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Eccos Revista Científica

versión impresa ISSN 1517-1949versión On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.62 São Paulo jul./sept 2022  Epub 12-Feb-2024

https://doi.org/10.5585/eccos.n62.22006 

Artigos

A MERCANTILIZAÇÃO DO CONHECIMENTO COMO UM MOVIMENTO EM CURSO NA CONTEMPORANEIDADE1

THE COMMERCIALIZATION OF KNOWLEDGE AS AN ONGOING MOVEMENT IN CONTEMPORANEITY

LA MERCANTILIZACIÓN DEL CONOCIMIENTO COMO MOVIMIENTO EN CURSO EN LA CONTEMPORANEIDAD

Anderson Fernandes de Alencar, Doutorado1 
http://orcid.org/0000-0002-1539-1775

Moacir Gadotti, Doutorado2 
http://orcid.org/0000-0001-7565-2618

1Doutorado, Universidade Federal do Agreste de Pernambuco - UFAPE, Garanhuns - Pernambuco - Brasil

2Doutorado, Universidade de São Paulo - USP, São Paulo, São Paulo - Brasil


Resumo

Este trabalho apresenta resultados de tese de doutorado que teve por objetivo analisar as implicações dos movimentos pela mercantilização e democratização do conhecimento na Educação. Apresentamos aqui de que maneira o conhecimento, como bem imaterial, nasce “livre” e vai se tornando uma mercadoria por meio do movimento de mercantilização, que tem atuado, com maior evidência, nas artes (música e cinema), no entretenimento (games), na tecnologia (softwares) e na ciência (literatura científica). Para esta demonstração, perpassamos pela reflexão sobre o conhecimento, a mercadoria, a mercadoria como conhecimento, o histórico desse processo e as suas manifestações concretas em nosso tempo presente, seja por meio de esforços de manutenção do status quo ou da criação de novas mecanismos jurídicos ou tecnologia para a continuidade e ampliação dessa visão de mundo.

Palavras-chave: mercantilização; conhecimento; privatização; bens intelectuais; educação.

Abstract

This work presents the results of a doctoral dissertation that aimed to analyze the implications of movements for the commodification and democratization of knowledge in Education. We herein present how knowledge, as an immaterial good, is born "free", and becomes a commodity through the commodification movement, which has been operating, with greater evidence, in the arts (music and cinema), in entertainment (games), in technology (softwares) and in science (scientific literature). For this demonstration, we go through the reflection on knowledge, the commodity, the commodity as knowledge, the history of this process and its concrete manifestations in our present time, whether through efforts to maintain the status quo or the creation of new legal mechanisms or technology for the continuity and expansion of this worldview.

Keywords: commodification; knowledge; privatization; intellectual goods; education.

Resumo

Este artículo presenta los resultados de una tesis doctoral que pretendía analizar las implicaciones de los movimientos de mercantilización y democratización del conocimiento en la Educación. Presentamos aquí cómo el conocimiento, como bien inmaterial, nace "libre", y se convierte en mercancía a través del movimiento de mercantilización, que ha actuado, con mayor evidencia, en las artes (música y cine), en el entretenimiento (juegos), en la tecnología (software) y en la ciencia (literatura científica). Para esta demostración, pasamos por la reflexión sobre el conocimiento, la mercancía, la mercancía como conocimiento, la historia de este proceso y sus manifestaciones concretas en nuestro tiempo actual, ya sea a través de los esfuerzos por mantener el statu quo o la creación de nuevos mecanismos legales o tecnológicos para la continuidad y expansión de esta visión del mundo.

Palabras clave: mercantilización; conocimiento; privatización; bienes intelectuales; educación.

"Nada suscitou nos homens tantas ignomínias

Como o ouro. É capaz de arruinar cidades,

De expulsar os homens de seus lares;

Seduz e deturpa o espírito nobre

Dos justos, levando-os a ações abomináveis;

Ensina aos mortais os caminhos da astúcia e da perfídia,

E os induz a cada obra amaldiçoada pelos deuses." (Sófocles)

Introdução

A mercantilização do conhecimento é um processo amplo e em curso. A literatura sobre o assunto é vasta e a velocidade com que se produzem textos, legislações e artigos é “inacompanhável”. Cientes da impossibilidade do alcance da totalidade, realizamos diversos recortes porque não temos a pretensão de abordar a temática em sua completude. Assim, dedicamos a discussão, especificamente, em duas frentes: o conhecimento como mercadoria e o movimento pela mercantilização do conhecimento.

Em “O conhecimento como mercadoria”, refletiremos acerca do desenvolvimento do conceito de conhecimento a partir dos olhares de filósofos como Platão, Aristóteles, Bacon, Descartes, Locke etc e nos empenharemos a compreender de que maneira o conhecimento converte-se em mercadoria, embasados na análise de Karl Marx.

E, por fim, em “O movimento pela mercantilização do conhecimento”, apontaremos de que modo a mercantilização do conhecimento culmina em uma ação deliberada e programada e como esta ação tem se manifestado.

Mas o que entendemos por mercantilização? Oliveira defende que “mercantilizar um bem é fazer com que passe a funcionar como mercadoria” e explica que o termo “mercantilização” - bem como seus cognatos “mercantilizar”, “desmercantilizar” etc - é usado com bastante frequência nos dias de hoje, mas pouca gente se dá conta de que ele constitui um neologismo - assim como seus equivalentes em outras línguas, como o inglês (commodification) e o francês (marchandisation). Só os dicionários mais recentes os registram e alguns autores os colocam entre aspas. Em português, nota-se também o uso de “mercadorizar” no lugar de “mercantilizar”; em inglês, “commoditisation” em vez de “commodification” (OLIVEIRA, 2005, p. 82).

Nesta direção, este estudo pretende mergulhar no turbilhão de ações e reações que têm tomado espaço relevante na pauta de grandes corporações, empresas, governos e na própria sociedade civil: a preocupação com o conhecimento, sua “proteção”, “propriedade” e mercantilização.

Essa tentativa de “proteção” do conhecimento, ou de seus autores, refletiu-se na constituição da “propriedade intelectual” e das suas manifestações como direitos autorais, marcas, patentes e diversas iniciativas na direção da privatização dos bens intelectuais.

Contudo, este não é um terreno de disputa pacífica. Ela é acirrada e não ocorre somente em nível local, mas planetário. Tamanha a relevância da matéria, que um organismo internacional foi criado, a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), em 1967. Tratados (TRIPS, ACTA) e convenções (Berna, Paris) foram realizados para construir diálogos possíveis entre os países ditos ricos, detentores de um grande número de patentes, e os países colocados como pobres, em desenvolvimento.

Destacam-se também grandes organizações que tratam a questão da “propriedade intelectual”, como a Organização Mundial de Comércio (OMC) e a própria Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), que mantêm diversas Cátedras sobre “Propriedade Intelectual” e Direito Autoral.

Essa disputa remonta à permanente discussão acerca do interesse público e privado. De um lado, temos um bom número de grandes empresas, indústria farmacêutica, institutos de pesquisa, agronegócios, editoras e gravadoras, que buscam maximizar os seus ganhos / lucros, a partir da comercialização de bens intelectuais, em suporte material ou não, como músicas, filmes, músicas, fotos, textos, remédios, sementes. Em suma, pela venda das ideias, e mesmo da própria vida, e do outro lado, encontra-se a extensa parte da sociedade civil planetária, organizada em grupos ou não, interessados na democratização, no acesso à informação e no conhecimento.

Esse montante, composto sobretudo por pesquisadores, atividades, educadores etc, interessados em compartilhar arte, cultura, música, dança e cinema com seus educandos, veem-se proibidos de fazê-lo. Assim, pessoas doentes sofrem com os altos valores dos remédios e com as proteções das patentes; pequenos agricultores que veem sua produção intelectual e sua própria matéria-prima serem expropriadas por grandes empresas, e assim por diante. A própria “pirataria” é uma resposta da sociedade civil às restrições postas ao acesso ao conhecimento.

Nos tópicos a seguir, abordamos questão do conhecimento, da mercadoria, do conhecimento como mercadoria e do que vimos chamando de movimento pela mercantilização do conhecimento.

1 O conhecimento

A discussão sobre o que seja conhecer/conhecimento não é recente e remonta aos primeiros filósofos da Grécia Antiga, os pré-sofistas. Para eles, a preocupação com o ato de conhecer era uma preocupação com o verdadeiro, e “que nosso pensamento parece seguir certas leis ou regras para conhecer as coisas e que há uma diferença entre perceber e pensar” (CHAUÍ, 2000, p. 139).

Para os sofistas, por sua vez, não é possível o conhecimento do Ser, mas “só podemos ter opiniões subjetivas sobre a realidade […] A verdade é uma questão de opinião e de persuasão” (CHAUI, 2000, p. 139) e conclui que

Sócrates, distanciando-se dos primeiros filósofos e opondo-se aos sofistas, afirmava que a verdade pode ser conhecida, mas primeiro devemos afastar as ilusões dos sentidos e as das palavras ou das opiniões e alcançar a verdade apenas pelo pensamento. Os sentidos nos dão as aparências das coisas e as palavras, meras opiniões sobre elas. Conhecer é passar da aparência à essência, da opinião ao conceito, do ponto de vista individual à ideia universal de cada um dos seres e de cada um dos valores da vida moral e política (CHAUÍ, 2000, p. 139).

Para Platão, “existem quatro formas ou graus de conhecimento, que vão do grau inferior ao superior: crença, opinião, raciocínio e intuição intelectual”. Já Aristóteles “distingue sete formas ou graus de conhecimento: sensação, percepção, imaginação, memória, raciocínio e intuição” (CHAUÍ, 2000, p. 140):

Para ele, ao contrário de Platão, nosso conhecimento vai sendo formado e enriquecido por acumulação das informações trazidas por todos os graus, de modo que, em lugar de uma ruptura entre o conhecimento sensível e o intelectual (CHAUÍ, 2000, p. 140).

Francis Bacon, por sua vez, entende que existem quatro ídolos ou imagens que definem as opiniões congeladas e os preconceitos, impedindo o conhecimento da verdade, são elas: “ídolos da caverna” (opiniões formadas em nós por erros e defeitos dos sentidos); “do fórum” (opiniões formadas em nós pela linguagem nas relações interpessoais); “do teatro” (opiniões formadas em nós a partir dos poderes das autoridades que nos impõem seus pontos de vista), e “da tribo” (opiniões formadas em nós a partir da nossa natureza humana). E para Descartes:

O conhecimento sensível (isto é, sensação, percepção, imaginação, memória e linguagem) é a causa do erro e deve ser afastado. O conhecimento verdadeiro é puramente intelectual, parte das ideias inatas e controla (por meio de regras) as investigações filosóficas, científicas e técnicas (CHAUÍ, 2000, p. 145).

Por fim, Locke, entendido como o primeiro filósofo da Teoria do Conhecimento, propôs-se a analisar as formas de conhecimento que possuímos, a origem das ideias e discursos, a finalidade das teorias e as capacidades do sujeito cognoscente, relacionadas aos objetos que se podem conhecer. Este filósofo também distingue graus de conhecimento, começando pelas sensações, até chegar ao pensamento (CHAUÍ, 2000, p. 145-146). Da sua reflexão, originam-se o “racionalismo” (a fonte do conhecimento verdadeira é a razão), e o “empirismo” (a fonte de todo e qualquer conhecimento é a experiência sensível).

O Dicionário Houaiss (2020) tem definido conhecimento de modo bastante amplo, devido a sua complexidade. Identificamos duas ideias centrais, sistematizadas a seguir:

a) Como ação/processo: o ato ou a atividade de conhecer, realizado por meio da razão e/ou da experiência; domínio, teórico ou prático, de um assunto, uma arte, uma ciência, uma técnica etc; competência, experiência, prática; fato ou condição de estar ciente ou consciente de (algo); procedimento compreensivo, por meio do qual o pensamento captura representativamente um objeto qualquer, utilizando recursos investigativos dessemelhantes - intuição, contemplação, classificação, mensuração, analogia, experimentação, observação empírica etc - que, variáveis historicamente, dependem dos paradigmas filosóficos e científicos que em cada caso lhes deram origem;

b) Como coisa: a coisa conhecida; a coisa que se conhece, de que se sabe, de que se está informado, ciente ou consciente; informação, notícia; somatório do que se sabe; o conjunto das informações e princípios armazenados pela humanidade.

Além disso, segundo Rosas (2003, p. 1), “conhecimento é a relação que se estabelece entre sujeito que conhece ou deseja conhecer e o objeto a ser conhecido ou que se dá a conhecer”.

Como se pode perceber, o conhecimento vem sendo entendido historicamente como o processo ou o ato de conhecer, como uma ação, mais do que como um objeto da apreensão humana. Contudo, compreendendo conhecimento como sendo “informação contextualizada” (GADOTTI, 2007, p. 46), e devido ao uso corrente do termo conhecimento neste debate, isto é, como algo que pode ser compartilhado, distribuído, e mesmo comprado e vendido, utilizaremos a palavra sempre como substantivo, e não como verbo. Isto é, conforme proposto pelo Dicionário Houaiss (2020): “somatório do que se sabe; o conjunto das informações e princípios armazenados pela humanidade”.

Em algumas ocasiões, para facilitar a compreensão, usaremos o termo bens/obras intelectuais entendidos como a materialização do conhecimento, conforme a Lei de Direito Autoral Brasileira nº 9610/98, em seu artigo 7º:

são obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como: I - os textos de obras literárias, artísticas ou científicas; II - as conferências, alocuções, sermões e outras obras da mesma natureza; III - as obras dramáticas e dramático-musicais; IV - as obras coreográficas e pantomímicas, cuja execução cênica se fixe por escrito ou por outra qualquer forma; V - as composições musicais, tenham ou não letra; VI - as obras audiovisuais, sonorizadas ou não, inclusive as cinematográficas; VII - as obras fotográficas e as produzidas por qualquer processo análogo ao da fotografia; VIII - as obras de desenho, pintura, gravura, escultura, litografia e arte cinética; IX - as ilustrações, cartas geográficas e outras obras da mesma natureza; X - os projetos, esboços e obras plásticas concernentes à geografia, engenharia, topografia, arquitetura, paisagismo, cenografia e ciência; XI - as adaptações, traduções e outras transformações de obras originais, apresentadas como criação intelectual nova; XII - os programas de computador; XIII - as coletâneas ou compilações, antologias, enciclopédias, dicionários, bases de dados e outras obras, que, por sua seleção, organização ou disposição de seu conteúdo, constituam uma criação intelectual.

2 A mercadoria

O debate acerca do que seja a mercadoria não é simples ou recente e também remonta aos primeiros filósofos gregos. Contudo, neste texto, vamos nos deter a apresentar a visão do economista Karl Marx acerca do que seja a mercadoria, seguido das contribuições de Barbosa (2005). Como disse Marx (1996, p. 197): “à primeira vista, a mercadoria parece uma coisa trivial, evidente. Analisando-a, vê-se que ela é uma coisa muito complicada, cheia de sutileza metafísica e manhas teológicas”.

Marx entende que “mercadoria é, antes de tudo, um objeto externo, uma coisa, que, pelas suas propriedades, satisfaz necessidades humanas de qualquer espécie” (1996, p. 165). Isto é, algo útil. Contudo, a utilidade dos objetos não se dá por si mesma. Ela carece do trabalho que a transforme. Madeira em cadeira, algodão em vestimenta e assim por diante. Explica Marx:

O produto de trabalho é em todas as situações sociais objeto de uso, porém apenas uma época historicamente determinada de desenvolvimento - a qual apresenta o trabalho despendido na produção de um objeto de uso como sua propriedade ‘objetiva’, isto é, como seu valor - transforma o produto de trabalho em mercadoria. Segue daí que a forma simples de valor da mercadoria é ao mesmo tempo a forma mercadoria simples do produto do trabalho e, que, portanto, também o desenvolvimento da forma mercadoria coincide com o desenvolvimento da forma valor (MARX, 1996, p. 189)

[…] Como valor de uso2, não há nada misterioso nela, quer eu a observe sob o ponto de vista de que satisfaz necessidades humanas pelas suas propriedades, ou que ela somente recebe essas propriedades como produto do trabalho humano. É evidente que o homem por meio de sua atividade modifica as formas das matérias naturais de um modo que lhe é útil. A forma da madeira, por exemplo, é modificada quando dela se faz uma mesa. Não obstante, a mesa continua sendo madeira, uma coisa ordinária física. Mas logo que ela aparece como mercadoria, ela se transforma numa coisa fisicamente metafísica (MARX, 1996, p. 197).

Marx não encerra sua caracterização da mercadoria na utilidade, ou em ser produto do trabalho humano, mas completa sua análise defendendo que ela deva ser passível de troca, isto é: “com o correr do tempo, torna-se necessário, portanto, que parte do produto do trabalho seja intencionalmente feita para a troca. A partir desse momento, consolida-se, por um lado, a separação entre a utilidade das coisas para as necessidades imediatas e sua utilidade para a troca. Seu valor de uso dissocia-se de seu valor de troca” (MARX, 1996, p. 212-213).

Enfim, diante do avanço da informática e da robótica, não seria demais afirmar que, para Marx, essa troca deveria acontecer entre seres humanos de comum acordo e por vontade própria, proprietários privados dos próprios bens e, apesar de em sua época o trabalho já contar com a ajuda de máquinas, a ação da pessoa era imprescindível. Marx entende que

As mercadorias não podem por si mesmas ir ao mercado e se trocar. Devemos, portanto, voltar a vista para seus guardiões, os possuidores de mercadorias. As mercadorias são coisas e, consequentemente, não opõem resistência ao homem. Se elas não se submetem a ele de boa vontade, ele pode usar de violência, em outras palavras, tomá-las. Para que essas coisas se refiram umas às outras como mercadorias, é necessário que os seus guardiões se relacionem entre si como pessoas, cuja vontade reside nessas coisas, de tal modo que um, somente de acordo com a vontade do outro, portanto cada um apenas mediante um ato de vontade comum a ambos, se aproprie da mercadoria alheia enquanto aliena a própria. Eles devem, portanto, reconhecer-se reciprocamente como proprietários privados. Essa relação jurídica, cuja forma é o contrato, desenvolvida legalmente ou não, é uma relação de vontade, em que se reflete a relação econômica. O conteúdo dessa relação jurídica ou de vontade é dado por meio da relação econômica mesma. As pessoas aqui só existem, reciprocamente, como representantes de mercadorias e, por isso, como possuidores de mercadorias (MARX, 1996, p. 209).

Desse modo, na perspectiva marxista, poderíamos definir da seguinte forma: a mercadoria é um bem produzido pelo trabalho humano, para ser trocado entre seres humanos, proprietários dos bens a serem trocados (que os bens trocados sejam próprios, não alheios), de comum acordo (concordância entre as partes) e por vontade própria (não lhe foi imposta a troca).

Contudo, nem todos os bens produzidos pelo trabalho humano são feitos para serem trocados, possuem valor de troca, como são os presentes, por exemplo:

uma coisa pode ser valor de uso, sem ser valor. É esse o caso, quando a sua utilidade para o homem não é mediada por trabalho. Assim, o ar, o solo virgem, os gramados naturais, as matas não cultivadas etc. Uma coisa pode ser útil e produto do trabalho humano, sem ser mercadoria. Quem com seu produto satisfaz sua própria necessidade cria valor de uso, mas não mercadoria. Para produzir mercadoria, ele não precisa produzir apenas valor de uso, mas valor de uso para outros, valor de uso social. {E não só para outros simplesmente. O camponês da Idade Média produzia o trigo do tributo para o senhor feudal, e o trigo do dízimo para o clérigo. Embora fossem produzidos para outros, nem o trigo do tributo nem o do dízimo se tornaram por causa disso mercadorias. Para tornar-se mercadoria, é preciso que o produto seja transferido a quem vai servir como valor de uso por meio da troca.} Finalmente, nenhuma coisa pode ser valor, sem ser objeto de uso […] na antiga comunidade hindu o trabalho é socialmente dividido sem que os produtos se tornem mercadorias. Ou, um exemplo mais próximo, em cada fábrica o trabalho é sistematicamente dividido, mas essa divisão não se realiza mediante a troca, pelos trabalhadores, de seus produtos individuais. Apenas produtos de trabalhos privados autônomos e independentes entre si confrontam-se como mercadorias (MARX, 1996, p. 170-171).

Marx, no Capítulo II da referida obra, em que trata do processo da troca, e no Capítulo III, do dinheiro e da circulação das mercadorias, fornece elementos importantes para as reflexões que faremos a seguir, no que se refere ao conhecimento como mercadoria.

Ele entende que o tempo de trabalho é determinante no valor e no preço das mercadorias e que esse tempo não é fixo, mas variável dependendo do “grau médio de habilidade dos trabalhadores, o nível de desenvolvimento da ciência e sua aplicabilidade tecnológica, a combinação social do processo de produção, o volume e a eficácia dos meios de produção e as condições naturais” (MARX, 1996, p. 169). Marx defende:

A grandeza de valor de uma mercadoria permaneceria, portanto, constante, caso permanecesse também constante o tempo de trabalho necessário para sua produção. Este muda, porém, com cada mudança na força produtiva do trabalho […] Na Inglaterra, por exemplo, depois da introdução do tear a vapor, bastava talvez somente metade do trabalho de antes para transformar certa quantidade de fio em tecido. O tecelão manual inglês precisava para essa transformação, de fato, do mesmo tempo de trabalho que antes, porém agora o produto de sua hora de trabalho individual somente representava meia hora de trabalho social e caiu, portanto, à metade do valor anterior. […] A grandeza do valor de uma mercadoria muda na razão direta do quantum, e na razão inversa da força produtiva do trabalho que nela se realiza. (MARX, 1996, p. 169).

Quanto ao papel do dinheiro, é importante recuperar que, no processo do que ele chama de “metamorfose da mercadoria”, a mercadoria passa a ser vendida por dinheiro, que é utilizado para comprar uma nova mercadoria (M - D - M). Contudo, com o desenvolvimento inicial da circulação das mercadorias e o processo de entesouramento e acumulação, as mercadorias passam a ser produzidas exclusivamente para serem trocadas/vendidas pelo dinheiro, encerrando-se o ciclo. Assim,

com o desenvolvimento inicial da própria circulação de mercadorias, desenvolve-se a necessidade e a paixão de fixar o produto da primeira metamorfose, a forma modificada da mercadoria ou a sua crisálida áurea. Vendem-se mercadorias não para comprar mercadorias, mas para substituir a forma mercadoria pela forma dinheiro. De simples intermediação do metabolismo, essa mudança de forma torna-se fim em si mesma. A figura alienada da mercadoria é impedida de funcionar como sua figura absolutamente alienável ou como sua forma dinheiro apenas evanescente. O dinheiro petrifica-se, então, em tesouro e o vendedor de mercadorias torna-se entesourador (MARX, 1996, p. 250).

E, de modo notável e atual, Marx afirma que

como ao dinheiro não se pode notar o que se transformou nele, converte-se tudo, mercadoria ou não, em dinheiro. Tudo se torna vendável e comprável. A circulação torna-se a grande retorta social, na qual lança-se tudo, para que volte como cristal monetário. E não escapam dessa alquimia nem mesmo os ossos dos santos nem as res sacrosanctae, extra commercium hominum. Como no dinheiro é apagada toda diferença qualitativa entre as mercadorias, ele apaga por sua vez, como leveller radical, todas as diferenças. O dinheiro mesmo, porém, é uma mercadoria, uma coisa externa, que pode converter-se em propriedade privada de qualquer um. O poder social torna-se, assim, poder privado da pessoa privada (MARX, 1996, p. 252).

Por fim, o economista conclui que as mercadorias são levadas ao mercado quando, para o seu proprietário, elas não possuem valor de uso direto. Isto é, quando deixam de ser útil, de ser um bem. “Esse sentido, que falta à mercadoria, para apreciar o concreto do corpo da mercadoria, o dono da mercadoria supre por meio dos seus cinco ou mais sentidos. Sua mercadoria não tem para ele nenhum valor de uso direto. Do contrário não a levaria ao mercado. Ela tem valor de uso para outros. Para ele, ela tem diretamente apenas valor de uso de ser portadora do valor de troca e, portanto, meio de troca” (MARX, 1996, p. 210).

3 O conhecimento como mercadoria

A pergunta que agora nos fazemos é: pode o conhecimento ser considerado uma mercadoria? As características da mercadoria defendidas por Karl Marx seriam capazes de validar um processo de mercantilização do conhecimento, e que este mesmo conhecimento possa ser objeto de compra e venda no mercado?

A primeira grande diferença que nos vem à tona, diz respeito à corporeidade da mercadoria. Em boa parte das reflexões de Marx, as suas análises circundam mercadorias com um corpo material: linha, ouro, prata, cobre, ferro etc. Contudo, o economista alemão nos dá uma pista acerca das mercadorias incorpóreas: “coisas que, em si e para si, não são mercadorias, como, por exemplo, consciência, honra etc podem ser postas à venda por dinheiro pelos seus possuidores e assim receber, por meio de seu preço, a forma mercadoria. Por isso, uma coisa pode, formalmente, ter um preço, sem ter um valor” (MARX, 1996, p. 226).

Apesar de não sairmos “vendendo na feira” consciência ou honra, Marx nos aponta positivamente na direção da viabilidade desta mercantilização de que vimos falando. Distinguindo que a ideia sobre uma coisa, e uma coisa em si, são diferentes. Partamos, então, para uma análise do conhecimento como mercadoria na perspectiva marxista.

Retomemos o dito anteriormente: “a mercadoria é um bem produzido pelo trabalho humano, para ser trocado entre seres humanos, proprietários dos bens a serem trocados, de comum acordo e por vontade própria”. Poderíamos inferir que “o conhecimento é um bem produzido pelo trabalho humano, para ser trocado entre seres humanos, proprietários dos bens a serem trocados, de comum acordo e por vontade própria”?

A princípio, a definição encaixa-se perfeitamente. Cabe a nós nos debruçarmos sobre as suas especificidades, respondendo a alguns problemas que a categoria conhecimento nos põe. De que modo é produzido o conhecimento? Com qual força de trabalho? A troca sempre acontece entre seres humanos? Estes são proprietários dos bens que trocam? Estão sempre de comum acordo e por vontade própria?

Quanto à utilidade, deparamo-nos com alguns limites. Para Marx, a mercadoria é levada ao mercado quando “não tem para ele (dono da mercadoria) nenhum valor de uso direto” (MARX, 1996, p. 210). Esta frase não nos parece inteiramente correta, mesmo que se aplique a maior parte dos casos. Quantas vezes, dada a uma necessidade, financeira ou mesmo de espaço físico, tivemos de vender, ou mesmo doar, um móvel ou aparelho eletrônico, por exemplo. Esse objeto possuía valor de uso para o seu dono, contudo, situações adversas fizeram-no desfazer-se do bem. Aqui, poderíamos até inferir que o vendeu por vontade própria, mas foi externamente forçado a isto. Ao nos referir a essa mesma problemática, no quesito conhecimento, deparamo-nos com um problema similar.

O conhecimento, seja ele registrado por meio da escrita (manuscrita ou digital), ou mesmo não registrado, é um bem incorpóreo, intangível. São ideias. E essas não são perdidas ao serem compartilhadas, muito pelo contrário, multiplicam-se.

Em outras palavras, posso levá-las ao mercado, vendê-las, e ainda permanecer com elas, podendo vendê-las novamente, sejam elas úteis ou não para mim. Diferentemente, por exemplo, de um casaco que, quando vendido é perdido, o conhecimento não pode ser expropriado. Essa “descoberta” possibilitou e consolidou uma “economia do conhecimento”.

E quanto ao trabalho, de que maneira o conhecimento é produzido, e por meio de que tipo de trabalho? O conhecimento é produzido em todo o lugar indistintamente, mas as universidades são os lugares privilegiados para a sua criação. É o lugar que tem por uma de suas prerrogativas a pesquisa, a produção científica. Mas elas não são as únicas. Empresas, indústrias (como, destacam-se, as farmacêuticas), institutos de pesquisa, desenvolvedores de softwares - todos estão se dedicando à pesquisa, à descoberta científica, com foco, neste caso, em sua aplicabilidade prática, na produção de novas técnicas e tecnologias. Também produzem conhecimento, ciência e tecnologia, as cooperativas, as ONGs, Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs), implementos de economia solidária, coletivos, entre muitas outras. A ciência e a tecnologia não são bens restritos à academia.

O trabalho usado na produção do conhecimento costumeiramente é o assalariado, com exceções, tais como as cooperativas, que trabalham sob o regime de retiradas e não de salários, ou mesmo o voluntário, como é o caso do desenvolvimento de vários softwares livres. O financiamento é majoritariamente privado, como nas empresas, e em alguns casos, público, como nas universidades; destaquemos aqui também aqueles casos em que o trabalho é “custeado”, por meio de doações. A organização social do trabalho produtivo geralmente é coletiva, focada na produção colaborativa, e não mais na genialidade dos indivíduos. Produção colaborativa que agrega não somente os membros da própria organização, mas toda e qualquer pessoa, hoje facilmente conectadas por meio da Internet.

Apesar de avançarmos rapidamente com a informática e a robótica, os seres humanos ainda detêm o controle sobre o planejamento e a destinação da produção; mesmo que boa parte das mercadorias tenham seu processo de fabricação automatizado, pelo uso de máquinas. Até a produção de informações úteis já vêm sendo realizadas por supercomputadores, que fazem, por exemplo, complexos cálculos matemáticos e testam um sem número de combinações de novas drogas.

A troca entre seres humanos, e com destaque para eles, ocorre das mais variadas formas, com o aporte da Internet. A circulação das mercadorias que inicia suas atividades em mercado local, passa a ser nacional, transnacional, transcontinental, e agora, planetário. A Internet possibilitou que as trocas ocorressem entre pessoas situadas em qualquer parte do planeta, e o avanço dos transportes garantiram a chegada dos produtos baseados em suporte material. Os processos de câmbio, por meio de cartões de créditos ou serviços bancários especializados, foram automatizados, sendo possível comprar aqui do Brasil um livro no site japonês da amazon.co.jp e solicitar que seja entregue nos Estados Unidos, por exemplo.

Como vimos ratificando, o processo da troca ocorre entre seres humanos, mas agora nem sempre diretamente. O dono de uma grande corporação não negocia pessoalmente com o comprador dos carros de sua montadora, por exemplo. O negócio é realizado por meio de empregados deste mesmo dono, que submetem os ganhos da transação, o lucro, para o dono da corporação, que, em muitos casos, nem sequer se conhecem face a face. Com o avanço do comércio eletrônico, as trocas têm sido realizadas indiretamente, não somente por pessoas que não são as proprietárias dos bens, mas por meio de softwares em computadores que expõem os produtos, “negociam” as formas de pagamento, e efetivam a venda, por meio da validação de cartões de crédito, da emissão de boletos bancários e, após a detecção do pagamento, encaminham aos correios os produtos para o seu envio.

Quanto às trocas da mercadoria conhecimento, podem ser realizadas no seu suporte material ou exclusivamente no digital. Registradas em suporte físico, como um livro ou um CD, as ideias ou as músicas podem ser comercializadas como qualquer outra mercadoria mencionada no caso anterior. Em suporte exclusivamente digital, como um livro (.pdf) ou músicas (.mp3), integralmente para download, podemos ter a entrega feita diretamente ao comprador, sem o intermédio de transportadoras ou qualquer intervenção humana, a não ser, quando necessário, a equipe de apoio/suporte acionada por um Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC). Não há necessidade de reposição, por tratar-se de um bem infinito. Em muitos casos, o lucro da venda dos produtos é revertido diretamente ao proprietário dos bens em questão.

A questão da “propriedade”, neste caso a intelectual, é complexa. Dado a sua relevância, esse tema retornará em diversas ocasiões neste texto, mas aqui nos limitaremos a dizer que nem sempre as trocas ocorrem pelos reais detentores da “propriedade” sobre os bens. Ocorre que os autores ou compositores cedem os seus direitos patrimoniais para terceiros, como editoras e gravadoras, que cuidam do processo de comercialização de seus livros ou CDs, revertendo-lhes uma pequena parcela dos ganhos, e ficando com os demais, para o custeio e lucro próprios, agora do dono da editora ou gravadora.

Em relação ao “comum acordo” e “vontade própria”, em nossa opinião, nada difere dos bens materiais. Ressalto somente que, tal acontece com os bens materiais, o conhecimento pode ser expropriado, vide o registro de patentes sobre produtos típicos da Amazônia, tais como os cosméticos produzidos com a Andiroba, via Google Search Patent (https://patents.google.com/?q=andiroba&oq=andiroba). Sem o consentimento do povo brasileiro, pesquisadores ou grandes empresas fazem suas descobertas, em nosso país, e os patenteiam como se tais lhes pertencessem.

Machado (2007), em seu texto “Conhecimento: entre a mercadoria e a dádiva”, compreende que, na economia da informação, o preço pago pelos produtos, na verdade, é o pagamento feito pelo conhecimento incorporado às mercadorias. Contudo, entende que tratar o conhecimento como mercadoria é em si limitado. Para ele “o bem primordial em todas as épocas, que, além disso, hoje, transformou-se objetivamente no principal fator de produção, é o conhecimento. Os universos do conhecimento e do trabalho já não se podem mais separar nitidamente. Em sua produção e circulação, no entanto, o conhecimento tem sido tratado como uma mercadoria em sentido industrial, como um sabonete ou um automóvel. E aí parece se encontrar a fonte de todos os desencontros, de todos os desequilíbrios, de todos os paradoxos. Mesmo sem negar sua dimensão mercadoria, o conhecimento é algo mais que isso” (MACHADO, 2007, p. 2).

O autor aponta que a “mercadoria conhecimento parece derrapar” nos seguintes terrenos: materialidade, fungibilidade, objetivação, estocabilidade, confiança e equivalência. Em suma (MACHADO, 2007, p. 7-9):

  • Materialidade: no sentido industrial, “o comprador fica com ele, mas não fico sem ele”. “Esse caráter imaterial do conhecimento viola de modo inexorável certas expectativas mercantis”.

  • Fungibilidade: “o conhecimento é um 'bem' que não se gasta, que não é fungível, e de que se pode dizer, inclusive, que quanto mais uso, mais novo fica”.

  • Objetivação: “o conhecimento é sempre pessoal, não sendo passível de objetivação fora das pessoas que o produzem. Quem compra uma Enciclopédia não compra conhecimento, mas apenas representações codificadas do mesmo, que não se objetivarão senão nas pessoas que a elas recorrerem”.

  • Estocabilidade: “quando se lida com uma mercadoria como o conhecimento, como se pode falar em estoque? Quem é capaz de estimá-lo, ou mesmo de avaliar sua finitude/infinitude?”.

  • Confiança: “de fato, mesmo no terreno simples da mera informação, se disponho de alguma que considero valiosa para meu interlocutor e lhe ofereço, ele terá que decidir sobre se compra ou se não se interessa em função da confiança ou desconfiança em mim; não posso revelar a informação à venda, para que decida a posteriori se quer ou não comprá-la, sob pena de não ter mais o que vender”.

  • Equivalência: “com o mercado, se disponho de dinheiro, busco o produto desejado, que deve estar disponível, oferecido pelo produtor. Se pago o preço considerado justo, realizo uma troca de equivalentes; nada fico a dever ao vendedor e a mercadoria agora me pertence. Ao lançarem um produto no mercado, os produtores desvinculam-se dele; dispondo de recursos, posso comprar quase tudo o que quiser, o que pode ser considerado tanto um bem quanto um mal”.

Apesar das propriedades das mercadorias, as quais Machado se refere, serem diversas daquelas que acreditamos, ele traz contribuições importantes para o debate acerca do tema. De fato, o conhecimento possui todas as características e os limites citados sob essa perspectiva. Mesmo a concepção que advogamos, possui restrições que se juntam a essas, para justificar a complexidade da matéria ora em discussão.

4 O movimento pela mercantilização do conhecimento

A mercantilização é um processo, entendido como “ação continuada, realização contínua e prolongada de alguma atividade” (DICIONÁRIO HOUAISS, 2020a), e ousamos chamá-lo de movimento. Processo em que o desenvolvimento dos fins e dos meios de alguma atividade como a educação, tanto no âmbito estatal como no privado, sofre uma reorientação de acordo com os princípios e a lógica do mercado, sendo, gradativa e progressivamente, convertida em um serviço comercial (WIKIPÉDIA, 2020).

Segundo Oliveira (2005, p. 82), “mercantilizar um bem é fazer com que passe a funcionar como mercadoria” e o dicionário Houaiss (2014b), no verbete mercantilizar, define como “tornar (-se) mercantil; dar a (algo) caráter comercial”. E movimento, entendido como “conjunto de ações de um grupo de pessoas mobilizadas por um mesmo fim”, porque estamos convencidos de que as ações/iniciativas em favor da mercantilização do conhecimento não são naturais, ou mesmo aleatórias, e sim planejadas, objetivamente, por grupos de pessoas e de organizações, interessadas na maximização de seus ganhos. Não há “gentileza” ou “boa vontade” nesta seara: a contrapartida é certa.

Podemos dizer que trataremos aqui da sucessão sistemática de mudanças na direção da transformação de ideias, descobertas, invenções, criações artísticas, enfim, de todas as entidades abstratas criadas pela mente humana em mercadorias podendo assim ser trocadas.

Os bens intelectuais distinguem-se de outros bens por aquilo que os economistas, como Charles Jones, vêm a chamar de bens não-rivais. Bens não-rivais são aqueles cujo “custo marginal de produção é zero para um consumidor adicional” e cujo “consumo de uma unidade do serviço não reduz a quantidade disponível para outros consumidores e não se pode excluir uma pessoa do consumo daquele serviço” (GADELHA, 2014, p. 1); “o seu uso por uma pessoa não exige a exclusão simultânea de uso por outra pessoa […] Uma música pode ser ouvida ou cantada ao mesmo tempo por milhões de pessoas. Já um par de sapatos só pode ser usado por uma única pessoa de cada vez” (SILVEIRA, 2005).

Oliveira explica que um bem é rival se sua posse, consumo ou usufruto por alguém exclui a possibilidade de que seja possuído, consumido ou usufruído por outras pessoas. As mercadorias em geral são bens rivais: p. ex., se sou dono de um bolo, posso comê-lo todo, e posso também reparti-lo, porém quanto maior o pedaço de cada um dos comensais, menor os dos outros (OLIVEIRA, 2005, p. 85).

Outra citação que nos ajuda a compreender o conceito de bens não-rivais trata-se de uma passagem da carta de Thomas Jefferson a Isaac McPherson, em 1813. Afirma Jefferson que “se a natureza fez alguma coisa menos susceptível que todas as outras de propriedade exclusiva, esta é a ação do poder do pensamento chamado uma ideia, que um indivíduo pode possuir exclusivamente enquanto a guarda em si; mas no momento em que é divulgada, cai na posse de todos, e aqueles que a recebem não podem se despossuir dela. Seu caráter peculiar reside nisto também, que ninguém a possui menos, em virtude de qualquer outra pessoa possuí-la toda.

Quem recebe uma ideia de mim, recebe instrução sem diminuir a minha, assim como quem acende sua vela na minha recebe luz sem me deixar no escuro. Que as ideias devam ser livremente difundidas por todo o globo, para a instrução moral e recíproca dos homens, e para melhoramento de sua condição, parece ter sido algo criado de forma peculiar pela natureza, quando as fez, como o fogo, susceptível de expandir-se por todo o espaço sem perder sua densidade em ponto algum, e, como o ar que respiramos, incapaz de confinamento ou de apropriação exclusiva. Invenções, portanto, não podem, por sua natureza, ser objeto de propriedade” (JEFFERSON apudOLIVEIRA, 2005, p. 85).

Estas trocas, nos regimes econômicos capitalistas, são feitas buscando a efetivação do princípio de maximização do ganho, ou seja, do lucro. Os bens, sejam eles materiais ou intelectuais, devem ser trocados por outros bens, de modo a proporcionar ganhos privados a curto, médio ou longo prazos.

Nessa perspectiva, um quadro produzido deve, além de cobrir os custos de sua feitura e produção, permitir ao artista um sobre-ganho, um lucro sobre a sua produção. O princípio de maximização do ganho também pode ser aplicado ao músico que, produzindo o seu disco, depois de sanar os custos de produção/reprodução do disco (incluindo os custos com pessoal), visa vender o máximo de cópias possível, no intuito de aumentar os seus ganhos, obtendo um lucro sobre o produto. Isso sem mencionar os ganhos com a exposição pública (shows, concertos etc,) e a sua publicidade pessoal junto a da sua obra. Os custos com a produção do disco e do trabalho por ele dispendido, por exemplo, já chegaram a ser pagos com a venda dos dez mil primeiros exemplares, advindo agora somente o lucro, o sobre-ganho da obra. Hoje, bens intelectuais, como músicas e algoritmos, são produzidos por grandes corporações, exclusivamente para serem vendidos.

Os bens intelectuais, na atual conjuntura internacional, como vimos discorrendo, são mercadorias tais como um carro, uma casa ou uma televisão, e em nada se distinguem destes, como mercadoria, a não ser pela sua superior lucratividade, justificando assim o grande interesse de grupos comerciais por estes bens. A superior lucratividade é explicada pelo advento da informática e da Internet.

Com o advento da informática, propiciando o suporte digital, e da Internet, proporcionando a base de comunicação, os bens intelectuais foram essencialmente revolucionados. Com o digital, suportado por computadores e inúmeros dispositivos, é possível realizar-se quantas cópias se quiser (salvo espaço em disco rígido ou memória flash, como por exemplo, os pendrives), para os mais diversos números de equipamentos. Uma música em formato digital, por exemplo, pode ser criada ou gravada usando um computador, portanto já nasce como uma produção digital, e pode, então, ser copiada para si, ou para outros, quantas vezes forem, sem prejuízo para o autor.

Este advento é especialmente lucrativo porque permite aos “mercadores” a criação única de um bem e sua cópia/reprodução inúmeras vezes, nos mais diversos dispositivos, pelo custo também único de produção, sem a necessidade de investimento em maquinário para recriar, ou copiar o bem para novos consumidores. O bem pode ser vendido diversas vezes e o dono do produto nunca chegará a perdê-lo, podendo vendê-lo quantas vezes mais quiser, o que o diferencia dos bens materiais, que, após serem vendidos, é necessário, no mínimo, realizar uma cópia em um suporte material, para poder novamente vendê-lo, isso vale, por exemplo, para uma caneta ou para uma televisão.

Com a Internet, temos uma ruptura de paradigma, no que se refere à distribuição dos bens produzidos, sobretudo dos bens intelectuais. Por outro lado, os bens intelectuais, que são não-rivais, podem ser distribuídos com grande facilidade, utilizando-se a rede mundial de computadores. Para os “mercadores”, a entrega de mercadorias, que antes dependia exclusivamente de meios custosos de locomoção, como navios ou aviões, pode contar com uma ferramenta de baixo custo para a circulação. Com essas tecnologias, tanto foi solucionado o problema do custo da reprodução das mercadorias, quanto o da distribuição desses bens.

Com o avanço das tecnologias móveis, como celulares, smartphones, tablets, entre outras, a compra e a venda de produtos podem ainda ocorrer onde quer se esteja, não somente no escritório ou em casa, como também, agora, no ônibus, no táxi, no metrô etc. Com elas, tornou-se muito mais lucrativa a comercialização dos bens intelectuais, dando-lhes o destaque que agora possuem em rodadas de negociação e no próprio comércio internacional.

No campo da indústria fonográfica, a situação não é diferente. Usemos como exemplo um site que comercializa músicas digitais em formato “.mp3”, bem como CDs em formato digital completos, e também no suporte físico. O site em questão é o https://www.amazon.com, que além de vender os CDs, vendem as músicas individualizadas. O navegante cadastrado no site, paga um valor, de U$ 1,29, por música, seja ela de cantores (as) nacionais e internacionais, e tem o direito de baixá-la para o seu computador, de modo “legal”.

O CD “Chromatica” de Lady Gaga custa, para download, o valor de U$ 11,49, e no suporte físico, em média de U$ 13,29. Neste exemplo, tratamos com um caso concreto da venda de um bem intelectual, portando não-rival, que se beneficia da reprodução sem prejuízos para o dono/detentor dos direitos desse arquivo digital, dessa produção artística. Aquele arquivo digital poderá ser vendido inúmeras vezes, ampliando assim os lucros da empresa/empresário. A mídia física, por sua vez, custa mais caro, tanto no valor de venda, quanto no de produção.

No campo da indústria editorial de produções acadêmicas, temos o exemplo da empresa Elsevier (http://www.elsevier.com.br). Essa empresa atua em diversas frentes, entre as que mais nos interessam, destaca-se a questão da apropriação jurídica das comunicações científicas e a comercialização das produções acadêmicas; costumeiramente bens públicos, e em sentido amplo, bens da humanidade.

Quanto à apropriação pela via jurídica, o autor, ao submeter um artigo a um periódico do qual a Elsevier é a proprietária, cede a esta direitos exclusivos de uso sobre o seu próprio artigo, conforme afirma o texto do site quando responde a questão “Por quê a Elsevier solicita a cessão de direitos autorais”: “a Elsevier acredita que, pela transferência dos direitos autorais, será sempre notório para os pesquisadores que, ao acessar um site da Elsevier para revisar um artigo, eles estão lendo a versão final do artigo que foi editado, avaliado por pares e aceito para publicação em um periódico apropriado. Isto elimina qualquer ambiguidade ou incerteza sobre a capacidade da Elsevier de distribuir, sub-licenciar e proteger o artigo de uma cópia, distribuição não autorizada e plágio” (ELSEVIER, 2010, tradução nossa)3.

Este texto foi alterado nos anos seguintes, reforçando a informação de que “a transferência de direitos autorais não restringe o uso por parte dos autores de seus artigos, e eles ainda podem usar e divulgar o manuscrito ou o artigo para uma ampla variedade de fins educacionais” (ELSEVIER, 2014, tradução nossa).

Quanto à comercialização dos artigos, no site da “Elsevier Store” (https://webshop.elsevier.com) é possível comprar livros, periódicos e artigos de revistas científicas de diversas áreas do conhecimento. Tal qual na cultura e da arte, para ter acesso a um conhecimento que, na grande maioria dos casos, é produzido em nossas universidades públicas por intermédio de pesquisas também muitas vezes financiadas por recursos públicos, devemos pagar por algo que já foi pago em um momento anterior.

No campo do entretenimento, dos jogos eletrônicos ou games, a situação não é diferente. Neste campo, apesar das diversas vertentes de comercialização, cabe para a discussão neste texto aquela que trata das mensalidades pagas nos jogos, especialmente nos de RPG on-line, conhecidos por MMORPG (Multiplayer Online Role-Playing Game) ou jogos de interpretação de personagem online. A empresa Blizzard© distribui gratuitamente o seu MMORPG World of Warcraft para download no seu site. Contudo, para jogá-lo é necessário a compra de uma chave de licença (cd-key), bem como o pagamento de uma mensalidade à própria Blizzard© de U$ 7,904 para poder dar continuidade ao jogo.

Essa estratégia mascara o real interesse comercial por detrás da disponibilização gratuita do jogo, visto que é mais caro produzir o objeto material com caixa, arte, mídia e manual do que tornar pública a sua cópia com as restrições citadas. A mensalidade promove a fidelização do jogador ao MMORPG que, da parte da empresa, busca a cada dia implementar novas ferramentas, ações, interações no jogo para “não perder o cliente” promovendo uma experiência entediante.

No campo da Educação, a ciência e a tecnologia são produzidas em institutos privados de pesquisa, excepcionalmente na busca pelo aumento da eficiência de seus processos, a fim de baratear a produção das mercadorias. Esse conhecimento é patenteado e se torna mercadoria nas mãos de seus donos para os que quiserem acessá-la, mesmo que para fins estritamente educacionais. Esse movimento também penetrou as universidades públicas, exigindo destas não mais a reflexão científica e filosófica, mas sim a geração de uma ciência que subsidie a produção de técnicas e tecnologias para o mercado, sendo os professores, funcionários da indústria de insumos tecnológicos nos moldes da linha de produção fordista.

Esta mesma universidade é “assediada” e “seduzida” permanentemente por empresas generosas que, ao final de um processo de pesquisa, apropriam-se do conhecimento produzido dentro de uma instituição pública financiada com recurso público.

Portanto, diante das reflexões apontadas, compreendemos que o conhecimento além de estar sendo convertido em mercadoria, encontra-se cercado (propriedade privada) fazendo parte agora de um movimento bem articulado e organizado para a sua comercialização como mais um produto de/no mercado.

2“A utilidade de uma coisa faz dela um valor de uso. Essa utilidade, porém, não paira no ar. Determinada pelas propriedades do corpo da mercadoria, ela não existe sem o mesmo. O corpo da mercadoria mesmo, como ferro, trigo, diamante etc. é, portanto, um valor de uso ou bem. Esse seu caráter não depende de se a apropriação de suas propriedades úteis custa ao homem muito ou pouco trabalho” (MARX, 1996, p. 166).

3Disponível em: http://www.elsevier.com/wps/find/authorsview.authors/copyright#why. Acesso em: 27 set. 2020.

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Recebido: 07 de Abril de 2020; Aceito: 19 de Março de 2021

Editor Chefe: Prof. Dr. José Eustáquio Romão

Editor Científico: Prof. Dr. Mauricio Pedro da Silva

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Este trabalho apresenta resultados da tese de doutorado “Compartilhamento do conhecimento: desafios para a educação” que teve por objetivo analisar as implicações dos movimentos pela mercantilização e democratização do conhecimento na Educação, de modo revisto e atualizado.

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