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Eccos Revista Científica

versión impresa ISSN 1517-1949versión On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.60 São Paulo ene./mar 2022  Epub 08-Feb-2024

https://doi.org/10.5585/eccos.n60.13596 

Artigos

VIVÊNCIAS LITERÁRIAS E SUAS POSSIBILIDADES NA EDUCAÇÃO INFANTIL

LITERARY EXPERIENCES AND THEIR POSSIBILITIES IN EARLY CHILDHOOD EDUCATION

Geuciane Felipe Guerim Fernandes, Doutorado em Educação1 
http://orcid.org/0000-0002-8033-6561

Nathalia Martins Beleze, Mestrado em Educação2 
http://orcid.org/0000-0002-7203-5005

Sandra Aparecida Pires Franco, Pós-Doutora em Educação3 
http://orcid.org/0000-0002-7205-744X

1Doutorado em Educação, Universidade Estadual de Londrina - UEL. Londrina, Paraná - Brasil.

2Mestrado em Educação, Universidade Estadual de Londrina - UEL. Londrina, Paraná - Brasil.

3Pós-Doutora em Educação, Universidade Estadual de Londrina - UEL. Londrina, Paraná - Brasil.


Resumo

Esta pesquisa tem como objetivo repensar a leitura literária e suas práticas pedagógicas a partir da Teoria Histórico-Cultural e de autores contemporâneos da leitura e da literatura na infância. Nesse sentido, questiona-se: quais práticas pedagógicas podem contribuir para a formação do leitor desde a mais tenra idade? Para isso, a partir de uma pesquisa qualitativa, realizada em um Centro Municipal de Educação Infantil no estado do Paraná, buscou-se analisar práticas pedagógicas organizadas por meio de obras literárias clássicas. A abordagem e os instrumentos metodológicos utilizados foram aprovados por comitê de ética, conforme estabelecido para a pesquisa científica. Com base nos dados analisados, conclui-se que a ação docente, aliada à literatura infantil, constituiu-se como uma das possíveis travessias para criar necessidades na formação da identidade leitora desde a infância.

Palavras-chave leitura; literatura; educação infantil; práticas pedagógicas

Abstract

This research aims to rethink literary reading and its pedagogical practices from the Historical-Cultural Theory and contemporary reading and literature in childhood authors. In this sense, the question is: Which pedagogical practices can contribute to the formation of the reader from an early age? In order to do that, from qualitative research carried out in a Municipal Center of Early Childhood Education in the State of Paraná, it was sought to analyze pedagogical practices organized through classic literary works. The ethics committee approved the approach and methodological tools established for scientific research. From the analyzed data, it is concluded that the teaching action allied to Children's Literature as Art was constituted as one of the possible crossings to create needs in the formation of the reader identity since childhood.

Keywords: Reading; literature; child education; pedagogical practices

Introdução

A história da Educação Infantil e sua constituição enquanto primeira etapa da Educação Básica, que visa garantir “o desenvolvimento integral da criança de zero a cinco anos de idade” (BRASIL, 1996, art. 29), é marcada por uma gama de fatos históricos, políticos, econômicos e culturais. Nesse contexto, iniciou-se uma busca por compreender a criança como sujeito socio-histórico, capaz de criar e estabelecer relações junto de sua cultura.

Como primeira etapa da Educação Básica, a Educação Infantil representa um momento de descobertas na vida da criança, que, em contato com um novo espaço e novos sujeitos, vivencia saltos qualitativos no desenvolvimento humano. Todavia, ao analisar a realidade de instituições que atuam nessa etapa, observamos que muitas práticas se resumem ao cuidado, alimentação, higiene, momentos de brincar livre, atividades excepcionalmente importantes, mas que necessitam ser acompanhadas de intencionalidade pedagógica.

Muitas vezes, o que se percebe são ações isoladas, que descaracterizam o trabalho educativo, desconexas de qualquer perspectiva teórica que oriente a ação docente. Essa realidade nos possibilita pensar na necessidade de práticas pedagógicas que ultrapassem ações imediatas, para a formação de um ser humano capaz de pensar, analisar e agir nesta sociedade, demandando, assim, ações mediadas pela experiência humana. Essas ações pressupõem um trabalho educativo, sistematizado por professores que atuam nessa etapa da educação.

Uma das preocupações necessárias refere-se às ações de leitura literária realizadas com as crianças pequenas, as quais, muitas vezes, apresentam-se esvaziadas de sentidos e significados, realizadas como pretexto para o suposto ensino de “conteúdos”, minimizando o real sentido da literatura como Arte, como possibilidade de humanização, apropriação e confirmação das características tipicamente humanas. Nesse sentido, acreditamos que as práticas de leitura na Educação Infantil necessitam ir além do reducionismo e proporcionar a ampliação de vivências e experiências que contribuam na formação da identidade leitora.

A partir dessas reflexões, propomos apontamentos que podem contribuir para ações de leitura na Educação Infantil, repensando a leitura literária e suas práticas pedagógicas como possibilidade de desenvolvimento da criança, permitindo a ampliação da compreensão de si, do outro e do mundo ao redor. Para isso, a pesquisa fundamentou-se nos princípios teórico-metodológicos da Teoria Histórico Cultural e teve como método a pesquisa-ação, caracterizado pela inter-relação entre intervenção (ensino) e produção do conhecimento (pesquisa). Assim, buscou-se apresentar possibilidades do ato educativo e suas implicações na formação da identidade leitora.

Considerações iniciais: leitura, literatura e infância

Ampliar os repertórios da criança em relação ao mundo constitui uma necessidade da Educação Infantil. O bom ensino é aquele que estimula e ativa na criança processos internos de desenvolvimento a partir da inter-relação com o outro, aquele que cria necessidades no ser humano, ou seja, “uma correta organização da aprendizagem conduz ao desenvolvimento mental” (VYGOTSKY, 2005, p. 40). Em cada momento da vida existem atividades que são denominadas de “atividades principais”, que ampliam e promovem o desenvolvimento do ser humano (DAVYDOV, 1986; LEONTIEV, 1978). Encontramos em Graciliano (2014) uma sistematização do desenvolvimento humano, a partir dos estudos de Davydov (1986):

Quadro 1 Sistematização do desenvolvimento humano 

ESTÁGIOS ÉPOCA PERÍODO IDADE APROXIMADA ATIVIDADE PRINCIPAL CARACTERÍSTICAS
1 Comunicação emocional direta dos bebês






Primeira infância








Pré-escolar
Primeiras semanas de vida até seu primeiro ano Comunicação com os membros mais experientes da cultura Movimentos de estirar os braços tentando agarrar um objeto baseando-se nas ações humanas em relação aos objetos e inúmeras ações perceptuais
2 A atividade objetal-manipulatória Entre um e três anos Nesta etapa, a criança reproduz (inicialmente em cooperação com os adultos) os procedimentos e ações com os objetos elaborados culturalmente São pronunciadas as primeiras palavras e tem início o processo de construção de seus significados e sentido, começa a perceber o mundo dos objetos nas categorias generalizadas e a pensar através de ações representacionais corporais com uso de suportes materiais pivôs que articulam a expressão oral, o repertório gestual e o grafismo infantil.
3 A atividade de jogo











Infância
Crianças de três a seis anos de idade Jogo.
Ações representacionais dramáticas
Desenvolvimento da imaginação e a função simbólica, orientação relacionada à importância geral das relações e ações humanas e a habilidade em identificar os elementos de subordinação e controle nestas relações e ações: Imitação
4 A atividade de aprendizagem ou Comunicação íntima pessoal












Escolar
Se formam em crianças com seis a dez anos de idade









Estudo. Inclui tipos de atividades como trabalhos, aprendizagem, atividades sócio-organizacionais, esportes e atividades artísticas.
A consciência teórica e o raciocínio se evidenciam. As capacidades correspondentes (reflexão, análise, planejamento mental) e também as necessidades percebidas e motivos relacionados às tarefas escolares (aprendizagem) são desenvolvidos.
5 A atividade socialmente útil Adolescência Crianças de dez a quinze anos de idade Aspirações de independência econômica e de participação em trabalhos socialmente relevante, a organização crescente da comunicação em diferentes coletivos, dando a devida consideração às regras explícitas de inter-relações dentro destes coletivos, a reflexão sobre suas próprias condutas e avaliar o potencial de seus próprios “selves” (autoconsciência)
6 O estudo e a formação profissional Escolar/
Adulto
Com idades entre quinze e dezessete ou dezoito anos Desenvolvem-se os interesses de formação profissional Necessidades de trabalhar ampliam-se as competências científico-investigativas, formam-se as qualidades ideológico-morais, religiosas, cívicas e elaboram-se planos de constituição de sua própria família e uma visão estável do mundo.

Fonte:Graciliano (2014, p. 45)

A partir dessa sistematização, no que se refere à atividade principal em cada momento da vida humana, podemos reconhecer a relevância e a complexidade da educação para o desenvolvimento socio-histórico da humanidade. Ao defender uma educação capaz de ampliar o desenvolvimento, concordamos com Leontiev (1978, p. 267) ao afirmar que “[...] cada indivíduo aprende a ser um homem. O que a natureza lhe dá quando nasce não lhe basta para viver em sociedade”. Nesse processo, o homem torna-se homem por meio da formação, ou seja, instrumentalizado pelo conhecimento historicamente acumulado.

Considerando as especificidades da infância e o papel do professor em seu desenvolvimento, justificamos a defesa por práticas pedagógicas significativas em todos os campos do saber, e aqui especificamente no âmbito da leitura. Defendemos a leitura como produção de sentidos humanos, uma prática cultural complexa (ARENA, 2010; MANGUEL, 1997; SILVA, 2015):

[...] mais do que “uma forma cultural codificada”, o pequeno leitor envereda pela aprendizagem de um milenar instrumento cultural; mais do que se apropriar de uma visão “estética do mundo e de um uso especial de linguagem”, a criança se apropria, pelos instrumentos simbólicos, entre eles a linguagem literária, dos modos de criação artística, pilares indestrutíveis da evolução intelectual e moral do homem (ARENA, 2010, p. 28).

Nessa perspectiva, os leitores não se formam pela pronúncia fluente de palavras ou pela capacidade de retirar respostas dos textos, mas pela capacidade de estabelecer ligações de sentidos entre o livro, autor, leitor e suas experiências de vida. Assim, o texto literário apresenta-se como instrumento necessário na Educação Infantil, por seu caráter polissêmico que é capaz de provocar diferentes reações, desde o prazer emocional ao intelectual. Para além de fornecer informações, possibilita o contato com novas formas de vida, novas ideias, diferindo-se, assim, dos textos funcionais, que apresentam um só sentido (ARENA, 2010; FARIA, 2004).

Compreendemos que o ato de ler não é um ato pronto e acabado de apenas identificação e reconhecimento de palavras, mas um trabalho intencional, permeado por mediações que possibilitam transmitir, por meio da leitura, a cultura elaborada e produzida historicamente, para assim proporcionar sentidos à humanidade.

Porém, o desconhecimento do ato de ler como prática social é uma constatação percebida com facilidade na Educação Infantil, pois as atividades de leitura em sua maioria apresentam ações e textos simplistas, norteadas por propostas mecânicas e utilitárias, deixando de lado o real significado desse ato. Nessa perspectiva, consideramos necessário refletir sobre as práticas leitoras muitas vezes distanciadas da realidade social, as quais têm, concomitantemente, silenciado a elaboração de sentidos pelas crianças e a transformado em algo enfadonho, prejudicando a formação da identidade leitora (MARTINS, 2018).

Destacamos que a organização de práticas leitoras pressupõe análise e ousadia, em especial na Educação Infantil, visto que a professora empresta sua voz em diferentes momentos para disseminar obras literárias que oportunizam o desenvolvimento de sentidos e significados únicos na criança, possibilitando que ela visite lugares e sentimentos ainda desconhecidos, contribuindo para a compreensão de si, do outro e do mundo ao seu redor.

No decorrer desse processo, a leitura “[...] revela-se como um poderosíssimo instrumento de desenvolvimento da mente humana, das funções psíquicas superiores, constituintes do progressivo processo de humanização” (ARENA, 2010, p. 242). Afinal, desde os rudimentos nas cavernas, a leitura de mapas, as linhas da orquestra ou uma mãe compreendendo o rosto do bebê, em todos esses momentos decifram-se e produzem-se signos. Assim, compreende-se que, diante do processo de formação leitora, a criança necessita inicialmente atribuir significados a um sistema, para depois decifrá-lo (MANGUEL, 1997).

Tal processo possibilita o desenvolvimento de qualidades tipicamente humanas que necessitam ser desenvolvidas de acordo com as experiências culturais e sociais. As crianças não esperam se tornar alunas para aprender a ler, ou melhor, para adentrar na cultura escrita, pois a todo momento lemos o que está em nosso entorno. Por meio dessas leituras nos constituímos como sujeitos históricos e sociais (ARENA, 2010).

Na instituição escolar, em específico na escola da infância, etapa em que nos debruçamos neste estudo, compreendemos que as práticas pedagógicas com a leitura literária precisam se pautar em uma prática orientada de intencionalidade, potencializando a formação de atitudes leitoras na Educação Infantil e afirmando, no decorrer dessas ações, o entendimento do por que, como, quando e para que se lê. Por meio da literatura, o mundo torna-se mais compreensível para a criança, transformando a sua materialidade em palavras de cores, odores, sabores e formas intensamente humanas (COSSON, 2007), em que uma ação intencional pode proporcionar elementos que ampliem o repertório infantil, além de criar necessidades de leitura literária.

Nesse sentido, enfatizamos que a literatura tem um papel único na vivência e na escuta de textos desde a mais tenra idade, em que mesmo não “alfabetizadas” as crianças são capazes de ser ativas no processo de leitura, escutando histórias ou na transposição de seu texto oral para escrito, possibilitando-lhes a interpretação. Assim, a leitura literária revela-se como um elemento norteador para a produção de sentidos, ao passo que, na interlocução entre autor, leitor e obra, há o encontro de experiências que possibilitam um novo olhar, uma nova compreensão, proporcionando um novo sentido (LIMA, 2005; SILVA 2015).

Para Lukács (1970, p. 70), a literatura é arte, “[...] um elemento de mediação entre a realidade reificada e o indivíduo, assumindo um papel de esclarecimento, e somente dessa forma pode alcançar sua eficácia estética”. Diante de tais elementos, enfatizamos que a arte é um patrimônio cultural de toda a humanidade (CANDIDO, 1989), que necessita ser socializado nas práticas pedagógicas com as crianças desde a mais tenra idade. Ao proporcionar a vivência da literatura como arte, pode-se possibilitar uma transformação no modo de pensar e agir do indivíduo, produzindo efeitos qualitativos sobre o leitor, tornando-se uma prática social que pode contribuir para a compreensão de sua realidade. Nesse processo, torna-se imprescindível a mediação do professor, pois cabe a ele a tarefa do ato de ensinar. Nesse sentido, podemos afirmar que não basta uma forma didática, mas sim uma forma que exprima todo conteúdo em suas ricas possibilidades, em ricas experiências que potencializam a disseminação da leitura e da literatura na infância.

Romeu e Julieta: uma possibilidade de prática pedagógica na Educação Infantil

Essa intervenção foi realizada a partir dos estudos do grupo de pesquisa “A leitura e a sua relação conteúdo, forma e destinatário na Educação Básica”, desenvolvido na Universidade Estadual de Londrina. O projeto tem como objetivo compreender como se estabelece a relação conteúdo, forma e destinatário acerca da Leitura na Educação Básica. A partir dos estudos realizados, buscamos apresentar uma prática pedagógica realizada em um Centro Municipal de Educação Infantil do estado do Paraná, no ano de 2018.

É necessário ressaltar que as duas turmas acompanhadas no decorrer do ano de 2018 são do P5 (crianças de 4 a 5 anos), todavia, caracterizam-se por pertencerem à instituição desde o ano de 2017, visto que o P4 (crianças de 3 a 4 anos) é a etapa que se torna obrigatório o ingresso na Educação Infantil, por meio de uma alteração na LDB mediante a Lei no 12.796, de 4 de abril de 2013, de acordo com o Ministério da Educação. Sendo assim, o ano de 2018 é o segundo ano em que essas crianças estão na instituição.

Inicialmente, realizamos uma análise contextual do ambiente oferecido às crianças, em que foi possível perceber um cuidado expressivo em relação ao trabalho com a literatura, por meio do acervo do Programa Nacional Biblioteca na Escola, o qual propõe que “[...] as crianças tenham contato permanente com esses bens culturais que são os livros de literatura, para que se familiarizem com eles de modo a interagir com a linguagem literária” (BRASIL, 2014, p. 13). Esse acervo encontra-se em um espaço acessível para as crianças manusearem, sentirem e vivenciarem experiências com os professores.

Destacamos, assim, a relevância de ambientes destinados à leitura que necessitam apresentar possibilidades de aproximação ao ato de ler e que merecem um olhar especial, pois sua sistematização e organização contribui efetivamente para a criança identificar e diferenciar esse momento tão essencial desde a mais tenra idade (LIMA, 2005).

Além disso, o Projeto Político Pedagógico da instituição prevê que a leitura e contação de histórias ocorram em diversos momentos, visando o desenvolvimento da atitude leitora das crianças. Desse modo, a adesão das professoras regentes para o desenvolvimento de uma intervenção coletiva foi extremamente positiva. Assim, as turmas que participaram foram: P5A, composta por 18 crianças, e P5B, composta por 16 crianças, totalizando 34 crianças entre 4 e 5 anos.

Por conseguinte, foi explicado que seria encaminhado via agenda escolar o TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) para a assinatura daqueles que concordassem com a participação da criança na pesquisa - o prazo para o retorno foi de três dias e todas as crianças trouxeram o termo assinado. Para garantir o anonimato, preservando a identidade das crianças, utilizamos siglas e as denominamos como C1, C2, C3, sendo a letra C sinônimo de criança, e PA e PB para as respectivas professoras.

A escolha literária foi o clássico “Romeu e Julieta”, com duas versões da história: a original de William Shakespeare (2002) e a adaptação de Ruth Rocha (2009), com o intuito de conhecer a primeira versão, a fim de potencializar a linguagem por meio do questionamento, da inquietação e interpretação da história, e a segunda com a finalidade de realizar o processo dialético de hipertexto entre uma história e outra, além da relação dos acontecimentos da história e o cotidiano, a fim de atribuir diferentes significados.

Justifica-se a seleção das histórias pela necessidade de os clássicos estarem presentes desde a mais tenra idade, pois são um valiosíssimo legado cultural que contribuem para o desenvolvimento da criança, porque os clássicos “[...] aparecem claramente como manifestação universal de todos os homens em todos os tempos” (CANDIDO, 1989, p. 176).

Dessa maneira, evidenciamos que o processo inicial foi com o conto de Shakespeare (2002), em que a professora, em momentos anteriores, realizou a problematização sobre teatros e em seguida a turma desenvolveu uma pesquisa sobre a temática. Para a leitura da história, que aconteceu na praça em frente ao CMEI, foi utilizado uma caixa surpresa, na qual havia objetos representativos, concordando que:

Ao dirigir as palavras-signos das histórias às crianças, estamos colocando em prática esses pressupostos teórico-metodológicos neles incluso o afeto. Ao narrar de forma lúdica, estamos dedicando nossa voz e nossas brincadeiras sonoras a elas. Ao ouvir histórias, a criança percebe que a palavra do adulto está sendo dirigida a ela não como palavra de ordem, mas como palavra (voluntária) de acolhimento, de aconchego, de pertencimento. (GIROTTO; SOUZA, 2016, p. 28).

Para tanto, foi introduzida a participação das crianças na história, seja por meio dos sons ou, então, na narrativa com as respostas. Ao final da história, as crianças estavam extasiadas, encantadas com o trajeto percorrido pela história, concomitantemente a esse sentimento, as crianças apresentavam também expressões, falas, perguntas sedentas de respostas como: “Por que essas famílias brigavam, que chato?!” (C5); “Eles eram ricos, tinha grana?” (C9); “Eu nunca tinha escutado essa história! É nova?” (C2; C7); “Por que o final é triste?” (C4).

Dessa maneira, os momentos seguintes foram destinados a instrumentalizar as dimensões do planejamento desenvolvido pelas professoras regentes PA e PB frente aos questionamentos das crianças, com o intuito de proporcionar às crianças elementos de ampliação de repertório para apropriarem-se desse processo literário.

O texto de “Romeu e Julieta” em sua primeira versão fez com que as crianças do P5 o questionassem e se surpreendessem com as respostas encontradas por meio da mediação docente e da possibilidade de atribuir voz às crianças durante o processo de novos olhares.

O diálogo estabelecido entre as crianças, o texto lido e a mediação das professoras enfatiza que a palavra posta cria a necessidade de compreender o contexto, visto que a palavra é elemento fundamental, pois ela “[...] nomeia as coisas, individualizando suas características, designando as ações e relações, inserindo objetos em determinados sistemas, codificando a experiência” (TULESKI, 2011, p. 203).

Diante disso, foi elaborado um paralelo com a história de Ruth Rocha (2009), lida e interpretada com teatro de sombras, porém com o título as crianças já se inquietaram e questionaram: “Por que um desenho diferente na capa?” (C23); “Não é essa a história do Romeu e Julieta?!” (C27); “É mesmo, tá colorido essa!” (C32).

Dessa maneira, iniciou-se a problematização para instigar as crianças com o intuito de que pensassem em argumentos para a troca da capa do livro. A intenção foi de que as crianças falassem, pensassem a respeito da temática: “[...] quanto mais as crianças puderem falar em situações diferentes, problematizar assuntos, mais poderão se desenvolver de maneira significativa” (BRASIL, 2014, p. 37).

As crianças tiveram várias tentativas e entre as falas foi possível perceber que fizeram um paralelo da prática social vivenciada anteriormente. Após a leitura da história, as crianças estabeleceram relações entre os textos, percebendo diferentes elementos e realizando comparativos com a história de Shakespeare (2002): “É, ele faz igual na outra porque tem briga” (C32); “Verdade! Mas eles tentam ficar juntos” (C14). Além também de diferenciações e relações com o cotidiano, como “Aqui termina feliz!” (C18); “Todo mundo é diferente!” (C29).

Desse modo, percebemos que a produção do sentido é um fenômeno próprio da linguagem, que supera a sensação imediata para se unir ao pensamento verbalizado, sendo possível exprimir pensamentos e reflexões por meio da linguagem, pois “[...] o determinante da natureza interna do significado da palavra não está onde se costuma procurar. A palavra nunca se refere a um objeto isolado, mas a um grupo ou classe de objetos” (VIGOTSKI, 2001, p. 10).

Diante das dimensões apresentadas, pode-se perceber que a literatura provoca uma vivência interna ao leitor, uma vez que o mundo representado no texto, mesmo retratando um tempo longínquo do presente ou diferenciado como invenção do escritor, possibilita que a criança esteja ativa no enredo da história, na medida em que agita o imaginário e faz com que, de alguma maneira, ele se manifeste e transforme-se em linguagem.

Assim, as crianças realizaram inúmeros questionamentos e reflexões perante as duas histórias, os quais giraram em torno de diferentes elementos. Além de questionarem também sobre a possibilidade de disseminar tais histórias para as demais turmas da instituição, momento que foi extremamente significativo, visto que com esse questionamento as crianças demonstraram sentir a necessidade de disseminar tais histórias que elas próprias não conheciam.

Desse modo, as professoras organizaram as turmas atribuindo protagonismo às crianças, mediando as relações e potencializando as formas em que iriam disseminar as obras literárias. Após uma roda de conversa entre as duas turmas, ficou definido por meio de votação que a obra de Shakespeare (2002) seria disseminada com retratos produzidos pelas crianças e as professoras fariam a leitura da história para as demais turmas.

Referente à versão da Ruth Rocha (2009), ficou decidido que as crianças desenvolveriam um teatro e, para isso, seriam as produtoras de todos os elementos. Para tanto, inicialmente fizeram referência sobre o que conheciam de teatro, pois já haviam realizado pesquisas com as professoras e mencionaram: “Um teatro é organizado, tem lugares para sentar” (C26); “Tem que comprar ingresso, bilhete, senão, não entra” (C6); “Tem música e roupa diferente também” (C17).

Assim, a disseminação das obras para as demais turmas do CMEI aconteceu de maneira extremamente relevante para o desenvolvimento delas, visto que o pertencimento das crianças da turma do P5A e B no decorrer do processo foi riquíssimo, eles conseguiram se apropriar da obra literária, além de fazer hipertextos e relações com o cotidiano. Foi perceptível a relação direta do trabalho das professoras, que possibilitaram espaços e tempos oportunos para que as crianças aprendessem e se desenvolvessem por meio da cultura elaborada historicamente e, assim, vislumbrassem caminhos para a composição da identidade leitora.

Afinal, a criança nasce com uma única capacidade, a de criar capacidades (VIGOTSKI, 2001), de tal forma que o professor precisa ensinar por meio da mediação consciente, dentro de um contexto pedagógico, com propostas que façam sentido e significado às crianças.

Portanto, a consequência dessa ação docente é o relato das crianças com alegria e encantamento nos olhos, um vez que elas sentiram a apropriação sobre as histórias ricas em sentidos e significados a cada uma delas, foi uma literatura permeada por diferentes formas, visando ultrapassar a impressão imediata do texto, almejando a percepção total. A partir desse entendimento, houve o encontro de experiências que possibilitam um novo olhar, haja vista que as crianças mencionam uma nova compreensão, um novo sentido, afirmando que: “Conhecer novas histórias assim é muito bom!” (C7); “Eu contei para todos da minha casa” (C22); “Eu gostei tanto de ser alguém da história” (C10); “Quero conhecer outras histórias, professora” (C25).

Observamos a relevância de propor práticas pedagógicas mediadoras, que possibilitem à criança uma nova percepção e posicionamento frente ao texto, fornecendo elementos para a fantasia e, consequentemente, a criatividade e a realidade social.

Considerações finais

As discussões propostas ao longo da pesquisa buscaram por um lado possibilitar reflexões teóricas sobre o papel da leitura e da literatura na infância e, ao mesmo tempo, anunciar possibilidades de práticas pedagógicas que possam “[...] produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens” (SAVIANI, 2011, p. 6), neste caso, a leitura e a literatura infantil.

Os resultados alcançados neste estudo demonstram com clareza que as crianças não se constituem leitoras por meio de práticas mecanizadas, mas por meio da organização de práticas de leitura, que ampliam suas experiências e vivências com o mundo ao redor, seja o real ou o imaginário. Dessa forma, destacamos a importância de se repensar as práticas de leitura na Educação Infantil, vislumbrando novas possibilidades para o aprendizado da leitura, suscitando na criança pequena a necessidade de se relacionar com os livros e com toda a produção humana posta nesse universo.

Nesse caminho, resta-nos perceber que quando a prática pedagógica compreende a literatura como Arte, como possibilidade de atribuir voz e vez às crianças, as possibilidades de vivências durante essa travessia pode se tornar tessitura de ampliação do repertório e compreensão sobre o mundo a qual pertencem, em que a leitura é ponto de partida e chegada.

Produzimos sentidos a partir daquilo que primeiro produziu em nós, e essa deve ser a busca da escola da infância, produzir sentidos, de muitas formas, em muitas crianças. A literatura infantil constitui, assim, um caminho possível.

Referências

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Recebido: 13 de Abril de 2019; Aceito: 24 de Novembro de 2020

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