1 Introdução
A melhor maneira de homenagear um benfeitor humanidade é demonstrando a atualidade de sua obra, seja teórica, seja prática, cobrindo um vasto território histórico-social internacional.
Darcy Ribeiro, cujo centenário de nascimento se comemorou em 26 de outubro de 2022, foi um sociólogo, antropólogo, etnólogo, ensaísta, romancista e político desse naipe, cabendo-lhe o gentílico “latino-americano”, não apenas porque nasceu em um país localizado na América Latina, mas porque, de fato, ele viveu e atuou, teórica e politicamente, em vários países desse subcontinente. Aliás, o próprio Darcy, explica em sua obra autobiográfica, Confissões (1998) que ele era um “homem de muitas peles”.
Por isso, tem sido lugar comum na pena de seus biógrafos a polivalência desse mineiro de Montes Claros, que superou o provincianismo de suas origens na fronteira do das regiões Sudeste e Nordeste do Brasil, onde aliás, o tio queria fixá-lo, para que desse continuidade, como um verdadeiro “coronel”, à gestão de uma fazenda herdada da família, tornando-se um cidadão do mundo.
Como etnólogo e antropólogo foi, juntamente com o general Rondon, um dos maiores indigenistas do século XX e um dos mais aguerridos defensores das causas dos povos da floresta, colaborando, com suas contribuições científico-epistemológicas, para o que ele próprio considerava como “Civilização Brasileira”. Neste diapasão, participou ativamente da consolidação do Serviço de Proteção ao Índio e da criação do Museu Nacional do Índio, no Rio de Janeiro.
Ao considerar que as universidades eram as verdadeiras forjas do desenvolvimento dos povos - em seus livros sobre a evolução da humanidade, tomada as revoluções tecnológicas (ciência cristalizada) como o motor do processo civilizatório - , certamente partiu daí sua verdadeira obsessão pela reforma dessa “velha senhora” da educação superior, em vários países (Argélia, Brasil, Costa Rica, México, Peru, Uruguai e Venezuela).
Embora se revestisse de “tantas peles”, “gostava mesmo era de ser chamado de educador” (NEPOMUCENO, 2014, p. 11). E não lhe poderia ser negado o epíteto, porque, realmente, teve atuação destacada no campo da educação brasileira e latino-americana:
a) Foi o criador da Universidade de Brasília (UnB), de que foi reitor, e ministro da educação do governo João Goulart2.
b) No âmbito dos sistemas educacionais, participou ativamente da elaboração das duas leis de diretrizes e bases da história da educação brasileira (LDB), promulgadas em 1961 e 1996. Na discussão da primeira, cujo projeto de lei tramitou por mais de 15 anos no Congresso Nacional, enfrentou, ao lado de Anísio Teixeira, os privatistas, defendendo, incondicionalmente, a escola pública, laica e republicana. Na segunda, foi seu relator na câmara alta (Senado) do Parlamento Brasileiro, vinculando, definitivamente, seu nome à lei n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996.
c) Na educação básica, coordenou a formulação do projeto e a implantação de mais de 500 Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs) - escolas de educação básica de tempo integral para populações periféricas e carentes. Aliás, foi inspirado nas “escolas-parque” de Anísio que, por sua vez, se referenciara em John Dewey (1859-1952) para a implantação do “escolanovismo” no Brasil, que Darcy desenvolveu a ideia dos CIEPs, implantando-os (mais de 500) no estado do Rio de Janeiro, nas administrações do governador Leonel Brizola. Em Minas Gerais, no Governo Newton Cardoso (1987-1991), criou e implantou o congênere “Núcleo Integrado de Educação Comunitária” (NIEC)3.
d) No entanto, foi na educação superior que Darcy Ribeiro deu sua maior contribuição ao subcontinente: foi o reformador da Universidad de la República (Uruguai), da Universidad Nacional Autónoma de México e dos sistemas universitários da Venezuela, da Costa Rica e do Peru, sem falar nos “pitacos” que deu ao subsistema de educação superior da Argélia. Perambulou por outros países da América Latina, da Europa, da América do Norte e da Ásia, sempre proferindo conferências e desenvolvendo projetos de grande impacto nesse campo.
Como político, esteve no olho do furacão da crise político-institucional latino-americana: no Chile, por pouco não foi morto com Allende e só escapou porque saiu antes do país para colaborar com a “Revolução Peruana” - como a gostava de chamar - de Velasco Alvarado, a cujo desmonte também assistiu. Mas, foi na crise da democracia popular-desenvolvimentista brasileira dos anos 60 do século passado que teve um protagonismo central - era Ministro Chefe da Casa Civil do Governo do Presidente João Goulart (1961-1964). Como se sabe a crise institucional brasileira culminou com o golpe militar de 1.º de abril de 1964, que implantou, no Brasil, uma das mais longevas ditaduras do mundo (21 anos de duração), que o desterrou4. Darcy Ribeiro enfrentou-a, com uma inteligência politológica sem precedentes e com uma coragem ímpar, como também como resistiu, do mesmo modo, aos governos autocráticos, implantados, coincidentemente, na mesma época, em outros países latino-americanos. Em suma, não houve regime de exceção do subcontinente que não tenha sido fustigado pela pena e pela militância de Darcy Ribeiro, sempre em “cumplicidade” generosa com o povo:
O povo está financiando, com seu sacrifício, o desenvolvimento econômico. Este povo sabe e pode suportar privações para que o país se mantenha independente e se desenvolva, mas é necessário que esse sacrifício não recaia apenas sobre os menos afortunados, mas sobre todas as classes, proporcionalmente, e que ao mesmo tempo se adotem medidas de reforma social tendentes a impedir que uma pequena minoria, nadando em luxo e na ostentação, continue afrontando as privações e a miséria de milhares e milhares de brasileiros (RIBEIRO, 2014, p. 33).
Continuou no olho do furacão das convulsões políticas da América Latina na segunda metade do século XX: foi assessor de Allende, no Chile (1970-1973) e do governo militar reformista-revolucionário liderado por Juan Francisco Velasco Alvarado, no Peru (1968-1975), dentre outros trabalhos na gestão da coisa pública.
Se toda essa polivalência ativista continental não fosse suficiente, publicou quatro romances - Maíra (1976), O Mulo (1981), Utopia Selvagem (1982) e Migo (1988), que o consagraram como ficcionista, na opinião das rigorosas críticas brasileira5 e estrangeira.
Como sociólogo-antropólogo-historiador, desenvolveu uma concepção de “processo civilizatório” - título de uma de seus mais importantes livros -, alternativa às concepções eurocêntricas, com base, dentre outras, nas categorias "povos" e “transfiguração cultural”. Com elas estabeleceu uma taxionomia das formações sociais e das civilizações, para defender uma tese inédita sobre a formação social humana desejável, inscrita no que se poderia denominar "civilização mestiça". Para ele, os “povos transplantados”, os “povos testemunha”, os “povos novos” são processos culturais-civilizatórios que devem ser superados pelos “povos (mestiços) emergentes”, dentre os quais se incluem os brasileiros.
Neste trabalho, pretende-se detalhar mais, não apenas os traços biográficos desse verdadeiro herói brasileiro e latino-americano, mas aprofundar a análise de sua concepção sociológico-antropológico-histórica - que ele denominou “Antropologia Dialética”, inscrevendo-a, definitivamente, no universo da historiografia clássica e das teorias pós-coloniais, tornando-se um dos campões defensores das “razões oprimidas” (v. ROMÃO, 2007).
2 Um sociólogo-etnólogo, ou um antropólogo-historiador?
A pergunta deste tópico é perfeitamente cabível, porque Darcy, como sempre inquieto, rejeitava os “enquadramentos” e os rótulos. Assim, ele perambulou por vários campos do conhecimento e das criações humanas.
Primeiramente, no período de sua própria formação superior, na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), seria titulado com sociólogo, mas raramente assim se considera, porque, já nos bancos universitários da graduação, aproximou-se do antropólogo Herbert Baldus (1899-1970)6, identificando-se muito mais com a etnologia e com a antropologia. O Darcy antropólogo/etnólogo emerge e se consolida, no entanto, quando da aproximação com Cândido Mariano da Silva Rondon (1865-1958)7. E, com essas duas referências - de Baldus e de Rondon, respectivamente teórica e praticamente -, Ribeiro dedicará a maior parte de sua vida ao estudo e à defesa das questões/causas indígenas. Entretanto a dedicação aos amplos e profundos estudos nessas áreas acabaram por remetê-lo à Teoria da História, na medida em que a busca pela explicação do “processo civilizatório” não tinha por finalidade apenas acrescentar mais uma concepção historiográfica às grandes narrativas do setor, mas encontrar um horizonte para a emancipação definitiva e integral dos povos das ex-colônias do imperialismo europeu e ianque.
3 Uma teoria histórico-epistemológico-política da resistência
Nas cinco obras em que Darcy Ribeiro se propôs a examinar a marcha das civilizações, ele registrou sua concepção de processo histórico acabou por inscrevê-lo, simultaneamente, no universo dos defensores das teorias do Evolucionismo e do Materialismo Histórico-Dialético8. Neste diapasão, ele lança mão de uma série de categorias, não as considerando como meros instrumentos de análise científico-acadêmica, mas como verdadeiras armas da resistência na luta pela libertação e emancipação de povos oprimidos. Elas são explicitadas a seguir.
Primeiramente, Darcy Ribeiro considera que a dinâmica civilizatória é ditada pelas revoluções tecnológicas, sucessivas na marcha da humanidade, desde as origens até os dias de hoje: (i) a Revolução Agrícola, (ii) a Revolução Urbana, (iii) a Revolução do Regadio, (iv) a Revolução Metalúrgica, (v) a Revolução Pastoril, (vi) a Revolução Mercantil, (vii) a Revolução Industrial e, finalmente, (viii) a Revolução Termonuclear e Eletrônica (v. RIBEIRO, 1998, p. 231-253).
E, ao manifestar sua radical rejeição às ortodoxias, que considerava própria de intelectuais “ruminantes” (v. RIBEIRO, 1998, p. 26), Darcy não tinha qualquer receio das heterodoxias quando afirmava:
Trata-se, portanto, de inverter a perspectiva de análise da sociologia e da antropologia acadêmicas e de reavaliar criticamente a abordagem marxista, a fim de focalizar, em primeiro lugar, os fatores dinâmicos da evolução das sociedades humanas, em longos períodos de tempo, e, posteriormente, estudar os condicionamentos sob os quais esses fatores atuam (RIBEIRO, 2021, p. 24).
Segundo o mestre etnólogo-antropólogo-historiador, a evolução das formações histórico-sociais não se dá de maneira unilinear, mas, dependendo da atuação de seus próprios membros, ela pode, ou tomar o rumo da “primeira via”, que é a da “aceleração evolutiva”, ou a da segunda, configurada na “atualização” ou “incorporação histórica”. Na primeira, que, infelizmente, ocorre em apenas um pequeno número delas, as formações histórico-sociais são orientadas para um desenvolvimento autônomo, independente e mais voltado para os interesses de suas maiorias, resultando, portanto, em nações desenvolvidas. Na segunda via, que, também infelizmente, ocorre com a maioria, elas se submetem à “atualização” ou “incorporação histórica”, resultando em países subdesenvolvidos, cuja população se transforma em “proletariado externo” das potências imperiais. Como se pode perceber, para Darcy Ribeiro, o subdesenvolvimento não é uma etapa anterior ao desenvolvimento, mas ambos são simultâneos, na medida em que o primeiro é produto do segundo, ou, em outras palavras, as maravilhas dos países desenvolvidos se forjam na miséria e no sofrimento das maiorias dos países subdesenvolvidos.
Sobre o tema, vale a pena dar a voz ao Próprio Darcy Ribeiro:
Conforme se verifica, as enormes energias transformadoras das revoluções tecnológicas, operando sob o condicionamento dessas constrições, dão lugar, no caso de aceleração evolutiva, ao desenvolvimento pleno e autônomo; e nos caos de incorporação histórica, ao subdesenvolvimento. Desenvolvimento e subdesenvolvimento resultam, assim, dos mesmos processos históricos, não como etapas sequenciais de uma linha evolutiva, mas como configurações coetâneas das mesmas etapas evolutivas e até como formas mutuamente complementares (RIBEIRO, 1983, p. 22).
É a partir desta análise que Darcy Ribeiro chega à explicitação cristalina dos fatores do desenvolvimento desigual no mundo, constatando o lamentável atraso dos países da América Latina e, dentro dela, do Brasil, demonstrando, ao mesmo tempo, que, na medida em que é necessário e contingente, por ser histórico - aliás, as formações histórico-sociais latino-americanas eram mais ricas e desenvolvidas que as que emergiam na América do Norte no século XVII -, o atraso material pode ser, também, superado pela ação humana, pois são as pessoas que constituem o sujeito da História, ainda que dentro das circunstâncias, como afirmava Marx,
Para ele, teoria é concretude, é vida, uma vez que, quando alienada e alienante, promove a concreta e brutal opressão colonial e neocolonial. Ele afirmava com veemência: “Penso que a verdade, no que tenha de apreensível, não está em texto algum, mas na vida e na história” (RIBEIRO, 1998, p. 27).
Nesta altura do trabalho, vale a pena detalhar um pouco mais a concepção histórica de Darcy Ribeiro a respeito do que ele próprio denomina “Processo Civilizatório”, sem qualquer receio do uso de uma expressão, no mínimo, polêmica para quem se colocava numa posição pós-colonial. É que, numa espécie de “manha” oprimida, Ribeiro se apropria de uma expressão da colonialidade para dar-lhe outro significado, em um verdadeiro processo de “transfiguração cultural”9 invertida.
3.1 O Processo civilizatório
Compreender o ritmo e as características das civilizações mundiais em um contexto histórico brasileiro, marcado por temas como o subdesenvolvimento e o autoritarismo dos regimes militares, serviu como desafio para a elaboração de O Processo Civilizatório, que veio a lume em 1968, tendo sido recebido com satisfação por intelectuais como Anísio Teixeira, o responsável pela apresentação do livro.
Darcy Ribeiro igualmente concebeu e redigiu o conjunto da sua obra em pleno momento em que os estudos históricos no Brasil eram renovados, por intermédio do avanço do Marxismo e da Escola dos Annales, que já indicavam, aos historiadores, a importância da Antropologia para as pesquisas históricas e a superação de um modelo de ensino de História centrado na factualidade e na memorização de datas e nomes de heróis da elite, porque valorizava a história política dos grandes acontecimentos e personagens10.
Le Goff, cujas pesquisas versaram sobre temas que abarcaram o conjunto do mundo medieval, estendendo-se até sobre biografias, como a de São Francisco de Assis, foi reconhecido como um historiador que dedicou à Antropologia uma atenção especial, legitimando o conjunto das suas pesquisas. Por isso, é possível pensar que a concepção de História que alicerça a Antropologia Histórica de Ribeiro reúne os paradigmas do Marxismo e da Escola dos Annales, em razão de conciliar uma noção holística de História, presente na ideia de civilização; e de Antropologia, quando ele desloca o olhar para os costumes e o cotidiano de povos, sobretudo dos indígenas do Brasil.
Há, ao longo de O Processo civilizatório, duas questões prováveis: (i) Como inserir o Brasil nos domínios do processo histórico civilizacional mundial? (ii) Qual é o papel da Antropologia para a criação de um método de investigação do processo histórico das civilizações?
O livro, aqui examinado na perspectiva da compreensão do processo histórico, é dividido em partes, cada um das quais analisando uma das “revoluções tecnológicas” que, de acordo com Darcy Ribeiro, foram o motor das mudanças políticas, econômicas, sociais e culturais. O autor reconhece, no prefácio da primeira edição, a pretensão de rever e criticar as teorias da evolução sociocultural e de conceber um novo paradigma que dê conta de explicar o desenvolvimento das sociedades humanas ao longo dos tempos, ainda que reconheça os desafios de tal pretensão.
Explicita que se apoiou em teorias globais explicativas do processo histórico, ao usar noções como Escravismo, Capitalismo e Socialismo (RIBEIRO, 2000, p. 1).
Ainda na introdução do livro, o autor afirma a retomada do viés evolucionista, embora negue a existência de um esquema global das partes que constituem a evolução cultural presentes em investigações da Arqueologia, da Etnologia e da História.
Em seguida, ele registra quatro aspectos que comprometem a abordagem da perspectiva evolucionista nos domínios das Ciências Sociais: o primeiro, com uma tendência que não se abre a um tratamento mais abrangente e compreensivo dos fenômenos sociais. A redução dos casos antropológicos acerca da dinâmica cultural e microanálises presentes em estudos de aculturação é o segundo. O terceiro diz respeito às pesquisas funcionalistas. Finalmente, o quarto tem a ver com a insuficiência de controvérsias que tangem a evolução sociocultural (RIBEIRO, 2000, p. 2).
Os trabalhos de Morgan, Marx, Engels, Gordon Childe e Wittfogel são representativos da importância da História e da Antropologia como referências interpretativas de O Processo Civilizatória. A visão de uma história das sociedades humanas marcada por uma sucessão de processos civilizatórios que se diversificam e que são responsáveis por diferenciar as sociedades humanas tornam o trabalho e a tecnologia categorias teóricas centrais das reflexões construídas por Darcy Ribeiro. É importante ainda sublinhar o lugar dos conceitos de estagnação cultural e regressão histórica. O primeiro auxilia o investigador a reconhecer a permanência no tempo de características culturais entre os grupos humanos ao longo da história. O segundo explica, por meio de uma série de identificadores, a repercussão e o impacto de uma sociedade de forças produtivas de níveis mais elevados em relação aos povos de formações sociais menos complexas.
É importante apresentar os caminhos trilhados pelas sociedades humanas em O Processo Civilizatório. A Revolução Agrícola é representada como uma espécie de ponto de partida da sequência das civilizações humanas. O período pode ser caracterizado inicialmente pela superação de uma organização fundada em tribos de caçadores e coletores para uma organização em que sociedades humanas que domesticam animais e tornam-se também grupos especializados em atividades pastoris. Ela se desenvolveu em regiões como a Mesopotâmia e o Egito Antigo (RIBEIRO, 2000, p. 39).
Em sequência há a Revolução Urbana, que tem como corolário quatro etapas civilizatórias. As cidades e as organizações estatais de poder indicam a constituição de sociedades hierarquizadas, bem como tecnologias que atestam a “agricultura do regadio”, com o emprego do cobre e da escrita (id., ibid., p. 49). As descobertas de novas técnicas de irrigação e criação de animais elevou o nível das forças produtivas e diferenciou hierarquicamente os povos. Paulatinamente, o escravismo se consolidou entre os povos. Além disso, as transformações mencionadas são importantes para se assinalar e compreender as civilizações regionais, que geram pilares tecnológicos que sustentam os impérios teocráticos pelo mundo, desde os do Extremo Oriente até o Egito faraônico e as civilizações indígenas da América Pré-Colombiana, como a dos Astecas e a dos Maias. Em tais organizações políticas, expressivos contingentes populacionais foram mobilizados, com vistas à execução de obras de irrigação e monumentos arquitetônicos suntuários. O desenvolvimento e a expansão tecnológica desenvolvidas pelos impérios teocráticos teve como efeito a formação de impérios escravistas em cujo interior ocorreu a disseminação da metalurgia, que favoreceu a edificação dos impérios mercantis escravistas (RIBEIRO, 2000, p. 87). As civilizações engendradas em torno dos espaços geográficos banhadas pelo mar Mediterrâneo fomentaram a escravidão como mercadoria e base das civilizações greco-romanas. As guerras e as expansões imperiais foram impulsionadas pela busca de escravos e fundamentaram a manutenção das relações de produções escravistas. Concomitantemente a isso, as “póleis” gregas, sobretudo Atenas e Roma, no apogeu do império romano, tiveram as suas paisagens urbanas marcadas pela presença da mão de obra escrava. Com a queda do Império Romano do Ocidente, a parte do ocidental do império, que correspondia a grosso modo à Europa Ocidental, passou por um processo de feudalização, em que poder político foi pulverizado e a economia tornou-se cada vez mais ruralizada. A Igreja Católica aumentou significativamente seu poder econômico, político, espiritual e ideológico (RIBEIRO, 2000, p. 95).
A Revolução Mercantil que, de um modo geral, abarca o período que coincide com a História Moderna (séculos XV a XVIII), tem como marco inicial a expansão marítima e comercial europeias. Ribeiro lista invenções, como os instrumentos de navegação que atestam o avanço das tecnologias, permitindo aos europeus, desde o final da Idade Média, a navegarem pelo mundo. Portugal e Espanha, os pioneiros das navegações modernas, estabeleceram, na América, por intermédio das políticas mercantilistas e do sistema colonial, a escravidão moderna. Todavia, em outras partes do mundo, povos, como os da Rússia, estenderam os seus domínios sobre outras regiões. As nobrezas europeias que dominavam os Estados europeus que estavam em processo de construção foram beneficiadas com as novas tecnologias, conquistas e riquezas. Nas Américas, a colonização representou o desalojamento do poder das antigas elites dominantes em favor do colonizador europeu (RIBEIRO, 2000, p. 114).
Os domínios europeus sobre povos e civilizações americanas, africanas e asiáticas permitiram uma acumulação primitiva de capital que lhes proporcionou realizar, pioneiramente na Inglaterra, a Revolução Industrial - marco decisivo das futuras civilizações contemporâneas. A tecnologia industrial, fundamental para o triunfo do Capitalismo, expandiu-se em direção a todos os povos e civilizações do mundo. A nova civilização industrial faz com que os “pioneiros da industrialização” se situassem em posição de superioridade nas suas relações com outros povos (RIBEIRO, 2000, p. 129).
No século XIX, o Capitalismo baseado no capital industrial, fomentado pelas novas tecnologias e pela busca por mercados, promove o neocolonialismo que, desta feita, engendra uma partilha de terras e regiões da África e da Ásia (RIBEIRO, 2000, p. 133). As grandes empresas orientadas pelo Capitalismo Monopolista retiram das suas colônias matérias primas e ainda asseguram, pela força militar, mercados para as suas indústrias. O domínio econômico é justificado pela ideologia que defende a supremacia do branco sobre os demais povos.
No século XX, marcado por duas grandes guerras mundiais, o Socialismo é representado por Darcy Ribeiro como uma alternativa ao Capitalismo.
Por fim, as sociedades futuras concebidas por Ribeiro exprimem avanços tecnológicos céleres que trazem efeitos substanciais para a vida de homens e mulheres. O autor usa a expressão “Revolução Termonuclear” para caracterizar o mundo contemporâneo, ainda polarizado pela Guerra Fria, que punha em lados opostos os Estados Unidos e a então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).
Como se vê, Darcy Ribeiro propõe uma concepção história genuína, original, inédita e, preventivamente, se defendeu de seus potenciais críticos, especialmente dos alinhados à esquerda, ou melhor dos aderentes à ortodoxia marxista:
As últimas [críticas] merecem maior atenção, embora seja, às vezes, igualmente tolas. Este é o caso de todos os que, supondo que existem respostas finais de Marx para todas as questões consideram uma ousadia repensar os esquemas ditos marxistas, porque só admitem recitá-los (RIBEIRO, 1998, p. 26).
E arremata, numa de suas melhores boutades: “... contra todos os que pensam que intelectual do mundo subdesenvolvido tem de ser subdesenvolvido também” (id., ibid., p. 23).
Em outras palavras, ele defende uma ciência oprimida genuína, exterior às concepções eurocêntricas e ianquecêntricas, para explicar as trajetórias civilizacionais das próprias nações oprimidas.
3.2 O marxista autêntico e coerente
Uma das grandes dificuldades que têm se apresentado aos intelectuais, especialmente aos proponentes de novas racionalidades, de novas epistemologias, é a aplicação de suas teorias às suas próprias propostas. É que toda nova proposta epistemológica, particularmente a que quer desbancar a(s) anterior(es), a(s) vigentes como “ciência normal”11, acaba por ser obrigatoriamente meta-ciência. Para melhor compreensão desta afirmação, registrar-se-á, aqui, um breve parênteses para exemplificar, com uma situação ocorrida, verdadeiramente concreta. Convidado para dar um seminário na Universidade de Coimbra sobre “Círculo de Cultura” na perspectiva de Paulo Freire, o Prof. José Eustáquio Romão se viu diante do dilema: se o “Círculo de Cultura” é proposto pelo Patrono da Educação Brasileira para substituir a aula, seria uma contradição in limine dar aula(s), no referido Seminário, na medida em que o conteúdo programado para o evento trazia como um de seus fundamentos a negação da aula. Se ministrar aulas em Coimbra seria uma contradição de partida, o seminário sobre “Círculo de Cultura” já exigia seu desenvolvimento por meio de círculos de cultura. Em suma, a nova Pedagogia Freiriana se impunha como meta-pedagogia, isto é, pedagogia da nova pedagogia.
Retornando a Darcy Ribeiro, como outros pensadores da mesma corrente de pensamento, o Materialismo Histórico-Dialético, que Darcy, sem qualquer concessão, denomina “intelectuais ruminantes” - limitam-se à recitação das fórmulas de Marx -, faz um descomunal esforço para superar os limites de uma esquerda “... dividida, perplexa, incapaz de formular um projeto de revolução...” (2014, p. 224), para construir uma teoria que, enquanto novidade, impunha-se, também, como meta-teoria. Contudo, ele se inclui entres os responsáveis pela derrota, por exemplo, do Governo João Goulart, diante do putsch civil-militar de 1964: “Os derrotados fomos todos nós, como uma esquerda que não estava à altura do desafio histórico que enfrentava e que ainda hoje não o está...” (id., ibid.). E não se pense que Darcy estava fazendo uma declaração subjetiva de modéstia. Aliás, para ele, como para Paulo Freire, a modéstia não é virtude, mas é a outra face da arrogância.
Para encerrar este tópico, serão registradas três condicionalidades do que poderia ser considerado como a teoria do conhecimento do Marxismo, para, pela referência delas, demonstrar que, ao diferenciar-se dos “intelectuais ruminantes”, Darcy Ribeiro não estava afastando-se do Marxismo, mas realizando-o em plenitude, Senão, vejamos:
1.º) Se o Materialismo Histórico-Dialético tem como uma das premissas básicas de sua “epistemologia” (permitam-nos o termo) de que tudo muda, nada permanece e o que permanece é a mudança; em suma, se tudo é processo..., dificilmente se encontra um pensador mais processual do que Darcy Ribeiro no universo dos que tentaram interpretar marxistamente o Brasil.
2.º) Se o pensamento marxista tem como um dos fundamentos de sua dialética materialista que tudo admite o seu contrário, então, Darcy, contestando alguns “conceitos de autoridade”, alinha-se entre os que Marx, Engels, Lenin e tantos outros epígonos dessa corrente de pensamento consideravam como verdadeiros marxistas.
3.º) Finalmente, se Marx tinha razão na 11ª. tese sobre Feuerbach, de que “... os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo de diversas maneiras, mas o que importa é transformá-lo” (MARX, em http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ma000081.pdf, acesso em 16/11/2022), é difícil encontrar, no Brasil, alguém que tenha lutado mais para sua transformação para uma formação social livre, independente e autônoma, do que Darcy Ribeiro, ombreando-se, por isso, com os grandes transformadores/libertadores marxistas da história.
4 Palavras finais
Darcy - nome que serve para homem e para mulher, andrógino, no sentido da inclusão de todas e de todos -, sem filhos, cuja esterilidade biológica foi compensada pela produtividade teórico-política, mestre, humano, limitado, extraordinário! Extraordinário porque humano e cheio de limites e contradições. Que graça há nos super-homens e nas super-mulheres que realizam façanhas extraordinárias? Mais extraordinário é ver homens e mulheres comuns, como Darcy, realizarem façanhas maravilhosas. Não, Darcy não foi um super-homem asséptico e perfeito. Carregava consigo um monte de contradições e, por isso, deixava um rastro de polêmicas por onde passava. Cometeu equívocos e forjou verdades. Dentre os primeiros, pode-se destacar o que poderia ser batizado, respeitosamente, de “eutanásia pedagógica”, quando, engabelado pelo canto da sereia de Paulo Renato de Souza, da famigerada “socialdemocrata brasileira”, defendeu a extinção da educação de adultos, sob o argumento de que era dinheiro e esforços desperdiçados com uma geração já perdida e que todos os investimentos educacionais deveriam se voltar somente para a Educação Básica regular - verdadeiro “celeiro” do analfabetismo, segundo ele. Esquecia-se Darcy que, além de direito, a alfabetização é uma ferramenta estratégica para a alfabetização de crianças. Ademais, na perspectiva freiriana (conscientizadora), é um dos mais poderosos instrumentos para a libertação e a instalação de uma formação social independente e autônoma.
No restante de seu amplo e profundo legado só construiu verdades engajadas e comprometidas com o destino civilizatório da América Latina e do Brasil.
Criticá-lo, em alguns aspectos de suas teorias e posições, não significa deixar de ser, honrosamente seu discípulo, tendo-o como um dos maiores mestres do século XX, ao lado de Paulo Freire, porque ambos consideraram o amor como o dínamo da construção de civilizações.
Vale a penas lembrar, aqui, neste final de trabalho, o que narrou Paulo Freire sobre um dos encontros pessoais que teve com Darcy Ribeiro, no Seminário CIEP - “Crítica e AutO-críticaA, ocorrido em Niterói (RJ), em 1991. Nesta fala, Paulo Freire afirma que, o que mais o impressionara, numa entrevista de Darcy a um dos canais de televisão, fora a resposta final do antropólogo ao entrevistador: “- No fim de tudo, [o entrevistador] pediu que o Darcy dissesse sua última vontade naquele programa. E ele disse: ‘- Olhe, eu quero que continuem me amando’”. Então, Freire tentou, imediatamente após a entrevista, ligar para a casa de Darcy, mas o telefone estava ocupado. “- Certamente muita gente estava tentando falar com ele”, acrescentou Freire. No dia seguinte, porém, buscando uma “... brecha na hora do almoço, telefonou, novamente, apenas para declarar que “que o amava”. Não identificando quem estava lhe ligando, Darcy agradeceu, dizendo que não sabia quem falava, mas que “o amava, também”.
Freire, no mencionada Seminário, fundamentou a convicção de que o mais importante em Darcy era “... a necessidade que que ele tem de amar. Eu acho que fora disso, não há Antropologia, não há Pedagogia, não há Política, não há Arte; não há coisa nenhuma. Eu diria, não há existência humana12”.
E não se trata do amor romântico, meloso; nem do “amor falso”, mas daquele impulso humano que torna seus sujeitos capazes de darem a vida pela libertação de si e dos outros e das outras, para dar continuidade ao processo civilizatório.
Este foi o Mestre Darcy. Parecia estar sempre com urgência e emergência... Parecia lutar contra o tempo curto da existência individual, para dar conta da superação da imensa tarefa consubstanciada na quantidade de problemas postos aos defensores da libertação das oprimidas e dos oprimidos. No caso latino-americano e brasileiro, a tarefa parecia-lhe mais difícil ainda, porque as redes constritoras das elites nacionais - cúmplices dos representantes do imperialismo internacional - só têm permitido que os povos da América Latina e do Brasil cresçam deformados. A superação dessa “permissão deformadora” só pode ser levada a efeito pela revolução, que não admite pedido de desculpas, mas julgamento rigoroso, com direito a defesa, de quem comete genocídio.