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Eccos Revista Científica

versión impresa ISSN 1517-1949versión On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.60 São Paulo ene./mar 2022  Epub 08-Feb-2024

https://doi.org/10.5585/eccos.n60.21730 

DOSSIÊ 60 - RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NA EDUCAÇÃO

QUAL O LUGAR DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NA BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR?

WHAT IS THE PLACE OF ETHNIC-RACIAL ISSUES IN THE NATIONAL COMMON CURRICULAR BASE?

Karla de Oliveira Santos, Doutora em Educação1 
http://orcid.org/0000-0003-4954-8184

1Doutora em Educação, Universidade Estadual de Alagoas -UNEAL- Campus IV. São Miguel dos Campos, Alagoas - Brasil.


Resumo

O currículo ganha centralidade com as políticas neoliberais implementadas no Brasil a partir da década de 1990, alinhado às avaliações em larga escala e mensurado enquanto representação da qualidade da educação. Em 2017, é concluída a última versão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para a Educação Infantil e Ensino Fundamental, constituindo-se como currículo nacional, implicado em narrativas de igualdade educacional, representações conservadoras e interesses privados, que ganham espaço com o golpe político-jurídico e midiático de 2016 e a ascensão do bolsonarismo. Contudo, a imposição de uma Base torna a diversidade étnica e racial problemática neste modelo de currículo homogêneo, mesmo com a Lei Nº 10.639/2003 e o Parecer nº 03/2004. Nesse sentido, o trabalho propõe realizar uma reflexão teórica a partir de estudos sobre a BNCC, apontando alguns elementos problematizadores sobre o lugar que as Relações Étnico-raciais ocupam neste currículo nacional.

Palavras-chave currículo; relações étnico-raciais; base nacional comum curricular

Abstract

Since the 1990s the curriculum gains centrality in Brazil due the neoliberal policies implemented in line with large-scale exams, and when it was used as the representation of the quality of one’s education. In 2017, the latest version of the National Common Curricular Base (BNCC) for early childhood education and elementary education was published, constituting itself as a national curriculum. This new curriculum was dealing with narratives of educational equality and conservative representations and private interests, which gained voice in 2016 with the political-legal coup, supported by the media, and the rise of Bolsonarism. However, the imposition of a common curriculum conflicts with ethnic and racial diversity, even with the Law No. 10,639 / 2003 and Legal Opinion No. 03/200. In this sense, this paper intends to carry out a theoretical reflection from studies on the BNCC, pointing out some problematical elements about the place that ethnic-racial issues occupy in this national curriculum.

Keywords curriculum; ethnic-racial issues; national common curricular base

1 Iniciando a discussão

As reformas educacionais ocorridas na década de 1990 no Brasil, sob a ótica do neoliberalismo, coloca o currículo como centro de materialização da qualidade da educação, alicerçado por avaliações em larga escala que irão validar sua eficácia, de forma homogeneizadora para todo o país.

Nos anos 2000, na segunda gestão do governo de Luiz Inácio Lula da Silva - PT- (2007-2010), o planejamento ganhou centralidade no campo educacional. Entre as ações, foi lançado o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) pelo Ministério da Educação (MEC), ao mesmo tempo em que é promulgado o Decreto n. 6.094, de 24 de abril de 2007, que instituiu o Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação, dispositivo legal que põe em vigência o PDE.

As mudanças provocadas por reformas de cunho neoliberal, envolvem desde a organização de referenciais curriculares nacionais e a formação de professores, até investimentos financeiros para amplos programas em âmbito nacional e a nível local, destinados a cada escola de cada município do país.

Sendo assim, podemos observar que a gestão das políticas educacionais no Brasil, desde a década de 1990, tem incorporado a lógica do novo gerencialismo público nas práticas de gestão dos sistemas de ensino e das escolas nas três esferas administrativas da federação. O modelo está alicerçado na busca de melhoria da qualidade na educação, entendida como objeto mensurável e quantificável em termos estatísticos e que poderá ser alcançada a partir de inovações incrementadas na organização e na gestão do trabalho na escola. (SANTOS, 2018).

Nessa perspectiva, na segunda década de 2000 surge a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para a Educação Infantil e Ensino Fundamental (última versão em 2017), que se constitui como um documento impositivo, sem a real participação dos que estão no “chão da escola”, engessando o trabalho dos professores, estimulando um currículo nacional interligado às avaliações oficiais e produção de livros didáticos, que beneficiam diretamente o mercado de editoras.

Para Cássio (2019, p. 13): “A Base é uma política de centralização curricular. Alicerçada nas avaliações em larga escala e balizadora dos programas governamentais de distribuição de livros didáticos”.

Sendo assim, este trabalho propõe realizar uma reflexão teórica a partir de estudos sobre a BNCC, apontando alguns elementos problematizadores sobre o lugar que as Relações Étnico-raciais ocupam neste currículo nacional.

2 O currículo: território da diversidade e da diferença

A relação entre educação e cultura é uma problemática complexa, entre outros aspectos, pelo fato de existir nos processos educativos, uma diversidade de grupos étnicos e multiculturais e o currículo torna-se um território a ser contestado.

O currículo deve ser o espaço de promoção da sensibilidade à pluralidade cultural e desconstrução de discursos e práticas educativas que silenciam ou estereotipam o outro, visto como o estranho, o diferente, o alienígena.

As narrativas contidas no currículo trazem embutidas noções sobre quais grupos sociais podem representar a si e aos outros e quais grupos sociais podem apenas ser representados ou até mesmo serem totalmente excluídos de qualquer representação.

Segundo Meyer (2001), o racismo sustenta-se não mais em ideias de superioridade biológicas inatas, mas em supostas incompatibilidades de tradições culturais; sendo o currículo e a escola instrumentos das diferenças e das desigualdades sociais.

De acordo com Silva (1996), o currículo é o espaço em que se concentram e se desdobram as lutas em torno dos diferentes significados sobre o social e político. É por meio do currículo que diferentes grupos sociais, especialmente os dominantes, expressam sua visão de mundo, seu projeto social, sua verdade. Contudo, esses grupos ditos superiores acabam impondo sua cultura como única e verdadeira, negando que o Brasil é multicultural.

Ainda segundo o referido autor, o currículo e a educação estão envolvidos em uma política cultural, o que significa que são tantos campos de produção ativa de cultura quanto campos contestados, tornando o currículo um terreno de produção e de política cultural, no qual os materiais existentes funcionam como matéria-prima de criação, recriação e, sobretudo de contestação e transgressão. As representações de gênero, raça, classe, nação, contidas no currículo devem ser subvertidas, desconstruídas, disputadas. É através desse processo de contestação que as identidades hegemônicas constituídas pelos regimes atuais de representação podem ser desestabilizadas e implodidas. (SILVA, 1996).

O currículo não é um elemento inocente e neutro de transmissão desinteressada do conhecimento social. O currículo não é um elemento transcendente e atemporal, ele tem significado e uma história vinculada a formas específicas e contingentes de organização da sociedade e da educação (MOREIRA; SILVA, 2005). Uma perspectiva apontada pelos autores é considerar o currículo como um artefato social e cultural, compreendendo sua implicação nas relações de poder, transmissão de visões sociais particulares e interessadas, como também produtor de identidades individuais e sociais particulares.

Currículos que atendam uma sociedade multicultural se constroem nos embates entre intenções e realidades, impregnadas por um horizonte que recusa o congelamento das identidades e o preconceito contra aqueles percebidos como diferentes. Buscam caminhos possíveis que possam articular a educação a um projeto de sociedade plural, democrática, em contraposição à barbárie, à intolerância e ao ódio ao outro. (CANEN, 2002).

O currículo produz sentidos e significados, e os produzindo é definidor de identidades e diferenças. Segundo Silva et.al. (1995), a identidade, tal como a diferença, é uma relação social, isso significa afirmar que estão sujeitas a vetores de força, a relações de poder. Elas não convivem harmoniosamente, lado a lado, em um campo sem hierarquias, elas são disputadas.

Ainda de acordo com Silva et.al (1995), dividir e classificar significam hierarquizar, demonstrando as relações de poder presentes nessa relação. A mais perigosa classificação é aquela que se baseia em oposições binárias: bom/mau, homem/mulher, branco/preto, heterossexual/homossexual, puros/impuros, normais/anormais, racionais/irracionais. Percebendo que há uma superioridade de um sobre o outro, sendo o primeiro sempre o dominante dessa relação, atribuindo valores positivos enquanto o outro recebe a carga negativa, vendo a alteridade como artifício discriminatório. Questionar a identidade e a diferença como relações de poder, significa problematizar os binarismos em torno dos quais elas se organizam.

É preciso questionar e problematizar essas questões, tentando explicar e compreender como a diferença é ativamente produzida, antes de enaltecer o discurso da tolerância e do respeito às diferenças, pois esses sentimentos impedem que vejamos as identidades implicadas em relações de poder.

A escola e o currículo devem favorecer um contexto de equidade e de respeito à diferença, sendo a instituição chamada a lidar com as diversidades culturais e alteridades, direcionando um olhar crítico para a formação de um currículo inter/multicultural, que seja capaz de incorporar a pluralidade de forma positiva, rompendo com uma perspectiva de educação monocultural.

A inter/multiculturalidade se faz presente na vida brasileira, estando à diversidade diretamente naqueles que constituem a comunidade escolar. Entretanto, a presença do diverso tem sido muitas vezes ignorada, descaracterizada ou minimizada. São múltiplas as origens da omissão com relação à pluralidade cultural, quando algumas vezes a escola subordina uma cultura à outra ou divulga uma concepção de cultura uniforme e padronizada, não reconhecendo o grande mosaico lingüístico e cultural brasileiro.

A construção de um currículo multicultural crítico e emancipatório pode contribuir para a promoção de atitudes de solidariedade e reciprocidade entre as culturas diversas que compõem o nosso país, desconstruindo preconceitos e estereótipos inferiorizantes, que contemplem a diversidade humana e a alteridade de forma positiva.

O grande desafio da atualidade é a formulação e consolidação de políticas públicas para a promoção da equidade racial, almejando o combate das desigualdades raciais no Brasil, que se configuram como um fenômeno complexo, pelo fato de existir uma grande pluralidade étnico-racial. No campo educacional, a Lei nº10. 639/2003, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação nº 9.394/1996, com a inclusão obrigatória no currículo oficial da temática História e Cultura Afro-brasileira, é um passo importante na desconstrução dos estereótipos e discriminações.

3 A Lei n.º 10.639/2003 e o parecer n.º 03/2004: problematizações curriculares

Em 2013, tivemos avanços com a Lei Nº 10.639/2003, fruto da luta do Movimento Negro, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) Nº 9.394/96, estabelecendo a obrigatoriedade do Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira, contribuindo de forma positiva para o currículo nacional, assim como, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (Parecer Nº 03/2004) no ano posterior, fortalecendo a discussão das questões étnico-raciais, buscando o respeito, o pertencimento e a valorização da história, da cultura e da identidade negra.

A Lei n.º 10.639/2003 possui relevância por focar a obrigatoriedade do estudo da temática dentro do currículo oficial da educação brasileira:

Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.

§ 1º O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política, pertinentes à História do Brasil.

§ 2º Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileira.

Essa lei deve ser compreendida como uma vitória das lutas históricas do movimento negro brasileiro em prol da educação, podendo causar impactos satisfatórios, proporcionando uma visão afirmativa acerca da diversidade étnico-racial e entendendo-a como uma riqueza de nossa diversidade cultural e humana, devendo ser problematizada à luz das relações de poder, dominação e dos contextos de desigualdade e de colonização. (GOMES, 2008).

Esse movimento lutava desde a década de 1980 pela incorporação da História da África e do Negro do Brasil nos currículos escolares, propondo uma revisão historiográfica nos livros didáticos, promovendo visibilidade de uma identidade étnica negra:

Somente em 2003, como desdobramento da luta do movimento negro organizado, durante muito tempo engajado na cobrança de políticas públicas que dessem conta de enfrentar as históricas desigualdades entre negros e brancos, foi criada a Lei nº 10.639, a qual altera a LDB nº 9.394/96, nos seus artigos 26 e 79, tornando obrigatória a entrada no currículo oficial do ensino fundamental e médio a temática: “História e Cultura Africana e Afro-brasileira” (NUNES; CUNHA Jr., MIMEO, 2010).

O referido arcabouço legal contribui para romper com a limitação que é dada quando se trata da História do povo negro, resumida sempre à escravização, colonização, subordinação e diluição do conhecimento produzido pelos povos negros escravizados. Muitas vezes não possibilitando aos educandos reconhecer a África e sua história como Berço da Humanidade, a partir de sua evolução histórica em relação a outros povos e sua riqueza cultural, não tomada de forma exótica e folclorizada, colocando a figura do negro de forma animalizada, cristalizada e repleta de estereótipos.

As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, do ano de 2004, subsequentes à lei analisada, conduzem em todo o texto a discussão das questões étnico-raciais, buscando o respeito, pertencimento e valorização da história, da cultura e da identidade negra, proporcionando um reconhecimento nas práticas curriculares, como expõe o artigo a seguir:

Art. 2° As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana constituem-se de orientações, princípios e fundamentos para o planejamento, execução e avaliação da Educação, e têm por meta, promover a educação de cidadãos atuantes e conscientes no seio da sociedade multicultural e pluriétnica do Brasil, buscando relações étnico-sociais positivas, rumo à construção de nação democrática.

§ 1° A Educação das Relações Étnico-Raciais tem por objetivo a divulgação e produção de conhecimentos, bem como de atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos quanto à pluralidade étnico-racial, tornando-os capazes de interagir e de negociar objetivos comuns que garantam, a todos, respeito aos direitos legais e valorização de identidade, na busca da consolidação da democracia brasileira.

Temos uma legislação no campo educacional que apresenta não somente possibilidades, mas também avanços, representando a concretização da luta do Movimento Negro ao longo das décadas. A Lei 10.639/2003 traduz essa luta, já que é a primeira vez que uma LDBEN apresenta de forma clara e explícita a discussão da História e Cultura Africana e Afro-brasileira no currículo oficial. Como também, o Parecer 03/2004 que propõe diretrizes para o trabalho curricular com essas questões.

Desta forma, podemos observar que apesar da “obrigatoriedade” essa discussão e esse trabalho se dão muitas vezes em algumas escolas por iniciativas isoladas, não abrangendo todo sistema ou rede escolar e quando há a tentativa de promover essas discussões dentro da escola, elas são muitas vezes balizadas a datas comemorativas como o 13 de maio e principalmente o 20 de novembro, de forma pontual. E ainda, realizam interpretações equivocadas da Lei, limitando o estudo da História Afrobrasileira e Africana às disciplinas específicas, não compreendendo que esse debate deve se fazer presente em todas as áreas do conhecimento.

Destarte, com os avanços do arcabouço legal para as Relações Étnico-raciais na primeira década do século XXI, hoje vivemos tempos de retrocessos e de silenciamento de tais questões no currículo oficial, a partir de um governo conservador e neofascista, apoiado por grupos ideológicos conservadores e de base religosa neopentecostal, que tentam desqualificar e invisibilizar as diversidades.

É importante ressaltar o enfraquecimento do debate e de políticas públicas afirmativas desde o governo golpista de Michel Temer (MDB), com a extinção da Secretaria de Políticas de Promoção para a Igualdade Racial (SEPPIR) e da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI).

4 O lugar das relações étnico-raciais na BNCC: onde nos situamos?

A versão final que se configurou com a atual BNCC para a Educação Infantil e Ensino Fundamental foi resultado das articulações de fundações e institutos privados, como: Fundação Bradesco, Fundação Lemann, Itaú Social, Instituto Natura, Instituto Unibanco, Instituto Ayrton Senna, Instituto Inspirare, Instituto Fernando Henrique Cardoso, Fundação Roberto Marinho, Fundação Victor Civita, entre outros, além de organismos internacionais como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e Banco Mundial (BM), que ganharam maior espaço com o golpe político-jurídico e midiático em 2016, que culminou com o impeachment da presidenta legitimamente eleita Dilma Rousseff (PT).

O golpe de 2016 e ascensão de um movimento conservador acabam implicando na exclusão das contribuições das universidades e movimentos sociais. Há um consenso dos defensores da Base Nacional, que a universalização de conhecimentos, habilidades e competências, garantiriam um projeto curricular que promovesse uma igualdade e qualidade da educação nacional. Para Ball (2001), um currículo nacional tem relação com um projeto econômico global, capaz de produzir discursos que se capilarizam socialmente.

A BNCC é concebida para suprir o que falta à escola. E quanto mais se deseja afirmar o valor da Base, mais se justifica a instituição escolar, os docentes e discentes como carentes de algo, mas se realiza uma homogeneização das escolas como lugares onde não se ensina.

Sendo assim, há sérias críticas relacionadas à Base, com sua perspectiva excludente, antidemocrática, técnica, gerencialista, homogeneizante, racista e meritocrática, que desempodera o que é produzido na escola e em seu entorno.

“As escolas brasileiras não são iguais. Suas condições de funcionamento são extremamente diversificadas por regiões, por classes, por turnos, não sendo desprezível a presença de uma pluralidade étnica e cultural.” (CURY, REIS e ZANARDI, 2018, p.47).

É necessário citar também que a BNCC, tem se constituído como política curricular nacional e que caminha na contramão dos Parâmentros Curriculares Nacionais (PCN`s) que surgiu na década de 1990, no governo do então presidente da República Fernando Henrique Cardoso de Melo (PSDB), influenciado por organismos multilaterais, que mesmo com algumas críticas e limitações, possibilitava a temática no currículo oficial como tema transversal.

A Base enfatiza a instrumentalização de habilidades e competências na ótica neoliberal, alinhadas às avaliações oficiais, tornando-se um projeto curricular uniforme e nacional, limitado a conhecimentos tidos como universais, de desvalorização da diversidade étnico-racial e cultural presentes no cotidiano escolar.

A universalização das políticas não pode significar homogeneização, especialmente, no campo do currículo escolar, onde o diálogo com as especificidades socioculturais é fundamental para qualificar a práxis. Um currículo igual para todos é uma proposta no mínimo desrespeitosa, mas, é também contrademocrática. Fere a autonomia das redes de ensino, dos professores e de todos que fazem a escola. A homogeneização desrespeita as distintas matrizes étnicas do povo brasileiro, inclusive, suas conquistas, no âmbito da legislação educacional, as quais parecem não ter valor na BNCC. (SENA,2019, p.20).

Nesse sentido, a BNCC para a Educação Infantil e Ensino Fundamental, tem negligenciado este lugar das Relações Étnico-raciais no currículo oficial, reduzindo e abordando de forma superficial ou ainda, limitada a uma perspectiva de multiculturalismo liberal, sem uma maior problematização sobre a diversidade e diferenças, desprovido de indicativos para desconstrução do mito da democracia racial, desconsiderando que vivemos em uma sociedade que se almeja plural e democrática.

Segundo Peter Mclaren (1997), o multiculturalismo humanista liberal defende que há uma igualdade natural entre as pessoas de diferentes etnias, mas o acesso às oportunidades sociais não é para todos. Esta perspectiva é baseada na igualdade intelectual entre as raças, na sua equivalência cognitiva ou na racionalidade iminente em todas as raças que lhes permitem competir igualmente em uma sociedade capitalista. Subentende-se que é uma visão etnocêntrica, universalista e opressiva.

Contudo, Cury, Reis e Zanardi (2018), acrescentam que a última versão aprovada e em processo de implementação nos sistemas de ensino, apresenta uma seleção comprometida com o eurocentrismo como direitos de aprendizagem, abandona questões de gênero e étnico-raciais em prol do multiculturalismo liberal, sendo as Histórias e Culturas Afro-brasileiras e indígenas situadas como notas de rodapé do que presente no próprio corpo do texto da Base.

Para Canen (2002), o desafio maior para a educação anti-racista e anti-discriminatória é o de trabalhar no horizonte das identidades híbridas, ou seja; a mistura, a conjunção, o intercurso entre diferentes nacionalidades, entre diferentes etnias, entre diferentes raças; de forma a não essencializar as diferenças, mas ao mesmo tempo, não promover sua total diluição.

A partir do exposto, é necessário evidenciar que o documento apresenta a África em uma perspectiva colonizadora européia, colocando o povo negro no lugar de subalternidade. Para Gomes (2008), a África e os negros brasileiros são apresentados pela visão do “outro”, do branco, do europeu, sendo vistos de forma cristalizada, estereotipada e muitas vezes, animalizada.

O silenciamento das relações étnico-raciais tenta ocultar o racismo estrutural que configura a sociedade brasileira e que poderá reforçar práticas discriminatórias e preconceituosas nas escolas.

Esse lugar do que poderíamos ter e ser, nos coloca em um movimento de resistência contra os retrocessos do atual governo bolsonarista, que ameaça a frágil democracia brasileira e o não cumprimento de princípios constitucionais democráticos como a pluralidade, a diversidade e a não discriminação.

A luta pela universalização da educação no Brasil faz-se acompanhar por debates e políticas relacionadas ao respeito a diversidades e especificidades, como quando se considera a educação indígena, a educação do campo, questões de gênero e sexualidade, a luta contra o racismo e contra a homofobia. Tais temas, longe de dirigirem-se a segmentos específicos da sociedade, integram a agenda de uma escola que se quer plural e democrática, base, por sua vez, de relações de mesma natureza. (ADRIÃO e PERONI,2018 p. 49)

Assim sendo, pontuamos que a escola tem um desafio a enfrentar: contemplar o hibridismo cultural, ou seja, a possibilidade de diálogos, trocas e aproximações entre as diferentes culturas que convivem no espaço escolar, dar visibilidade para as diversidades e diferenças nas práticas educativas e curriculares.

Consideramos importante a implantação efetiva da Lei Nº 10.639/2003, vendo-a como a possibilidade de dar voz ao silenciamento de grupos considerados subalternos e que foram muitas vezes recalcados e inferiorizados nos currículos oficiais.

É importante salientar que:

Do ponto de vista pedagógico, a superação dos preconceitos sobre a África e o negro brasileiro poderá causar impactos positivos, proporcionando uma visão afirmativa acerca da diversidade étnico-racial e entendendo-a como uma riqueza da nossa diversidade cultural e humana. Do ponto de vista político, essa mesma visão deverá sempre ser problematizada à luz das relações de poder, de dominação e dos contextos de desigualdade e de colonização. (GOMES, 2008, p. 72).

E finalizamos esse trabalho afirmando que, na BNCC para a Educação Infantil e Ensino Fundamental há conflitos e tensões para a efetivação da Lei Nº 10.639/2003 e do Parecer nº 03/2004, supervalorização da cultura considerada hegemônica e reducionismo das relações étnico-raciais, direcionando uma perspectiva de currículo acrítica da diversidade e diferença, demonstrando seu viés tradicional e distante dos estudos curriculares pós-críticos, na tentativa de silenciar, ocultar ou minimizar essa pluralidade étnico-racial e cultural brasileira.

Referências

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