SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número60DOSSIÊ: EDUCAÇÃO PARA RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NA EDUCAÇÃOVIVÊNCIAS LITERÁRIAS E SUAS POSSIBILIDADES NA EDUCAÇÃO INFANTIL índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Eccos Revista Científica

versión impresa ISSN 1517-1949versión On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.60 São Paulo ene./mar 2022  Epub 08-Feb-2024

https://doi.org/10.5585/eccos.n60.13553 

Artigos

PENEIRAS QUE CIRANDAM: PARECERES PEDAGÓGICOS E PRODUÇÃO DAS INFÂNCIAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL

SIEVES THAT CIRANDAM: PEDAGOGICAL OPINIONS AND CHILDHOOD PRODUCTION IN CHILDREN'S EDUCATION

Taciana Uecker, Mestre1 
http://orcid.org/0000-0001-6419-6936

Leandra Bôer Possa, Doutora2 
http://orcid.org/0000-0001-6833-7572

Taciana Camera Segat, Doutora3 
http://orcid.org/0000-0003-1751-9063

1Mestre, Universidade Federal de Santa Maria-UFSM. Santa Maria, RS - Brasil.

2Doutora, Universidade Federal de Santa Maria-UFSM. Santa Maria, RS - Brasil.

3Doutora, Universidade Federal de Santa Maria-UFSM. Santa Maria, RS - Brasil.


Resumo

Este artigo busca mostrar, a partir da análise de pareceres pedagógicos produzidos em uma escola de Educação Infantil/creche no interior do estado do Rio Grande do Sul, os modos que são narradas as crianças através de saberes que movimentam a atuação dos professores para a produção da criança neste espaço que tem se consolidado em uma cultura escolarizada. Ao analisar estes pareceres pedagógicos temos por objetivo referenciar a importância da formação de professores e da sua participação na construção de uma - ou muitas - cultura própria da Educação Infantil no contexto da Educação Básica e para a produção da criança na contemporaneidade. A analogia metodológica que colocamos em funcionamento é a da peneira que pela movimentação faz processar pelo passar/cair os elementos descartáveis para fazer surgir o elemento valioso. Um cirandar em que se selecionam, pelos saberes que circulam no ambiente escolar, pelo movimento de peneiração, processos de enquadramento e de produção das crianças. Conclui-se o artigo apontando a necessidade de, nos contextos escolares da Educação Infantil, a produção de saberes que projetam uma cultura educacional para Educação Infantil.

Palavras-Chave cultura escolarizada; educação infantil; infâncias; pareceres pedagógicos

Abstract

This article seeks to show, based on the analysis of pedagogical opinions produced at a kindergarten / nursery school in the state of Rio Grande do Sul, the ways in which children are narrated through knowledge that moves the performance of teachers to produce the child in this space that has been consolidated in a school culture. In analyzing these pedagogical opinions we aim to refer to the importance of teacher education and her/his participation in the construction of a culture of Child Education in the context of Basic Education and for the production of the child in the contemporary world. The methodological analogy that we put into operation is the one of the sieve that by the movement causes to process by the pass / fall the disposable elements to make appear the valuable element. A ciranda in which you select, by the knowledge that circulates in the school environment, by the sifting movement, framework and production processes for children. The article concludes by pointing out the need to, in the contexts of Early Childhood Education, the production of knowledge that designs an educational culture for Early Childhood Education.

Keywords school culture; child education; childhood; pedagogical advice

Introdução

As crianças que chegam às creches, à Educação Infantil, são de diferentes lugares e espaços socioculturais. No entanto, na cultura da institucionalização de uma educação formal, percebemos que as crianças pequenas não são narradas levando em conta essa diversidade. Elas são narradas por pareceres pedagógicos que envolvidos por um modo de dizer da infância na universalidade e generalidade. Tal instrumento avaliativo assume os critérios de avaliação do desenvolvimento e da aprendizagem para todas as crianças o que, de certa maneira, as iguala de saída produzindo um apagamento de suas diferenças. Buscando dizer de outra maneira, os pareceres pedagógicos, descritivos do comportamento, desenvolvimento e aprendizagem, em que as crianças são igualadas por um tipo de infância inventada em saberes e relações de poder produzidas na cultura institucionalizada da Educação Infantil, precisam ser pensados e transformados.

A cultura institucionalizada na Educação Infantil é o que chamamos também de cultura escolarizada. Nela se produzem pequenos seres escolarizados a partir de imagens que são criadas e projetadas por parâmetros e critérios de normalidade. Muitos dizem de uma possibilidade de afastamento da Educação Infantil de um contexto de escolarização, com rotinas, tempos e espaços mais flexíveis e harmonizados com os movimentos, necessidades e interesses infantis. Que essa seria uma fase educacional de uma espécie potencializadora de vivências com um mundo novo a ser descoberto, apropriado e inventado a partir dos repertórios que lhes é possível nesta fase da vida. No entanto, o modelo de organização da Educação Infantil na cultura da escolarização nos diz o contrário.

Neste sentido, muitos autores fazem a análise crítica - FARIA & MELLO (2009); FARIA & FINCO (2011); BARBOSA (2006); FARIA (2002, 2007); OLIVEIRA (2010,2000); EDWARDS (1999); CRAIDY & KAERCHER (2001) - acerca dos modelos de escolarização experimentados em grande parte das escolas Educação Infantil. Apontam para a necessidade de criarmos tempos e espaços de habitar as escolas de Educação Infantil que superem as semelhanças e reproduções das práticas vividas nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental em que a aprendizagem escolar está centrada naquilo que as crianças desconhecem dos conteúdos e habilidades necessárias para se inserirem no mundo social. Ao fim e ao cabo, fazem a crítica de uma Educação Infantil na cultura escolarizada que tem como foco as expectativas de um saber verdadeiro predeterminado pelo mundo adulto e socialmente aceito. Uma cultura que por vezes ignora a episteme da aprendizagem infantil e os repertórios de comportamentos possíveis para a criança pequena. Esses autores nos ajudam a pensar e a analisar os cenários prescritivos de conduta, pelos quais as crianças são submetidas ao serem ‘educadas’ e avaliadas. Nos ajudam a pensar no modo prescritivo baseado em saberes do desenvolvimento caracterizados no deve ser; em modelos de condutas pré-determinadas nos valores culturais adultos que, de certa forma, produzem e rotulam as crianças nessa fase de educação que chamamos de Educação Infantil.

As concepções de criança e infância e, consequentemente as instituições pensadas para acolhê-las, são construídas histórica e socialmente a partir de contradições, de regras, convenções, encontro entre diferentes opções que são feitas pelos sujeitos no contexto específico da Educação Infantil. Com o propósito de normatizar, organizar e, na maioria das vezes, padronizar/escolarizar ou ‘pedagogizar’ os movimentos de vida que se estabelecem nesse espaço. Nossas experiências como professoras e pesquisadoras nos possibilitam fazer essas asserções, não com a intenção de afirmarmos haver uma hegemonia no sentido de dizer acerca de todos os profissionais, pois compreendemos que nesse universo resistem muitos, olhando atentamente, pensando e pesquisando sobre como as crianças e suas infâncias são produzidas e narradas nos contextos das escolas de Educação Infantil.

Com a meta de refletir um pouco mais sobre os modos que são narradas (faladas, ditas e produzidas) as crianças, na instituição de Educação Infantil, na etapa creche, nos propomos a tomar como material empírico deste artigo analítico pareceres pedagógicos de autorias dos professores de uma instituição de Educação Infantil. A identificação da instituição não faz a menor diferença para o que nos propomos a analisar pois, o que nos propomos com esta materialidade é: mostrar alguns saberes que tem movimentado a atuação dos professores da Educação Infantil para a produção da criança nesse espaço que tem se consolidado na cultura escolarizada ambivalente entre o dever ser e o não ser, entre bons e maus comportamentos, entre atender expectativas dos adultos e não as atender. Com esta análise, ainda, pretendemos chamar atenção, ao final, sobre a importância da formação de professores e da sua participação na construção de uma - ou muitas - cultura própria da Educação Infantil no contexto da Educação Básica tendo em vista a produção da criança na contemporaneidade.

Com essas metas, construiu-se para este estudo analítico, uma materialidade produzida a partir dos seguintes passos: primeiro a leitura de 179 pareceres pedagógicos de autoria dos professores da Educação Infantil; segundo, retirada de fragmentos que nos levassem a identificar os saberes que orientam a conduta de registro dos professores sobre a criança, no sentido de dizer, o que identifica a produção desse sujeito infantil com os seguintes indicadores: quais são seus comportamentos, suas potencialidades, seus “delitos diários”, suas relações no contexto da instituição; terceiro, nos propomos a analisar o poder desses fragmentos como modo de dizer sobre a criança e, por conseguinte, de como eles se juntam a um discurso da infância que regula, no contexto escolarizado da Educação Infantil, um circuito retroalimentado de saberes para controlar e corrigir a infância numa cultura escolarizada de cenários prescritivos de conduta que vão muito além de qualquer política educacional e curricular para a Educação Infantil.

Potencialmente esses pareceres pedagógicos nos aparecem para pensar a produção da infância e da cultura escolarizada na Educação Infantil nos locais em que ela acontece, com os profissionais, os saberes e poderes que eles constroem nos cotidianos das creches. Neste sentido, os pareceres pedagógicos são tomados como enunciados, como modos de dizer sobre a infância que como conjunto dentro de discursos-práticas produzem a infância e a criança. Discursos que têm inventado, pronunciado, produzido materialmente os modos de ser e de se conduzir (FOUCAULT, 2006). Discursos que dizem da produtividade de invenção das coisas, que legitimam, tornam verdadeiro e naturalizado alguns temas (MACHADO, 2009).

Para Fischer o discurso “[...] ultrapassa a simples referência a coisas, existe para além da mera utilização de letras, palavras e frases, não pode ser entendido como um fenômeno de mera expressão de algo” (2001, p. 200). Assim, entendemos que os discursos projetados nos pareceres pedagógicos das crianças apresentam “regularidades intrínsecas [...]”, através das quais é possível definir uma rede conceitual que lhe é própria. (FISCHER, 2001, p. 200). O campo discursivo da Educação Infantil produzido na instituição como cultura escolarizada está como discurso produzindo e utilizando para identificar crianças e infâncias. Como nos aponta Fischer, o discurso

[...] imerso em relações de poder e saber, que se implicam mutuamente, ou seja, enunciados e visibilidades, textos e instituições, falar e ver constituem práticas sociais por definição permanentemente presas, amarradas às relações de poder, que as supõem e as atualizam. (2001, p.200)

Se tratamos, portanto, os modos com são narradas as crianças na instituição de Educação Infantil, através dos pareceres pedagógicos, como discurso numa rede cultural e institucional não temos mais um discurso sobre a criança, mas mais um discurso que constitui e inventa a ela e a infância. Um discurso que fixa em “saber a verdade do sujeito, em constituir os sujeitos como o lugar da verdade, em construir para todos e cada um de nós discursos verdadeiros” (FISCHER, 2001, p. 201).

A fixação de um tipo de discurso em um conjunto de formação discursiva sobre a criança e infância identificados e mostrados nos fragmentos retirados dos pareceres pedagógicos, nos instigam a articular metodologicamente nossa escrita e análise à analogia das peneiras que cirandam. A analogia que queremos trazer para a escrita é a da ciranda como movimento utilizado por alguns trabalhadores, movimento feito com a peneira grossa usada nos garimpos, feita de palha ou de outros materiais. Em nosso caso, a ciranda da peneira de saberes usada nas escolas das infâncias para dizer e produzir sujeitos infantis que por efeito são narrados nos pareceres pedagógicos.

Uma peneira que pela movimentação faz processar pelo passar/cair os elementos descartáveis para fazer surgir o elemento valioso. Um cirandar em que se selecionam substâncias pela peneiração. Análogo a este movimento de peneiração, como o movimento cirandado, pensamos o contexto educacional da Educação Infantil, e a peneira que ciranda ali. A peneira dos saberes que mobilizam os fazeres pedagógicos e avaliativos, os saberes e a relação desses com saberes cotidianos dos professores, as relações pedagógicas e os modos de condução dos professores nos processos de enquadramento e de produção das crianças. Isso implica na percepção dos modos que os professores dizem e atuam diante de uma infância que é passada, peneirada, cirandada, onde algumas crianças caem e outras permanecem (UECKER, 2019).

Entendendo a Educação Infantil como um lugar que localiza o sujeito enquanto criança, esta que pode ser narrada e produzida a partir de saberes que constituem a infância e a criança. Um modo de localizá-las é fazê-las passar pela ciranda movimentada pela peneira, pelos saberes que circulam na instituição e que movimentam os professores para a separação e classificação das crianças tendo em vista saberes normativos que aqui, identificamos na perspectiva de uma cultura escolarizada na Educação Infantil.

O que pretendemos com esta análise é contribuir para a produção de outros modos de pensar as possíveis culturas para a Educação Infantil, outras infâncias, infâncias para além da institucionalização escolarizada, infâncias amadas, ouvidas e, sobretudo, respeitadas. Neste contexto, um deslocamento ou um convite a aprendermos no universo das infâncias, como que diz Paulo Freire (2003, p. 37) em sua primeira carta a Cristina: “quanto mais me volto sobre a infância distante, tanto mais descubro que tenho sempre algo a aprender dela”. Nossa contribuição é também nesse sentido, aprender com elas quem elas são.

Infâncias produzidas nas relações de saber e poder na cultura institucionalizada das escolas de educação infantil

Perspectivas conceituais que produzem culturas institucionais de infância são produzidas no contexto social a partir dos encontros com discursos políticos, econômicos e históricos. Ariès (1981), Kuhlmann Jr. (2010), Cohn (2005), Corsaro (2011), Narodowski (1996), Sarmento (1997), entre outros autores, discutem nos registros escritos de suas investigações que não é possível tomar como natural qualquer conceito de infância, porque as infâncias são produzidas na história, nos contextos diários de vida, se criam, inventam e reinventam nos acontecimentos que sistematizados em discursos se materializam nas histórias contadas que podem, com o passar dos anos, serem tomadas como saber verdadeiro. Essas histórias-discursos estão engendradas nas relações de saber-poder que guardam em si uma certa natureza lacunar, como afirma Veyne (1989), pois poderiam elas ter outras escolhas para serem contadas. Neste contexto, cabe salientar que vários acontecimentos renegados ou pouco valorizados pela história, ou melhor pelos livros de história, não contam de infâncias excluídas, de crianças indígenas, de crianças pobres, de crianças negras, de crianças filhas e filhos de imigrantes, de crianças expostas a algum tipo violência, tragicamente não contam.

O não-dito e o não-contado sobre as infâncias na história da infância que circundam as instituições de Educação Infantil, (re)produzem um certo saber verdadeiro com uma tendência a universalizar uma conceituação de infância (ARIÈS, 1981). Essas histórias não contadas são universalizadas em características tais como: a periodização e ‘psicologização’ da infância em fases e características de desenvolvimento que normatizam o tempo de andar, a cronologia do falar e da ampliação do vocabulário, o tempo de desenhar e escrever (…); a padronização de comportamento esperados pelos adultos em uma dada sociedade/comunidade com suas normas criteriosas e moralistas de ser civilizado; a ‘romantização’ de uma certa pureza infantil e/ou de uma total perversidade que já seria parte de sua natureza; a imposição social por certo assemelhamento social, tendo em vista o sexo e, por isso, carrinhos para meninos e bonecas para meninas; o discurso da espontaneidade infantil que ao mesmo tempo é exortada na norma que classifica e enquadra a criança em modelos pré-determinados tais como - é agressivo, é tímido, é respondão, é inteligentíssimo, é esperto, é…, é… (...); características essas que estão dissolvidas no senso comum e que tomam como parâmetro o mundo adulto e não os possíveis repertórios infantis de como se relacionar com o mundo das coisas, de si e do outro.

A universalização de uma história e saberes que vão determinar as relações de poder em que são enquadradas as infâncias numa condição institucional, em uma etapa de vida individual lida na generalidade e que se sistematizam na norma que passa a funcionar como gradiente na cultura escolar da Educação Infantil. A norma se constitui em um princípio disciplinar e regulamentador que se aplica a um corpo individual como, também, a população infantil (HENN; LOPES, 2013) que frequenta as instituições. A norma tem, portanto, a função de produzir cultura institucional quando ela passa a:

[...] controlar a ordem disciplinar do corpo e os acontecimentos aleatórios de uma multiplicidade biológica [é] este elemento que circula entre um e outro [...] a norma funciona como ‘um princípio de comparação, comparabilidade, de medida comum, que se institui na pura referência de um grupo a sí próprio, a partir do momento em que se relaciona consigo mesmo’. É possível entender que, além de ser instituída no grupo, pelo grupo, a norma possui caráter fundamentalmente prescritivo. [...] a norma, ao operar como uma medida e um princípio de comparabilidade, [...] sempre prescritiva, a norma age ou provocando ações que homogeneízem as pessoas ou provocando ações que exalem as diferenças a partir de referenciais comunitários. [...] a norma age tanto na definição de um modelo tomado a priori aos próprios sujeitos quanto na pluralização dos modelos que devem ser referência para que todos possam se posicionar dentro dos limites locais, e uns em relação aos outros. (HENN; LOPES, 2013, p. 41-42)

A norma constitui-se, nas instituições de Educação Infantil, uma condição de possibilidade para a cultura institucional. Eis, que aqui, não queremos supervalorizar a ideia de cultura como se esta estivesse por cima da política, da econômica, das políticas educacionais, mas registrar que ao tomar a ideia de cultura institucional está se produzindo um efeito que opera na conduta, atravessando tudo aquilo que se realiza naquele lugar (VEIGA-NETO, 2013). Ou seja, faz atuar a cultura institucional para a normatização pois, a norma estabelece o

[...] limite [...] construído dentro da lógica de assegurar a vida dos indivíduos, possibilita[ndo] manter sob controle os comportamentos individuais, bem como os comportamentos forjados no interior das [instituições] (estas criam verdades, formas de ser e normativas de vida que regulam e determinam no detalhe seus integrantes) (HENN; LOPES, 2013, p. 43).

E ainda, a norma pode atuar, na cultura institucional escolarizada como normalização tendo em vista que a norma pode ser entendida

[...] como um campo móvel ou zona de instabilidade em que desafios se impõem como convites para sermos constantemente outros ou para sermos diferentes do que éramos, mas coerentes com as tramas em que nos encontramos e nos balizamos. (HENN; LOPES, 2013, p. 45).

Observamos, com isso, que na cultura escolarizada os saberes utilizados pelos professores (sendo eles autores dos pareceres pedagógicos), em torno de uma perspectiva de infância e da identificação e produção da criança, não simplesmente partem de uma norma aceita para o desenvolvimento infantil, de seu lugar no mundo, das políticas educacionais, mas de gradientes da normalização (imagina-se aqui uma transferidor de 180 graus em que o normal se situa ao centro em 90 graus, sendo que os desvios podem estar em qualquer ponto à direita ou à esquerda afastando-se do ponto central) que se tornam flexíveis diante dos valores e moralidades, tomados como verdadeiros no mundo adulto que olha e enquadra a criança.

Os outros que estão fora do mundo adulto racional e de suas normas de como viver, são as crianças. Parece existir dois universos distintos que precisam coexistir. Para as crianças é necessário produzir um lugar aceitável que, sob a perspectiva do mundo adulto, seria o lugar no mundo para a criança. Esse lugar para a criança tem sido constantemente pensado como um lugar institucional. O lugar tem sido as instituições educacionais que deveriam ser capazes de oportunizar um tempo de educação em que as crianças possam se adequar às normas de como viver; uma instituição que seria capaz de ensinar ou apontar a este outro, um caminho que lhe possibilite/oportunize tornar-se pertencente e produtivo socialmente.

Esse lugar institucional para o outro que está fora do mundo adulto é a Educação Infantil. Um lugar institucional que é profanado (SKLIAR, 1999) por uma certa perversidade universalista que iguala todos e cada um, que determina quem pela peneiração se enquadra em um modelo validado; quem ainda é um sujeito a corrigir porquê da peneira foi descartado; ou ainda, quem vai ser excluído já que em uma nova peneiração não foi capaz de ser validado.

Veiga-Neto nos propõe discutir a “ordem histórico-genealógica, de modo a mostrar o atrelamento da Pedagogia e da escola moderna à invenção do conceito de Cultura” (2003, p. 06). Com isso, segue o autor:

Aceitou-se, de um modo geral e sem maiores questionamentos, que cultura designava o conjunto de tudo aquilo que a humanidade havia produzido de melhor - fosse em termos materiais, artísticos, filosóficos, científicos, literários etc. Nesse sentido, a Cultura foi durante muito tempo pensada como única e universal. Única porque se referia àquilo que de melhor havia sido produzido; universal porque se referia à humanidade, um conceito totalizante, sem exterioridade. Assim, a Modernidade esteve por longo tempo mergulhada numa epistemologia monocultural. E, para dizer de uma forma bastante sintética, a educação era entendida como o caminho para o atingimento das formas mais elevadas da Cultura, tendo por modelo as conquistas já realizadas pelos grupos sociais mais educados e, por isso, mais cultos. (2003, p. 07)

Sob a perspectiva de uma (re)produção do que há de melhor na humanidade e a universalidade totalizante de uma monocultura, os currículos escolares, o desenvolvimento e aprendizagem e o modelo de comportamento e disciplinamento do corpo e da alma vão se constituindo por “um conjunto de atitudes e ações humanas que eram da ordem do comportamento” (VEIGA-NETO, 2003, p. 09), o que o autor identifica como civilidade,

[...] em que os comportamentos individuais eram cada vez mais auto-regulados; uma disposição que se dava como uma contraposição ao - e em substituição ao - enfraquecimento das coações externas e dos códigos hierárquicos nobiliários. Ela representava a substituição da espontaneidade pela contenção dos afetos. Por outro lado, a Cultura era entendida como um conjunto de produções e representações que eram da ordem dos saberes, da sensibilidade e do espírito (VEIGA-NETO, 2003, p. 09)

Veiga-Neto (2003) ainda observa que, sob o código da civilidade, construiu-se e disseminou-se, nas bases do surgimento da escolarização e, podemos afirmar até os nossos dias, uma relação em que as instituições escolares e a cultura nelas produzidas são forjadas na generalidade, no essencialismo e na abstração de um sujeito a ser educado para viver em sociedade. Um espaço e tempo institucional em que é determinante tornar os indivíduos o mais homogêneos possível e que, nesse lugar, se pudesse diminuir qualitativa e quantitativamente o número das possíveis ambivalências características nos indivíduos.

Na mesma linha de pensamento, Veiga-Neto (2003, p. 23) argumenta “[...] usando o pensamento de Bauman (2000): a escola foi colocada a serviço da limpeza do mundo”, em que a diminuição da ambivalência passa a ser operada pela normalidade, pela predeterminação de diminuir as zona de instabilidade dos indivíduos/crianças convidando-os ou obrigados pela legislação educacional, pelo acolhimento e pela avaliação educacional a permanecer institucionalizado, ou seja, institucionalizando suas infâncias, seus tempo, espaços, fazeres e saberes infantis. É um contexto de saberes prontos e verdadeiros, de tempos fragmentados, rotinas endurecidas e fazeres/movimentos controlados por corpos estanques e silenciados. Esse é o universo que temos observado se constituir nos pareceres pedagógicos que analisaremos a seguir, em que a criança é convocada a se encaixar em gradientes de uma cultura baseado em binômios e em sujeitos antagônicos como fazendo parte da cultura escolarizada na Educação Infantil.

Os pareceres pedagógicos: a cultura institucional e educação infantil

Considerações gerais da análise

No contexto do trabalho pedagógico, o professor, tem a função de acompanhar e avaliar o desenvolvimento das crianças, além disso, ser capaz de dizer como ato de fala e de escrita, através de pareceres pedagógicos, sobre as crianças, seu processo de desenvolvimento e aprendizagem.

Na atualidade são vários os autores que pesquisam acerca da documentação pedagógica na Educação Infantil - Dahlberg, Moss e Pence (2003); Bondioli (2013); Edwards, Gandini e Forman (1999 e 2016), entre outros - e, nesse universo, convergem para o entendimento de que é necessário a atenção à realidade complexa e mutante nas quais as crianças estão inseridas. A perspectiva desses estudiosos é que a documentação pedagógica precisa se constituir processual e focada naquilo que é desencadeado pela proposta/trabalho pedagógico e, em como, a criança vivencia essa proposta. Assim, entendemos que com a análise dos pareceres pedagógicos, estamos nos detendo somente em parte da documentação pedagógica a ser analisada em outras de nossas pesquisas.

Os pareceres pedagógicos, como parte da documentação pedagógica, parecem cumprir o ensejo de uma parte do processo de avaliação do trabalho educativo da Educação Infantil. No entanto, percebe-se que a relação entre trabalho pedagógico e como a criança o vivencia, aparecem nos pareceres, deslocados somente para avaliação da criança. Parecem não cumprir uma função de análise do trabalho pedagógico e de projeção de uma cultura institucional para a infância, ou a avaliação do contexto da creche e, sim, se constituem em um espaço/lugar de vigilância da infância e de cada uma das crianças.

Durante a leitura dos pareceres pedagógicos é possível identificar que a avaliação tem como objetivo acompanhar, como uma espécie de controle, aquilo que pode se configurar num desenvolvimento adequado ou num risco de “desvio de rota”. Os parâmetros dessa vigilância e controle movimentado pelas(os) professoras(es) de Educação Infantil, através dos pareceres, são produto do que se espera da criança em suas diferentes fases de crescimento, desenvolvimento e aprendizagem; o que espera o mundo adulto que cria um mundo para a criança nas normatizações e saberes tomados como normas para o desenvolvimento infantil.

Foi possível identificar nesses pareceres, reunidos e organizados, modos de uma cultura institucional em que as crianças são nomeados de diferentes formas. Por uma lado toma-se por referência o processo de análise de desenvolvimento da criança que diz de como, cada criança individualmente se desenvolve e, por outro lado, apontam as características particulares de expressão de aprendizagens e habilidades cognitivas, afetivas, sociais, linguísticas, psicomotoras sendo essas interpretadas fora de um contexto pedagógico ou de proposta da escola.

Em muitos momentos, durante a leitura dos pareceres, pareceu-nos que determinados saberes ligados à maternidade, bem como saberes populares-sociais, oriundos de valores morais do mundo adulto, ganhavam mais força na descrição/avaliação da criança do que aqueles relacionados com o desenvolvimento e aprendizagem referenciados nos cursos de formação de professores.

Nesse contexto de análise foi importante considerar que os parecer pedagógico são realizados pela observação de professores(as) a partir de saberes pedagógicos e de outros saberes múltiplos que estão cotidianamente identificados como naturais para a infância. Nos pareceres aparecem um certo esquadrinhamento das características singulares e dos modos como as crianças são observadas a partir desses saberes.

O que se coloca nos pareceres, sob a perspectiva de uma narrativa dos sujeitos/crianças, produz um modo de como elas passam a ser representadas e de como se conduzem as relações delas nos contextos da família, da escola e da comunidade. A descrição das características como os modos de dizer e de estabelecer as relações se constituem em um discurso avaliativo que marca individualmente cada uma das crianças, uma narrativa representativa que se (re)produz como cultura institucional e que, ao mesmo tempo, produz a própria cultura institucional.

Foi com esta perspectiva, que reunimos, para análise os pareceres pedagógicos dos anos de 2015 a 2017 de uma instituição de Educação Infantil, do interior do Estado do Rio Grande do Sul. Esse trabalho que apresentamos se insere em uma pesquisa mais completa que busca traçar um projeto de formação de professores em que seja possível produzir, através da participação dos professores(as), uma cultura própria da ação pedagógica dessa instituição.

Os pareceres analisados são elaborados semestral e individualmente para cada uma das crianças. Dos pareceres reunidos foram compilados fragmentos de 179 pareceres pedagógicos, esses organizados a partir da nomenclatura ‘P’ de parecer e um número, (P1, P2....) para manter tanto a fidedignidade de não identificação da instituição como dos professores(as) e das crianças.

Para manter o caráter ético da pesquisa, foi solicitado uma permissão ao Secretário de Educação para o desenvolvimento da pesquisa, bem como uma autorização da diretora responsável da instituição. Tais solicitações obtiveram autorização para realização do estudo dos documentos coletados e, como pesquisadoras, comprometemo-nos a seguir as normas éticas, não fazendo, em nenhum espaço da pesquisa, a identificação nominal da instituição, dos autores e das crianças que estão contextualizadas de forma generalista nos documentos.

Das possibilidades de análise dos pareceres

Tal como, anunciamos anteriormente, a instituição de Educação Infantil, bem como seus professores(as) incorporam uma cultura escolarizada em que no cirandar da peneira é possível identificar um limite sobre a ambivalência dos modos de ser criança. Numa cultura da ambivalência a narrativa dos pareceres pedagógicos produzem a criança em um binômio. São modelos limitados, que representados num gradiente de normalidade. Esses disciplinam e regulam por meio da comparabilidade as formas de narrar a criança e, por isso, de torná-la normal ou dizer dos desvios e dos riscos.

Nos pareceres pedagógicos algumas frases são comumente descritas nos pelos profissionais que trabalham com a Educação Infantil, como por exemplo: “Não gosta de ser contrariado” (P24); “chegou muito tímido e inseguro” (P17); “Nos momentos de rodinha tem dificuldade de concentração” (P56); “às vezes não assimila os limites estabelecidos em sala de aula.” (P66). Elas nos fazem perceber o óbvio: existem saberes normativos de cunho científico e ou cotidiano na cultura escolarizada da Educação Infantil. Esses saberes orientam e constituem profissional e socialmente os fazeres e repertórios docentes que precisam ser considerados e estudados para que possamos entender os modos pelos quais as crianças estão sendo narradas e, por isso, produzidas pela e na Educação Infantil.

O limite do modelo binômico e antagônico construído pela comparação parecem ser tomados com naturalidade para análise do comportamento da criança. Com o foco nos comportamentos dualistas podemos perceber determinadas extremidades para enquadrar as crianças entre comportar-se bem ou mal. Da mesma forma, aparecem alguns saberes relacionados a concepções de aprendizagem e desenvolvimento. Na maioria das vezes, emaranhados no que se espera como comportamento dos pequenos se encontra uma cultura que dá sustentação ao processo avaliativo. Isso pode ser identificado nos fragmentos abaixo:

O limite do modelo binômico e antagônico construído pela comparação parecem ser tomados com naturalidade para análise do comportamento da criança. Com o foco nos comportamentos dualistas podemos perceber determinadas extremidades para enquadrar as crianças entre comportar-se bem ou mal, da mesma forma, aparecem alguns saberes relacionados a concepções de aprendizagem e desenvolvimento. Na maioria das vezes emaranhados no que se espera como comportamento dos pequenos se encontram entendimentos sustentados por uma cultura escolarizada servindo de base ao processo avaliativo. Isso pode ser identificado nos fragmentos abaixo:

P6 - “é uma criança alegre, carinhosa, observadora e muito sentimental (...) quando algo não está de acordo com sua vontade e é contrariado, se transforma, fica irritado, sapateia, bate com as mãos e chora inconsolavelmente, às vezes, até morder.”

P7 - “mostrou ser uma criança alegre, carismática. Ao chegar na escola adorava fazer um dengo e chorava um pouco...”

P9 - “é uma menina muito dócil, esperta e alegre, mas de personalidade forte, está na fase do egocentrismo, onde o dividir ou repartir, às vezes gera conflito. Até mesmo a professora que só para si, ou seja, atenção exclusiva para ela, o que é natural nesta faixa etária. Não gosta de ser contrariada, e demonstra isso através do choro e até algumas vezes se joga no chão.”

Na análise apontamos como referência os pontos ambivalentes do comportamento infantil que as vezes se aproximam desses códigos em que “não gostar de ser contrariada”(P9), não tem relação de reflexão com a ideia de que repertório teria a criança para que pudéssemos dizer que ela entendeu ou não sobre o que está sendo lido como contrariedade da criança. Os fragmentos acima nos levam a perceber que os modos de dizer sobre a criança e uma possível produção dela está em apontar as falhas (imaturidade, não consegue...), ou seja, precisam-se mostrar os sujeitos que fogem do gradiente de normalidade, pois ir bem, ser alegre, carinhosa, observadora, carismática, dócil e esperta é o lado bom, o normal, mas irritar-se, chorar, contrariar, ter personalidade forte é não ir tão bem, o que se apresenta como fora do normal, do natural, já que se possui apenas concepções binômicas - isto ou aquilo. Quando se olha para alguns fragmentos dos pareceres, fica evidente que a escrita acaba romantizando o lugar antagônico sem ter referência com saberes que envolvem o fenômeno do comportamento infantil a partir dos repertórios consolidados e apropriados pela criança.

Assim, podemos destacar duas concepções nessa cultura institucional: o bom aluno, ligada a alguns saberes criados e destacados pelos(as) professores(as), e, o mau aluno que se refere logicamente aquelas crianças que não seguem a linearidade do que se espera delas: “adora desafiar os limites estipulados; encontra-se um pouco inquieta; Não gosta de ser contrariado; bastante nervoso e inseguro;” Ou seja, crianças que mexem com a estrutura da “boa aula”, que caem da peneira dos saberes tomados como verdadeiros para o comportamento infantil.

Essas descrições que dizem das crianças tem determinadas intenções, mesmo que não de forma direta, mas elas objetiva e subjetivamente organizam e estruturam o trabalho pedagógico na instituição e dos docentes, pois elas produzem uma forma de classificar, qualificar e identificar que gestam ações pedagógicas de correção das crianças, indicações de conduta para as famílias e permitem caracterizar como cada criança faz certos deslocamentos da curva da normalidade. Ou seja, como olhar para a criança que se desvia, cai da peneira e como poderia ser novamente colocada em processo de intervenção do adulto para que possa ser corrigida. Tais características podem ser comprovadas com alguns excertos:

“Não gosta de ser contrariado...” (P24); “reconhece as normas e regras elaboradas pela turma, porém, nem sempre as cumpre” (P67); “gosta de desafiar as ordens dadas pelas professoras, agindo contrariamente ao que lhe foi pedido e em alguns momentos envolve-se em conflitos pela disputa de brinquedos.” (P123); “(...)é bastante agitado e impaciente nas atividades propostas na aula.” (P118).

O contrário do desvio é caracterizado pela representação do bom aluno, um conjunto de recorrência de uma narrativa que movimenta os docentes a dizer das características de um bom aluno da Educação Infantil (aquele que se adequa, age conforme o esperado, em uma evolução progressiva dentro de padrões, é tranquilo, comportado, obediente…), como é possível comprovar com alguns excertos a seguir: “demonstra ser uma criança muito esperta, participativa e curiosa, observando tudo que acontece ao seu redor” (P1); “uma bebê calma, demonstra ser uma criança ativa e esperta” (P4); “é um menino muito querido, carinhoso, tranqüilo, às vezes reservado e tímido sendo sempre muito obediente às normas e regras no convívio escolar.” (P15).

Esses excertos destacam o sentido do uso de alguns saberes (científicos, profissionais e cotidianos) para que se possa identificar, caracterizar e de certa forma romantizar uma produção da criança como bom aluno e, por conseguinte, da infância. A norma como ação de controle para disciplinar os corpos das crianças e, ao mesmo tempo, regular pela vigilância pedagógica a comparação entre elas e entre o que se espera delas, tem como referência alguns saberes que são culturalmente constituídos sobre esta etapa da vida. Os saberes, que constituem o papel docente na atividade de falar e dizer sobre as crianças nos pareceres retroalimentam a composição da norma e prescritiva e ambivalente dos modos de avaliar a criança.

Dentre os saberes identificados, o saber biológico atua como uma ficção normatizadora que coloca na idade e no crescimento, as características naturalizadas de um modo de crescer e se desenvolver homogeneizador, nas quais o sujeito já possui as características para assim desenvolvê-las, isso pode ser identificado na ideia de que a criança “está [...] adequado à sua faixa etária” (P38) . Contudo, estar adequado traz em si o peso do julgamento do outro, de estar para algum que não para si mesmo. Esse tipo de saber que opera um modo de dizer sobre a criança parece ter uma relação direta com os sentimentos e imagens acalentadas e romantizadas em relação à infância. Existe uma faixa etária, um modelo biológico e até estatístico (podemos observar isso nas cadernetas de vacinação, que ajudam a popularizar esta ideia) que diz uma verdade sobre o que cada criança deve ser em cada fase etária.

Outro tipo de saber que atua nesses pareceres é o ‘psico’, um saber psicológico em que serão encaixadas as crianças, suas relações com os outros e suas novas aprendizagens individuais, pois essas se tornam indispensáveis para as etapas subsequentes. O que importa é considerar que a Psicologia é tomada como saber matriz da Pedagogia considerando que toda a descrição e identificação dos sujeitos em uma grade de normalidade, no âmbito da educação dão as condições de possibilidade para educar e transformar os sujeitos. Nesse sentido, a partir dos saberes da psicologia os professores(as) assumem uma posição de saber e falar na perspectiva do sujeito e o que o falta para estar na lógica do gradiente de normalidade.

Outro saber é o sociocultural, ou seja, o plano social-cultural que está ordem de um conhecimento produzido sobre a história, a sociedade e sobre os modos de pensar a infância. Um saber das experiencias maternas ou com as crianças que advém da comparação entre crianças e que se consolidam subjetivamente nos docentes e nas formas como se relacionam com os pequenos e com a atuação pedagógica. São saberes que são acionados pelos docentes e que objetivamente movimentam seus processos de subjetivação individual, com os quais atuam nos modos que dominam um dizer verdadeiro sobre as crianças e suas formas peculiares de ver e se movimentar no mundo.

Dentre esses saberes, também, identificamos o saber pedagógico, com a finalidade de no processo de institucionalização da infância passou a determinar um certo tipo de mundo infantil. Um mundo que está assentado num imaginário certa forma público tendo em vista o processo de expansão de matrículas na Educação Infantil; a obrigatoriedade da etapa pré-escolar; a construção de um currículo específico para esse público; o convencimento da sociedade de que o ensino é um direito fundamental e indispensável para o desenvolvimento da criança.

Ainda, e para finalizar, consideramos que os fragmentos dos pareceres pedagógicos aqui trazidos (dentre muitos que ficaram de fora) demostram a ambivalência de uma cultura escolarizada na Educação Infantil onde mais que estar centrada naquilo que as crianças desconhecem dos conteúdos e habilidades necessárias para se inserirem no mundo social, trabalha na perspectiva de uma certa naturalização de que o repertório infantil possa ser analisado pela perspectiva dos significados e sentidos adultos das condutas. A possibilidade de uma infância romantizada concebida como um período mágico, de alegrias e de não preocupações e, portanto, nascida na beleza de um bom selvagem que se educada.

Consideramos que é necessário romper com algumas dessas formas de dizer da infância e da criança, pensar movimentos e tensões entre uma infância romantizada e uma infância real e, nesse sentido, Marín-Díaz e León-Palencia nos auxiliam destacando:

Quando pensamos na infância, são muitos os sentimentos e as imagens que passam por nossa mente: ternura, proteção e cuidado surgem ante a inocência, fragilidade e ignorância que as crianças parecem portar naturalmente. No entanto, temor, surpresa e até impotência também são sentimentos que irrompem quando encaramos o lado escuro de uma infância que se manifesta cruel e rude, pois se trata de experiências de vida que, ainda em seus primeiros anos, nos são apresentados como sujeitos espertos, vivazes, maliciosos, selvagens e perigosos; aqueles que aparecem nas reportagens e nas notícias dos jornais, na televisão e na Internet, e com frequência geram temor e desconcerto. [...] parece possível explicar os sentimentos contraditórios diante da atuação e dos gestos dos mais novos e a divergência entre seus comportamentos e o que compreendem os adultos sobre o que devem ser suas atitudes naturais e normais. Se trata de uma diferença cada vez mais aguda entre o que os adultos pensam que deve ser e fazer um indivíduo em seus primeiros anos de vida e o que acontece com ele em sua experiência particular de chegada e apropriação da cultura que o recebe (MARÍN-DÍAZ E LEÓN-PALENCIA, 2018, p. 17-18, tradução das autoras).

Nesse contexto de discussão, “não há como pensarmos uma identidade individual que se situe fora de uma relação social/cultural” (VEIGA-NETO, 2002, p.177), por mais forte que seja o movimento, implícito ou não, através dos pareceres pedagógicos e da cultura institucionalizada no antagonismo é preciso pensar nos modos de dizer/criar um modo de ser criança nessa instituição e em outras. É importante (re)afirmar que nessas relações e trocas de convivência institucional sempre é mister que apareçam as diferenças e a dificuldade de nós os docentes de vê-las e percebê-las. As diferenças e os repertórios infantis não são os mesmos dos adultos e, por isso. os saberes sobre as crianças não podem ser naturalizados e reforçados pelo senso-comum. Em uma -ou muitaspossível cultura própria para a instituição de Educação Infantil será necessário criar e conceber um modo de ver, compreender e constituir infâncias.

Conclusão

Nos aventuramos a pensar, neste artigo, a metáfora da peneira cirandada pelos pareceres pedagógicos que, produzem um modo de ser criança, em uma instituição de Educação Infantil e que tem se caracterizado muito próxima da cultura escolarizada. Uma instituição e docentes que utilizam a peneiração como processo de selecionar, destacar e até excluir crianças.

Tomamos o cirandar, nesse contexto, não como na brincadeira de roda, familiar ao cotidiano da Educação Infantil, como rodar e fazer uma ciranda: “ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar (…)” mas, no sentido dos garimpeiros o que nos deu possibilidade perceber o que permanece como valioso e o que se descarta, o que passamos a tomar como valioso nas relações sócio-políticas e o que escolhemos descartar. Isso têm a ver com os sujeito e sociedade e, sobretudo, nas instituições de Educação Infantil, com o modo como se escolhe olhar para as infâncias e a criança.

No contexto da Educação Infantil muitas escolhas são feitas, muitos discursos são produzidos dentro de um universo de precariedade, desatualização e incapacidades de movimentar escolas e a própria escolarização de crianças pequenas. Cria-se uma crise da escola produzida numa condição sócio-política e econômica, produzidas pelo efeito dos atos de fala e de escrita dos próprios professores que se naturalizam, se responsabilizam e produzem um tipo de infância.

O grande desafio a ser enfrentado é o amálgama de fronteiras e de papéis, esses que tem por consequência um limiar nebuloso entre os limites do bem e do mal, do certo e do errado. Nesse sentido, é imprescindível que os processos de trabalho e de produção docentes problematizem a ideia de opostos, dos binários que aparecem tão fortemente no contexto avaliativo. Analisar esses processos nos possibilitou criar a possibilidade para que os binarismos não se encontrem com a terra firme para se naturalizar ali, mas que o trabalho pedagógico com a Educação Infantil se (re)invente. Olhar para a criança, para seu repertório de ação, ouvi-la e vê-la podem ser a potenciais para inventar e operar com possibilidades de cultura própria para a Educação Infantil.

Certamente potencializar esse processo de comunicação onde efervescem as peculiaridades infantis é especialmente difícil atualmente, pois precisa lidar com os movimentos de vida cotidiana mergulhada em conflitos, complicações, frustrações e complexidade, onde já não é mais possível acreditar em normatizações e correções como caminhos para qualificar as práticas pedagógicas. É necessário que se estabeleça uma perturbação/estranhamento na forma de ver e pensar a(s) infância(s) para que haja a promoção da ruptura dos processos de padronização, criando-se, assim, abertura para outros tempos, espaços, sentidos e formas de estar com as infâncias nas escolas de Educação Infantil.

É preciso que se abandone aquela visão romântica e ingênua - ou malvada - do mundo da infância, como perfeito, regular e harmonioso, normativo e normalizado, pois esse tipo de entendimento conduz ao afastamento da compreensão real dos elementos que constituem a vida desses pequenos seres humanos.

Importante lembrar, ainda, que a opacidade que tem dado a tônica nas vidas e nos dispositivos escolares criados para atender as crianças; de fato, ainda predomina a ausência de mecanismos capazes de transformar a vida social, de conferir-lhe maior significação e alcance no contexto da experiência humana. Sabe-se que esta problemática é complexa, e que, portanto, o caminho para sua superação também exige estratégias complexas e, ainda, a compreensão de que as crianças e suas infâncias são do mundo e estão no mundo, que suas vidas são construídas por intermédio dos relacionamentos que estabelecem com o contexto físico, social, político, filosófico e afetivo que as cercam.

Referências

ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2.ed. Tradução de Dora Flaksman. Rio de Janeiro: Afiliada, 1981. [ Links ]

BARBOSA, Maria Carmen Silveira. Por amor e por força: rotinas na educação infantil. Porto Alegre: Artmed, 2006. [ Links ]

BUJES, Maria Isabel Edelweiss. Infância e maquinarias. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. [ Links ]

CRAIDY, Carmem Maria; KAERCHER, Gládis Elise P. da Silva (Org.). Educação infantil: pra que te quero?. Porto Alegre: Artmed,2001. [ Links ]

COHN, Clarice. Antropologia da criança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. [ Links ]

CORSARO, William. Sociologia da Infância. Porto Alegre: Artmed, 2011. [ Links ]

DAHLBERG, Gunilla; MOSS, Peter; PENCE, Alan. Qualidade na educação da primeira infância: perspectivas pós-modernas. Porto Alegre: Artmed, 2003. [ Links ]

EDWARDS, Carolyn. As cem linguagens da criança: a abordagem de Reggio Emilia na educação da primeira infância. Porto Alegre: Artmed, 1999. [ Links ]

FARIA, Ana Lúcia Goulart de; MELLO, Suely Amaral (Org.). Territórios da infância: linguagens, tempos e relações para uma pedagogia para as crianças pequenas. 2 ed. Araraquara, SP: Junqueira&Marin, 2009. [ Links ]

FARIA, Ana Lúcia Goulart de; FINCO, Daniela (Org.). Sociologia da infância no Brasil. Campinas, SP: Autores Associados, 2011. [ Links ]

FARIA, Ana Lúcia Goulart de. Educação pré-escolar e cultura; para uma pedagogia da educação infantil. 2 ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp; São Paulo: Cortez, 2002. [ Links ]

FARIA, Ana Lúcia Goulart de (Org.). O coletivo infantil em creches e pré-escolas: falares e saberes. São Paulo: Cortez, 2007. [ Links ]

FISCHER, Rosa Maria Bueno. Foucault e a análise do discurso em educação. Cadernos de Pesquisa, São Paulo: Fundação Carlos Chagas/Autores Associados, n. 114, novembro/2001, p. 197-223. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/cp/n114/a09n114.pdf. Acesso em: 21 abr. 2018. [ Links ]

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Editora Loyola, 2006. [ Links ]

HENN, Elí T.F; LOPES, Maura C. Inclusão & Educação. Minas Gerais: Autêntica, 2013. [ Links ]

KOHAN, Walter Omar. Infância. Entre a Educação e a Filosofia. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. [ Links ]

KUHLMANN JÚNIOR, Moysés. Infância e educação infantil: uma abordagem histórica. Porto Alegre: Mediação, 2010. [ Links ]

MACHADO, Roberto. Foucault, a ciência e o saber. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. [ Links ]

MARÍN-DÍAZ, Dora L; LEÓN-PALENCIA, Ana C. Infancia: balance de un campo discursivo. Bogotá: Universidad Pedagógica Nacional, 2018. [ Links ]

NARODOWSKI, Mariano. A infância como construção social. In: COSTA, Marisa Vorraber (Org.). Escola básica na virada do século. São Paulo: Cortez, 1996. [ Links ]

NARODOWSKI, Mariano. Adeus à Infância (e à escola que a educava). In: SILVA, Luiz H. (Org). A Escola Cidadã no Contexto da Globalização. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 172-177. [ Links ]

NARODOWSKI, Mariano. Infância e Poder: Conformação da Pedagogia Moderna. Bragança Paulista: Ed. da Universidade de S. Francisco, 2001. [ Links ]

OLIVEIRA, Zilma Moraes Ramos de (Org.). Educação Infantil: muitos olhares. 9ed. São Paulo: Cortez, 2010. [ Links ]

OLIVEIRA, Zilma Moraes Ramos de (Org.). A criança e seu desenvolvimento: perspectivas para se discutir a educação infantil. 4 ed. São Paulo: Cortez, 2000. [ Links ]

SARLO, B. Cenas da Vida Pós-Moderna: intelectuais, arte e vídeo-cultura na Argentina. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997. [ Links ]

SARMENTO, Manuel Jacinto; PINTO, Manuel. As Crianças: contextos e identidades. Portugal: Centro de Estudos da Criança. Universidade do Minho, 1997. [ Links ]

PÉREZ GÓMEZ. A. I. A Cultura Escolar na Sociedade Neoliberal. Porto Alegre: Artmed, 2001. [ Links ]

SKLIAR, Carlos. A invenção e a exclusão da alteridade "deficiente" a partir dos significados da normalidade. Educação e Realidade, Porto Alegre: UFRGS, v. 24, n.2, 1999, p. 15-32. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/55373/33644 Acesso em: 23 Jan. 2018. [ Links ]

UECKER, Taciana. A produção da infância e da criança: um cirandar pelos pareceres pedagógicos na Educação Infantil. Santa Maria: Universidade Federal de Santa Maria, 2019, 130 f. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas e Gestão Educacional, Santa Maria, 2019. Disponível em: https://repositorio.ufsm.br/bitstream/handle/1/19142/DIS_PPGPPGE_2019_UECKER_TACIANA.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 20 Jun. 2020. [ Links ]

VEIGA-NETO, Alfredo. Cultura, Culturas e Educação. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro: nº. 23, maio/agot, 2003. . p. 5-15. [ Links ]

VEIGA-NETO, Alfredo. Cultura, culturas e educação. Revista Brasileira de Educação. Maio/Jun/Jul/Ago, 2003, Nº 23. p.05-15. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n23/n23a01.pdf Acesso em: 05 nov. 2018. [ Links ]

VEYNE, Paul. Como se escreve a história. Foucault revoluciona a história. Brasília: editora UNB, 1982. [ Links ]

VEIGA, Cynthia Greive. Infância e modernidade: ações saberes e sujeitos. In: FARIA FILHO, Luciano (Org.). A infância e sua educação: materiais, práticas e representações. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. p. 97-118. [ Links ]

VEIGA, Cynthia Greive. As crianças na história da Educação. In: SOUZA, Gizele de (Org.). Educar na Infância: perspectivas histórico-sociais. São Paulo: Contexto, 2010, p. 21-39. [ Links ]

Recebido: 10 de Abril de 2019; Aceito: 24 de Novembro de 2020

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons.