Introdução
O acirramento da luta de classes, como decorrência da crise estrutural do capital, produz momentos em que o discurso da burguesia torna-se crítico do aparente e defenda reformas, assumindo ares de radicalidade. A necessária e constante busca de maximizar e recompor taxas de extração de mais valor implica sempre a necessidade de revolucionar os processos de produção e de organização do trabalho, que por sua vez implica a constante busca de inovação e desenvolvimento de novas tecnologias e técnicas. Ao capital não resta alternativa: renovar ou morrer. Estabelecido novos patamares de extração de valor, o discurso assume ares de conservadorismo, até que novo processo de crise produza nova onda reformista.
O movimento de transformar demandas necessárias ao capital, como a produção de determinado tipo de conhecimento e de determinada formação e qualificação profissional em demandas de toda a sociedade, desencadeia processos que se materializam na produção de novos discursos, na disseminação de novas ideias, na mobilização de intelectuais orgânicos, na ação reformista institucional dos marcos regulatórios e na reestruturação dos espaços produtores de conhecimento. Em síntese, na mobilização intensa de forças sociais e políticas em busca da construção de uma nova hegemonia.
No início da ditadura civil-militar e de um governo que tinha como um de seus objetivos o fortalecimento do processo industrial brasileiro, a pesquisa passou a ocupar lugar central, especialmente as relacionadas à ciência, tecnologia e segurança nacional. Como parte desse processo, o discurso produzido pelas elites orgânicas do capital, no final da década de 1960, produziu um desses momentos de radicalidade ao direcionarem suas críticas ao sistema de educação superior. A base da crítica estava assentada na tese de que a indústria pouco ou quase nada se beneficiava do conhecimento produzido pela universidade brasileira. Exemplo de construção do discurso da radicalidade em relação à educação superior é a organização, em 1968, pelo Instituo de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES)1 e pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, do Simpósio A educação que nos convém, que reuniu intelectuais diversos, militares, ministros de Estado e empresários. Qual o objetivo maior do Simpósio? O nome do evento não deixa dúvidas2.
Roberto Campos, ao proferir a conferência Educação e Desenvolvimento Econômico, defendeu a necessidade de mudanças no sistema de educação superior, enfatizando a necessidade da formação de capital humano pelo sistema escolar. Sua crítica à universidade deriva da tese de que essa é a “favor da cultura, e (realiza) uma subestimação tola, da praticabilidade ou das ‘práxis’ cognitiva.” Para ele, o sistema de educação superior manifesta “entusiasmo quase passional na exposição geral das coisas, pela avaliação dos objetivos e certo desprezo implícito, inconfessado, pela busca humilde de soluções concretas.” (CAMPOS, 1969, p. 74)
A Conferência Vinculação da Universidade e da Empresa, proferida por Theophilo de Azeredo Santos, expressou o modelo de universidade defendido pelos empresários no Simpósio. Em sua apresentação, questionou e apontou problemas nos métodos de ensino utilizados na educação superior, no currículo e no calendário escolar. Afirmou que as universidades brasileiras “estão despreparadas para a formação profissional que satisfaça aos avanços tecnológicos, às conquistas da ciência e também aos reclamos da arte moderna.” (SANTOS, 1969, p. 151) Defende que as relações entre universidade e empresas no Brasil deveriam necessariamente começar por um trabalho de esclarecimento acerca dos benefícios trazidos pela iniciativa privada para o desenvolvimento econômico do país. Em seu pronunciamento, que antecipa a reforma do Estado brasileiro da década de 1990, defende a desregulamentação da produção, a criação de agências de regulamentação, o recuo do Estado de espaços que deveriam ser da livre empresa, a disseminação de uma cultura em defesa do empresariado, da empresa e do empreendedorismo.
As demandas de representantes do capital por mudanças na universidade e a repressão ao movimento sindical foram parte do processo político a sustentar a ampliação da presença de capital externo no país, no contexto da luta de classes e da ditadura civil-militar. Uma das respostas do governo se deu por meio de uma política de expansão da pós-graduação, com a criação de linhas de financiamento e a formação de novos quadros para a universidade.
Este artigo, estruturado em três partes, discute aspectos desse processo. A primeira caracteriza brevemente as mudanças ocorridas na pós-graduação brasileira, em razão dos planos nacionais elaborados a partir da década de 1970. A segunda parte apresenta dados das políticas de financiamento de pesquisa e concessão e bolsas via fundo público, procurando estabelecer tendências que mostrem inflexões nessas políticas. Por fim, a terceira parte problematiza a mais recente política pública para a pós-graduação, expressa no V Plano para o período 2011 a 2020.
Pesquisa, inovação e pós-graduação3
A implementação de uma política para a pós-graduação percorreu longo prazo, diferentes contextos políticos e demandou a elaboração de diversos planos, bem como a edificação de um marco regulatório específico.
As demandas iniciais definidas nos primeiros planos, na década de 1970, visavam dar conta de problemas sistêmicos da pós-graduação como a formação de quadros docentes, o aumento de produtividade e desempenho e a racionalização dos recursos. A demanda por uma maior articulação entre o processo de produção do conhecimento e o setor produtivo já é explicita.
No contexto da década de 1980, de crise econômica e saturação do processo político gerado pela ditadura, o III Plano Nacional de Pós-Graduação enaltecia o sucesso dos primeiros planos em termos de formação de quadros e a consolidação da pós graduação. Trazia a proposta de integração da pós-graduação com o Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia e o Plano de Metas para a Formação de Recursos Humanos e Desenvolvimento Científico para o período 1987/1989. O acirramento da crise econômica criou enormes dificuldades para a consecução do Plano.
O IV Plano Nacional de Pós-Graduação, 2005-2010, apresentou como elemento novo o investimento do Estado na consolidação dos mestrados profissionalizantes, enfatizando a formação de quadros e as políticas de inovação.
Importante ressaltar que a trajetória desses planos, marcada pela construção e adensamento jurídico, na forma de leis e de meios a impulsionar a produção de pesquisas aplicadas visando tornar orgânica a relação universidade-indústria-governo, foi política desenvolvida por todos os últimos governos, sem exceção.
No governo de Fernando Henrique Cardoso a Lei 10.973/04 regulamentou a relação entre capital privado e Estado; a Lei 9.279/96 definiu as bases da Propriedade Industrial; a Lei 9.609/98 definiu as regras do Programa de Computador, e a Lei 9.610/98 estabeleceu as normas para o Direito Autoral.
O governo Lula deu sequência a esse processo normativo, com destaque para a Lei de Inovação Tecnológica (Lei 10.973/04) e a Lei do Bem (Lei 11.196/05). A LIT é a síntese desse processo e estabeleceu uma lógica de subvenção econômica à inovação, com impacto significativo nos fundos setoriais, fundamentando juridicamente a produção do conhecimento matéria-prima.
Segundo Silva Júnior (2017, p. 147), o conhecimento matéria-prima, voltado para a economia e para o mercado, é uma parte dos resultados da ciência em seu novo paradigma. Trata-se de conhecimento pronto para ser transformado em produtos de alta tecnologia e em novos processos de produção e serviços; está relacionado à possibilidade de lucros imediatos, no âmbito econômico, na forma mediada pelo trabalho, mas fortemente voltado para a rentabilidade do capital financeiro. Por outro lado, o raw material knowledge traz em si uma nova episteme, em cujo centro encontra-se a racionalidade econômica, refinada dimensão da mercantilização em geral e da educação superior em particular. Em acréscimo, posto que o objeto de investigação não faz parte da escolha do pesquisador, ele trabalha para complementar seu salário e assemelha seu trabalho imaterial e superqualificado ao de todo trabalhador. Nesse movimento, a natureza do próprio trabalho do professor-pesquisador sofre uma estrutural mudança. Ele dedica parte de sua vida a fazer o que outros lhe impõem, sofrendo um processo de estranhamento de seu objeto, de seu trabalho, de sua instituição e de si mesmo. Sofre, ao negar-se a si mesmo durante seu trabalho.
A consequência desse processo é a aproximação maior entre setor produtivo e universidades, aprofundada com a Portaria Normativa nº 7, de 22 de junho de 2009, que define as regras para o mestrado profissional. Por último, temos o V Plano Nacional de Pós-Graduação, lançado em 2010, que estabelece a política de pós-graduação para o período 2011-2020.
Os elementos acima descritos precisam ser analisados como parte de um processo em transição. Para um melhor entendimento do novo processo de gerenciamento do fundo público, possível em razão da reforma do Estado e do ordenamento jurídico acima brevemente apresentado, vale observar as tendências de financiamento à formação de pesquisadores e ao fomento à pesquisa em períodos específicos.
Os caminhos do financiamento da pesquisa no Brasil
Breve análise do investimento realizado pelo CNPq, nos anos de 2002 e 2014, nas referências de Total de Financiamento e Número de Projetos permite notar tendências de que a política de financiamento, ao induzir pesquisas cujos resultados sejam comercializáveis, busca privilegiar áreas do conhecimento aplicadas ao processo de produção, gerando valor e produzindo materialidade na produção de riqueza para a reprodução ampliada do capital nacional ou internacional.
Os dados da Tabela 1 mostram que as Ciências da Terra e as Ciências da Natureza são privilegiadas em relação às demais. Igualmente, é possível observar que, no período 2000-2008, o investimento em pesquisa aumentou percentualmente de forma igual em todas as áreas. Contudo, se se comparar o investido na área de Humanidades com o investido nas duas áreas prioritárias, notar-se-á que, em 2008, a primeira obteve recursos que correspondem a aproximadamente 27,5% da soma do financiamento das áreas Ciências da Terra e Ciências da Natureza. Deliberadamente, a política de financiamento busca determinar a pauta de pesquisa das universidades em vez de respeitar sua autonomia. Essa ação de governo orienta-se pela política econômica e pelo novo sentido do processo de industrialização e da emergência de novos ramos industriais antes inexistentes.
Área de conhecimento | Total em Financiamento (R$) | Número de Projetos | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
2002 | 2014 | Δ% 2002-2014 | 2002 | 2014 | Δ% 2002-2014 | |
Engenharias | 76.559 | 125.053 | 63,3 | 680 | 2.187 | 221,6 |
Ciências Biológicas | 36.371 | 115.944 | 218,8 | 420 | 1.953 | 365,0 |
Ciências da Saúde | 17.686 | 105.391 | 495,9 | 234 | 1.482 | 533,3 |
Ciências Exatas e da Terra | 28.346 | 103.227 | 264,1 | 488 | 1.803 | 269,5 |
Ciências Agrárias | 41.419 | 86.160 | 108,0 | 325 | 1.611 | 395,7 |
Ciências Humanas | 23.700 | 51.214 | 116,1 | 335 | 1.239 | 269,9 |
Ciências Sociais Aplicadas | 11.590 | 22.270 | 92,1 | 134 | 952 | 610,4 |
Outra / Multidisciplinar | 7.782 | 20.906 | 168,6 | 30 | 175 | 483,3 |
Linguística, Letras e Artes | 4.334 | 2.718 | -37,3 | 61 | 200 | 227,9 |
Total | 247.791 | 632.888 | 155,4 | 2.707 | 11.602 | 328,6 |
Fonte: CNPq (2014c). (Ver: FERREIRA et. all, 2015, p. 109)
Segundo Paulani (2008, p. 131-132), o Brasil entrou no “bonde da história por outra porta e transformou-se em plataforma de valorização financeira internacional.” Porém, se no início desse período, em meados da década de 1990, o fez com esse papel e com a “função de produzir bens de baixo valor agregado”, a década de 2010, a julgar pelas mudanças estruturais da universidade estatal, geradas pela produção de determinada pesquisa, mostra um eventual ponto de inflexão. Essa inflexão parece indicar a continuidade política da institucionalização realizada por Fernando Henrique Cardoso por meio do que chamamos, em outro texto, de “Brasil em reforma”. Parece, porém, que essa diferença entre FHC e Lula da Silva é de natureza aparente, posto que acentua de forma estrutural a tese de Paulani no que se refere ao país e a sua atual condição de plataforma de valorização do capital financeiro mundializado e em relação ao novo sentido do processo de industrialização brasileiro.
Outros dados ajudam a mostrar o processo de mudança na produção do conhecimento via financiamento público. Os dados da Tabela 2, referente ao número de bolsas no país, mostra o movimento de longo prazo que ajuda a entender como o processo de concessão de bolsas no país, em ordem de grandeza de seu número, refletem aspectos centrais da política de fomento à inovação e tecnologia.
Ano | Iniciação à Pesquisa | Formação e Qualificação (país + exterior) | Estímulo à Pesquisa | Desenvolvimento Tecnológico Empresarial | Outras (1) | Total |
---|---|---|---|---|---|---|
1963 | 140 | 125 | 128 | 393 | ||
1964 | 157 | 113 | 94 | 364 | ||
1965 | 251 | 142 | 120 | 513 | ||
1966 | 357 | 194 | 157 | 708 | ||
1967 | 426 | 254 | 168 | 848 | ||
1968 | 399 | 363 | 321 | 1.083 | ||
1969 | 373 | 604 | 370 | 1.347 | ||
1970 | 378 | 798 | 575 | 1.751 | ||
1971 | 427 | 1.066 | 765 | 2.258 | ||
1972 | 522 | 1.141 | 757 | 2.420 | ||
1973 | 610 | 1.379 | 1.038 | 3.027 | ||
1974 | 600 | 1.488 | 714 | 2.802 | ||
1975 | 562 | 1.776 | 592 | 2.930 | ||
1976 | 845 | 2.770 | 962 | 4.577 | ||
1977 | 878 | 3.194 | 1.195 | 5.267 | ||
1978 | 837 | 3.703 | 1.364 | 5.904 | ||
1979 | 877 | 4.054 | 1.452 | 6.383 | ||
1980 | 1.079 | 4.250 | 1.878 | 7.207 | ||
1981 | 1.052 | 4.522 | 2.106 | 7.680 | ||
1982 | 1.274 | 5.455 | 2.628 | 9.357 | ||
1983 | 1.175 | 5.933 | 2.970 | 10.078 | ||
1984 | 1.321 | 6.287 | 2.996 | 10.604 | ||
1985 | 1.600 | 6.494 | 4.827 | 12.921 | ||
1986 | 1.510 | 6.877 | 5.241 | 13.628 | ||
1987 | 3.921 | 8.975 | 5.933 | 18.829 | ||
1988 | 5.893 | 10.904 | 7.031 | 23.828 | ||
1989 | 6.349 | 12.340 | 6.739 | 29 | 25.457 | |
1990 | 7.548 | 14.954 | 6.070 | 124 | 28.696 | |
1991 | 9.117 | 16.633 | 6.498 | 793 | 33.041 | |
1992 | 11.440 | 16.703 | 7.271 | 2.420 | 37.834 | |
1993 | 13.212 | 17.051 | 7.852 | 2.840 | 40.955 | |
1994 | 15.131 | 18.048 | 8.335 | 2.906 | 44.420 | |
1995 | 18.790 | 20.543 | 9.275 | 3.433 | 52.041 | |
1996 | 18.762 | 17.929 | 9.758 | 4.486 | 34 | 50.969 |
1997 | 18.856 | 15.857 | 9.761 | 4.443 | 404 | 49.321 |
1998 | 17.533 | 13.589 | 9.577 | 4.133 | 452 | 45.284 |
1999 | 17.120 | 12.027 | 9.310 | 3.157 | 355 | 41.969 |
2000 | 18.483 | 11.937 | 9.647 | 2.976 | 522 | 43.564 |
2001 | 18.778 | 12.541 | 10.244 | 3.054 | 801 | 45.418 |
2002 | 18.864 | 12.248 | 10.691 | 3.533 | 863 | 46.198 |
2003 | 18.615 | 12.457 | 10.693 | 4.126 | 843 | 46.733 |
2004 | 21.132 | 13.826 | 11.532 | 4.222 | 566 | 51.278 |
2005 | 21.184 | 15.076 | 11.613 | 4.565 | 587 | 53.025 |
2006 | 21.491 | 16.460 | 11.426 | 6.741 | 592 | 56.710 |
2007 | 24.315 | 17.342 | 12.284 | 6.271 | 640 | 60.851 |
2008 | 26.298 | 18.450 | 12.467 | 5.684 | 628 | 63.527 |
Fonte: CNPq/AEI.
Vários são os elementos que podem ser extraídos da Tabela 2. Podemos constatar, de modo geral, que a elevação da capacidade de pesquisa nas universidades brasileiras encontra-se na pauta política dos governantes brasileiros, independentemente do governo que se encontra no poder. Contudo, 1985 mostra que temos um corte nesse primeiro momento e o processo começa a ganhar força em razão das transformações do capitalismo mundial e de suas repercussões no Brasil. Pode-se dizer que o segundo momento continua no final do primeiro mandato de Dilma Rousseff.
Especificamente, os dados mostram mudanças na iniciação científica em períodos diferentes, mas seguindo a linha de continuidade da política de indução à pesquisa. A iniciação científica tem seu número de bolsas constantemente elevado desde o início da década de 1960 até 1980, quando esse processo se acelera até 1992 (início do ajuste neoliberal), para na sequência atingir patamares de crescimento significativos até o ano de 2008, quando atinge algo próximo de 26.000 bolsas. Hoje, certamente, esse número é maior e já surgiram as modalidades de iniciação científica tecnológica e a modalidade de iniciação científica para ações afirmativas, bastante adequadas ao paradigma de políticas públicas que surge com a reforma do Estado.
O número de bolsas para formação e qualificação tem seu primeiro salto considerável no mesmo período (1980), com seu ponto máximo em 1985, ano da primeira Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia. Eventualmente, nesse momento, o déficit produtivo do país pode ter produzido a pauta política ainda que em quadro mundial de indefinição. O segundo salto ocorre em 1992, já sob a influência das mudanças propostas pelo Washington Consensus. A racionalidade histórica, entretanto, parecia clara para o que viria. O primeiro salto coincide com o milagre econômico; em seguida, apresenta ritmo crescente até a 2ª Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia, realizada em 2001. Nos anais do evento, a consolidação de uma política de inovação tecnológica é apresentada como caminho necessário para a maior competitividade da economia do país:
[…] após as transformações de final do século passado [XX], quando a busca por maior competitividade nos intercâmbios comerciais já se deparava com um mundo globalizado, em que o tempo entre a descoberta científico-tecnológica e suas utilizações em novos produtos, processos e serviços era cada vez menor. Como consequência deste novo cenário, no escopo da Conferência, optou-se por enfatizar a inovação tecnológica [Conhecimento Matéria Prima]como instrumento de competitividade, passando a denominar-se Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação. Seu principal resultado foi criar mecanismos e apontar caminhos para a inovação tecnológica e a consolidação da base científico-tecnológica do país. (CGEE, 2004, p. 207)
Ficou também o registro de que os fundos setoriais objetivavam fortalecer o financiamento do sistema de ciência, tecnologia e inovação. Para tanto, “instituiu-se o Centro de Estudos Estratégicos (CGEE), destinado a prover o sistema de mecanismos de prospecção, acompanhamento e avaliação em C,T,&I.” (CGEE, 2004, p. 210) Na continuidade do documento, lê-se sobre a socialização das medidas tomadas, o que permite indicar a construção de um consenso que viria a concretizar-se na 4ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, ocorrida em maio de 2010, em Brasília: “As recomendações e definições de estratégias para essas três instâncias, em âmbito nacional, discutidas durante o evento, foram sintetizadas em um ‘Livro Branco’, apresentado pelo então ministro da Ciência e Tecnologia, Ronaldo Sardenberg, 2001, publicação amplamente divulgada.” (id.ib.)
Desde então, o número de bolsas cresceu, chegando a aproximadamente 12.000 em 2008, quando se resumia a 6.000 em 1990. Atualmente, temos ampliação considerável das bolsas de produtividade de pesquisa, em razão do aumento do número de pleiteantes com as condições estabelecidas pelo CNPq.
É relevante observar a criação em 1989 da bolsa na modalidade “Desenvolvimento Tecnológico Empresarial”, o que já indicava a preocupação com a estratégia de aproximação entre a universidade e o setor produtivo nacional e internacional, então no caminho da produção da referida “plataforma” no século XXI. Contudo, tão relevante quanto essa inferência é o comportamento da curva das bolsas dessa modalidade: cresce de 29, nesse ano, para próximo de 6.000 em 2008.
A análise dos dados apresentados oferece elementos que agora ganham sentido sobre como mudariam as instituições republicanas a partir da década de 1990, com FHC, que teve continuidade com Lula da Silva. Assim, de forma consciente e intencional, e em novo momento histórico, o governo Lula acentuou as práticas políticas com a mesma matriz de seu antecessor, a reforma do aparelho do Estado, ação estruturante para o processo que se prolonga até a atualidade.
Como se pode notar, a política de financiamento da pesquisa mostra como as ações políticas têm colocado o fundo público com o objetivo de aumentar a produtividade brasileira e, com isso, o capital produtivo nacional para lastrear o capital financeiro mundial. Tal caminho parece se dar, predominantemente, por meio de ciência, tecnologia e inovação (CT&I), segundo a política industrial do MCT&I e do Ministério de Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Por esses dois ministérios, o Estado tem colocado a universidade como ponta de lança do crescimento econômico competitivo e exportador, eventualmente incentivando a transnacionalização das indústrias nacionais controladas pelo Brasil. Para isso, não mede esforços em usar mais uma vez o fundo público nessa empreitada e em mudar profundamente as estruturas sócio-históricas da universidade pública e da produção do conhecimento dessa instituição republicana.
Isso implica dizer que a universidade está sendo profundamente mudada em suas estruturas e autonomia e que formas de gestão político-institucionais estão postas a partir do exterior, bem como a avaliação realizada por resultados, e sua acreditação, pela relevância de sua pauta de pesquisa.
Considerando o que já foi exposto, discutiremos, na parte final deste artigo, o V Plano Nacional de Pós-Graduação, proposto para o período 2011-2020.
O V PNPG (2011-2020): a busca pela World Class University
O exposto nos itens anteriores induz à análise das perspectivas para os próximos anos em relação às mudanças pretendidas para as universidades brasileiras, que têm como polo propulsor a pós-graduação. O horizonte que as políticas para a ciência, tecnologia e educação superior tem apontado indica que as mudanças nas condições de produção do conhecimento e nas expectativas sobre o papel da universidade, caminha no sentido de transformá-las em World Class University, a partir do modelo definido pelo Banco Mundial.
O conceito de World Class University é polissêmico e depende do país que buscará ter um sistema de educação superior bastante heterogêneo, tendo nas Universidades de Classe Mundial a elite de suas instituições nesse nível educacional. O Banco Mundial, em seu relatório The Challenge of Establishing World-Class Universities, busca caracterizar e induzir os países para um tipo de universidade de pesquisa internacionalizada, que agregue valor à economia do país seja financiada pelo fundo público e privado e avaliada por indicadores cuja predominância seja de racionalidade econômica. A caracterização da WCU pode ser vista nas indagações listadas abaixo, a partir do relatório do Banco Mundial (SALMI, 2009):
Por que o país precisa de uma universidade de classe mundial?
Qual é a lógica econômica e o valor econômico agregado esperado em comparação com o contributo das instituições existentes?
Qual é a visão para esta universidade?
Qual nicho ocupará?
Quantas universidades de classe mundial são desejáveis e acessíveis como investimento do setor público?
Qual estratégia funcionaria melhor no contexto do país: atualizar instituições existentes, fundir instituições existentes ou criar novas instituições?
Qual deve ser o processo de seleção entre as instituições existentes se a primeira ou segunda abordagem for escolhida?
Qual será a relação e a articulação entre a (s) nova (s) instituição (ões) e as instituições de ensino superior existentes?
Como a transformação será financiada?
Qual parte deve estar no orçamento público e qual deve ser suportada pelo setor privado?
Que incentivos devem ser oferecidos (por exemplo, concessão de terras e isenções fiscais)?
Quais acordos de governança devem ser implementados para facilitar essa transformação e apoiar práticas de gestão adequadas?
Que nível de autonomia e formas de responsabilização serão apropriados?
Qual será o papel do governo nesse processo?
Como a instituição pode construir a melhor equipe de liderança?
Quais são as declarações de visão e missão, e quais são os objetivos específicos que a universidade está buscando alcançar?
Em que nicho (s) procurará a excelência em ensino e pesquisa?
Qual é a população-alvo estudada?
Quais são as metas de internacionalização que a universidade precisa alcançar (em relação a professores, estudantes, programas e assim por diante)?
Qual o custo provável do salto qualitativo proposto e como isso será financiado?
Como o sucesso será medido?
Que sistemas de monitoramento, indicadores de resultados e mecanismos de responsabilização serão usados?
Diante do universo de questões acima indicado decidiu-se analisar o V PNPG, procurando extrair elementos que apontem na direção desse modelo de universidade.
Inicialmente, é possível destacar três pontos de relevância para o entendimento das referidas mudanças em curso e para a sua respectiva continuidade.
Em primeiro lugar, o atual PNPG conduz à potencial hipótese de que a autonomia universitária não passa de uma ilusão. Todo o sistema de avaliação/ regulação, classificação e orientação da pós-graduação brasileira induziriam ao desaparecimento da autonomia universitária, estando a produção do conhecimento e a formação de pesquisadores totalmente comprometidas “(…) com o aumento do valor agregado de nossos produtos e a conquista competitiva de novos mercados no mundo globalizado.” (BRASIL, 2010, p.37) O Plano fortaleceria e concretizaria uma política que há quase duas décadas já se vinha produzindo. Entre outros objetivos, ele busca mudar a cultura universitária, seus objetivos, a formação de seus pesquisadores, e apesar de ser recebido com resistência vem sendo amplamente aceito pela geração de novos doutores4 que, inconscientemente ou por necessidade, vão assumindo as atividades de pesquisa e esvaziando o lugar da crítica.
Três são as categorias mais importantes que se podem destacar numa leitura atenta desse Plano: a avaliação/regulação intensificada, o empreendedorismo e a internacionalização da pós-graduação brasileira (FERREIRA; CHAVES, 2015). Observa-se, nessa análise, o fortalecimento de uma cultura acadêmica propalada há mais de uma década e que comumente denominamos “modelo Capes de avaliação”. Baseada em indicadores de excelência5 e sob o pretenso discurso da necessidade de se imprimir um caráter social à pesquisa científica, esse modelo revela uma face muito negativa para a autonomia científica do país: a burocratização da ciência brasileira e do conhecimento produzido na universidade, instituição que deveria ser, por excelência, o lugar da crítica e do debate livre. A concepção de ciência se altera ao se buscar diminuir o gap entre ela e a tecnologia e produz o conhecimento matéria-prima. Esse processo tende a acentuar-se, a se julgar pela análise do PNPG hoje vigente.
No Plano é central a adoção de uma política de Estado que vise a criação, por meio de políticas públicas na forma de planos e programas como os já citados, de um arcabouço jurídico educacional que permita a integração de um Plano Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social bem articulado com o Programa Nacional de Pós-Graduação, que convoca a universidade e toda organização acadêmico-científica, técnica e pedagógica a inserir o Brasil num sistema econômico mundial e competitivo por mercados. Sua indução é realizada, no plano político-acadêmico, pela Capes, convertida na agência que realiza a análise nacional de qualidade e excelência da pós-graduação brasileira, num sistema assim descrito:
A avaliação da produção tecnológica e seu impacto e relevância para o setor econômico, industrial e social, através de índices relacionados a novos processos e produtos, expressos por patentes depositadas e negociadas, por transferência de tecnologia e por novos processos de produção que poderão dar uma vantagem competitiva ao país; incentivo à inovação através da adoção de novos indicadores, que estimassem o aumento do valor agregado de nossos produtos e a conquista competitiva de novos mercados no mundo globalizado. Um maior peso deveria ser dado a processos inovadores que refletiriam em maiores oportunidades de emprego e renda para a sociedade; fortalecimento das atuais atribuições dos órgãos superiores da CAPES, principalmente as referentes à avaliação, autorização de cursos novos e o seu recredenciamento, com vistas à manutenção do Sistema Nacional de Pós- Graduação; Indução da pós-graduação, mediante constante atualização dos indicadores empregados, de modo a orientar a formação de recursos humanos e a pesquisa na direção das fronteiras do conhecimento e das prioridades estratégicas do país. (BRASIL, 2010, p.37)
Várias questões decorrem dessa política. Em primeiro lugar, destaca-se o papel centralizador da Capes como agência estatal que, por meio de critérios de excelência, cria um ranking, impondo a essas instituições um selo de qualidade (BRASIL, 2010, p.127). Essas categorização e estratificação institucionais são função do impacto mercantil do conhecimento matéria-prima no crescimento industrial e econômico brasileiro, num modelo rentista que nega o investimento produtivo que não seja de curto prazo e se esquece do peso da dívida pública na gestão monetária do país.
Em segundo lugar, verifica-se a forte indução a pesquisas, via financiamento e processos avaliativos, por novos formatos e modelos de formação pós-graduada, que diminuem seus tempos de formação e fomentam mudanças nos formatos dos programas, com disciplinas que primam muito mais pela formação técnica em detrimento dos fundamentos teóricos. Nesse contexto, não deixam opções aos programas, que são compelidos a assumir tais características sob risco de perda de credenciais, bolsas, verbas para pesquisas, dentre outros. Aqui se vê a compressão do ciclo do capital portador de juros sobre o ciclo produtor real de valor imposto quando o país adere à predominância financeira.
Em terceiro lugar, outro destaque essencial para essa discussão consiste nas diretrizes desse sistema de pós-graduação até o ano 2020. Há um esforço de diferenciação institucional entre programas de pós-graduação stricto sensu e a indução no sentido da fragilização do modelo de universidade neo-humboldtiana, predominante nas principais universidades brasileiras. A Capes assumirá o papel de incentivar e conduzir, a despeito do pretenso desenvolvimento econômico e social do país, a formação “cada vez mais numerosa” para pós-graduandos voltados para atividades extra-acadêmicas, com destaque para o incentivo à criação de mestrados profissionais ainda incipientes no atual sistema.
No topo do “sistema” estão as universidades humboldtianas, conhecidas por patrocinarem a união indissolúvel do ensino e da pesquisa, com a pós-graduação à frente, servindo de modelo para o sistema (as universidades de pesquisa classificadas como New American University). Porém, no Brasil, elas são a minoria e, em geral estatais, apresentando toda sorte de distorções do “modelo”. Não obstante, elas existem e são cobradas nas avaliações/regulações por sua inserção internacional ou pela capacidade de oferecer cursos de padrão internacional. Ao lado das universidades estatais neo-humboldtianas e de uma ou outra comunitária que integra aquele prestigioso rol, há as públicas não-humboldtianas e as privadas, distinguidas entre as comunitárias e as não comunitárias, com menor vocação acadêmica e maior proximidade com o mercado e, por vezes, com o setor produtivo. Esse conjunto de natureza diferente e complementar deverá responder por demandas e necessidades diferentes: num extremo, a premência de formar professores e pesquisadores voltados para o sistema de ensino e de pesquisa; noutro extremo, a necessidade de formar quadros e técnicos altamente especializados para os setores público e privado. Em consequência, será preciso criar mais de um sistema de avaliação e depurar diferentes critérios de teor acadêmico e não acadêmico, ajustados para as diferentes situações e necessidades, como no mestrado profissional.
Essa política estabelece as diretrizes de um novo modelo de pós-graduação, não pesadamente teórico e acadêmico, com novos padrões de desempenho acadêmico e que acompanhe as mudanças por que passaram as principais nações. Essas parecem ser as novíssimas faces da universidade brasileira ou The New Brazilian University. (Cf. SILVA JR., 2017)
Considerações finais
Passadas cerca de quatro décadas, o processo de expansão da pós-graduação revela-se parte de uma política de Estado, de longa duração, com inflexões, ampliações e ações complementares. O Estado brasileiro, por meio de vários governos de diferentes partidos, implantou nas últimas décadas um conjunto de dispositivos legais que procuram aproximar, por meio da pesquisa, as instituições de ensino superior, especialmente a pós-graduação, e o setor produtivo, reorganizando as práticas e estimulando a mercantilização da universidade estatal pública. Busca alicerçar a pesquisa de suportes institucionais externos à universidade e que as condiciona às demandas da economia mundial financeirizada.
Trata-se de intensa mudança, cuja consecução impõe a necessidade de mobilizar forças institucionais e políticas amplas, bem como produzir consensos em torno de ideias. Que explicações temos desse processo? Na perspectiva analítica que nos orienta trata-se de processo de aderência da economia brasileira ao regime de predominância financeira, que mobiliza forças e instituições na disseminação de uma cultura rentista, favorecendo a economia e a educação superior dos países centrais. Em síntese, trata-se da forma de atualização histórica da luta de classes.
A atualização histórica desse processo acentua o papel central das agências Capes e CNPq na formulação, indução e fomento das atividades científicas no país, com notável apoio de fundações estaduais como Fapesp, Fapemig, Faperj e Fapergs. Esse processo de reposicionamento social e econômico da estrutura universitária acarreta mudanças que se concretizam sob a forma de mudança da natureza do trabalho do professor, que precisa, agora, ter resultados prontamente comercializáveis. Tem como consequências a intensificação do trabalho do professor, a acentuação do processo de precarização das relações de trabalho e da degradação das relações humanas na instituição universitária. Isso se deve à imposição da produção do conhecimento matéria-prima, da exigência de patentes e licenciamentos, da necessidade de se publicar internacionalmente e dos direitos autorais, ainda não tão usados no país. Tal processo muda a natureza do trabalho do professor pesquisador, para a predominância do trabalho imaterial superqualificado, com financiamento público nacional.
Esse movimento equivale, na sua particularidade histórica, ao trânsito do Brasil da dependência econômica para um Brasil da servidão financeira. No âmbito social, por meio de programas focais, esse processo transcende a produção e tem em seu centro as relações que as empresas multinacionais de novo estilo estabelecem com outras empresas, bancos, agências multilaterais e instituições estatais, neste caso particular, as universidades.
Em face disso, a educação é demandada pelo capital a reformar-se, assim como, e primeiramente, o aparelho de Estado do país. Para o que se está analisando, a pós-graduação passa a ocupar o espaço central e mais relevante para o Estado, posto que, no país, o lugar em que o conhecimento é desenvolvido com maior consistência é o dos níveis pós-graduados das universidades. (SGUISSARDI; SILVA JÚNIOR, 2009)
Sintetizando, diversamente do que ocorria à época de Marx, o trabalho imaterial torna-se potencialmente mais produtivo, porque estruturalmente precisa ser comercializado. Isso significa que CT&I tornam-se cada vez mais imprescindíveis à potencialidade renovada de fantástica ampliação da riqueza a partir da base industrial consolidada pela estrutura produtiva existente. As universidades são postas no centro do processo de formação de professores e de produção de CT&I e, nesse contexto, modifica-se profundamente a natureza das instituições, do trabalho docente e da produção do conhecimento. No plano da economia, emerge a necessidade de um processo contínuo de ensino e aprendizagem, como se pode observar na ação intensa das agências multilaterais na disseminação de pedagogias cognitivistas e do apreender a aprender