SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número61ENTRE LA VIOLENCIA DE LOS SENTIDOS Y LOS SENTIDOS DE LA VIOLENCIA: LAS VOCES DE LA MEMORIA OBRERA SOBRE LOS REGÍMENES AUTORITARIOS PORTUGUÉS Y BRASILEÑO DEL SIGLO XXLA EDUCACIÓN INCLUSIVA COMO CATALIZADOR DEL DESARROLO BIOGRÁFICO DE JÓVENES REFUGIADOS índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Eccos Revista Científica

versión impresa ISSN 1517-1949versión On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.61 São Paulo abr./june 2022  Epub 09-Feb-2024

https://doi.org/10.5585/eccos.n61.21819 

Dossiê 61 - Cidades Educadoras

OS USOS DO FUNK NA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: PENSANDO O PODER DA MÚSICA

THE USES OF FUNK IN ANTI-RACIST EDUCATION: REFLECTIONS ON THE POWER OF MUSIC

LOS USOS DEL FUNK EN LA EDUCACIÓN ANTIRRACISTA: PENSANDO EL PODER DE LA MÚSICA

Bruno Muniz, PhD em Sociologia, Investigador em pós-doutoramento1 
http://orcid.org/0000-0002-9109-7439

Marcos Antonio Batista da Silva, Doutor em Psicologia Social, Investigador em pós-doutoramento2 
http://orcid.org/0000-0003-2701-0316

1PhD em Sociologia na London School of Economics and Political Science. Investigador em pós-doutoramento no Centro de Estudos Sociais. (CES), (Projeto 725402 - POLITICS - ERC-2016-COG). Universidade de Coimbra, Portugal.

2Doutor em Psicologia Social pela PUC-SP. Investigador em pós-doutoramento no Centro de Estudos Sociais. (CES), (Projeto 725402 - POLITICS - ERC-2016-COG). Universidade de Coimbra, Portugal


Resumo

Este artigo apresenta reflexões sobre os usos da música do baile funk na educação e na ação social, especialmente na educação antirracista. Será considerado o poder da música através de fundamentação teórica-metodológica com referenciais da educação antirracista (GILBORN, 2007; GILROY, 2001; GOMES, N. 2017) e do campo das Ciências Sociais (DENORA, 2003; HENNION, 2001; PRIOR, 2011). Utilizaremos também ferramentas oriundas da análise crítica do discurso, de Van Dijk (2001). A análise efetuada abre espaço para que seja possível pensar o funk não apenas na educação, mas também na luta antirracista, onde se faz necessário refletir melhor sobre as noções de cultura e identidade a partir de uma perspectiva crítica. Como estes termos são frequentemente mobilizados no pensamento sobre a música, este enfoque crítico é crucial para compreender como a música do baile funk pode ser parte de uma educação antirracista. A proposta parte de uma análise da música em ação. Será considerado também como a prática da educação antirracista ainda encontra resistências, disputas e ambiguidades em sua construção.

Palavras-chave antirracismo; cultura; educação; identidade; música

Abstract

This article presents reflections on the uses of funk parties’ music in education and social action, especially in anti-racist education. The power of music will be considered through theoretical-methodological foundations with references from anti-racist education (GILBORN, 2007; GILROY, 2001; GOMES, N. 2017) and from the field of Social Sciences (DENORA, 2003; HENNION, 2001; PRIOR, 2011). We will also use tools from critical discourse analysis, by Van Dijk (2001). The analysis carried out opens space for it to be possible to think about funk not only in education, but also in the anti-racist struggle, where it is necessary to better reflect on the notions of culture and identity from a critical perspective. As these terms are often mobilized in thinking about music, this critical approach is crucial to understanding how funk parties music can be part of an anti-racist education. The proposal starts from an analysis of music in action. It will also be considered how the practice of anti-racist education still encounters resistance, disputes and ambiguities in its construction.

Keywords ati-racism; culture; education; identity; musica

Resumen

Este artículo presenta reflexiones sobre los usos del baile funk en la educación y la acción social, especialmente en la educación antirracista. Se considerará el poder de la música a través de fundamentos teórico-metodológicos con referentes de la educación antirracista (GILBORN, 2007; GILROY, 2001; GOMES, N. 2017) y del campo de las Ciencias Sociales (DENORA, 2003; HENNION, 2001; PRIOR, 2011). También utilizaremos herramientas del análisis crítico del discurso, de Van Dijk (2001). El análisis realizado abre espacio para que sea posible pensar el funk no solo en la educación, sino también en la lucha antirracista, donde es necesario reflexionar mejor sobre las nociones de cultura e identidad desde una perspectiva crítica. Como estos términos a menudo se movilizan al pensar en la música, este enfoque crítico es crucial para comprender cómo la música de baile funk puede ser parte de una educación antirracista. La propuesta parte de un análisis de la música en acción. También se considerará cómo la práctica de la educación antirracista aún encuentra resistencias, disputas y ambigüedades en su construcción.

Palabras clave antirracismo; cultura; educación; identidad; música

Introdução

Contribuições recentes em Sociologia pretendem pensar a música como uma "força animada", em vez de um "produto inanimado" (DENORA, 2003, p. 3) analisando como a música afeta a ação social (DENORA, 2003; HENNION, 2001; PRIOR, 2011), inclusive práticas educativas e a mobilização antirracista. Os produtores de funk, principalmente negros e atuantes em favelas, agem dentro de restrições estruturais, como o racismo e a desigualdade social, para serem considerados nos mesmo termos que outros estilos e produtores brancos. Nesse sentido, produtores mobilizam a música como uma tecnologia para a transformação de si mesmos e suas “próprias condições” para “ativar a música de forma que possa ‘funcionar’ na promoção da saúde ou de outra forma benéfica” (DENORA, 2007, p. 283). No entanto, a música não é analisada aqui como sendo apenas “benéfica”. Nesse caso, as instituições se apropriam da possibilidade da música se constituir como uma atividade que modula e organiza afetos e sentimentos, levando-nos a outra possibilidade, a música como uma “tecnologia de controle” (DENORA, 2003).

Este trabalho trata da questão do impacto da cultura na ação social, principalmente na educação e na atuação antirracista, considerando a chamada “virada estética” (PRIOR, 2011). Este movimento dentro da Sociologia visa compreender o que a cultura “pode fazer”, questiona-se o que a música pode oferecer, e não “o que causa a música” (DENORA, 2003, p. 2). A música não é simplesmente um “meio” que reproduz a estrutura social (DENORA, 2003). Para entender o que a música “pode fazer” (DENORA, 2007) é preciso considerar as práticas corporais e o apego apaixonado ou afetivo à arte (BENZECRY, 2011; HENNION, 2001).

A abordagem acima representa uma alternativa para explicar a constituição do self, um debate dominado pela ideia de reflexividade como “automonitoramento” e associada a “habilidades cognitivas” (GIDDENS, 1991), análise criticada por DeNora, (1999). Para a autora, pesquisar a música e seus usos nos aproxima da sociologia das emoções (DENORA, 1999). Especialmente importante neste debate é a ideia de trabalho emocional discutida por Hochschild (1983). Essas são práticas de trabalho que produzem não apenas serviços ou bens, mas exigem que os trabalhadores “se produzam como tipos de agentes emocionais sob os auspícios da cultura organizacional” (DENORA, 2003, p. 96).

Por meio da revisão de literatura pudemos localizar discursos detratores acerca do funk (violência de gênero, ostentação), como discutiram Brilhante et al. (2019, p.9), mas estes autores, reconhecem o importante papel do funk “como representante da cultura popular e como movimento político e social”. Outros estudos problematizaram o tema do funk no contexto educacional, e puderam estabelecer um debate sobre a temática investigada, e fornecer um embasamento teórico para a nossa proposta, que perpassa o funk, e educação antirracista (IZAÚ GOMES, 2018; BITENCOURT, 2017; KACZMAREK e BURAK, 2018; OLIVEIRA, 2018; TEIXEIRA, 2015; SOEIRO JÚNIOR, 2021).

Na metodologia utilizamos a análise crítica do discurso de Van Dijk (2001, p. 466) que tem contribuído para a compreensão de como “os abusos e a desigualdade do poder social são representados, reproduzidos, legitimados e resistidos pelo texto e pela fala no contexto social e político”. O método incluiu a revisão de literatura sobre o funk e a investigação de documentos de domínio público (legislações, documentos institucionais, mídia) colocando em primeiro plano debates, conflitos, avanços e desafios.

O artigo está dividido em quatro seções. A primeira seção consta da presente introdução. Na segunda seção apresentamos uma breve introdução acerca de políticas públicas educacionais na sociedade brasileira e o debate racial. Na terceira e quarta seções, incluímos um breve contexto sobre o campo educacional e o funk na educação básica e superior e finalizamos com as considerações finais.

Introdução de políticas públicas educacionais e etnicidade na sociedade brasileira

Os estudos das relações étnico-raciais no Brasil contemporâneo têm se desenvolvido nas últimas décadas devido ao impulso de uma série de iniciativas (inter)nacionais: Década Internacional de Afrodescendentes (Resolução 68/237/ONU). No campo educacional a “Resolução” busca promover um maior (re)conhecimento e respeito pela cultura, história e patrimônio dos afrodescendentes nos currículos educacionais.

No Brasil, a introdução da Lei nº 10.639/2003, derivada de lutas constantes do Movimento Negro tem tensionado o campo educacional a repensar o currículo educacional visando valorizar o ensino da História e Cultura Afro-brasileira na sociedade brasileira. Para Silva et al. (2018, p.22), os currículos “não transmitem simplesmente o conhecimento acumulado pela humanidade: eles são seletivos e omitem e/ou distorcem a História e Cultura dos africanos e dos negros brasileiros”.

Apesar da introdução da Lei nº 10. 639/2003 e da constatação do aumento do número de ingressantes racializados (políticas de ação afirmativa), principalmente de alunos negros na universidade, ainda há demandas da comunidade acadêmica, promovidas por coletivos negros no interior das universidades (SILVA, 2021). Os coletivos negros lutam por equidade racial na universidade, que com raras exceções, está fundado na relação de poder, de reprodução da branquitude e de hierarquias raciais (CARONE e BENTO, 2002).

Quais são as respostas de mudanças epistemológicas do campo da educação a esse movimento?

Entendemos que o exercício de recuperação analítica da produção sobre o funk, e os estudos das relações étnico-raciais é importante em prol de uma educação antirracista na sociedade brasileira, principalmente no entorno social que envolve o funk e às instituições educacionais, como produtora de conhecimento, em especial, no que tange a produção de conhecimento acerca de raça, racismo e antirracismo no currículo educacional. Para Ferreira (2012, p. 278), “a educação antirracista nomeia assuntos de raça e de justiça social, de igualdade racial/étnica, assuntos relacionados a poder, a exclusão, e não somente atentos aos aspectos culturais”.

Qualquer descrição das possibilidades de se pensar o funk em ação deve evitar cuidadosamente descrever “o poder da música como totalmente determinado por seus usos sociais ou totalmente determinante de usos e respostas sociais” (DENORA, 2003, p. 119). A autora se volta para o cenário espacial de eventos musicais ou “espaços configurados musicalmente” (DENORA, 2003, p. 119). Os espaços fornecem substância ou materiais que permitem uma atuação que impacte o social, enquanto limitam possíveis cursos de ação. A música ao se configurar como uma “tecnologia de controle” (DENORA, 2003) passa a estruturar a ação social, limitando “possibilidades de ação, tipos e estilos de ação” (DENORA, 2003, p.120).

Os estudos sobre música em ação, como Tia DeNora e Andy Bennett apontam, voltam-se para uma discussão em torno das relações entre os usos da música, educação e identidade. DeNora, por exemplo, reflete sobre a possibilidade de a música oferecer lições objetivas fora da sala de aula, por ser uma fazer muito atrelado à identidade pessoal e de grupo (DENORA, 2003). Neste sentido, estas reflexões abrem espaço para que possamos pensar o funk como educação. No entanto, o foco aqui se dá não apenas na educação, mas também na luta antirracista. E é, neste sentido, que se faz necessário refletir melhor sobre a noção de identidade, para que seja possível então compreender como a música do baile funk pode ser parte de uma educação antirracista quando pensamos a música em ação.

Identidade, de acordo com Asad Haider, é a forma através da qual somos divididos pelo estado em indivíduos e também a maneira através da qual formamos uma noção de si mesmos através das relações sociais. Contudo, pensar a noção de identidade não revela como relações sociais interagem de maneiras específicas para formar estas identidades; é uma “abstração teológica”. Portanto, pensar a música em ação como uma prática antirracista exige a compreensão da história da raça, do racismo e dos movimentos antirracistas, exigindo também uma compreensão que ao partir de uma abstração, como a noção de identidade, seja possível chegar ao concreto, que são as relações que constituem e possibilitam a menção ao abstrato. As relações que constituem a identidade, como apropriada e utilizada pelo estado, são constituídas pelo racismo institucional e pelas reações a este estado de coisas através dos movimentos antirracistas e estratégias educativas inclusivas.

Segundo Gandhi (2006, p.154), também se pode pensar a arte como uma prática estética interessada, apoiando-se em uma “ética do domicilium” que se baseia na convivência com a alteridade e a diferença. Ela desenvolveu esse termo com o objetivo de dar conta “dessa capacidade de dar abrigo que a arte reivindica por uma autonomia radical em relação às ações niveladoras e conservadoras da história e do pensamento” (GANDHI, 2006, p. 161). Essa “ética do domicilium” envolve o papel que a experiência estética desempenha em libertar a ação do “reino legislativo” da cognição e da racionalidade. É um tipo de política comprometida com a libertação do “realismo imperial e do narcisismo” [...], excluídos do mainstream privilegiado” (GANDHI, 2006, p. 161).

O campo educacional e o funk na educação básica: currículos em construção

É crucial dialogar com alternativas que têm sido formuladas pelos movimentos sociais negros na sociedade brasileira que questionam a produção e disseminação do conhecimento eurocêntrico, desvelando o racismo, e considerando as relações de poder, em especial no campo educacional envolvendo o funk. Diversos autores têm problematizado acerca do funk e educação. Por exemplo, Izaú Gomes (2019) chama a atenção para os desdobramentos da introdução da Lei nº 10.639/2003, discutindo sobre a negação de escolas e da área da educação física no ensino fundamental e questões raciais e cita como exemplo, as narrativas autobiográficas sobre práticas pedagógicas em educação física com o funk, e sua contribuição para o combate ao racismo. O autor entende que é fundamental a construção de novas possibilidades de aprendizado [...] a partir da dos saberes estético-corpóreos negros” (GOMES, I. 2019, p.10).

O debate proposto por Izaú Gomes (2018) dialoga com as reflexões de Nilma Gomes (2017), quando a autora nos alerta para a importância da “corporeidade negra e tensão regulação-emancipação social: corpo negro regulado e corpo negro emancipado”. Nilma Gomes entende que o corpo pode ser “regulado” de duas formas: a dominante (escravizado, objeto, estereotipado), e dominada (o corpo cooptado pelo dominante) entre outros. A sua vez, a tensão regulação-emancipação do corpo negro, “se deu (e ainda se dá) de maneira tensa e dialética com a luta pela emancipação social empreendida pelo negro enquanto sujeito” (GOMES, N. 2017, p. 98).

Nesta direção, Oliveira (2018, p.156) ao discutir acerca da “interseção entre a produção do funk para e pelo público LGBTTQIA+, currículos escolares, estéticas juvenis e educação musical” na educação básica acrescenta que “a estética funk LGBTTQIA+ é uma estética da existência”, onde os jovens no espaço educacional poderão ter “condições de (sobre)vivência e, a partir de suas produções musicais” e lutarem por uma sociedade mais igualitária (OLIVEIRA, 2018, p.173). Mas segundo o autor, "ainda há silenciamentos, distanciamentos, controles e coações” para esta prática no espaço educacional (OLIVEIRA, 2018, p.173).

Por sua vez, Kaczmarek e Burak (2018) chama a atenção para o uso do funk nas atividades de Matemática na educação básica, a partir de iniciativa dos alunos. Segundo estes autores, a escolha dos estudantes apesar de causar incômodos e surpresas “conduz a momentos de superação os quais podem beneficiar os processos de interação entre os sujeitos do processo de ensino e aprendizagem e o objeto de conhecimento” (KACZMAREK e BURAK, 2018, p.1).

Outro estudo, o de Ferraz Bitencourt (2017) dá ênfase à importância do funk nos movimentos estudantis ocorridos no Brasil contemporâneo. Ferraz Bitencourt (2017, p. 261) compreende “o funk como constituinte de uma identidade social que busca legitimação e reconhecimento no país”, principalmente como expressão de “letramento de reexistência e de resistência'', onde o “funk é potencializado pelas mídias digitais”, por meio de produção e circulação destes materiais (FERRAZ BITENCOURT, 2017, p. 261). A reflexão de Ferraz Bitencourt dialoga com Dayrell (2002, p. 117) que já nos alertará que os jovens do funk tinham, e ainda têm “poucos espaços nas instituições do mundo adulto para construir referências e valores por meio dos quais possam se construir como sujeitos” (musicas construídas e promoção de eventos culturais)

Teixeira (2015) soma-se a este debate e chama a atenção às possibilidades de narrativas da montagem do funk carioca visando “orientar práticas educacionais mais emancipatórias”, principalmente envolvendo a “prática musical da diáspora negra fortemente presente no cotidiano da escola municipal carioca de ensino fundamental” (TEIXEIRA, 2015, p. 517). De acordo com Teixeira, a prática de montagem do funk carioca nos estabelecimentos de ensino (escolas municipais) está presente “com professor, sem professor e apesar do professor! Trata-se de uma coexistência indelével e inalienável que não se apresenta (de forma alguma) natural[...], mas sim atravessada por uma infinidade de tensões e negociações” (TEIXEIRA, 2015, p.527). Tais narrativas musicais que perpassam a diáspora negra proporcionam “diferentes e significativas possibilidades no deslocamento das relações neocoloniais que tecem o sistema público de ensino”, principalmente na cidade do Rio de Janeiro, “ao tensionar [...], as questões em torno da criminalização do funk carioca [...], da letra das músicas e do critério de seleção do repertório” (TEIXEIRA, 2015, p. 528).

Soeiro Júnior (2021) acrescenta a este debate e assinala que por um lado, existe vontade e iniciativa dos alunos para as atividades envolvendo o funk no ambiente escolar, por outro, existe oposição de gestores escolares “de que esse gênero de dança, considerada ‘imoral’, fizesse parte do currículo” (SOEIRO JUNIOR, 2021, p .12). Para Soeiro Júnior (2021, p. 89), “o funk deixou de ser entendido apenas como funk, mas como um meio para se pensar a própria condição de vida, as tensões raciais e sociais, [...] que recaem sobre certos corpos”.

Ressaltamos ainda iniciativas pontuais, onde pudemos captar alguns sinais da introdução do termo funk em manuais escolares, como pudemos observar por meio da proposta do “Currículo da Cidade de São Paulo1”. Citamos como exemplo, o descritor “funk” no material didático da Educação Infantil: “quais são os tipos de dança que são geralmente feitas em pares? Tango, valsa, capoeira, dança livre, forró, ‘funk’” (CURRÍCULO DA CIDADE SÃO PAULO/ EDUCAÇÃO INFANTIL, 2019, p. 45). Ou ainda, contido no currículo de Artes, “compor, a partir de repertório rítmico, no estilo que melhor se adequar à proposta (repente, embolada, ‘funk’, rap)” (CURRÍCULO DA CIDADE DE SÃO PAULO/ED/ARTE, 2019, p. 69).

De um lado, esta introdução curricular se alinha a proposta do Parecer CNE/CP n.º 3/2004, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana”, no contexto da valorização da oralidade, da corporeidade e da arte (dança, marcas da cultura de raiz africana). De outro, localizamos discussões que levam a reflexões, e críticas, como por exemplo, o relato de Cardoso (2010) que destaca que “não faz sentido, por exemplo, levar aos alunos de uma escola em uma favela carioca apenas Rap e Funk. Isso eles já conhecem, pois faz parte da realidade cultural do lugar onde vivem” (CARDOSO, 2010, p. 5)2. Ainda segundo este autor, “um ensino musical realmente democrático deve proporcionar aos alunos o maior número possível de experiências musicais” (CARDOSO, 2010, p. 5). Consideramos que esta discussão pode ser oferecida com base nos pressupostos teóricos de Pierre Bourdieu, em especial sobre a teoria do habitus. Na trilha de Bourdieu, Setton (2002, p. 62) dá ênfase “a relação, a mediação entre os condicionamentos sociais exteriores e a subjetividade dos sujeitos.

Nesta direção apresentamos um contraponto, baseado em uma reportagem do (Jornal El País)3, que destacou um episódio envolvendo o funk e educação. Na matéria, intitulada “A professora que usou funk para ensinar Marx (e acabou repreendida)”, é apresentado os desdobramentos de uma atividade sobre o funk, proposto por uma educadora da educação básica em sua prática docente. Segundo a matéria, a atividade proposta não agradou alguns órgãos educacionais, especificamente a escolha do “Baile de Favela”, enquanto música de trabalho. Ainda na reportagem, pudemos observar uma fala da professora que diz que mora na periferia e no bairro da escola, e diz saber que o estilo preferido da região é o funk e não música clássica. Nas palavras da professora, “tratar o funk como um estilo inferior é etnocêntrico”. Para a educadora “a educação deve respeitar a realidade do aluno” (Jornal El País).

O episódio narrado nos remete as discussões de Paulo Freire. Este autor trás reflexões importantes sobre o processo educativo como uma forma de as populações oprimidas socialmente, grupos racializados (negros, povos indígenas), entre outros, a tomarem consciência e a lutar por ações concretas de transformações, em especial da realidade que os oprime (FREIRE, 1987).

A crítica de Cardoso se torna problemática por uma série de razões. Em primeiro lugar, o funk está longe de marcar uma presença dominante nos currículos a ponto do risco apontado parecer crível, ou seja, a presença do funk está longe de se tornar tão dominante a ponto de solapar outros repertórios culturais. Em segundo lugar, o funk não é pensado aqui apenas em termos de repertório, ou seja, não se trata de apresentar o funk aos estudantes como um entre outros conteúdos que eles precisam aprender. Como já apontado, o funk constitui comunidades afetivas (MUNIZ, 2016) e estrutura a forma como indivíduos vivenciam o fazer político e estratégias de reexistência.

Nesse sentido, não se trata de reconhecer o funk como um entre outros conteúdos, mas sim entendê-lo como elemento estruturante do próprio habitus.

O funk e educação superior: saberes acadêmicos e não acadêmicos

Quando o nosso foco de atenção recai para o debate na educação superior no país, no contexto do funk, localizamos poucos trabalhos, que de forma direta abordam este gênero musical em suas investigações. Por exemplo, Gianelli (2012) ao investigar as condições da disciplina “Análise Musical" no currículo acadêmico em três instituições universitárias na cidade de São Paulo, mostra que o termo funk foi destacado uma única vez. No trabalho do autor, observamos esta discussão como parte dos “conteúdos da disciplina Análise Musical II - popular - da FASM” [...]. Módulo 3 - Os Ritmos da Música Popular. [...]. Os ritmos norte-americanos: Blues, Jazz, Rock, ‘Funk’ (GIANELLI, 2012, p.75). Mesmo esta menção ao uso do termo funk parece remeter ao funk norte-americano, conhecido também como rhythm and blue (R&B) e não ao funk carioca, com raízes fincadas no R&B norte-americano, mas com longa trajetória de diferenciação.

Mendonça et al. (2017, p.191), privilegia “a pesquisa-ação participativa, na intersecção de uma pesquisa de mestrado e outra de doutorado, com a participação de um mestre do saber da cultura funk”. Dois dos estudos foram introduzidos em pesquisa de pós-graduação (Educação, Música) na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e o terceiro “é aquele realizado ‘por fora’ da universidade pelo cantor e compositor de funk carioca MC Mano Teko” (MENDONÇA et al.2017, p. 192). O estudo de Mendonça et al. (2017, p.192) foi atravessado por um “desejo comum -a inserção do funk enquanto conteúdo programático no currículo”.

Os autores sugerem que o nível da valorização desses saberes (acadêmicos e não acadêmicos) se apresentam como complementares no que tange a educação musical, a intersecção do funk com a educação (ensino, pesquisa e extensão), incluindo a formação de professores e os sistemas socioeducativos. O estudo contribui para a inserção formal de conhecimentos de tradição oral na educação superior com o gênero musical funk, ao trabalharem com conhecimentos “hierarquizados em lugares opostos pelas relações de poder hegemônicas” (MENDONÇA et al.2017, p. 205).

Quanto aprofundamos nossa investigação com olhar para outras universidades, ilustramos este debate com informações que constam da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) 4, por ser uma instituição sediada no Rio de Janeiro, onde o funk tem grande espaço na mídia e no contexto social. Assim, observamos algumas incursões acerca do funk, no entanto, muitas vezes relacionados para além dos “muros universitários”. De modo geral as informações versam sobre notícias veiculadas pela mídia e replicadas na página da instituição (trajetória de vida acadêmica envolvendo a comunidade acadêmica e funk, eventos outros, relacionados ao funk). Deste modo, ilustramos este texto, com algumas notas captadas da UFRJ. Por exemplo, a manchete da (UOL) 5: “Quem é a Gata Espelhada do The Masked Singer Brasil? ... A cantora [...] conseguiu passar no vestibular da UFRJ onde cursou Matemática, mas abandonou a faculdade para investir na música”. A nota diz respeito a uma ex-aluna que alcançou o sucesso. Notamos a ênfase ao mérito “conseguiu”. Esta discussão nos remete a refletir sobre as políticas de ação afirmativas na sociedade brasileira (essenciais), derivadas de lutas de movimentos sociais negros no Brasil, buscando equidade racial, principalmente no ensino superior e no mercado de trabalho, como tem discutido Venturini (2021).

Ou ainda quando as notas envolvem a discussão acerca de estereotípicos racistas, como pudemos observar por meio da matéria do (BHAZ) 6: “Ex-BBB é criticado por ouvir funk a caminho do Enem e ‘surra’ internauta: ‘Faço duas faculdades’”. Na matéria pudemos captar que o citado rebateu comentários preconceituosos. O fato ocorreu devido ao fato do EX-BBB estar descendo a Rocinha, bairro no Rio de Janeiro, quando ia para realizar prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). No caminho, postou imagens em que podia ser visto ouvindo funk. No entanto, rebateu a afirmação mostrando ter sido premiado diversas vezes por conta dos estudos. E frisou que quando terminou o ensino médio foi aprovado para o curso de Física na UFRJ e que depois teria migrado para o curso de Biologia. O caso narrado no remete ao racismo, o Ex-BBB é autoatribuído negro e pudemos observar manifestações de ações, práticas que acentuaram desvantagens ao indivíduo pelo grupo social a que pertence e lhe atribuindo significados para a construção da identidade, baseado na raça, “o racismo é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento” (ALMEIDA, 2019, p.32).

Outras notas deram ênfase a episódios que envolvem o funk e violência policial e o funk proibidão. Sugere-se que estas notas foram replicadas de outras mídias para UFRJ por envolverem opiniões ou citações de pessoas vinculadas, ou ex-vinculadas a universidade. Uma delas do jornal (O DIA)7, intitulada “Milícia usa funks proibidões para disputa de territórios e ameaças”, nos levou as discussões de Novaes (2016) que defendeu sua dissertação de Mestrado pela UFRJ, sobre os funks proibidões. Para Novaes (2016, p.11), “as fronteiras que delimitam qual lado se ocupa nessa díade se originam de relações de poder que tornam o Estado um agente essencial na compreensão da trama narrada pela poética do proibidão”.

Outra manchete: “Tensão entre o funk e a polícia vive novo auge com caso do MC Poze do Rodo” (FOLHA ONLINE-SP)8, exemplifica argumentos discutidos por Herschmann (2005), no livro "O Funk e o Hip-hop Invadem a Cena". Herschmann (2005) discutiu sobre a inserção de jovens de camadas populares na dinâmica da cultura urbana (movimentos funk e hip-hop, no Rio de Janeiro e São Paulo); as representações da violência no Brasil e na cultura contemporânea (repensar as articulações entre Estado, sociedade e mercado). O autor chama a atenção também para reportagens sobre funk, que há décadas passadas ocupavam mais espaços nos cadernos de cultura, e que na atualidade tem ocupado também sessões voltadas a matérias policiais ou de cidades.

Outra nota intitulada “Defensoria cobra governo de SP sobre indenização para familiares dos mortos em ação da PM em baile funk de Paraisópolis” (g1-Globo.com)9 está relacionada com uma intervenção da Polícia Militar no “Baile da 17 de São Paulo” (Paraisópolis) que resultou com mortes de jovens em dezembro de 2019 em São Paulo. Alves (2011, p.18), nos auxilia a compreender este contexto, ao discutir sobre “os efeitos da simbiose espaço-raça na produção de territórios da violência e de oportunidades na cidade de São Paulo”. Alves (2011) sustenta o argumento de que a desigualdade observada na distribuição da morte no município advém de uma “necropolítica estatal de gestão do espaço urbano e controle da população, seja por omissão seja por cumplicidade com os padrões mórbidos de relações raciais no Brasil” (ALVES, 2011, p.108).

A perseguição aos artistas do baile funk não é algo novo. Rocha (2017, p.1-2) frisa que “o funk brasileiro vive há quase duas décadas entre extremos de aceitação e repúdio. Se as músicas contam com milhões de plays no YouTube e Spotify, o estilo também foi alvo em 2017 de um abaixo-assinado que pediu ao Senado que o tornasse crime”. Silva (2014, p.169) assinala que a proibição do funk “extrapola a perseguição simbólica de gosto e distinção”. Segundo ao autor, “a violência simbólica é acompanhada do exercício da violência física, empregada nas ações policiais contra os frequentadores dos bailes. É útil ao argumento lembrar que os bailes de asfalto ocorrem normalmente sem intervenção policial” (SILVA, 2014, p.175).

É frequente na mídia noticias envolvendo o funk e policia por exemplo, “Polícia faz operação nas casas de MCs do funk de SP: ‘funk é perseguido desde sempre’, diz ativista”, ou ainda “Polícia do Rio pede prisão de funkeiros; ação é racista, diz pesquisador” (Ponte)10 . No entanto, a pandemia da Covid-19 traz mais preocupações para a análise da repressão sobre como os eventos em comunidades de favela são reprimidos pela polícia. A questão aqui não é se esses eventos deveriam ocorrer ou não. Outras questões parecem mais relevantes do ponto de vista sociológico, tais como: qual a posição da polícia ou dos agentes da ordem social diante de uma aglomeração em áreas da cidade consideradas perigosas em comparação com aglomerações ocorrendo em áreas ricas? Como essas aglomerações são descritas pela mídia? Por exemplo, "Vai pra favela", diz socialite à blitz após ter festa paralisada em SP”: “ A festa clandestina no bairro Jardins, zona nobre da capital paulista, tinha cerca de 500 pessoas (O POVO)11. Ao se assistir a cena não se ouve muito bem as palavras utilizadas pela pessoa que aparentemente grita com os policiais, pois a edição acrescentou sons agudos para encobrir possíveis insultos.

Um segundo exemplo, é uma festa que ocorreu no Copacabana Palace, como pudemos captar de reportagem do (UOL) 12, onde de acordo com a reportagem: “A cantora [...] foi flagrada fazendo um show em uma festa fechada no Copacabana Palace na noite de ontem, apenas um dia após falar sobre a pandemia da COVID-19, que já matou mais de 432 mil pessoas no Brasil” (UOL).

Esta citação deve ser tratada com cuidado, mesmo ao fazer um show dentro de um espaço nobre, a cantora negra é “flagrada”, como se “cometesse um crime”. Por outro lado, deve-se observar como a linha editorial criminalizante direcionada aos bailes funks em favelas não se repete quando o evento acontece em um dos mais tradicionais hotéis cinco estrelas do Rio de Janeiro. Centenas de pessoas teriam comparecido ao evento, ressaltando o fato de que o baile funk é apreciado por todas as classes sociais do Brasil e tem espaço até dentro de um dos lugares mais exclusivos do Rio de Janeiro. No entanto, esse fato não foi repetidamente mencionado pela grande mídia, nem houve polícia chegando com grandes armas para impedir o evento. Como a polícia e o sistema de justiça reagem às aglomerações em bairros predominantemente negros do Rio de Janeiro? Como a mídia informa sobre esses eventos? Em primeiro lugar, é preciso considerar que esses territórios são constantemente construídos pela imprensa, pelos políticos e pela justiça como áreas perigosas e incontroláveis da cidade que exigem a mão pesada do Estado para manter a lei e a ordem.

Uma primeira observação é que várias filmagens de antes da pandemia circulavam na internet como notícias falsas, já conferidas por agências de checagem, associadas a supostas festas de baile funk. Esta observação não exclui o fato de que bailes funk realmente aconteceram durante a pandemia. Como é possível perceber na manchete: “Polícia Civil do Rio indicia 22 pessoas acusadas de organizar bailes funk durante a pandemia” (O Globo)13, inserida no contexto realizado de um levantamento da UFRJ que mostra que discuti um anuncio de plano de reabertura por meio da Prefeitura do Rio de Janeiro acerca da cidade no contexto da pandemia COVID-19. De modo geral as notas evidenciadas no site da UFRJ, embora mencionem o termo funk, este é sempre localizado além dos “muros universitários”.

O segundo ponto investigado no site da UFRJ, remete a Escola de Música14, onde captamos algumas notas referentes ao funk. Por limitação deste texto não foi possível contemplar todas as menções, assim privilegiamos algumas notas que dialogam com o nosso foco de atenção. Chamou-nos a atenção de início, iniciativas de programas de extensão da Escola de Música da UFRJ: “Quilombo do Pensamento Negro” (Laboratório de Etnomusicologia) que anunciou que foram realizados 18 encontros, visando introduzir nos espaços formativos (universidade), o pensamento negro africano e diaspórico (pensadores negros, oficinas de funk). A atividade proposta reforça a importância destes espaços de mobilização política, de resistências e de afirmação negra afrocentrada, como discute Lélia Gonzalez.

Outro ponto observado por meio da Escola de Música da UFRJ, se refere a menção a um projeto intitulado: “Projeto social na Maré: a Escola de Música também arregaça as mangas quando o assunto é projeto social”. Um dos trabalhos desenvolvidos foi “Música, memória e sociabilidade da Maré”, que buscou mapear os gêneros musicais existentes no bairro da Maré. O estudo investigou ainda de que modo a violência permeia estilos musicais como o funk, entre outros. Alguns participantes perceberam o mapa como uma esperança de que a Maré deixasse de aparecer apenas em crônicas policiais e passando também a divulgar a riqueza cultural e musical da região (ZEPEDA, 2005). Tal iniciativa da UFRJ mostra por um lado, o interesse de aprofundamento sobre a história o funk com o seu entorno. Por outro, ressaltamos o debate de Guerreiro Ramos (1957, p.171) que nos alertará para o “problema do negro” ou do “negro como objeto de estudo” no ensaio “Patologia social do branco brasileiro”. Para Guerreiro Ramos, há o tema do negro e há a vida do negro. “Como tema, o negro tem sido, entre nós, objeto de escalpelação perpetrada por literatos [...]. Como vida ou realidade efetiva, o negro vem assumindo o seu destino, vem se fazendo a si próprio, segundo lhe têm permitido as condições particulares das sociedades” (RAMOS ,1957, p.171). É fundamental, portanto, que o funk se estruture não apenas como um tema, mas como música/arte em ação, potencializado para desafiar estruturas vigentes e combater desigualdades raciais propondo e estruturando novas epistemologias e formas de se viver que desafiem o eurocentrismo, hegemônico no campo da educação.

Considerações finais

Procuramos de modo geral, sustentar um olhar analítico e político para grupos racializados, com o propósito de descrever e interpretar a operação do racismo estrutural na produção e sustentação de desigualdades sociais, em particular relacionado ao funk e ao contexto educacional. Quais são as implicações políticas e educacionais do baile funk consideradas durante esta pesquisa? Por ser afetado por processos genocidas estruturais e racismo institucional, os artistas do baile funk promovem estratégias de resistência? Certa literatura sociológica associa esteticismo com política conservadora e desinteresse (BOURDIEU, 2010). No entanto, como argumentado por Leela Gandhi (2006), esse vínculo é desnecessário. Enfatizar o interesse do funk não significa deixar de lado sua importância estética e seu potencial para produzir movimentos contra-hegemônicos e pró-autonomia de grupos oprimidos. Significa trazer à tona a relevância política do baile funk e como a ação política usando a música indica diferentes possibilidades de fazer artístico, como tem discutido DeNora (2003).

A política do funk apela aos afetos e disposições e não apenas à razão. Nosso objetivo é desconstruir o ideal de prática política como pautado pela reflexividade racionalista, manifestada como “uma alergia às reivindicações revolucionárias de utopia, esforço metafísico, afetivo e ‘espiritualista’” (GANDHI, 2006, p. 146). Artistas de funk constantemente têm que lidar com o racismo e a repressão. Considerar o funk como uma prática artística dotada de relativa autonomia não pode prescindir de um relato crítico do racismo institucional. Contudo, considerar o funk como uma prática totalmente determinada pelas estruturas sociais não explica a complexa intervenção estética do baile funk nos debates sobre classismo, racismo, homofobia e sexismo.

As estratégias dos artistas funk para lidar com o racismo incluem a criação de performances que promovem nas estratégias de re-existência e que desafiam as restrições estruturais. No entanto, é difícil afirmar se os artistas do funk se opõem ou se alinham aos valores hegemônicos. Uma abordagem cuidadosa é necessária para entender as contradições do funk, que não pressupõe apenas duas possibilidades opostas, subserviência ou resistência.

A análise da música funk realizada neste artigo evidencia um caminho estético para a educação e para a ação política. Sociólogos, como Bourdieu, parecem fechar esse caminho, uma vez que se supõe que os que estão no topo da hierarquia social e econômica criam as regras para os que estão na base, incluindo os critérios estéticos que regem o alto ou o baixo. No entanto, a teoria também pode internalizar e reificar as diferenças existentes e torna-se muito difícil entender como mudar esse sistema de posições que reforça seus próprios critérios de julgamento e práticas educacionais. Neste sentido, ao trazer debates e questionamento às práticas educacionais a mobilização do funk no campo da educação já desempenha um papel contra-hegemônico, independente dos funkeiros assumirem ou não práticas contra-hegemônicas quando considerados individualmente.

2Por Diogo Cunha, entrevista de André Cardoso, professor e diretor da Escola de Música. A matéria foi publicada na edição de 8 set. de 2009 do Olhar Virtual, órgão da Coordenadoria de Comunicação da UFRJ.

3Por Ana Carolina Cortez, publicada por El País, 19-07-2016. A professora que usou funk para ensinar Marx e acabou repreendida. https://brasil.elpais.com/brasil/2016/07/19/politica/1468885504_449859.html

4Realizamos uma buca com o descritor “funk” na plataforma da UFRJ: https://ufrj.br/?s=funk

6(BHAZ) Salma Freua (20/01/2021) Sobre Reality show television que é um gênero de programa de televisão baseado na vida real. https://bhaz.com.br/noticias/brasil/ex-bbb-e-criticado-por-ouvir-funk-a-caminho-do-enem-e-surra-internauta-faco-duas-faculdades.

7Impresso: O DIA - RIO DE JANEIRO - RJI. Matéria Veiculação: 17/08/2020.Página: A07Assunto: UFR. Jhttp://linearclipping.com.br/mec/site/m014/noticia.asp?cd_noticia=79688690

8Site: FOLHA ONLINE - SP. Autor: Lucas BrêdaTipo: Matéria Veiculação: 22/07/2020 http://linearclipping.com.br/mec/site/m014/noticia.asp?cd_noticia=78457771

Referências

ALMEIDA, S. L. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Polém, 2019. [ Links ]

ALVES, J. A. Topografia da violência: Necropoder e Governamentalidade Espacial em São Paulo. Revista do Departamento de Geografia, São Paulo, v. 22, p. 108-134, 2011. [ Links ]

BENZECRY, C. The Opera Fanatic: Ethnography of an Obsession. Chicago: Chicago University Press, 2011. [ Links ]

BOURDIEU, P. Distinction: A Social Critique of the Judgement of Tase. Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts, 2010. [ Links ]

BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Conselho Pleno. Parecer CNE/CP 003/2004. Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília, DF: Ministério da Educação, 2004. [ Links ]

BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Brasília, DF,2003. [ Links ]

BRILHANTE, A.V. M. et al. Cultura do estupro e violência ostentação: uma análise a partir da artefactualidade do funk. Interface, Botucatu, vol.23, e170621, 2019. [ Links ]

CARDOSO, A. Uma vida de Música. 2010. Disponível em: https://musica.ufrj.br/index.php?option=com_content&view=article&id=172:uma-vida-demusica&catid=72:internet&Itemid=186. Acesso em: 9 de fev. 2022. [ Links ]

CARONE, I.; BENTO, M. A. S. (Orgs.). Psicologia social do racismo. Petrópolis: Vozes, Petrópolis, RJ: Vozes, 2002. [ Links ]

CURRICULO DIGITAL DA CIDADE DE SÃO PAULO. Secretaria Municipal de Educação. Coordenadoria pedagógica. Currículo da cidade: Educação Infantil. - São Paulo: SME / COPED, 2019. [ Links ]

CURRÍCULO DIGITAL DA CIDADE DE SÃO PAULO. Secretaria Municipal de Educação. Coordenadoria pedagógica. Currículo da cidade: Ensino Fundamental: componente curricular: Arte. -2. ed. - São Paulo: SME / COPED, 2019. [ Links ]

DAYRELL, J. O rap e o funk na socialização da juventude. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 28, n. 1, p. 117-136, 2002. [ Links ]

DENORA, T. Health and Music in Everyday Life: A Theory of Practice. Psyke & Logo, [S.I], v. 28, n. 1, p. 271-287, 2007. [ Links ]

DENORA, T. After Adorno: Rethinking Music Sociology. Cambridge: Cambridge Press,2003. [ Links ]

DENORA, T. Music as a technology of the self. Poetics, [S.I], v. 27, n. 1, p. 31-56, 1999. [ Links ]

FERRAZ BITENCOURT, B. Ocupar e resistir: a ressignificação do funk na luta dos estudantes. Cadernos de Letras da UFF, Niterói, v. 27, n. 54, p. 261-272, 2017. [ Links ]

FERREIRA, A. J. Educação antirracista e práticas em sala de aula: uma questão de formação de professores. Revista De Educação Pública, Cuiaba, v.46, n.2, p. 275-288, 2012. [ Links ]

FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. [ Links ]

GANDHI, L. Affective Communities: Anticolonial Thought, Fin-de-Siècle Radicalism, and the Politics of Friendship. Durham: Duke University Press, 2006. [ Links ]

GIANELLI, A.M. A Disciplina Análise Musical em Instituições de Ensino Superior da Cidade de São Paulo. 2012. 103 f. Dissertação (Mestrado em Música) - Instituto de Artes, Universidade Estadual Paulista, São Paulo, 2012. [ Links ]

GIDDENS, A. Modernity and Self-Identity: Self and Society in the Late Modern Age. Stanford: Stanford University Press, 1991. [ Links ]

GILBORN, D. Critical Race Theory and Education: Racism and anti-racism in educational theory and praxis. Discourse: Studies in the Cultural Politics of Education [S.I], v. 27, n. 1, p. 11-32, 2007. [ Links ]

GILROY, P. Atlântico Negro: Modernidade e Dupla Consciência. São Paulo: Editora 34,2001. [ Links ]

GOMES, I.V. Negro Drama: Narrativas estudantis negras, Educação Física escolar e educação étnico-racial. 2019. 192 f. Dissertação (Mestrado Profissional em Educação e Docência) - Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2019. [ Links ]

GOMES, N. L. O movimento negro educador- Saberes construídos na luta por emancipação. Petrópolis, RJ: vozes, 2017. [ Links ]

HENNION, A. Music Lovers: Taste as Performance. Theory, Culture & Society, [S.I] v. 18, n. 5, p. 1-22, 1 out. 2001. [ Links ]

HERSCHMANN, M. O funk e o hip-hop invadem a cena. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2005. [ Links ]

HOCHSCHILD, A. The managed heart: Commercialization of human feeling. Berkeley: University of California Press, 1983. [ Links ]

KACZMAREC, D; BURAK. Modelagem matemática na educação básica: a primeira experiência vivenciada. ACTIO, Curitiba, v. 3, n. 3, p. 253-270, 2018. [ Links ]

MENDONÇA, P.; ROCCA, R.; MANO TEKO, M. O funk e a educação: etnomusicologia e pesquisa-ação participativa em contextos diversos. DEBATES - Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Música, [S. l.], n. 19, p.191-207, 2017. [ Links ]

MUNIZ, B.B. Quem precisa de cultura? O Capital existencial do funk e a conveniência da cultura. Sociologia & Antropologia [online], Rio de Janeiro, v. 6, n. 2, p. 447-467, 2016. [ Links ]

NOVAES, D. Funk Proibidão: Música e Poder nas Favelas Cariocas. 2016.140 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016. [ Links ]

OLIVEIRA, W. "Abram os portões do vale: eu vou entrar": Funk LGBTTQIA+, currículos escolares, estéticas e educação musical. Revista Rascunhos - Caminhos da Pesquisa em Artes Cênicas, [S. l.], v. 5, n. 2, 2018. [ Links ]

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Resolução 68/237/. Disponível em: http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2015/07/N1362881_pt-br.pdf. Acesso em: 9 fev.2022. [ Links ]

PRIOR, N. Critique and Renewal in the Sociology of Music: Bourdieu and Beyond. Cultural Sociology, [S.I], v. 5, n. 1, p. 121-138, 2011. [ Links ]

RAMOS, A. G. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editora UFRJ,1957. [ Links ]

ROCHA, C. Popular e perseguido, funk se transformou no som que faz o Brasil dançar. 2017. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/explicado/2017/10/22/Popular-e-perseguidofunk-se-transformou-no-som-que-faz-o-Brasil-dan%C3%A7ar. Acesso em 12 jan.2022. [ Links ]

SETTON, M.G. J. A teoria do habitus em Pierre Bourdieu: uma leitura contemporânea. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 20, p. 60-70, 2002. [ Links ]

SILVA, L.S. Agora abaixe o som: UPPS, ordem e música na cidade do Rio de Janeiro. Caderno CRH, Salvador, v. 27, n. 70, p. 165-179, 2014. [ Links ]

SILVA, M.AB. Educação antirracista no contexto político e acadêmico: tensões e deslocamentos. Educação e Pesquisa [online], São Paulo, v. 47, e226218, 2021. [ Links ]

SILVA, P. V. B. et al. A proposta e seus objetivos. In: SILVA, P. V. B.; REGIS; K; MIRANDA, S.A. (Orgs). Educação das relações étnico-raciais: o estado da arte. Curitiba: NEAB-UFPR e ABPN, 2018. p. 21-32. [ Links ]

SOEIRO JÚNIOR, E. M. Funk na escola: tensões entre arte e ensino na EEMTI Senador Fernandes Távora. 2021. 92f. TCC (Graduação em Dança-Licenciatura) -Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2021. [ Links ]

TEIXEIRA, J. C. A narrativa da montagem do funk carioca no cotidiano escolar. Educação & Sociedade, Campinas, v. 36, n. 131, p. 517-532, 2015. [ Links ]

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO. Disponível em: https://ufrj.br/. Acesso em: 23 jan. 2022. [ Links ]

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO. ESCOLA DE MÚSICA. Disponível em: https://musica.ufrj.br/. Acesso em: 13 jan.2022. [ Links ]

VAN DIJK, T. Critical discourse analysis. In: TANNEN, Deborah et al. The handbook of discourse analysis: London: Wiley Blackwell, 2001. p. 352-371. [ Links ]

VENTURINI, A. C. Ação afirmativa em programas de pós-graduação no Brasil: padrões de mudança institucional. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 55, n. 6, p.1250-1270, 2021. [ Links ]

ZEPEDA, V. FAPERJ apóia expansão de projeto que mapeia a memória musical da Maré, 2005. Disponível em: https://siteantigo.faperj.br/?id=508.3.9. Acesso em: 14 mar.2022. [ Links ]

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons.