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Eccos Revista Científica

versión impresa ISSN 1517-1949versión On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.61 São Paulo abr./june 2022  Epub 09-Feb-2024

https://doi.org/10.5585/eccos.n61.15794 

Artigos

EDUCAÇÃO LIBERTADORA CONTRA A IGNORÂNCIA E A BARBÁRIE: NOTAS DO PENSAMENTO CRÍTICO DE PAULO FREIRE

LIBERATING EDUCATION AGAINST IGNORANCE AND BARBARISM: NOTES FROM THE CRITICAL THOUGHT OF PAULO FREIRE

EDUCACIÓN LIBERADORA CONTRA LA IGNORANCIA Y LA BARBARIE: NOTAS SOBRE EL PENSAMIENTO CRÍTICO DE PAULO FREIRE

Alex Sander da Silva, Pós-Doutorado em Educação1 
http://orcid.org/0000-0002-0945-9075

Karoline Cipriano dos Santos, Mestranda em Educação2 
http://orcid.org/0000-0002-2942-4005

1Pós-Doutorado em Educação, Universidade do Extremo Sul Catarinense - Unesc. Criciúma, Santa Catarina - Brasil.

2Mestranda em Educação, Universidade do Extremo Sul Catarinense - Unesc. Criciúma, Santa Catarina - Brasil.


Resumo

A educação brasileira, ironicamente, segue como alvo de uma política de desregulamentação do Estado e de interesses mercadológicos do capital financeiro. Nessa perspectiva, o cenário brasileiro no âmbito educacional se configura de modo obscurantista, sobretudo, pelos cortes de verbas, se transforma numa arena de conflitos ideológicos em que professores são caracterizados como “doutrinadores ideológicos” e com o interesse de redução drástica da formação humanista e que entende o conhecimento hierarquizado por sua utilidade e identificado pelo vocabulário da prática. Este ensaio pretende refletir sobre os sentidos do “educar” (formar), na perspectiva das contribuições da educação como prática de liberdade e autonomia de Paulo Freire. Primeiramente, buscamos uma exposição do pensamento de Freire, sobretudo, de sua análise da educação bancária e o seu contraponto na educação libertadora. Num segundo momento, tratamos sobre a educação como resistência critica a ignorância e a barbárie na atual condição do campo educacional brasileiro em tempos de neoconservadorismo, de modo particular, num exercício do pensamento crítico sobre esse nosso tempo social, que tenta uma negação do pensamento freireano.

Palavras-chave educação; Paulo Freire; emancipação; ignorância; barbárie

Abstract

Brazilian education, ironically, remains the target of a policy of deregulation of the state and market interests of finance capital. From this perspective, the scenario Brazilian educational configures obscurantists shaped, above all, by funding cuts, it becomes an arena of ideological conflicts in which teachers are characterized as “ideological indoctrinators” and with the interest of drastically reducing humanist and which understands knowledge hierarchized by its usefulness and identified by the vocabulary of the practice. This essay intends to reflect on the senses of "educating" (forming), in the perspective of the contributions of education as a practice of freedom and autonomy by Paulo Freire. Firstly, we seek an exposition of Freire's thinking, especially his analysis of banking education and its counterpoint in liberating education. In a second moment, we deal with education as a critical resistance to ignorance and barbarism in the current condition of the Brazilian educational field in times of neoconservatism, particularly in an exercise of critical thinking about our social time, which attempts to deny Freire's thought.

Keywords education; Paulo Freire; emancipation; ignorance; barbarism.

Resumen

Irónicamente, la educación brasileña sigue siendo objeto de una política de desregulación por parte del Estado y de los intereses mercantiles del capital financiero. En esta perspectiva, el escenario brasileño en el campo educativo se configura de forma oscurantista, sobre todo, por los recortes presupuestarios, se convierte en arena de conflictos ideológicos en los que los docentes son caracterizados como "adoctrinadores ideológicos" y con el interés de reducción drástica de formación humanista y pedagógica que entiende el conocimiento jerarquizado por su utilidad e identificado por el vocabulario de la práctica. Este ensayo pretende reflexionar sobre los significados de “educar” (formar), en la perspectiva de los aportes de la educación como práctica de libertad y autonomía de Paulo Freire. En primer lugar, buscamos una exposición del pensamiento de Freire, sobre todo, su análisis de la educación bancaria y su contrapunto en la educación liberadora. En un segundo momento, abordamos la educación como resistencia que critica la ignorancia y la barbarie en la condición actual del campo educativo brasileño en tiempos del neoconservadurismo, en particular, en un ejercicio de pensamiento crítico sobre nuestro tiempo social, que trata de negar el pensamiento freireano.

Palabras-clave: educación; Paulo Freire; emancipación; ignorancia; barbarie.

Introdução

Na atualidade brasileira a educação vem tornando-se subproduto da vida social, que insiste na “produção do mesmo”, na sua forma de reproduzir os ditames do capitalismo neoliberal. Se, ao admitirmos a subprodução da vida social no capitalismo atual, podemos dizer que tem-se conservado e/ou inventado formas educativas que, nas suas formas ideológicas, buscam a manutenção e o fortalecimento do próprio sistema. E no Brasil, o capitalismo, em sua versão neoliberal, com sua produção social de mercadorias e sua “roupagem ideológica”, mostra-se cada vez mais em sua perversidade e totalitarismo sobre nossas vidas concretas e sobre nossas formas de organização educacional.

Nesse contexto, o pensamento de Paulo Freire nos auxilia a pensar contra a insistência de uma irracionalidade obtusa que nos acerca, inclusive nos ambientes educacionais. Na atualidade a educação brasileira vem sendo atacada por concepções que beiram ao obscurantismo, que veem a escola ou a universidade como um lugar de “doutrinação esquerdista” ou de “balburdia” e repleta de “idiotas úteis”.

Este artigo pretende refletir sobre os sentidos do “educar” (formar), na perspectiva das contribuições da educação como prática de liberdade e autonomia de Paulo Freire. Primeiramente, buscamos uma exposição do pensamento de Freire, sobretudo, de sua análise da educação bancária e o seu contraponto na educação libertadora. Num segundo momento, tratamos sobre a educação como resistência crítica à ignorância e à barbárie na atual condição do campo educacional brasileiro em tempos de neoconservadorismo, de modo particular, num exercício do pensamento crítico sobre esse nosso tempo social, que tenta uma negação do pensamento freiriano.

O pensamento de Paulo Freire em tempos de neoconservadorismo

Paulo freire foi um dos pensadores educacionais brasileiros mais reconhecidos no mundo, se não o mais. Viveu um período de sua vida durante a ditadura militar, chegando a ser preso e exilado por ‘subversão’. Atualmente é considerado o patrono da educação brasileira. Foi um autor engajado com a causa da educação e da política, abordando temas sobre a relação professor e aluno, da educação “bancária”, sobre leitura de mundo e de palavra, criou um método de alfabetização de jovens e adultos.

Podemos dizer que sua principal obra foi Pedagogia do Oprimido (2015), escrita durante o exilio. Esta obra traz o tema da relação entre o opressor e oprimido. O primeiro constituído pela classe dominante cultural, intelectual e economicamente, que não deseja que a segunda, a classe dominada, se emancipe ou alcance o mesmo lugar que a primeira ocupa. Freire, nesta obra, analisa a sociedade e a relação educacional de forma dialética a dominação. Ou seja, reflete como a sociedade influencia a educação e vice-versa.

Para ele a opressão é presente também nas escolas, no seu próprio método de ensino, designado pelo autor como “educação bancária”. Nela o professor detém o conhecimento e os alunos são “folhas em branco”, meros receptores de conhecimento. No processo educativo bancário, o professor ‘deposita’ informação e tira o ‘extrato’ através da avaliação. A narrativa educacional imputa a dominação de um sobre o outro, ou seja, do professor, que supostamente detém o conhecimento, sobre o aluno, que vive na sombra da ignorância, o “sem luz”.

A narração, de que o educador é o sujeito, conduz os educandos à memorização mecânica do conteúdo narrado. Mais ainda, a narração os transforma em “vasilhas”, em recipientes a serem “enchidos” pelo educador. Quanto mais vá “enchendo” os recipientes com seus “depósitos”, tanto melhor educador será. Quanto mais se deixem docilmente “encher”, tanto melhores educandos serão. Desta maneira, a educação se torna um ato de depositar, em que os educandos são os depositários e o educador o depositante. (FREIRE, 2015, p.80).

Freire, ao explicitar o papel político da educação, aponta com toda força para uma “educação libertadora”. A educação libertadora, enquanto processo de negação de uma educação bancária, tem a empreitada de fortalecer “a concepção problematizadora e libertadora da educação” (FREIRE, 2015, p.86). Em outras palavras, seus pressupostos pedagógicos e sua ação educativa, “deve orientar-se no sentido da humanização de ambos”. Isso significa fortalecer a resistência contra a dominação (FREIRE, 2015, p.86).

Nesse sentido, Freire elabora sua Pedagogia do Oprimido (2015), para se contrapor às formas de degeneração educativa que promovem o conformismo e a submissão servil do conhecimento e dos sujeitos. Tal degeneração é produto das formas de dominação social capitalista, pois, no entender freiriano, educar significa levar a sério o tempo necessário para a construção de sentido que se liberta das amarras do sistema de dominação, principalmente pelo indescritível empobrecimento do político, da cultura e do desenvolvimento econômico.

A educação como prática da dominação, que vem sendo objeto desta crítica, mantendo a ingenuidade dos educandos, o que pretende, em seu marco ideológico (nem sempre percebido por muitos dos que a realizam), é indoutriná-los no sentido de sua acomodação ao mundo da opressão” (FREIRE, 2015, p.92)

A educação para a dominação é o próprio paradoxo da educação que tem como objetivo a “acomodação” do educando a condição da opressão recaída sobre ele. O testemunho das muitas retóricas nos últimos anos nos leva a crer que o diagnóstico educacional de Freire ainda é pertinente. Mesmo nos deparando com uma série de problemas relacionados à educação, podemos compreender que eles não estão desarticulados com as problemáticas, nada circunstanciais, do capitalismo avançado.

A educação, ao desconsiderar seu conteúdo político e não vislumbrar-se como uma práxis transformadora, despreza as intervenções objetivas e materiais que geram a dominação. Como contraponto a isso, podemos indicar a educação como prática da liberdade de Freire na perspectiva de superação das condições vigentes da educação. Para superar essa relação o autor sugere:

Em verdade, não seria possível à educação problematizadora, que rompe com os esquemas verticais característicos da educação bancária, realizar-se como prática de liberdade, sem superar a contradição entre o educador e os educandos. Como também não lhe seria possível fazê-la fora do diálogo. É através deste que se opera a superação de que resulta um termo novo: não mais o educador do educando do educador, mas educador-educando com educando-educador. (FREIRE, 1987, p. 39)

Podemos notar que uma das formas de superar a relação de opressão produzir uma educação problematizadora que responder aos anseios da essência do ser da consciência dos educandos. Uma educação que busque, na sua intencionalidade, superar as formas “bancárias” do educar. Que para Freire “ao contrário da “bancária”, a educação problematizadora, respondendo à essência do ser da consciência, que é sua intencionalidade, nega os comunicados e existência a comunicação” (FREIRE, 2015, p. 94).

A criatividade é um ponto chave na obra de Freire (1979), pois para ele, por sermos seres inacabados temos o ímpeto criador. Nesse sentido, quanto mais a educação estimular o ímpeto oncológico de criar dos homens, mais autêntica ela será. Do contrário, o que acontece é a domesticação e com isso uma negação da educação e do desenvolvimento ontológico do ser.

Uma das apostas de Freire é o diálogo, uma relação horizontal entre os envolvidos no processo de ensino e aprendizagem. Para ele, além de propiciar uma relação mais agradável e própria para a apropriação de conhecimento, o diálogo exerce uma função de modificar os papeis já estabelecidos - de professor educador e aluno aprendente -, pois “Ë através deste [diálogo] que se opera a superação de que resulta um termo novo: não mais educador do educando, não mais educando do educador, mas educador-educando com educando-educador.” (Freire, 2015, p. 95). Desse modo, ambos aprendem e ambos ensinam.

Nesse sentido, Freire (1979) comenta que, como seres inacabados e diversos no mundo, não existe saber maior ou saber menor, mas sim relativizações de saberes, e “é preciso saber reconhecer quando os educandos sabem mais e fazer com que eles saibam com humildade” (Idem, 1979, p.29). É possível perceber que a modéstia e respeito aos educandos e seus saberes está presente em toda sua obra.

Essa humildade em Freire permeia sua obra. Na obra Pedagogia da Autonomia (2011) o autor disserta sobre o pensar certo e ensinar certo, que para ele é, justamente, ter a noção de que nem sempre vai estar pensando certo e ensinando certo, mas ter consciência de que podemos errar. Além disso, o autor assevera que o pensar certo é inconciliável com a arrogância de quem se acha cheio de razão. O pensar certo envolve autocrítica, rigorosidade ética, respeito. Além disso, na leitura do autor é possível perceber que o pensar certo para os professores é quase sinônimo de ensinar certo:

Por isso mesmo pensar certo coloca ao professor ou, mais amplamente, à escola, o dever de não só respeitar os saberes com que os educandos, sobretudo, os das classes populares, chegam a ela - saberes socialmente construídos na prática comunitária - mas também, como há mais de trinta anos venho sugerindo, discutir com os alunos a razão de ser de alguns desses saberes em relação com o ensino dos conteúdos. (FREIRE, p. 31, 2011)

Essa ideia de educação expõe a necessidade de decifrar as condições e os determinantes históricos que causam o modo ao qual os indivíduos estão submetidos. Por isso, o empenho freiriano estava voltado, sobretudo, para a difusão de uma educação política, isto é, de uma formação conscientizadora das contradições sociais que destaque os limites da própria sociedade marcada pela racionalidade técnica.

Outro ponto importante na educação freiriana é o amor e a esperança (FREIRE, 1979). Esse amor envolve, além do respeito aos saberes dos educandos e à postura respeitosa e comunicativa em aula, o amor pela educação. Esse amor não é a visão mágica de educação como vocação ou dever, como ele critica em “Professora sim, tia não”, é um amor comprometido e esperançoso com a mudança social. A esperança em Freire se liga a esperança do educador na educação e também ao desenvolvimento de uma esperança nos educandos, aliada à crítica, de que a sociedade pode mudar.

A consciência de que a realidade social pode mudar é uma das características da consciência crítica descrita por Freire, qual a sua formação é o objetivo da educação. Inclui-se “Anseio da profundidade na análise de problemas [...], Ao se deparar com um fato, faz o possível para livrar-se de preconceitos [..], É indagadora, investiga [...], ama o diálogo e nutre-se dele” (FREIRE, 1979, p. 40).

Além da crítica, existem outros estágios de consciência, qual o primeiro é a intransitividade, que gera uma explicação mágica para os fenômenos. Segundo Freire (1979):

Se uma comunidade sofre uma mudança, econômica por exemplo a consciência se promove e se transforma em transitiva. Num primeiro momento esta consciência é ingênua. Em grande parte é mágica. Este passo é automático mas o passo para a consciência crítica não é. Somente se dá com um processo educativo de conscientização. Este passo exige um trabalho de promoção e critização. Se não se faz este processo educativo só se intensifica o desenvolvimento industrial ou tecnológico e a consciência sofrerá um abalo e será uma consciência fanática. Este fanatismo é próprio do homem massificado. (FREIRE, 1979, p. 39).

O fato de que a educação é o principal meio de conscientização crítica das massas já é visto em toda sua obra, por meio de uma educação libertadora. Mas é importante nos atentarmos às mudanças de paradigma social, qual Freire já sabia que geram instabilidade das consciências. Momentos de grandes mudanças econômicas podem (e geralmente são) ser geradoras de retrocessos para o povo e este não sabe lidar. A tendência é arrumar explicações e soluções mágicas (como o próprio mito). Sem uma educação voltada para a crítica, o povo massificado continua com essa consciência mágica.

Não estamos vivendo na atualidade brasileira mudanças econômicas que geram retrocessos para o povo ao mesmo tempo que estimulam uma consciência mágica, além de tentar de várias formas impedir o avanço da educação que vise a crítica? Como resistiremos à propagação de uma racionalidade técnica voltada para o lucro e bem de poucos?

Educação libertadora contra a ignorância e a barbárie em tempos de neoconservadorismo

No capitalismo brasileiro atual, em sua versão neoliberal, mostra-se cada vez mais em sua perversidade e totalitarismo sobre nossas vidas concretas e sobre nossas formas de organização de pensamento, isto é, educacionais. A produção do fetiche da mercadoria torna-se subproduto da vida social, que insiste na “produção do mesmo”, na sua forma de reproduzir o capital. E ao admitirmos a subprodução da vida social no capitalismo, tem-se conservado todas as suas formas ideológicas de manutenção do sistema.

E uma das consequências disso está intimamente vinculada ao crescente interesse de mercantilização da educação, principalmente, impulsionada, patrocinada e desenvolvida por órgãos econômicos mundiais1. Conforme o professor Edgard Fernandes Neto em seu artigo “O fracasso dos planos neoliberais na educação brasileira” (NETO, 2009, p. 30), “a ofensiva da mundialização do capital faz com que o imperialismo tenha na mira os serviços, o que tem profunda conexão com a educação na América Latina e no mundo”.

Os destinos da educação, a partir dessa ofensiva, parecem estar diretamente articulados às demandas de um mercado insaciável e da sociedade dita do “conhecimento”. Como decorrência, os sistemas educacionais de vários países sofrem pressões para construir ou consolidar escolas ditas mais eficientes e aptas a preparar as novas gerações. Obviamente, essas escolas tem um modelo a seguir, ou seja, sua versão empresarial. E, para que esse modelo seja implementado é preciso precarizar as escolas públicas e de uma política crescente política de privatização da educação (SILVA, 2011).

Conforme Shiroma, Moraes e Evangelista (2002, p. 114-116), os ditos “reformadores da educação”, alegam preocupação quanto ao desempenho e eficiência da educação, propõem modelos que recomendam aos governos uma articulação entre público-privado, as quais revelam o caráter privatista das reformas educacionais, que impõe a lógica do mercado ao setor educativo. Essa lógica privatista na administração do ensino expressa a busca da eficiência e da produtividade (idem, p. 118). Assim, os processos institucionais e pedagógicos são submetidos cada vez mais aos processos empresariais de organização - mais qualidade com menos custos - essa é a lógica do sistema (SILVA, 2011).

Nesse sentido, entendemos que o problema da ignorância não termina com a revelação do social do processo de escolarização, em sua objetivação petrificada, mas conduz à necessidade de decifrar as determinações subjetivas desse social (pela base), pela qual, a própria produção educativa, como subjetividade, seria determinada na lógica do fetiche da chamada “ignorância letrada”2, de modo que, se preserve a continuidade do vigente, na medida em que lhe corresponderia uma determinada consciência alienada.

Interessante é que, por um lado, ampliam-se os números de resoluções, leis, pareceres e inúmeros outros documentos nacionais e internacionais operando um verdadeiro “transformismo” na educação contemporânea. A publicização imperativa insiste na centralidade da educação do futuro3, capaz de formar indivíduos felizes e capazes de atuar nesse mundo. Por outro lado, embora aumente a oferta de matrículas, se mantém um grande índice de evasão escolar, seguem caóticos os índices e as práticas formativas escolares e os sistemas de ensino padecem de um enorme centralismo e verticalização.

Nessa perspectiva, a educação no Brasil segue como alvo de uma política de desregulamentação do Estado e de interesses mercadológicos. Esse é o ponto que nos interessa aqui quando entendemos o avanço da “ignorância e da barbárie”. Sobretudo, marcar os limites de propostas programas vem ocorrendo na educação brasileira (vide Programa Future-se no Ministério da Educação)4, que já nasce fracassadas no seu nascedouro. Essa é a marca indelével dos novos fetiches no âmbito educacional, trazendo resultados desastrosos para a vida de nossos estudantes e para a sociedade brasileira.

As reformas educacionais, nessa sociedade de mercados capitalistas, não escapam aos critérios mercantis de exigências da eficiência e da eficácia produtivista. Nesse sentido, as propostas de reformas na educação brasileira, ao serem definidas por esses critérios, legitima-se uma definição das formas educativas próprias a dominação social vigente. Isto é, torna a educação como um grande filão de negócios, como um mote lucrativo. E uma das consequências disto está intimamente vinculada ao crescente interesse de mercantilização da educação, principalmente impulsionada, patrocinada e desenvolvida por órgãos econômicos mundiais5.

Conforme Silva (2011), os ditos “reformadores da educação” alegam preocupação quanto ao desempenho e eficiência da educação e propõem modelos que recomendam aos governos a transferência das responsabilidades do Estado, do poder público, para as esferas privadas. Isso tem revelado o caráter privatista das ditas reformas educacionais, que impõe a lógica do mercado ao setor educativo. Desse modo, o discurso entoado de que nas universidades públicas “falta eficiência”, que ao invés de produzir conhecimento “promovem balbúrdia” não tem passado, atualmente, de uma retórica dos atuais agentes públicos, que se colocam como porta-vozes de programas ideológicos de grupos dominantes, em defesa do mercado educacional.

Por isso, a educação brasileira, ironicamente, segue como alvo de uma política de desregulamentação do Estado e de interesses mercadológicos do capital financeiro. Nessa perspectiva, o cenário brasileiro no âmbito educacional vem se configurando de modo obscurantista e neoconservador, sobretudo, de um lado, pelos cortes de verbas, e por outro, vem se transformando numa arena de conflitos ideológicos em que professores são caracterizados como “doutrinadores ideológicos” e com o interesse de redução drástica da formação humanista, que entende o conhecimento hierarquizado por sua utilidade e identificado pelo vocabulário da prática.

Os novos conceitos relacionados aos processos educativos pensados pelos atuais gestores públicos aparecem justamente com muito afinco na tentativa de reestruturação econômica, num contexto de crise do capitalismo mundial e de intenso cerceamento dos direitos sociais. Nesse sentido, ao fazermos analises dessas políticas, bem como dos “discursos vigentes”, é preciso se levar em conta essa agudização da crise global da economia mundial.

O testemunho das muitas retóricas nos últimos anos nos leva a crer que o diagnóstico de Freire ainda é pertinente. Mesmo nos deparando com uma série de problemas relacionados à educação, podemos compreender que eles não estão desarticulados com as problemáticas nada circunstanciais do capitalismo avançado. Portanto, a transformação das condições objetivas é sempre colocada como uma precondição para uma real transformação da subjetividade. De acordo com Maar (1995, p. 19): “A crise do processo formativo e educacional, portanto, é uma conclusão inevitável da dinâmica atual do processo produtivo. A dissolução da formação como experiência formativa redunda no império do que se encontra formado, na dominação do existente”.

A educação, ao desconsiderar seu conteúdo ético e não vislumbrar como uma práxis transformadora, despreza as intervenções objetivas e materiais. Como contraponto a isso, podemos indicar a educação libertadora de Freire, que a partir da sua proposta educação como prática da liberdade, para resistir as formas de “dominação existente”. Nesse processo, destacam-se dois momentos vinculados ao conteúdo educativo libertador: a) o momento materialista da experiência social: abertura ao empírico da condição da educação popular em sua “raiz” da realidade social das periferias, ou seja, ter disponibilidade de contato com o objeto, o pensamento recupera a experiência com o concreto sensível; b) o momento histórico-político: a experiência de abertura a tal realidade social em seu sentido dialético, de “tornar-se engajado” e a reelaboração do passado até o momento presente justamente para tornar acessível uma práxis transformadora.

Em cada um dos dois momentos, a educação libertadora se confrontaria com suas próprias constelações teóricas e práticas da práxis educativa transformadora. Ela se torna o que é pela relação com o que não é, ou seja, a educação libertadora freiriana confronta-se diretamente com o existente, com o já formado e o recusa, resiste. Desse modo, a educação libertadora é, para a realidade efetiva, para a cultura dominante, uma não adequação, uma não identidade. No dizer de Freire:

O antidoto a esta manipulação está na organização criticamente consciente, cujo ponto de partida, por isto mesmo, não está em depositar nelas o conteúdo revolucionário, mas na problematização de sua posição no processo. Na problematização da realidade nacional e da própria manipulação (FREIRE, 2015, p. 200).

Assim, a educação libertadora é justamente aquilo que a condição alienada dos sujeitos tenta diluir de seu potencial de resistência crítica. É por isso que a educação libertadora implica uma transformação do sujeito no curso de seu contato transformador com o objeto da própria formação. A recuperação da experiência formativa corresponde a uma necessidade de sobrevivência e, talvez, seja a única possibilidade para a educação e para a formação cultural no âmbito escolar.

Considerações finais

A necessidade de uma educação libertadora precisa ser estendida a todas as pessoas. Essa ideia de educação expõe a necessidade de decifrar as condições e os determinantes históricos que causam o modo ao qual os indivíduos estão submetidos. Por isso, o empenho freiriano estava voltado, sobretudo, para a difusão de uma educação política, isto é, de uma formação conscientizadora das contradições sociais que destaque os limites da própria sociedade marcada pela racionalidade técnica.

A formação não se resolve numa fórmula qualquer, mas depende da forma deliberada da relação entre os envolvidos no processo educativo, uma vez que não há como desvencilhar-se da consciência verdadeira e do peso da experiência com uso de “receituários pedagógicos” organizados por uma inflexão decisiva da educação. O que é preciso entender é que a formação implica um sentido tríplice entre o ético, estético e político. A educação é a relação com o outro, se não for, cairá no solipsismo, pelo qual problemas são resolvidos antes mesmo de surgirem. Respostas são dadas a perguntas que não mais são feitas. E perguntas ficam sem respostas.

Para Freire os fins da educação, no sentido de para onde ela deve conduzir, remete-nos aos conteúdos sociais e político do conhecimento. Trata-se, portanto, da necessidade de reflexão sobre os processos histórico-culturais, a fim de transcendê-los da condição em que estão colocados. Pois, para ele, a “educação é uma forma de intervenção no mundo” (FREIRE, 2011, p. 96). Isso significa que, mesmo inseridos nos processos históricos de dominação capitalistas do nosso tempo, podemos buscar um arcabouço substancial de resistência, possibilitando a capacidade de abertura para o pensamento freiriano para a problemática da formação humana à luz das relações de dominação em forma de resistência.

Freire parece estar de acordo, em vários de seus escritos, com a exigência da racionalidade ir para além dela mesma (2015; 2011). A busca por uma educação libertadora passa pelas tensões e fraturas da própria condição humana no capitalismo contemporâneo. Isso não quer dizer, necessariamente, que se tenha que aplicar literalmente as ideias de Freire, para dispor de uma condição adequada da educação. Mas, se faz necessário articular algumas formas de resistência crítica da educação, colocando em evidência a crítica dialética e a poder do pensamento educativo libertador.

1É ilustrativo como a OMC (Organização Mundial do Comércio) inclui a educação no setor de serviços, o que se definiu nas reuniões do GATS - Acordo Geral de Serviços - (sigla em inglês). Isso significa que a educação não é mais tratada como direito social e sim como um serviço disponível no mercado a ser comprado, negociado. Ver artigo de Angela C. de Siqueira. A regulamentação do enfoque comercial no setor educacional via OMC/GATS. In: Revista Brasileira de Educação. pp. 144-185. Nº 26, mai/jun/jul/agos, 2004.

2Entendemos esta expressão de forma contrária ao que defendeu o Paulo Roberto Almeida que em seu texto “A ignorância letrada: ensaio sobre a mediocrização do ambiente acadêmico” que as causas e consequências da “tragédia educacional” é por conta das “pedagogias freireanas”. Trata-se de um texto que demonstra um total desconhecimento das teorias educacionais e da própria prática educativa. Ver: v. 10 n. 111 (2010): Revista Espaço Acadêmico, nº 111, agosto de 2010.

3Cito aqui, de modo particular, Delors, Jacques. Educação: um tesouro a descobrir. Relatório para Unesco da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI. São Paulo: Cortez, 1998. Em nossa opinião este relatório preserva no espírito da letra o predomínio da concepção educacional voltada para a tentativa de suprir osi (des)caminhos adotados pelas políticas neoliberais. Tais políticas buscam impor seus argumentos também para resolver os problemas educacionais. Para uma perspectiva crítica de análise desses argumentos, ver: GENTILLI, P. Pedagogia da exclusão. Crítica ao neoliberalismo em educação. Petrópolis: Vozes, 1995.

4O Future-se é um programa que tem o objetivo de promover maior autonomia financeira às universidades e institutos federais por meio de incentivo à captação de recursos próprios e ao empreendedorismo. Ver: http://portal.mec.gov.br/component/content/article/12-noticias/acoes-programas-e-projetos-637152388/78351-perguntas-e-respostas-do-future-se-programa-de-autonomia-financeira-do-ensino-superior.

5É ilustrativo como a OMC (Organização Mundial do Comércio) inclui a educação no setor de serviços, o que se definiu nas reuniões do GATS - Acordo Geral de Serviços - (sigla em inglês). Isso significa que a educação não é mais tratada como direito social e sim como um serviço disponível no mercado a ser comprado, negociado. Ver artigo: SIQUEIRA, Angela C. de. A regulamentação do enfoque comercial no setor educacional via OMC/GATS. In: Rev. Bras. de Edu. p. 144-185. n. 26, mai/jun/jul/ago. 2004.

Referências

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Recebido: 30 de Setembro de 2019; Aceito: 26 de Novembro de 2020

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