1 Introdução
O que dizer de uma festa determinada para ocorrer 46 ou 47 dias (dependendo de o ano ser bissexto ou não) antes do domingo imediatamente posterior à primeira lua cheia depois do equinócio da Primavera (ou do Outono no nosso hemisfério)? Complexa, sem dúvida.
Complexa, não apenas pela engenharia cronológica e simbólica que o Concílio de Niceia utilizou para definir a data no ano 325, cuja intenção foi marcar o início da quaresma, momento que os cristãos devem se inspirar no sofrimento de Jesus Cristo para renovar os seus votos de caridade e devoção, mas, sobretudo, porque o carnaval tenta reproduzir em um ambiente lúdico, pressupostamente permissivo e inclusivo, os fenômenos que estruturam simbólica e materialmente as relações sociais cotidianas, forjando um falso lapso no tempo-espaço social.
A dinâmica do carnaval baiano jamais escondeu as formas de apartação social cotidianamente vividas no âmbito das suas relações socioeconômicas, políticas e culturais, destacadamente aquelas de natureza étnico-raciais. Vários são os registros, mais ou menos sutis, capazes de demonstrar tais apartações. Eles são fartamente encontrados nas coberturas dos jornais do Estado desde a segunda metade do século XIX, nos decretos e ocorrências policiais, na literatura, nas formas de organização da festa e dos seus grupos participantes, enfim, em um conjunto de ações politicamente engendradas que resultaram em outras tantas formas de reação da população negra baiana. Dentre tantas, duas delas merecem destaque por reclamarem a participação da população negra na festa: os afoxés e os blocos afros, formas específicas de divertimento, denominados, neste artigo, como blocos afrocarnavalescos.
Sem pretender esgotar as especificidades dos afoxés e dos blocos afros1, dadas as limitações impostas pelo artigo, é importante caracterizá-los suficientemente para que as pessoas que venham a acessar este trabalho possam distingui-los, entendendo a importância de cada um no contexto das reações ao racismo assumidas pela população negra baiana em um espaço nitidamente hostil a ela.
Ainda que afoxés e blocos afros sejam formas de entretenimentos intencionalmente elaboradas para denunciar a exclusão de uma sociedade racista e anunciar a urgência de um novo processo civilizatório, os primeiros se caracterizam por apresentarem temática, musicalidade, indumentárias e adereços fortemente referenciados no universo afro-religioso. Sem dar as costas à estética afrorreligiosa, os blocos afros, por sua vez, direcionam as suas práticas para a explicitação de pautas antirracistas, politicamente comprometidas com a conscientização do povo negro em relação ao projeto excludente que estrutura a sociedade e os remetem à invisibilidade e à submissão socioeconômica, política e cultural.
Como é possível notar, mesmo apresentando formas diferenciadas de divertimento, afoxés e blocos afros jamais podem ser pensados de forma apartada das práticas antirracistas historicamente desenvolvidas pela população negra baiana. Pelo contrário, eles se complementam na politicidade implícita em cada desfile que fazem, mas também em relação aos elementos que compõem as suas práticas, como as bandas, os ensaios, os temas, os festivais de música, os festivais de beleza negra, as fantasias e, sobretudo, nas ações sociais que desenvolvem junto às comunidades em que estão situados.
Em outras palavras, partindo de um conceito de pedagogia que não se resume à clássica definição de ciência da educação, mas amplia a sua perspectiva quando a compreende como uma forma de ler e intervir no mundo a partir da educação, os blocos afrocarnavalescos desenvolvem práxis pedagógicas cotidianas, que se corporificam em cada desfile ou apresentação que fazem. Mais ainda, desenvolvem epistemologias circulares que favorecem a tomada de consciência do racismo que estrutura a sociedade baiana, contribuindo, fundamentalmente, nesse contexto, para o processo de conscientização do povo negro e consequente busca pela transformação dessa realidade.
2 A epistemologia circular dos blocos afrocarnavalescos e seus elementos constituintes
As ideias contidas no termo “circularidade” vêm sendo cada vez mais utilizadas por intelectuais que desejam descrever práticas, pensamentos ou sistemas interativos, sustentáveis ou integrados, demonstrando, na maioria das vezes, a prevalência do diálogo sobre a “sloganização”, a superioridade das relações primárias sobre as secundárias, o respeito pelas interações solidárias em detrimento das imposições burocráticas e autoritárias; enfim, trata-se de uma opção pela horizontalidade à verticalidade epistemológica amplamente verificada em visões de mundo coloniais2.
Pensando nas circularidades que envolvem as práticas afrocarnavalescas, é possível percebê-las em duas dimensões que se completam, estruturando formas específicas e integradas de produção de conhecimentos. Nesse sentido a circularidade se apresenta: i) na forma dinâmica como os conhecimentos criados no seio das práticas afrocarnavalescas circulam, preferencialmente, entre a população negra baiana e são por ela recriados, o conhecido “Correio Nagô”; ii) na própria circularidade implícita ao “binômio da unidade dialética da práxis, supondo que esta seja o fazer e o saber reflexivo da ação” (KRONBAUER, 2019, p. 25).
Partindo da premissa de que os blocos afrocarnavalescos produzem conhecimentos a partir de práticas de resistência ao racismo e das reflexões que fazem sobre essas mesmas práticas, fundamentalmente criadas e recriadas a partir das vivências psicossociais das pessoas negras e não por grupos exteriores a elas, é possível admitir que o conjunto dos blocos afrocarnavalescos ancora a sua práxis pedagógica em uma epistemologia circular, organicamente vinculada à (re)criação de sentidos socio-historicamente construídos e percebidos como significativos pela população negra baiana. Ainda sobre a criação de epistemologias, vale apresentar a leitura que a professora Nilma Lino Gomes fez da obra de Boaventura Souza Santos, intitulada “Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes”. Segundo a autora, o professor Boaventura entende que
[…] toda experiência social produz conhecimento. Ao fazê-lo, pressupõe uma ou várias epistemologias. Por epistemologia entende-se toda noção ou ideia, refletida ou não sobre as condições do que conta como conhecimento válido. E é por via do conhecimento válido que uma dada experiência social se torna intencional ou inteligível. De acordo com o autor, não existe conhecimento sem práticas e atores sociais. E como umas e outros não existem senão no interior das relações sociais, diferentes tipos de relações sociais podem dar origem a diferentes tipos de epistemologias. (GOMES, 2017, p. 28, grifos nossos)
Partindo dessa perspectiva, que nos motiva a pensar em formas de construção de saberes a partir de relações e práticas sociais afastadas da tradição acadêmica, torna-se imprescindível identificar o conjunto das ações que melhor caracterizam as práticas carnavalescas dos blocos afros e dos afoxés, bem como a natureza e a intencionalidade dessas ações, pois são elas que afirmam, criam e recriam, tempestivamente, uma epistemologia de natureza orgânica e circular indispensável às práticas pedagógicas dos blocos afrocarnavalescos.
Tendo funcionado como um farol para os blocos afros, e até mesmo para os afoxés, as ações implantadas ao longo dos anos pelo Ilê Aiyê3 foram, na sua grande parte, incorporadas pelas demais entidades, constituindo-se pontos de partida para reflexões, recriações e inovações que ampliam e amplificam as estratégias de aproximação e conscientização da população negra baiana. Nesse sentido, é possível destacar três importantes vetores de criação, convergência e circulação de saberes e valores que passarão a constituir o que será aqui denominado de práxis afrocarnavalesca4: i) o vetor de criação estético-cultural, que contempla a organização de bandas próprias, de ensaios, de festivais de música e de beleza e de tantas outras formas de produção cultural afrocentrada; ii) o de implantação de projetos sociais nas comunidades, destacadamente aqueles voltados à produção cultural, à educação, à geração de emprego e renda, bem como à inclusão e ao empoderamento5 de mulheres; iii) o que favorece o desenvolvimento de ações político-identitárias reforçadoras da sua institucionalização comunitária, sejam elas relacionadas à constituição histórica e social dos bairros, ao pertencimento dos seus moradores ou à oferta de serviços públicos. Ou seja, o que se percebe no conjunto das ações dos blocos afrocarnavalescos é a intenção de, por meio da arte e da politicidade que ela traz consigo, problematizar e planejar ações que reafirmem as identidades afrocentradas e que se constituam em estratégias de conscientização e transformação das questões que ameaçam e vulnerabilizam o estar com o mundo de negros e negras, como o racismo, a homofobia, a violência contra a mulher, o desemprego e demais fenômenos que compõem esse conjunto de práticas excludentes, mas que, sobretudo, reafirmem o seu contrário, elevando a autoestima e o pertencimento dessa população.
Antes de avançarmos nas práticas carnavalescas mais comuns aos afoxés e blocos afros, é preciso ressaltar dois aspectos em relação aos vetores de criação, convergência e circulação de saberes e valores que constituem a práxis afrocarnavalesca: eles tanto se complementam entre si quanto se confundem com as próprias práticas pedagógicas das entidades, o que pode ser constatado no depoimento de Cláudio Araújo, diretor do bloco afro Malê Debalê:
Minha história, eu penso assim, se confunde com a de Robin Hood, porque a minha ideia é tirar do governo para dar à comunidade. E como é isso? Com projetos. Trazendo oficinas de dança, música, canto, percussão, grafitagem, que nós fizemos há pouco tempo, e hoje tem pessoas que se autossustentam e sustentam famílias a partir daí. Corte e costura, tem uma menina que sustenta a família e é muito grata ao Malê Debalê, porque diz “Cláudio, se não fosse aquilo ali, eu não sei o que seria da minha vida. [...] quando o Malê trouxe esses cursos, e me inscrevo, eu vendo, crio divisas, eu sustento a minha família. O Malê, diante dos discursos dele, me deu enfrentamento. Hoje eu sou uma ogã6”. (CLÁUDIO ARAÚJO, 2020, ENTREVISTA)
Neste breve recorte, podemos observar que, ao afirmar que “o Malê, diante dos discursos dele, me deu enfrentamento”, a moradora evidencia a intenção da entidade de promover a conscientização e o empoderamento das pessoas que habitam o espaço comunitário abarcado pelas suas ações. Mais ainda, ela acaba por expor a imbricação e a complexidade das práticas afrocarnavalescas e pedagógicas desenvolvidas pelos afoxés e blocos afros. Pela natureza e complexidade de tais práticas, fica evidente que elas não se limitam aos dias de carnaval ou àqueles que o precedem, mas acontecem o ano inteiro. Sendo assim, a chave para entender as estratégias de conscientização voltadas à transformação social da população negra baiana envolvida com afoxés e blocos afros passa a ter nome: envolvimento.
Vejamos, agora, algumas das ações mais comuns adotadas pelos blocos afrocarnavalescos de Salvador, indispensáveis para garantir o diálogo como premissa da leitura do mundo das comunidades negras baianas, pois, sendo atraentes pela ludicidade e pela conexão com as suas realidades socioeconômica, política e cultural, configuram-se como estratégias potentes para a problematização das leituras do mundo que fazem e dos saberes que produzem.
2.1 As bandas
Certamente o traço identitário mais marcante dos afoxés e dos blocos afros, as suas bandas percussivas costumam ser o ponto de partida para a formação dessas entidades.
Diferentemente de outras modalidades carnavalescas que contratam músicos para compor as suas bandas, os blocos afros e afoxés costumam manter uma relação orgânica com a comunidade, reafirmando a circularidade das suas ações a partir da iniciação musical de crianças e adolescentes, que reconhecem as entidades, as suas produções culturais e os seus artistas como referências estéticas. Nesse sentido, a banda e a musicalidade representam o portal que conecta as entidades afrocarnavalescas com as comunidades e estas com os projetos políticos e culturais daquelas. É por meio da banda e da musicalidade que a população acessa a mensagem afrocentrada das canções, a estética das suas danças, dos seus figurinos e adereços, mas também um espaço de sociabilidade marcadamente antirracista, transformando o conjunto desses elementos em componentes estruturantes - e portanto indispensáveis - dessa práxis nitidamente pedagógica.
Outro aspecto que emerge do contexto sociopolítico e educacional que se amalgama na relação banda-bloco, pois diz muito sobre a representatividade desse conjunto no imaginário dos seus foliões, refere-se à personificação que as bandas acabam adquirindo na estética da canção afrocarnavalesca. São diversas as canções que as homenageiam ou a elas se referem como elemento identitário do bloco, dos foliões, da comunidade.
Os afoxés e os blocos afros desenvolvem seus projetos sociopolíticos e educacionais a partir da musicalidade e, por conta disso, as suas bandas, formadas basicamente no seio das comunidades, acabam assumindo uma centralidade na condução da sua práxis pedagógica. Em torno das bandas desenvolvem-se processos criativos que retroalimentam a estética musical e plástica dos blocos afrocarnavalescos, reforçadas, agora, por mais um elemento importante do planejamento da criação estético-cultural e da leitura de mundo que os afoxés e os blocos afros propiciam, os ensaios.
2.2 Os ensaios
Girando na órbita das bandas, os ensaios são os espaços de aprendizagem mais privilegiados da construção crítica e emancipatória de saberes e valores propostos pelos blocos afrocarnavalescos. Diferentemente do que muitos poderiam pensar, não é no carnaval que ocorrem as condições de sistematização dos processos educacionais que resultam na práxis pedagógica afrocarnavalesca, mas, sobretudo, na circularidade dos saberes e experiências que precedem, constituem e projetam os ensaios como ambiente de gestação da potência transformadora da palavração. É nesse ambiente dialógico ‒ portanto potencializador da anunciação da palavra verdadeira ‒, espaço de sociabilização de saberes e de afirmação de valores, que a circularidade dos elementos constituintes da práxis pedagógica dos blocos afrocarnavalescos se evidenciam, a saber: a sua politicidade e o processo de (re)construção estético-afirmativa da musicalidade, da dança e da moda afro-baianas.
O reconhecimento dos ensaios como um espaço privilegiado de criação política e estética, na prática, passa pela ampla divulgação da sua efervescência cultural pelo já comentado “correio nagô”, gíria local bem lembrada por Goli Guerreiro quando se referiu à forma como as canções afrocarnavalescas se popularizavam na década de 1980. E, assim, como percebeu a autora,
Durante os ensaios dos blocos afro, ao longo do ano, as músicas são continuamente tocadas e rapidamente tornam-se conhecidas nos populosos bairros negro-mestiços da cidade, tais como Liberdade, Pelourinho, Itapuã, Periperi etc., locais de origem das organizações afrocarnavalescas mais famosas de Salvador. Nos anos 80, a produção musical, associada a uma estética afro, tornou-se uma forma de militância que buscava um padrão de negritude que fosse uma referência para o grande contingente negro de Salvador. (GUERREIRO, 2010, p. 26)
Ainda que a análise de Guerreiro continue sendo válida para entendermos o ambiente cultural e político dos ensaios, principalmente aqueles que antecedem os festivais de música, período em que as canções concorrentes são divulgadas ao público e trabalhadas com a banda, a “profissionalização” de grande parte dos blocos afrocarnavalescos, a indústria cultural e as relações construídas com o Estado produziram mudanças significativas no interior dessas entidades. Isso nos possibilita afirmar que nem os blocos afrocarnavalescos e nem os ensaios se cristalizaram no tempo, pelo contrário, foram ao longo das décadas reconstruindo suas especificidades constituintes sem perder o caráter lúdico-dialógico entre foliões e entidades. Como percebeu Marcos Rezende, “uma parte da turma já entendeu o jogo, já estão lá na frente. […] Porque isso faz parte da pedagogia, você dialogar com o mundo com as ferramentas que o mundo colocou” (REZENDE, 2019, ENTREVISTA).
Importa-nos notar que os ensaios são momentos interativos indispensáveis ao projeto dos blocos afrocarnavalescos, pois possibilitam contatos, trocas e difusão de saberes, construção de estéticas e de afirmações identitárias, além de ferramentas potentes para a construção de um ambiente dialógico de leitura do mundo. Em suma, são eventos essenciais para a consolidação das relações comunitárias, bem como para a divulgação dos projetos das entidades, pois ali são executadas as canções e reafirmado o tema do desfile.
2.3 O tema
Resultante de pesquisas históricas ou da percepção de acontecimentos de interesse da luta antirracista, o tema é o elemento principal que conduz o bloco afro ou o afoxé até o próximo carnaval. Podendo ser articulado com temas anteriores, necessariamente vincula-se à pesquisa, pois é comum que os dirigentes das entidades produzam materiais de apoio a partir de uma perspectiva afrocentrada para subsidiarem, não apenas os compositores, mas também os dançarinos nas entidades que possuem alas de dança, ou os artistas plásticos e os figurinistas que criarão a arte dos tecidos e as fantasias.
Compreendido o processo que vai da escolha do tema à produção das fantasias, a seguir serão apresentados os temas dos mais conhecidos afoxés e blocos afros no último carnaval antes da pandemia (2020): o Ilê Aiyê voltou à tradição de reafirmar a grandeza e a história de nações africanas com o tema “Botswana: uma história de êxito no mundo” (21º país homenageado ao longo da história do bloco); o Cortejo Afro, conhecido pela sua proposta estético-educacional, apresentou o tema “Oxumarê”, ressaltando a importância da inclusão, diversidade e tolerância; o Malê Debalê celebrou os seus quarenta anos homenageando o cantor Gilberto Gil e o clássico LP Refavela, lançado em 1977, com o tema “Refavelando: Malê retorna a África com Gilberto Gil”; e o bloco afro Muzenza optou por reafirmar a centralidade do reggae na sua formação com o tema “Tributo a Bob Marley”.
Vale a pena ampliar um pouco a noção do universo temático dessas entidades a partir do texto de divulgação da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia, responsável pelo planejamento do projeto Carnaval Ouro Negro:
O bloco afro Olodum destaca-se no ano de 2020 com um tema que exalta a força feminina, homenageando as grandes mulheres que fizeram parte da sua história de mais de 40 anos, “Mãe, Mulher, Maria, Olodum - Uma História das Mulheres”. […] Blocos afro comandados e formados por mulheres também reafirmam a sua força nos dias de desfile. Homenageando a Mãe Stella de Oxóssi, A Mulherada desfila no circuito Osmar no primeiro dia de carnaval, quinta-feira, às 17h. O bloco afro Didá, que tem um trabalho social e cultural voltado para crianças e mulheres no Centro Histórico de Salvador, acredita no tambor como base educacional, e leva seu samba reggae, que consideram uma ferramenta de transformação social, para o Carnaval Ouro Negro. O tema do desfile será “Didá Iabá Mãe Natureza Guerreira, Natureza Mãe Mulher”. […] O Afoxé Filhos de Gandhy, fundado em 1949, sendo a agremiação mais antiga contemplada pelo edital, traz para o carnaval 2020 o tema “Omolú - Obaluayê, Deuses da Terra, da Doença e da Cura”. O tapete branco da paz se estende na avenida, mas antes disto, no domingo, é tradição o Padê de Exu, que no Largo do Pelourinho abre os caminhos para o desfile do bloco. Entre outros afoxés contemplados este ano, os Filhos do Congo homenageiam ao Herói Negro Juliano Moreira, Pai da Psiquiatria, levando uma importante reflexão e referências históricas para o desfile. (SECULT, 2020)
Com temas que vão da história de países africanos e de celebridades baianas à religiosidade afro-brasileira, passando pelo empoderamento feminino, pela inclusão, tolerância e, até mesmo, pela homenagem a um dos ícones mundiais do reggae, impossível não perceber, no pequeno recorte de blocos afrocarnavalescos apresentados, uma diversidade temática que gira ao redor de um projeto original e comum a todas as entidades: a afirmação da população negra. Os resultados desse projeto não apenas produziram temas que marcaram a história do carnaval baiano e projetaram internacionalmente os blocos afrocarnavalescos e a própria cultura afro-brasileira (a exemplo de “Egito dos Faraós”, escolhida pelo Olodum em 1977), como constantemente se renovam a partir das demandas percebidas pelas instituições. Nesse sentido, vale ressaltar a proposta de duas entidades no carnaval de 2019: i) o comprometimento do bloco afro Muzenza com a inclusão, que ao eleger uma rainha cadeirante, a comunicóloga Josy Brasil, e inovar com uma ala de foliões também cadeirantes, celebrou a inclusão como perspectiva para o futuro com o tema “Afrofuturismo”; ii) o desfile do afoxé Filhos do Congo, que, comemorando quarenta anos, recebeu a visita da rainha Diambi Kabatusuila da República Democrática do Congo, vinda direto de Kinshasa, capital e maior cidade do país.
Considerando a evidente diversidade e a importância do tema para o projeto dos blocos afrocarnavalescos, a intencionalidade a ele incorporada, por óbvio, o precede. Não por outro motivo, é a natureza dessa intencionalidade, ou seja, a politicidade da ação, que faz das entidades afrocarnavalescas um ambiente capaz de gestar aquilo que Freire apontou como indispensável a uma pedagogia radical da pergunta, pois diz respeito ao que tratava com Antonio Faundez em 1989, mas que vale, certamente, para qualquer pedagogia radical, inclusive a afrocarnavalesca:
E esta pedagogia, vivida na escola ou na luta política, é substantivamente democrática e, por isso mesmo, antiautoritária, jamais espontaneísta ou liberalconservadora. No fundo, uma pedagogia em cuja prática não há lugar para a dicotomia entre sentir o fato e apreender a sua razão de ser. A sua crítica à escola tradicional não se esgota nas questões técnicas e metodológicas, nas relações importantes educador-educando, mas se estende à crítica do próprio sistema capitalista. (FREIRE; FAUNDEZ, 1998, p. 30, grifo nosso)
De fato, não há nada de espontaneísta, autoritário, bancário ou acrítico no projeto de transformação pela palavramundo promovido pelos afoxés e blocos afros, mas, sim, uma construção circular que emerge e se volta, criticamente ampliada, para a própria população negra baiana. Nesse movimento, que encontra nos ensaios um lócus privilegiado de produção política e cultural, não há dicotomias entre o fazer e o pensar, entre o produzir e o significar ou entre o ensinar e o aprender. Por isso, o que Freire e Faundez asseveram não encontra esforço adaptativo algum para representar a intencionalidade temática e a própria práxis dos blocos afrocarnavalescos de Salvador. Pelo contrário, o que os autores afiançam constitui a natureza existencial do conjunto dos afoxés e blocos afros, pois, sendo eles uma resultante de condicionamentos socioeconômicos, políticos e culturais, é a pedagogia radical antirracista gestada ao longo da história para a autonomia solidária da população negra que se renova com os blocos afrocarnavalescos e inviabiliza a inimaginável criação de blocos racistas ou blocos comprometidos com temas autoritários ou liberal-conservadores.
Assim, o viés progressista que marca a práxis dos blocos afrocarnavalescos garante a aderência de alas igualmente progressistas ao seu projeto político, reforçando as fileiras contra as forças liberal-conservadoras e suas propostas. É nesse momento que se reafirma a circularidade dos componentes da proposta pedagógica dos blocos afrocarnavalescos na forma de envolvimento comunitário, de práxis transformadora, de projeto político-cultural autêntico e significativo, capaz de articular diversas ações que convergem para a denúncia da opressão dos projetos racistas que grassam na cidade.
2.4 Os festivais de música
Forma utilizada por diversos blocos afros e afoxés para elegerem os seus temas, os festivais de música tornaram-se eventos concorridos no cenário cultural afro-baiano. E não é de se estranhar que isso ocorra, pois nesses festivais, bem como nos ensaios que os precedem, os(as) grandes compositores(as) apresentam canções especialmente elaboradas para conduzirem as entidades naquele carnaval e comumente relembradas nos que virão.
A operacionalização dos festivais de música tende a ser grandiosa, pois envolve um complexo trabalho preparatório que diz respeito à operacionalização técnica do evento. Nesse complexo de atividades, vale destacar o longo processo de pesquisas de que resultarão seminários sobre os conteúdos desenvolvidos em parceria entre intelectuais e compositores. Trata-se de subsídios necessários à confecção das conhecidas apostilas temáticas, principal base teórica para os enredos das canções.
Outra característica dos festivais é o clima de efervescência que se instala entre os foliões e intérpretes. Esse clima vai sendo “aquecido” nos ensaios que precedem as etapas finais dos concursos, momento em que os foliões buscam aprender a letra das canções para poderem acompanhar e escolher as suas favoritas, já que o resultado oficial é dado por um júri especializado, normalmente composto por historiadores, produtores culturais, jornalistas, compositores, músicos e demais artistas.
Virou tradição entre os blocos afros realizar o festival de música em duas modalidades, música-tema e música-poesia. Na primeira modalidade, como salientado, os blocos afros podem realizar pesquisas prévias, promover seminários para apresentar e discutir o tema e distribuir esse material, na forma de apostilas ou cadernos, para os compositores elaborarem as suas canções. Na segunda modalidade, a música-poesia, o compositor fica livre para enaltecer o bloco, a sua história, a sua relação ou a de um folião, ou mesmo do público, com o bloco. Sobre a contribuição da musicalidade dos blocos afros, com suas músicas tema e poesia, para a formação de identidades e para a ascensão educacional da população negra, deixemos a palavra com um dos mais premiados compositores baianos, Adailton Poesia:
Então as músicas dos blocos afros, tanto os temas como as poesias, trouxeram um conhecimento muito profundo para nós, povo negro que não tivemos oportunidade de aprender nas escolas, as músicas dos blocos afros foram aproveitadas de maneira muito importante para o estudo do povo… Porque hoje nós temos na universidade nossos doutores, nossas doutoras negras. E quem fez essa revolução na cabeça desse povo negro? Foram os blocos afros, principalmente o Ilê Aiyê. Os blocos afros nos deram essa oportunidade através de tudo, através da sua percussão, da sua vestimenta e da sua música principalmente. [...] Então o bloco afro e sua musicalidade têm tudo a ver com o desenvolvimento cultural do nosso povo negro. (POESIA, 2020, ENTREVISTA)
Observa-se, então, nesse breve depoimento de Adailton sobre a fase de preparação dos festivais, um processo contínuo de conscientização, como ele diz, sobre “um conhecimento muito profundo [para] o povo negro” que não teve a “oportunidade de aprender nas escolas” (POESIA, 2020, ENTREVISTA).
2.5 Os festivais de beleza negra e a estética afrorreferenciada
Capaz de atrair para si pautas politicamente caras aos afoxés e blocos afros, os festivais de beleza negra promovidos por essas entidades se consolidaram como um ambiente privilegiado de trocas culturais, de afirmação da autoestima, de construção de identidades, de valorização da mulher negra e da estética afro-baiana, afirmando-se, desse modo, como um ambiente circular-dialógico ideal para representar o conjunto de elementos que contribuem para a práxis pedagógica afrocarnavalesca.
Planejados com a mesma atenção dos festivais de música, e em certa medida similar a esses últimos no que diz respeito à composição do corpo de jurados, à mobilização da banda e dos foliões e à presença de personalidades ligadas à cultura afro-baiana, os festivais de beleza negra também extrapolam o ambiente da comunidade em que está inserido o afoxé ou o bloco afro.
Um aspecto que favorece a aceitação do festival é que ele jamais foi pensado na forma como acontecem os tradicionais concursos de beleza, que acabam favorecendo a objetificação das mulheres. Pelo contrário, esses festivais são eventos em que a beleza negra ocorre na plenitude dos elementos estéticos que compõem a sua proposta, ou seja, a postura afirmativa das candidatas e a desenvoltura das suas apresentações - sim, apresentações, pois elas serão avaliadas a partir do conjunto estético que envolve dança, adereços e figurino. Nesse sentido, não prevalece a plástica do corpo exposto do desfile, mas a plástica que cada candidata exibe nas suas apresentações.
Outro aspecto que caracteriza os festivais de beleza negra é que as candidatas eleitas são tratadas como rainhas e princesas, legítimas representantes da história e da atuação da entidade, imprimindo uma relação repleta de significados de pertencimento, de politicidade e de representatividade étnica.
As opiniões das rainhas eleitas dos diversos blocos afros são contundentes em relação ao processo de empoderamento, conscientização e elevação da autoestima promovidos pelos festivais de que participaram. Falando um pouco sobre o seu percurso até ser eleita a “Muzembela” de 2020 (a rainha do bloco Muzenza) a professora de dança Paula Marinho, 34 anos, conta: “eu cheguei através de mestres, professores e colegas que sempre falavam sobre o bloco, a história que ele carrega e a música como experiência de vida. Eu quis concorrer, não só pelo título, mas pelas vivências das pessoas negras” (ALENCAR, 2020).
No depoimento dado pela secretária-executiva Daniela Nobre à Fundação Palmares, a “Deusa do Ébano” de 2019, forma como o Ilê Aiyê denomina a sua rainha, percebemos o mesmo caminho de empoderamento e autoestima feminino-negro:
A Beleza Negra não é uma briga pelo primeiro lugar, é pelo empoderamento feminino. Todas somos belas, mas esse título enaltece a mulher. Não é financeiro nem nada. É apenas o reconhecimento de ganhar um concurso em um lugar onde minha beleza é aceita. Não preciso ter nariz afinado, nem a pele clara, nem bunda grande, muito menos expor meu corpo. Eu fui aceita e me tornei Deusa pelo conjunto, pela minha dança, pela minha beleza, pelo meu nariz amassado. É surreal. (GONÇALVES, 2019)
Quem percebeu e aprofundou esse conjunto de valores e sentimentos que envolvem a assunção de uma rainha de bloco afro, bem como as suas conexões com o conjunto dos elementos estéticos afro-baianos foi a professora de dança Vânia Oliveira, Negra Malê em 2000 e em 2006, que pesquisou sobre as contribuições do reinado de um bloco afro na reconfiguração de marcas das discriminações raciais e de gênero sobre a mulher negra. Além de pontuar diversos aspectos presentes nas práticas do Ilê Aiyê, do Malê Debalê e do Muzenza que se direcionam para a caracterização de uma educação antirracista, Oliveira afirma:
[…] só as mulheres negras podem saber o que eu estou querendo dizer, pois somos nós que temos a dignidade reintegrada por meio de ações dos Blocos Afro e por isso reafirmamos a importância da criação destas instituições. A maior política de ação afirmativa para as mulheres negras da cidade de Salvador é a realização do concurso de beleza negra. (2016, p. 113)
Ressaltar a beleza da mulher negra no contexto da cultura afro-baiana, o que implica a afirmação dessa mulher e dos sentidos que envolvem a politicidade estética que ela representa (a moda, a expressão gestual, a autonomia sobre o corpo etc.), é a expressão prática, talvez, mais contundente da ética que Freire assumiu, “a que se sabe afrontada na manifestação discriminatória de raça, de gênero, de classe. É por esta ética inseparável da prática educativa, não importa se trabalhamos com crianças, jovens ou com adultos, que devemos lutar” (2019, p. 18).
2.6 As fantasias
Elemento conectado diretamente ao tema da entidade e com a estética afro, as fantasias são fundamentais para o planejamento da criação estético-cultural dos blocos afrocarnavalescos, pois são elas que assumem o desafio de apresentar, nas indumentárias e adereços, aquilo que vai ser trabalhado no tema e na canção. Nesse sentido, apresentando-se como mais um elemento reforçador da proposta político-pedagógica dos afoxés e blocos afros, a fantasia, ao vestir o(a) folião(ã), não deve apenas cumprir a sua função primeira, a de servir como vestuário, mas principalmente conectá-lo(la) à mensagem contida no tema.
Ainda que os afoxés e blocos afros apresentem características que os assemelham, importante relembrar que diversos fatores contribuíram para distingui-los entre si, como o perfil dos seus dirigentes, a comunidade e a época em que foram criados, ou mesmo os tipos de contatos que foram mantendo com os seus públicos internos (foliões e membros da comunidade) e externos (governo, imprensa, mercado...). Assim, aos poucos ficou fácil associar a dança afrocarnavalesca ao Malê Debalê7, a juventude ao Olodum, a tradição ao Ilê Aiyê, a paz ao afoxé Filhos de Gandhy ou, ainda, a fantasia ao Cortejo Afro.
Dirigido pelo artista plástico Alberto Pitta, o Cortejo Afro é um bloco criado em 1998 no bairro do Pirajá, no seio do terreiro de candomblé Ilê Axé Oyá. Conciliando a tradição da religiosidade afro-baiana com propostas musicais e plásticas inovadoras, “a concepção artística do Cortejo Afro se apresenta através de releituras de sons e ritmos, resgatando as cores perdidas do carnaval baiano, reafirmando o seu conceito ético e estético” (CORTEJO AFRO, 2021). Mais ainda, na prática, a potência criativa de Alberto Pitta consegue promover profundas reflexões acerca de fenômenos sociais que não se limitam à realidade de Salvador, mas nela também estão presentes. Um exemplo disso pode ser constatado no carnaval de 2012, quando Pitta dirigiu o desfile sobre o tema “Outras palavras”. Nessa ocasião, o diretor criou uma fantasia para a ala de percussionistas relacionada à estética da parcela de mulheres muçulmanas que usam “burca”. Na larga fantasia totalmente rosa, realçando a feminilidade que a “burca” tenta esconder, a palavra invisibilidade estava escrita em oito idiomas diferentes: “invisibilidade, invisibilitá, invisibility, invisibilité, invisibilidad, unsichtbarkeit, invisibilitatem, aópato” (DAVEL; ROSA, 2017, p. 18, grifos dos autores). Não resta dúvida sobre o recado dado por essa fantasia, que relaciona a opressão contra as mulheres muçulmanas às demais formas de opressão que também invisibilizam as pessoas, comprometendo as possibilidades de todos e todas serem mais.
2.7 As ações sociais e as escolas
Além da abordagem dedicada aos elementos lúdico-culturais que envolvem a prática do carnaval afro-baiano, os afoxés e blocos afros também se fizeram conhecer pela promoção de ações sociais no âmbito das comunidades em que estão inseridos, mas não circunscritas a elas, ampliando o envolvimento comunitário e amplificando as suas intencionalidades. O rol dessas ações sociais é extremamente diversificado e diz respeito, principalmente, às demandas de cada comunidade e às conexões que conseguem estabelecer com entidades públicas e privadas interessadas em atuar junto à população negra. Nesse sentido, são facilmente encontrados blocos afrocarnavalescos que organizam coletas e doações de alimentos, roupas e brinquedos; integram ou desenvolvem campanhas de saúde voltadas às pessoas negras; denunciam a violência nas comunidades e a fragilidade da infraestrutura urbana, promovem encontros presenciais e virtuais (lives) voltados para as mais diversas temáticas, mas principalmente se dedicam à formação artística e educacional de crianças e jovens por meio de cursos, oficinas de produção de adereços, de dança, de música, enfim, um conjunto de atividades que, em alguns casos, convergem para a criação de instituições escolares.
Declaradamente interessados em subverter o caráter racista do sistema escolar oficial - comumente reforçado nas práticas do seu currículo oculto -, mas também em fomentar um ambiente inclusivo e estético-afirmativo para a juventude negra, os afoxés e blocos afros passaram a promover ações que resultaram na criação de escolas voltadas para atuar dentro do sistema educacional e na formação de mão de obra para o mercado tradicional e criativo (profissionais de música, dança, teatro, produção artística e cultural e áreas afins).
Uma das primeiras iniciativas explicitamente educacionais aconteceu em 1988 com a iniciativa da Mãe Hilda Jitolu, então líder espiritual do bloco afro Ilê Aiyê e mãe de Vovô, um dos fundadores do bloco, que resolveu abrir uma escola no espaço do terreiro para atender crianças do ensino fundamental moradoras do bairro e adjacências. A ideia da escola era contemplar essas crianças e suas mães, que tinham dificuldades com o deslocamento de seus filhos e filhas para as escolas do bairro, mas sobretudo reafirmar, no projeto político pedagógico da escola, uma educação que não invisibilizasse a tradição cultural africana e afro-baiana, que reafirmasse valores presentes na religiosidade e na cosmovisão ancestral e que elevasse a autoestima dessas crianças.
Com o amadurecimento da proposta, em 1995 o Ilê Aiyê dá mais um passo à frente e lança os seus Cadernos de Educação, produzindo conteúdos de natureza afirmativa e voltados para formação de professores, análise de livros didáticos, orientação político-pedagógica do currículo e outros interesses da comunidade.
Idealizado por Jônatas Conceição e por Maria de Lourdes Siqueira, ambos professores e diretores do bloco, os cadernos se inspiraram nas apostilas de apoio aos compositores para a elaboração dos temas do carnaval e contribuíram para projetar mais ainda o projeto de educação inclusivo e voltado para as relações étnico-raciais existente na instituição. Os Cadernos de Educação tendem a acompanhar os temas dos desfiles do Ilê Aiyê, envolvendo questões relacionadas com a luta antirracista, mas também com o empoderamento feminino e a ressignificação da história oficial.
Segundo o Itaú Cultural, a iniciativa da escola Mãe Hilda em 1988 e a posterior criação dos cadernos em 2008, na prática, anteciparam em quase vinte anos a Lei n.º 10.639/2003, um marco das lutas dos movimentos sociais negros em relação à educação para as relações étnico-raciais no Brasil. E segue:
Para além do Curuzu8 - os resultados foram os melhores. Os índices de aprovação escolar estavam acima dos 80% com a introdução de metodologias e materiais que dialogavam com as histórias e os corpos negros. […]
Coube ao próprio Ilê não só criar os cadernos, mas insistir pela inclusão do conteúdo nas escolas e capacitar os professores da Liberdade e dos bairros vizinhos. O objetivo era garantir a permanência da temática africana nos currículos das escolas públicas da região. Mais de 3 mil alunos foram capacitados, além de sessenta professores de seis escolas [...].
Em 1987, uma comissão formada pelo então secretário de Educação, Edvaldo Boaventura, por técnicos e professores implantou o primeiro curso de especialização em história da África para professores da rede pública e membros de organizações e movimentos negros de Salvador.
Com a mudança do governo estadual em 1991, a disciplina foi tirada do currículo das escolas e o projeto perdeu apoios importantes, o que impossibilitou a impressão das últimas cinco edições do Caderno de Educação. (idem, p. 14)
Como a influência do Ilê Aiyê foi marcante para a consolidação do perfil dos blocos afrocarnavalescos de Salvador, a iniciativa de Mãe Hilda e a incorporação do projeto educacional pelo bloco acabou reverberando em outras entidades que também criaram as suas escolas. Sendo assim, atuando de forma similar à proposta e ao projeto político-pedagógico do Ilê Aiyê, também se destacam a Escola Criativa do Olodum, fundada em 1991 com o objetivo de oferecer apoio e complementação escolar para crianças e adolescentes que estudavam na rede pública, sobretudo aqueles ligados à comunidade do Pelourinho; e a Escola Municipal Malê Debalê, criada em 2006 com a perspectiva de atuar na educação infantil, possibilitando, às famílias das regiões do Abaeté, Baixa do Soronha e Itapuã, uma alternativa às creches e escolas particulares.
Em última instância, o que se pretendeu com essas iniciativas foi desconstruir, por meio do capital simbólico edificado pelos blocos afros com as comunidades, as práticas reprodutivistas e desumanizadoras que: i) alijavam e depreciavam a história da África e a contribuição da cultura afro-brasileira no processo de significação de valores e práticas culturais; ii) que colocavam crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social, por causa de pedagogias que impediam o diálogo entre a realidade escolar e o mundo de significações propiciado pelas múltiplas dimensões da cultura em que eles e elas estavam inseridos; iii) que inculcavam padrões de comportamento e beleza alienantes e alienígenas ao universo da população negra baiana, reforçando invisibilidades, exclusões, depreciações e a desesperança.
Relembrando que as escolas dos blocos afros se inspiraram nas práticas dos blocos afrocarnavalescos, inclusive em relação à produção de materiais didático e de apoio, além da proposta transformadora por meio da arte e da educação, o que se percebe é uma profunda conexão dessas práticas com aquelas que passaram a constituir a tradição da chamada pedagogia crítica. Tanto as práticas pedagógicas das escolas ligadas aos blocos afros quanto o conjunto das ações carnavalescas desenvolvidas por eles próprios e pelos afoxés inscrevem-nos, definitivamente, nessa tradição.
3 Conclusão
Se, de um lado, é verdade que a data do carnaval é definida a partir de uma “igualdade geoclimática”, aquela que o equinócio representa quando o sol ilumina igualmente os hemisférios Norte e Sul, fazendo dias e noites terem a mesma duração (aequus, igual + nox, noite), de outro, não é verdade que a festa do carnaval promova igualdades que resistam as mais rasas tensões cotidianas.
Foi a partir dessa percepção, dissimulada pela sociedade baiana com a construção imagética de uma festa racialmente amalgamada, que a população negra de Salvador constituiu formas sofisticadas de reação, algumas delas resultando no que conhecemos como afoxés e blocos afros. Vale destacar: sofisticada porque reage com altivez às formas de opressão e no mesmo ambiente opressor, mas sobretudo porque vale-se de saberes e valores ancestrais que jamais deixaram de circular nos ambientes pedagógicos dos terreiros de candomblé, da capoeira, das rodas de samba e demais divertimentos, nas organizações sindicais, nos quilombos e em tantas outras formas de resistência ao racismo e à exclusão socioeconômica, política e cultural imposta à população negra.
Para os afoxés e blocos afros, a circularidade dos saberes toma forma, alimenta e é alimentada, especificamente, a partir de uma racionalidade que sustenta propostas estéticas, politicamente direcionadas para, por meio da música, da dança e da moda afrorreferenciadas, promover a esperança na transformação social, necessária, urgente e possível.