis no tempo presente, e que, por sua vez fortalecem a necessidade de produção de debates que tensionem as noções de infância, inclusão e diferença; defenda a escola pública, e reafirme a vida em comum.
Com a intenção de discutir práticas de inclusão e exclusão produzidas no contexto do ensino remoto, procurando problematizar os efeitos dessas nos processos de escolarização da infância que retorna à escola, organizamos a discussão aqui proposta em duas seções. Na primeira, discutimos os processos de inclusão e exclusão vivenciados pela infância no contexto da pandemia, colocando acento nos processos de classificação e normalização que objetificam a infância, desumanizando-a. Na seção seguinte, apostamos na potência da escola como espaço que assume a diferença como princípio e se efetiva como ambiente em que a escuta atenta e sensível promove inclusão e acolhimento.
Por fim, deixamos aos leitores e às leitoras algumas perguntas que são resultado do que propomos discutir neste escrito: que elas possam servir como disparadores e faíscas para seguirmos pensando nos tempos pandêmicos, pós-pandêmicos e porvires.
Inclusão, exclusão e infância: elementos para pensarmos a pandemia
De quantos abismos se faz a palavra distância? Ainda que ela tenha se estabelecido de modo íntimo e habitual em nossas vidas em meio à pandemia, será que sabemos das lonjuras que nela habitam? Quando seis brasileiros têm riqueza equivalente ao patrimônio dos 100 milhões mais pobres do país, que nome damos a essa distância? Quando homens escolhem corpos de mulheres para a violência doméstica, que nome damos a essa distância? Quando a opulação que ganha até dois salários mínimos é composta por 80% de pessoas negras, que nome damos a essa distância? Quando crianças com deficiência enfrentam mais dificuldades em permanecer na escola que as outras, que nome damos a essa distância? A distância, aqui, é a medida que protege a vida de poucos, muito poucos. Ela se interpõe verticalmente: permite que um pequeno grupo olhe de cima para milhares de pessoas e determine a hierarquia entre as vidas que importam e aquelas que são dispensáveis. Nesta oferta da escola para o momento ficam segregados todos aqueles e aquelas que não souberem ou não tiverem condições de responder a contento à proposta. É razoável? Quem são essas crianças e jovens que ficam para depois? Entre tantas - das periferias, das comunidades rurais, ribeirinhas, daquelas que vivem em ambientes de violência doméstica, das migrantes ou refugiadas -, estão também as crianças com deficiência. De novo. Aquelas para quem o plano de aula nunca é pensado. Aquelas para quem nem a matrícula na escola é garantida. Aquelas de quem nunca se presume competência. Aquelas cujo direito de estar em uma escola “comum” ainda é questionado. Aquelas cujas mães têm se desdobrado para adaptar materiais. Aquelas de quem se pensa que nada tem a oferecer. Aquelas que são vistas como falhas, doentes, obstáculos. Aquelas cuja presença na escola precisa ser permanentemente negociada. Aquelas que não são vistas, porque há sempre um laudo em primeiro lugar. (ROSA, 2020, s/p).
A epígrafe escolhida para iniciarmos esta seção, embora longa, apresenta elementos que nos parecem urgentes de serem discutidos quando pensamos nos efeitos da pandemia da COVID-19 na infância. Poderíamos aqui optar pela proposição de uma discussão ampla sobre a infância, mas elegemos como objeto de nossas problematizações a infância na escola cuja existência tem sido invisibilizada e precarizada, resultando em práticas que a desumanizam. A infância que, embora sob o foco dos discursos inclusivos contemporâneos, tem sido sujeitada a práticas de exclusão operadas via ações de medicalização com fins de normalização.
Ao apontar para as práticas de normalização, não podemos deixar de considerar esse que é um termo muito apregoado nos campos pelos quais somos atravessadas como pesquisadoras. Para a Pedagogia - e ali, a Educação Especial - e para a Psicologia, o conceito de normal (e de normalidade) historicamente se impôs como lógica de normatividade e de modos de avaliar, classificar e, consequentemente, posicionar sujeitos e verdades sobre suas relações. Se tomarmos da estatística o conceito de norma, da curva normal que se aplica como aquele ponto localizado na média de uma curva, no seu ápice, podemos compreender que tudo aquilo que não se encontra ali - naquele ponto tão raro e tão difícil de alcançar, por vezes vazio - é considerado desviante.
Assim, tal como nos ilustra Machado de Assis em seu belíssimo escrito O Alienista, a norma, ao fim e ao cabo, passa a ser exceção. Afinal, se alguém reunir em si todas as qualidades possíveis, toda a suposta “normalidade”, é esse que precisa ser tratado como incomum, desequilibrado. Ao final de sua obra literária mais conhecida, Machado de Assis decreta o encarceramento do alienista Simão Bacamarte na famosa Casa Verde, instituição na qual abrigou inúmeros concidadãos da Vila de Itaguaí considerados alienados: “Era decisivo. Simão Bacamarte curvou a cabeça, juntamente alegre e triste, e ainda mais alegre do que triste. Ato contínuo, recolheu-se à Casa Verde. Em vão a mulher e os amigos lhe disseram que ficasse, que estava perfeitamente são e equilibrado [...]” (ASSIS, 2010, p. 66). Pensando sobre essa instituição segregadora que Assis nos apresenta, poderíamos arriscar a atribuir à escola um espaço-tempo de normalização da infância em tempos de pós-pandemia?
Ao olhar para as práticas de normalização no campo específico da infância não podemos deixar de analisar a relação que se estabelece entre a produção da criança anormal, que entendemos como uma “história de separações, diferenciações, classificações, cortes incessantes, de exclusões por inclusões” (LOBO, 2019, p. 212) e a noção de risco social dentro de um contexto neoliberal em que o valor da vida é passível de questionamento. Um mínimo desvio na infância pode representar um grande risco para a inserção social desse sujeito em sua vida adulta. Em muitos casos, não é exatamente a infância que se ressente da anormalidade, mas o que está por vir justifica a necessidade cada vez mais precoce de intervenção. Se na Idade Clássica as crianças classificadas como anormais eram vistas como “monstruosidades a ser segregadas” (PAGNI, 2017, p. 260), a partir do século XIX passa-se a investir em sua correção ao invés da segregação, de acordo com o modo como se configuram as tecnologias positivas do poder (PAGNI, 2017), já que contemporaneamente a infância se constitui
[...] como um “filtro para analisar comportamentos” e, portanto, uma suposta origem de todas as doenças mentais, dos desvios e das anormalidades manifestas na juventude ou na idade adulta. São essas últimas tendências errantes da vida que devem ser tratadas e corrigidas desde a infância, quando diagnosticadas na educação familiar e, particularmente, pela escola, antes que qualquer tipo de monstruosidade manifeste-se na vida adulta e se rebele com sua emergência na deformação da população (PAGNI, 2017, p. 260).
Nos últimos 17 meses vivemos no Brasil os efeitos da pandemia da COVID-19, “efeitos que se materializam de múltiplas e diferentes maneiras em cada sujeito, a depender das suas singulares formas de vida” (MENEZES, 2021, 59), e que intensificam de forma significativa as dificuldades já vividas no país em decorrência dos ideais autoritários e antidemocráticos que sustentam as ações do atual governo, especialmente no que diz respeito à inclusão escolar (GALLO; CARVALHO, 2020). Pandemia e autoritarismo não possuem entre si uma relação direta e determinante. Um governo democrático não seria, apenas por ser democrático, capaz de evitar que uma pandemia acontecesse, e por sua vez, a pandemia não determina a construção de um governo autoritário. No entanto, entendemos que viver a experiência da pandemia em um país gestado por um governo autoritário e de extremo conservadorismo produz para muitos uma forma de vida intolerável, quase invivível.
Estamos diante de tempos difíceis, de insegurança social provocada pelos retrocessos produzidos com a aprovação de políticas que resultam na perda de direitos já garantidos. São tempos de precarização da ciência, da educação pública, da escola inclusiva, das condições de trabalho, do acesso ao sistema público de saúde (PAGNI, 2020; CARVALHO, 2020). Tempos de naturalização de discursos preconceituosos que apregoam o ódio e o desejo de aniquilamento da diferença, produzido por aqueles que assumem sem pudores ou vergonha seu racismo, homofobia, misoginia, machismo, sexismo, capacitismo. Tempos neoliberais, de intensificação da concorrência e do produtivismo que individualizam e fragilizam a vida em comum; de priorização do mercado em detrimento da vida; tempos de morte, de necropolítica (MBEMBE, 2018), tempos de intensificação das desigualdades e do desejo de norma.
Diante da vida nesses tempos, que anunciam a iminência do caos, inventamos um “novo normal”. Isolados nas nossas casas, tratamos de recuperar rotinas, retomar trabalho, reorganizar as práticas escolares. Assumimos o home office e o ensino remoto, ocupamo-nos via intensificação das demandas profissionais e pessoais e passamos a viver como se a vida estivesse, aos poucos, voltando à normalidade. Parece urgente nos perguntarmos, voltando para quem? “Não podemos correr o risco de que para recuperar a ‘normalidade’, qualquer normalidade, se aceite o inaceitável”. (BRUM, 2017, s/p).
Essa corrida desenfreada pelo retorno ao já vivido, à segurança que o que conhecemos nos oferece, por vezes nos impede de olhar para a singularidade que nos constitui.
A crise da escola será agravada se, com a experiência vivida no presente, as secretarias de educação, os(as) gestores(as) educacionais e professores(as) de todos os níveis de ensino, incluindo os(as) responsáveis pela formação de professores(as), não compreenderem que nossos hábitos educacionais e das formas de aprender foram abalados e atropelados pela pandemia. (LOPES, 2021, p. 33-34).
Como pensar sobre os efeitos do vivido na pandemia em nossas vidas? Apenas a partir da certeza de que tais efeitos são múltiplos, assim como são múltiplas as existências. Mães, mulheres, professoras, filhos em casa, filhos em situação de ensino remoto, filhos pequenos, filhos adolescentes. Pais atuando em trabalho doméstico, trabalho na linha de frente da saúde, enfrentando doenças, exaustão, fragilização emocional. Infância em casa; infância longe da infância; infância vítima do adoecimento dos adultos. Professores e famílias lidando com o ensino remoto, expostos intensamente às telas, e à insegurança em utilizá-las.
E as crianças e os adolescentes, como estão? Alguns excertos da vivência na clínica psicológica podem nos auxiliar na escuta a esses estudantes em meio à pandemia, após um ano de afastamento da escola. Interessante perceber que não são falas que acontecem em casa, na rotina de estudos que se instalou para muitas crianças e jovens que trocaram a sala de aula pela sala de estar, pelo quarto ou qualquer recôndito da casa em que pudessem realizar suas atividades; trata-se, mais precisamente, de uma narração que acontece nos espaços do atendimento psicológico a crianças e adolescentes em sofrimento, que não deixam de verbalizar a importância do lugar da escola em suas vidas e o estranhamento em ocupar aquele espaço sem o encontro, sem o toque, sem a presença intensa dos afetos, como nos conta uma adolescente de 17 anos: “Se é pra ficar sem se abraçar, eu nem vou à escola”; ou, uma menina de 10 anos: “Qual a graça de ir pra aula e não poder abraçar os colegas, lanchar na mesa, não poder cochichar no ouvido?”. Aspectos que parecem banais a quem não circula cotidianamente por aquele espaço e não convive com o “fazer escola” que pulsa apenas por meio dos encontros. A saudade de aprender naquele espaço é tão grande que escutamos frases como: “Eu quero ir pra aula!” (menina, 15 anos); ou então “Tô louca por uma prova” (menina, 9 anos). E que nos fazem lastimar quando afirmam: “Não aprendi nada esse ano” (menina, 13 anos), pois também buscamos mostrar que a pandemia e o afastamento social nos colocaram frente a frente com diferentes aspectos e dimensões do que seria o aprender (e o ensinar). Será que não aprenderam pois também não ensinamos? Será que não aprendemos porque não nos ensinaram a perceber possibilidades em meio a adversidades? E um dos relatos mais pungentes que a infância nos ensina acerca da escola: um lugar para ser lembrado, para ser contado como pessoa que existe e cuja existência é ali narrada: “Será que meus colegas vão se esquecer de mim?” (menina, 6 anos). Uma vez mais, a escola é motivo de narração, de necessidade, de espaço que conta e marca a existência.
Ao atentarmos para o que as narrativas selecionadas dizem sobre estar em casa em situação de ensino remoto, parece-nos importante nos perguntarmos também sobre o que irão contar as narrativas produzidas pelos alunos com relação à volta à escola ocorrida há pouco em todo país, sob diferentes calendários e protocolos. Que intencionalidades foram anunciadas pelas escolas para esse retorno? Que olhares foram produzidos sobre essa infância que retorna e que não é mais a mesma? O que priorizar? Para o que atentar? Como recomeçar e continuar? Retomar o percurso de onde se havia parado, ou começar de novo, reinventando formas de estar na escola que considerem essa saudade sentida e o isolamento vivido?
Entendemos que ao pontuar tais questões, estamos anunciando nossa inquietação diante da possibilidade de que o retorno resulte na intensificação das condições desiguais de acesso à escola que são anteriores à pandemia, afinal, como o relato apresentado na epígrafe que constitui este texto, é evidente perceber nosso impulso em continuar o percurso com aqueles que conseguem, e encontrar argumentos para nos perdoarmos diante da confirmação de que há crianças “deixadas para trás". Nessa esteira, naturalizamos exclusões e ao fazê-lo afirmamos que excluir é uma prática aceitável: “E assim, replicando esse modelo de escola que deixa crianças para trás, seguimos aprendendo que segregar é razoável. Que tipo de sociedade se ergue nessas bases?” (ROSA, 2020, s/p).
Como se os anúncios dos efeitos excludentes do que estamos assumindo como normalidade no momento já não fossem assustadores, temos nos perguntado sobre quantos novos alunos em processo de avaliação em função de suas não aprendizagens teremos nos serviços especializados? Quantos novos encaminhamentos aos consultórios, às salas de Atendimento Educacional Especializado (AEE), quantos novos processos em busca de laudos, diagnósticos e classificações para justificar uma deficiência que não é do aluno, mas da sociedade, nós veremos acontecer? Quanta busca pela identificação da anormalidade? Quanto desejo de normalização?
Dito de outra forma, o que aqui ressaltamos é a possibilidade de que, diante do retorno das crianças à escola, ao não conseguirmos atentar para o contexto social vivido nesses últimos dois anos letivos, que serão determinantes nos comportamentos e formas de se relacionar com a aprendizagem apresentadas pelos alunos, operemos a intensificação do processo de medicalização da vida, em especial da infância, que desde há muito tem sido foco das práticas de correção via encaminhamentos clínicos feitos pela escola. Como afirmam Hattge et al.:
[...] as dificuldades de aprendizagem, de socialização, os comportamentos indisciplinados, entre outros tantos “sinais de desvios”, têm sido largamente vistos como patologias que justificam encaminhamentos precoces das crianças ao campo da medicina em busca de diagnósticos que expliquem tais modos de ser e estar na escola. A produção de um diagnóstico colocaria essas crianças na condição de alunos para quem uma série de prescrições - produzidas a partir do estabelecimento de uma rede de relações entre saberes clínicos (via terapias e medicamentos) e saberes pedagógicos e educacionais - são visualizadas como capazes de controlar, reabilitar e, quando não for possível normalizar, aproximar os alunos de gradientes aceitáveis de normalidade. (HATTGE et al., 2020, p. 15).
Parece questionável pensarmos que seja possível ignorar o fato de que as crianças que retornam à escola estiveram por mais de um ano letivo ausentes dela, ainda que, em situações privilegiadas, o contato tenha sido mantido via ensino remoto. No entanto, como anunciamos acima, a prática de responsabilizar individualmente as crianças por problemas que são coletivos, tem sido recorrentemente invocada no meio educacional e familiar quando as singularidades que se apresentam, por mostrarem-se desconhecidas, impedem uma ação imediata para seu controle e correção.
Sujeitadas a esse processo de individualização que as responsabiliza e justifica a busca por diagnósticos e classificações, vimos as crianças sendo produzidas como alvo de práticas que as objetificam, e assim a criança passa a ser o aluno; e o aluno passar a ser o doente; deficiente; “diferente”; o aluno da inclusão; da educação especial; do AEE. Nesse processo, ao nos relacionarmos com a vida humana desconsiderando seu caráter dinâmico, relacional, mutável e imprevisível, transformamos-na em objeto concreto, passível de controle, desumanizando-a. Quando, por exemplo, ao invés de nos referirmos a uma criança pelo nome, dizemos que se trata “do autista”, ou “do cadeirante”, “do surdo”, vemos claramente esse processo de desumanização. Prática comum não só nas escolas, mas nos demais espaços frequentados por essas crianças, ela denota a redução do sujeito ao seu diagnóstico.
Temos vivido “esses tempos” de forma significativamente afetadas com relação aos impactos da pandemia nas práticas escolares, nos processos inclusivos e na intensificação das condições desiguais de existência historicamente produzidas socialmente, que possibilitam a alguns a manutenção de seus privilégios, em detrimento da intensificação das condições de vulnerabilidade de outros. Como docentes que atuam no campo educacional e que assumem a escola como espaço de desenvolvimento e formação humana, propomos este texto, a partir do qual procuramos discutir sobre o que pode a escola e o que podemos juntos propor a partir dela na construção de uma sociedade menos desigual, mais plural e inclusiva.
Ao indicarmos a potência do olhar inclusivo lançado sobre as relações, entendemos importante ressaltar que falamos de inclusão compreendendo-a não como uma ação específica destinada a alguns sujeitos, aqueles que por suas condições de existência acabam recebendo marcas, nomes, classificações e/ou diagnósticos, mas inclusão como princípio de vida que nos faz atentos à alteridade, à singularidade, às infinitas possibilidades existentes para nos colocarmos diante da vida. Inclusão como escuta ao outro, um outro que não é alvo de nosso desejo de captura e normalização.
Inclusão, escuta, atenção à diferença: por uma escola que se reinvente no pós-pandemia
Inclusão, escuta, atenção à diferença, sensibilidade e abertura para aquele que vem, para a infância que retorna à escola. Tais elementos nos fazem lembrar de uma história infantil muito inspiradora escrita em 1968 e que foi retomada no ano passado, em meio à pandemia5. Trata-se de O tigre que veio para o chá da tarde (The tiger who came to tea), da escritora alemã Judith Kerr (2021), que narra a história de um tigre que apareceu, em uma tarde, para participar do lanche organizado por uma menina, Sofia, e sua mãe. Ambas acharam bastante confusa e atípica a presença do animal batendo em sua porta, mas não hesitaram em convidá-lo a entrar: “- Com licença, mas estou com muita fome. Posso tomar chá com vocês? A mamãe de Sofia disse: - É claro, pode entrar” (KERR, 2021, p. 04). Mãe e filha ofereceram o que tinham: o tigre foi se sentar à mesa, foi recebido muito bem na casa, elas deixaram ele se acomodar; e tão bem acolhido foi que buscou todos os alimentos possíveis da casa, acabando, inclusive, com a água das torneiras: não restara nem uma gota e nem uma migalha para o pai. Que não se importou e foi em busca de uma alternativa para alimentar a família. Inclusive, foi ele que as alertou para que comprassem “comida de tigre” para a próxima possível visita do animal. Contudo, ele nunca mais voltou. Talvez, venham outras visitas e elas não estejam preparadas especificamente para tal: mas não estariam elas preparadas para receber aqueles que vêm? A família mostrou que soube receber, acolher e deixar à vontade o tigre - como nós estaríamos preparados para isso, nesse momento em que vivemos uma escola que já não parece mais aberta para acolher, para oferecer uma escuta atenta e aberta?
Lembramos de uma citação de Jorge Larrosa, no livro Pedagogia Profana, a qual articulamos às ideias aqui apresentadas. Para o professor e pesquisador espanhol, a educação deveria ser entendida como um convite a ser aceito com responsabilidade:
A educação é o modo como as pessoas, as instituições e as sociedades respondem à chegada daqueles que nascem. A educação é a forma com que o mundo recebe os que nascem, responder é abrir-se à interpelação de uma chamada e aceitar uma responsabilidade. Receber é criar um lugar: abrir um espaço em que aquele que vem possa habitar; pôr-se à disposição daquele que vem, sem pretender reduzi-lo à lógica que impera em nossa casa (LARROSA, 2017, p. 234-235, grifos do autor).
Nos parece que, em meio a um denominado “novo normal”, algumas coisas efetivamente se modificaram; mas o que não pode ser atingido nesse novo modus operandi é a nossa capacidade de “receber aquele que vem”, o nosso modo de lidar com as pessoas, apostando em enxergar o sujeito nos estudantes que chegam até nós, reconhecendo suas - e nossas! - fragilidades. Estaremos, assim, abertos para o encontro, esperando:
[...] quem não espera, fecha definitivamente as portas para o encontro, pois este só é possível quando se espera, quando existe uma abertura interior para o encontro. Só vê acontecer o que espera, aquele que continua esperando, não obstante todas as dificuldades que possa encontrar no caminho da procura e da espera (ROCHA, 2007, p. 259).
A possibilidade de efetivação da ideia de escola inclusiva pressupõe o desejo de vida na diferença. Precisamos querer estar com o outro. Precisamos desejar aprender pela escuta e convivência com esse outro. Precisamos questionar padrões e normas. Em outras palavras, precisamos "estar de acordo quanto a um mundo social e econômico no qual é radicalmente inaceitável que alguns tenham acesso" (BUTLER, 2020) à escola "enquanto a outros é negado esse acesso com base no fato de não terem condições" de nela se comportar, se relacionar e aprender.
Quem define esses critérios? Quem define que comportamentos são aceitos, que relações são possíveis, quais aprendizagens são aprendizagens? Que alunos merecem continuar estudando enquanto outros permanecem impedidos de seu direito à escolarização ainda que regularmente matriculados na escola?
Essa educação que segue adiante a qualquer custo, de maneira inflexível, uniforme, padronizada; que faz do conteúdo o foco de uma ação alienada às realidades; que sobrecarrega professores; que assume por ideal de aluno o ideal de sujeito produtivo; essa é a educação de sempre, agora no modo virtual. (ROSA, 2020, s/n).
Podemos chamar de escola um espaço que defende o uno e assume a diferença como elemento que impossibilita a vida com o outro? O que entendemos por escola? Propor ensino remoto sem condições de igualdade no acesso e efetivar práticas escolares que desconsiderem as singularidades dos alunos não são formas de garantir legalmente a exclusão? Ao fazê-lo não anunciamos uma forma de vida em que não se quer estar com o outro, não se deseja a inclusão e não se suporta a diferença?
Diante da sensação de que estar “nesse mundo” não é mais tolerável, assumimos a necessidade de nos colocarmos atuantes em um processo de reconstrução da sociedade, em busca de igualdade social. É nosso compromisso político assumir como demanda central do pós pandemia a luta por uma forma de vida inclusiva, o que pressupõe estabelecer relações cotidianas que nos convoquem todos os dias a uma escuta de si, a um autoexame em busca da identificação e desconstrução do desejo de padronização e normalização da vida (nossa e do outro), estabelecendo então, uma relação com o outro centrada na ética de atenção ao singular da existência. Defender singularidades e potencializar a multiplicidade em detrimento do uno, da norma, nos faz acreditar na potência da escola como espaço de encontros múltiplos. Escola centrada na multiplicidade, porque cheia de vidas que pulsam; portanto, lugar de inéditos, do imprevisível e de descobertas que expandem a existência e que pressupõe disponibilidade para a escuta do outro e um permanente desejo de ser surpreendido pelo que pode os encontros.
“É pela escuta que vem o novo” (BRUM, 2017, p. 35). Em tempos de selfies e de um acento nas narrativas de si, abrir espaço para escutar o outro pode ser um grande desafio: “Escutar é entender tanto o que é dito como o que não é dito. Escutar é compreender que o silêncio também fala - ou compreender que as pessoas continuam dizendo quando param de falar” (BRUM, 2017, p. 35).
Arantes (2012) nos lembra que
[...] escutar já foi pensado, nas antigas práticas gregas do cuidado de si (epiméleia heautoú), como o primeiro estágio da ascese (áskesis), que é o que permite ao sujeito adquirir e dizer o discurso verdadeiro.[...] Assim como é necessário uma arte (tékhne) para falar, é necessário uma experiência e uma habilidade (empeiría e tribé) para escutar. (ARANTES, 2012, p. 93-94).
No caso específico da infância que retorna à escola, escutar nos fala sobre prestar atenção às sutilezas: o que é dito e não dito, as brincadeiras, os jogos, o choro, o riso, o olhar ao longe na classe à espera da próxima tarefa, o que faz vibrar e acende o brilho no olho, os medos, as dúvidas, as lembranças e esquecimentos. “Escutar é uma alegria, é se deixar afetar pelos ruídos e barulhos do mundo” (ARANTES, 2012, p. 93); ao abrir espaço para escutar, ampliamos a possibilidade da manifestação da diferença. E ampliamos também a possibilidade de compreender essa manifestação, de olhar para além de marcas que tentam definir, categorizar e servem como parâmetro para normalizar. Escutar, ao final, teria que ver com abertura e apreciação da complexidade humana, “[...] não só aquilo que esperamos, que nos tranquiliza ou coincide com nossos sentidos, mas também o que diverge de nossas interpretações [...]” (BAJOUR, 2021, p. 24).
Abrindo espaço para a escuta de si e do outro
Ao olharmos para a infância que vive a escola diante do mundo assolado pela COVID-19, ocupamo-nos em problematizar práticas de inclusão e exclusão já produzidas em um contexto pré pandemia e que, sob nossa concepção, podem e estão sendo intensificadas no momento vivido, momento esse que não pode ser localizado como pós-pandêmico, mas que já inicia o processo de retomada das práticas escolares presenciais em todo país. Questões relativas à preocupação sobre quais as intencionalidades das propostas escolares e educacionais para esse retorno; quais aspectos têm sido priorizados na retomada e que ações são mobilizadas para a garantia de que todos possam ter suas singularidades consideradas nas propostas pedagógicas que passam a ser operacionalizadas têm permeado nossas atuações como pesquisadoras das áreas do ensino e da educação, e resultaram na discussão ora desenvolvida.
Diante das limitações do ensino remoto, que inviabiliza os encontros físicos, os abraços e o brincar que nos faz aprender juntos, vimos uma forma de significar a escola centrada na reprodução de conteúdos; na ausência de diálogo - e portanto de escuta -, se fortalecer. Os efeitos do que foi vivenciado pela infância nesse período de mais de um ano letivo afastada da escola anunciam-se significativamente preocupantes, ao mesmo tempo que singulares para cada uma das crianças que retornam.
Na possibilidade iminente de silenciamento de tais singularidades, assumimos como compromisso político denunciar os efeitos excludentes que veremos serem efetivados se as possíveis dificuldades apresentadas pelas crianças para estarem novamente na escola, de maneira adequada aos padrões normativos instituídos, forem lidas de forma não contextualizada, a partir de discursos de responsabilização individual dos alunos. Tais discursos tendem a resultar na busca por encaminhamentos especializados capazes de produzir classificações e diagnósticos que justifiquem o adoecimento do aluno e sua decorrente sujeição à medicalização.
Na contramão dessas formas de olhar a infância, a escola e a diferença, propomos a defesa de uma escola outra, que resiste ao imperativo da norma e atenta para a singularidade que constitui cada vida que a habita. Uma escola que aposta na diferença; no caráter imprevisível da vida; na escuta e na multiplicidade dos encontros. Com essa aposta, e por meio da escuta (de si) convidamos, ao final, para que sigam conosco a partir de algumas perguntas: O que você fez pra incluir hoje? Como você recebeu o tigre que veio para o chá da tarde? Como você acolheu e olhou para aquele que chegou? Como você preparou o espaço para alguém o habitar? Como você segue esperando? Há aposta na escola como um espaço de abertura, acolhimento, escuta e sensibilidade?