Introdução
A EI é a primeira etapa da Educação Básica (EB) e tem como objetivo desenvolver integralmente nas crianças até 5 anos de idade aspectos físico, psicológico, intelectual e social com complementariedade da família e do convívio social.
A presença masculina no campo da Educação Infantil (EI) instaura uma controvérsia, afinal, o magistério com crianças é historicamente associado a uma dita natureza feminina, que supostamente está presente em todas as mulheres e, por isso, torna-as competentes e habilidosas.
Por conta dessa herança histórico-cultural, homens inseridos no exercício profissional encontram dificuldades singulares, como o estranhamento pela escolha da profissão, associação a pedofilia, questionamentos diante da orientação sexual, além de discriminação, olhares de suspeita e o preconceito.
Em vista disso, estudos que articulam dialética e dialogicamente as questões da divisão sexual do trabalho, gênero e papéis sexuais introduzem o ser-masculino enquanto alvo epistemológico, a superar as investigações anteriores que, até então, tinham como sinônimo de gênero a palavra mulher. Esses estudos consideram que a masculinidade não é hegemônica, portanto, que existem masculinidades plurais necessárias para serem consideradas no manejo educacional. É nesse mundo que o professor da EI está inserido, palco de vivência das dinâmicas de prazer e sofrimento, que, ora ou outra, acarretam desafios advindos tanto do magistério quanto sociais, afetivos e relacionais, que se fazem presentes a partir de sua corporeidade e da masculinidade em um contexto profissional predominantemente feminino.
É na perspectiva de compreender os atravessamentos intra, inter e extrasubjetivos que afetam o acesso e permanência do homem na educação infantil que a presente revisão sistemática se encontra, aqui, o principal objetivo é descrever e analisar as publicações científicas sobre a prevalência, dificuldades e possibilidades enfrentadas por estes homens. Espera-se que promova contribuições para a construção de um estado da arte sobre a temática, a fornecer subsídios teóricos para a construção de estratégias de enfrentamento dos desafios enquanto homens docentes.
Método: caracterização do estudo
Consiste em uma revisão sistemática da literatura que emergiu da seguinte pergunta: De que modo e por quais motivos os professores homens acessam a educação infantil? Para tal, o delineamento metodológico adveio da investigação qualitativa, que, conforme Minayo (1994) permite ao pesquisador um aprofundamento no universo de símbolos, crenças, atitudes e valores de determinada realidade. Por meio deste método, é possível alcançar os aspectos não mensuráveis dos fenômenos. Logo, a produção de modelos teóricos abstratos encontra um subsídio para responder a questões particulares (Minayo, 2000).
Ferramentas de busca
As buscas foram realizadas em agosto de 2022 nas bases de dados SciELO, Pepsic e Indexpsi, por meio da seguinte combinação de palavras-chave: educação infantil e homem; educação infantil e masculinidade; educação infantil e masculinidades; educação infantil e gênero; docência infantil e homem. Os critérios de inclusão e exclusão foram definidos ad hoc, onde optou-se por publicações de recorte temporal de 2021 a 2022, nos idiomas português, inglês e espanhol, com versão gratuita e completa.
Extração dos dados
Foram encontrados 116 artigos, desses, 68 foram excluídos por distanciarem-se da temática, 32 por situarem-se abaixo do recorte temporal e 9 por duplicidade. Portanto, 7 artigos corresponderam ao total do corpus analisado. Em percursos qualitativos, o processamento de conteúdo precisa estar paralelo ao problema-alvo da investigação (De Luna, 1988). Partindo dessa premissa, a técnica utilizada para analisar os dados surge da adaptação da análise bibliográfica de Pinheiro (1983) que, em reformulação conceitual da Lei de Bradford, construiu etapas para a transcrição dos dados por meio de planilha eletrônica do Software Excel (2019). Desse modo, foram utilizados os seguintes campos: Periódico, Ano, Título, Autores, Corte, Método, Procedimentos de coleta, Gênero docente, Local de atuação, Principais conclusões e Agenda de pesquisa.
Resultados
Os principais resultados estão apresentados, de modo sintético, nas Tabelas 1 e 2. O exame de cada elemento evidencia como se dá o acesso e a permanência dos professores homens no contexto da educação infantil, bem como aponta os núcleos discursivos sobre as vivências e desafios docentes. A Tabela 1 contém a análise bibliográfica da categoria periódico à procedimento de coleta.
Núm. | Periódico | Ano | Título | Autores | Corte | Método | Procedimentos de Coleta |
---|---|---|---|---|---|---|---|
1 | Revista Portuguesa de Educação | 2019 | Entre a fralda e a lousa: A questão das identidades docentes em berçários. | DE OLIVEIRA, Rosmari Pereira; VIVIANI, Luciana Maria |
Teórico-empírico | Qualitativo | Entrevista narrativa. |
2 | Educação Básica, cultura e currículo | 2022 | Gênero e pré-escola: Experiências e estratégias de homens educadores de infância. | SANTOS, Maria Helena; CRUZ, Eduardo Ferreira; MARQUES, António Manuel | Teórico-empírico | Quantitativo | Entrevista semiestruturada, questionário sociodemográfico. |
3 | Rev. Brasileira de Educação | 2021 | Homens na docência da educação infantil: uma análise baseada na perspectiva das crianças. | SANTOS, Sandro Vinicius Sales dos | Teórico-empírico | Qualitativo | Etnografia, entrevista semiestruturada, e leitura interpretativa do desenho infantil. |
4 | Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud | 2015 | Igualdad de género en las instituciones educativas de la primera infancia brasileña. | FINCO, Daniela | Teórico | Qualitativo | Revisão de literatura. |
5 | Outros temas | 2014 | Homens na educação infantil: olhares de suspeita e tentativas de segregação. | MONTEIRO, Mariana Kubilius; ALTMANN, Helena |
Teórico-empírico | Qualitativo | Entrevista narrativa. |
6 | Estudos feministas | 2017 | Masculinidades e docência na educação infantil. | JAEGER, Angelita Alice; JACQUES, Karine | Teórico-empírico | Qualitativo | Entrevista semiestruturada. |
7 | Pró-posições | 2019 | Masculinidades, feminilidades e dimensão brincalhona: reflexões sobre gênero e docência na Educação infantil. | PRADO, Patrícia Dias; ANSELMO, Viviane Soares | Teórico-empírico | Qualitativo | Entrevista semiestruturada. |
Fonte: Elaborado pelos autores.
A começar por Periódicos, resultou-se que 57,1% equivalem ao campo da educação, sendo 14,2% voltados para estudos de gênero, 14,2% para estudos de história e 14,2% para a infância e a adolescência à luz das ciências sociais. Já o ano de 2019 foi destacável pela recorrência de publicações, correspondendo a 28,5% do corpus.
No que se refere aos títulos, notou-se que a presença dos termos “gênero”, “identidades”, “homens”, “masculinidades”, “feminilidades” atrelados lexicalmente a “lousa”, “educadores”, “instituições educativas”, “docência” e “educação infantil”. Adiante, houve a predominância do corte teórico-empírico 85,7%, onde 14,2% referente ao estudo eminentemente teórico. Já a metodologia de maior incidência foi a qualitativa 85,7%, seguida da quantitativa 14,2%.
No conjunto, resultou-se predominância de autoria por parte das mulheres, pois dos 13 autores, apenas 3 corresponderam aos homens. Com relação aos procedimentos de coleta, os principais instrumentos utilizados foram as entrevistas narrativas e semiestruturadas 43,2%, etnografia 14,2%, questionário sociodemográfico 14,2%, revisão de literatura 14,2% e leitura interpretativa do desenho infantil 14,2%. A Tabela 2 contém a análise bibliográfica da categoria Gênero docente à Agenda de pesquisa:
Num. | Gênero docente | Local de atuação | Principais conclusões | Agenda de pesquisa |
---|---|---|---|---|
1 | Mista | Berçário | A docência masculina no berçário como um desafio cotidiano. | Novas pesquisas e novos olhares para esse campo de atuação profissional. |
2 | Mista | Educação infantil | A educação infantil é dominada por mulheres; as construções sociais das masculinidades são evidenciadas no contexto educacional infantil. | Desejável incremento da presença de homens na profissão; reflexão sobre como os homens são integrados e compreendidos. |
3 | Masculino | Educação Infantil | Não é suficiente apenas inserir os homens na docência com crianças enquanto equidade, é necessário o combate sistêmico do preconceito de gênero. | Recomenda-se implicação no processo de transformação social diante das relações de gênero. |
4 | Mista | Educação infantil | A escola participa sem neutralidade na construção dos papéis de gênero e de suas desigualdades; o trabalho pedagógico com crianças pequenas está ligado as mulheres. | Recomenda-se discussões e reflexões acerca das relações de gênero no ensino infantil. |
5 | Masculino | Educação infantil | Os professores homens enfrentam segregação e desconfiança devido as questões de masculinidade, incompatíveis com o trabalho pedagógico. | Sem recomendações. |
6 | Masculino | Educação Infantil | As masculinidades são plurais; os homens enfrentam dificuldades pela hegemonia, normatização e dominação feminina na profissão. | Aprofundamento científico na temática, haja vista os marcadores sociais de raça, classe, orientação sexual, religião, idade e deficiências. |
7 | Mista | Educação Infantil | A figura feminina está ligada a maternagem e trabalho doméstico, o que afeta a identidade da professora diante das dimensões brincalhonas. | Sem recomendações. |
Fonte: Elaborado pelos autores.
Os achados apontam que 57,1% dos estudos foram realizados com docentes do gênero masculino e feminino e 42,8% exclusivamente masculino. Resultou-se que o local de atuação foi predominantemente a educação infantil 85,7%, onde 14,2% corresponderam ao berçário, etapa não obrigatória na educação básica. Na visão global, em Principais conclusões, 42,8% enfatizam que a educação infantil é dominada por mulheres e está associada, em termos de representação social, a figura feminina, a maternagem e domesticação, em seguida, 42,8% pontuam os desafios da docência masculina nesse contexto e 14,2% concluem que é necessário combater os preconceitos e discriminações as quais professores homens estão sujeitos.
Por fim, em Agenda de pesquisa, evidenciou-se que 42,8% equivaleram a recomendação de novas investigações dentro da temática, 28,5% para reflexões e discussões e 28,5% para a ausência de recomendações. Foi verificado que, 14,2% corresponderam a presença de homens na profissão e 14,2% a transformação social.
Discussão
O presente estudo objetivou a identificação dos aspectos intra, inter e extrasubjetivos que permeiam a inserção e a cotidianidade do professor homem na educação infantil, significa que partiu da necessidade de reconhecer e mapear o modus operandi de seu acesso e permanência nesta etapa da educação básica. A começar pela presença da temática nos periódicos, é perceptível que mais da metade dos estudos, ou seja, 57,1% foram publicados em revistas do campo da educação. Isto posto, chama-se atenção para a ausência do tema em revistas do campo da psicologia, o que corrobora para a reflexão sobre o lugar que as particularidades docentes no contexto educacional ocupam na relação Psicologia-Pedagogia.
Há de se considerar que a psicologia, diante da pedagogia, insere-se em uma dicotomia: de um lado, aborda os processos de adoecimento de alunos e professores, do outro, centraliza-se no ensino e aprendizagem ligados as teorias desenvolvimentistas. Desse modo, é possível preencher esta lacuna na literatura a transcender os levantamentos psicopatológicos e desenvolvimentistas, na medida em que se considere as particularidades de gênero, classe, raça e demais características que influenciam à docência na educação infantil.
Em relação ao quesito ano, o maior quantitativo de pesquisas ocorreu em 2019 com apontamento para 28,5%. A partir desse dado, pode-se refletir sobre a presença da triangulação gênero-docência-pesquisas. Segundo Vianna (2002) o movimento epistemológico de transição do feminino ao gênero se deu na década de 1990, até então, a maioria das pesquisas compreendiam a escola como um espaço de atravessamentos predominantemente de classe, a deixar de lado questões como raça e gênero. No ensino desenvolvido sob a responsabilidade do Estado, à docência feminina nasceu relacionada, especialmente, com a expansão do ensino público primário. Nos últimos anos do Império, sobretudo a partir de 1860, mulheres assumiram a função de professoras, por conseguinte ocuparam o quadro de funcionárias públicas em várias províncias, como por exemplo nas grandes cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro.
Contudo, por mais que as relações de gênero tenham sido aprofundadas, em grande parte inspiradas pelos estudos de Butler (1998) e Scott (2012), ainda há escassez da literatura (Auad; Silva; Roseno, 2019). Desse modo, atrelados a tendência do século XIX, na qual a docência feminina encontrou sua ascensão e predominância, os homens continuam a não adentrar nas pesquisas, nas salas de aula, a reforçar o padrão já estabelecido (Vianna, 2002).
Dessa forma, os estudos de Giffin (2005) apontam que os últimos anos têm sido relevantes na quebra do referido padrão ao ser inserido especificamente o masculino nos estudos de gênero, fenômeno contrastante aos primeiros estudos feministas, que recusaram a presença e participação dos “men studies”. Nessa época, as feministas entendiam que os homens eram exclusivamente beneficiados pelo sistema de gênero, portanto, não havia a necessidade de estudá-los à luz de uma abordagem que objetivava a superação das opressões. Nota-se que, a consideração das masculinidades no campo científico permite a superação da noção de masculinidade hegemônica. Sobre essa, Silva (2006, p. 121) argumenta que:
O conceito de masculinidade hegemônica está calcado nos modelos tradicionais e dos predicativos da personalidade do homem, qual seja, “machista, viril e heterossexual”, do mesmo modo em que este deve apresentar distanciamento emocional, agressividade e comportamento de risco no seu dia a dia [...] nesse sentido, as instituições nacionais e internacionais têm-se preocupado com essa pluralidade de modelos masculinos e colocado em sua agenda propostas de uma implementação de pesquisas e políticas públicas que venham minimizar os riscos que o “novo homem” pode vir a sofrer.
A análise dos títulos permitiu a visualização das tendências lexicais expressivas que permeiam os discursos e narrativas nas quais estão inseridos. Uma vez que, as estruturas linguísticas compostas pelos níveis semântico e semiótico produzem impactos no modo próprio de abordar uma temática, há de se considerar o quão necessário é investigar as construções dos títulos. Partindo da premissa wittgensteiniana, na qual “os limites de minha linguagem significam os limites de meu mundo” (Wittgeinstein, 1984, p. 54), entende-se que os títulos encontram barreiras e possibilidades a partir de suas construções.
Os termos “estratégias de homens educadores de infância”, “olhares de suspeita” e “tentativas de segregação” denunciam exatamente o que os docentes homens encontram no contexto educacional infantil e, no caso do primeiro, evidencia que há um fazer específico, uma ação-postura estratégica que adquirem na manutenção do exercício profissional. A utilização de “masculinidades” promove em si a consideração da pluralidade, movimento em direção ao combate da masculinidade hegemônica herdada historicamente. Já em “igualdade de gênero” é perceptível a tendência dos estudos de gênero que, gradativamente, tem superado a utilização desta terminologia enquanto sinônimo de mulher.
Tendo em vista que a temática resultou circunscrita em estudos realizados majoritariamente por mulheres, é notável que elas têm alcançado espaços de referência na literatura, com destaque para Louro (2018), Vianna (2002), Britzman (1996) e Finco (2015). Essas autoras, além de delinearem historicamente a feminilização da profissão, instauram o paradigma de gênero e por ele se propõem a expandir as investigações sobre masculinidades.
Nesta proposição de entendimento, Cardoso (1997) aponta que as pesquisas voltadas para a imersão em determinada realidade devem abranger de modo dialético, o embasamento teórico-metodológico e o trabalho em campo. Desse modo, é visível que o corte teórico empírico 85,7% estão alinhados a essa concepção. Também em consonância, encontra-se o método qualitativo em maioria, que “amplifica as possibilidades de interpretação e compreensão do cotidiano e disponibiliza meios para apreender a complexidade humana” (Da Nobrega Tomaz-Moreira; Fagundes-Galvão; Medeiros-Melo; De Azevedo, 2007, p. 29).
Para tanto, Duarte (2004, p. 215) pontua que “entrevistas são fundamentais quando se precisa/deseja mapear práticas, crenças, valores e sistemas classificatórios de universos sociais específicos, mais ou menos bem delimitados, em que os conflitos e contradições não estejam claramente explicitados”. Logo, o uso desse método mostra-se de grande valia na temática por permitir a apreensão dos fenômenos que permeiam os arranjos identitários, e por proporcionar, sobretudo, o ressoar da voz dos sujeitos implicados no fazer pedagógico, diariamente expostos as vivências originadas das construções sócio-históricas que muitas vezes são irrompidas na práxis docente.
A revisão de literatura, correspondente a 14,2% do corpus, encontra na temática espaço para a sua dissolução, uma vez que permite a construção de um estado da arte, a evidenciar de modo sistêmico as características da literatura especializada em determinado recorte temporal. Pois estudos de revisão “não se limitam a relatar o consenso sobre um tópico ou um resumo do que foi publicado em um determinado período. Se trata de interpretação por um especialista sobre um tema, apoiado por uma extensa fonte de literatura científica” (Nassi-Calò, 2021, p. 1).
A presença de docentes homens se deu em todos os artigos analisados, tanto nos foram citados homens e mulheres quanto nos que os sujeitos foram exclusivamente homens. Os relatos revestem-se de importância face a heterogeneidade de experiências e vivências decorrentes do trabalho, no caso das mulheres, evidenciou-se um viés discursivo da associação das experiências profissionais àqueles pessoais, com os próprios filhos, com ênfase no movimento geracional de cuidados, a envolver as avós e mães (De Oliveira; Viviani, 2019). Essa condição é fruto do acionamento do dispositivo materno, denominação de Zanello (2018, p. 149) para a “naturalização da capacidade de cuidar, decorrente da mescla entre a capacidade de procriação e a maternagem, bem como seus desdobramentos”. Em contraponto, no cenário educacional infantil, esse dispositivo serve como uma validação intrínseca, como se, apenas por serem mulheres, as professoras possuíssem de modo apriorístico as competências e habilidades para atuar profissionalmente com crianças.
Esta narrativa é comumente utilizada pelas próprias docentes, a reforçar a ideia de instinto materno e amor materno como partes de uma natureza feminina (Jaeger; Jacques, 2017). Outro entendimento a refletir é a compreensão de que a maternidade enquanto construção social está enraizada simbolicamente na redução da mulher ao papel reprodutivo, que encontra novas formas em cada transformação histórica, social, política, tecnológica e cultural (Badinter, 1985). Fato também, é a facilidade de adentrar ao mercado de trabalho como profissional da educação infantil por serem mulheres, amplamente discutidos nos estudos apresentados nas bibliografias consultadas. No que tange as desigualdades de gênero, as mulheres negaram tal existência entre os sexos no âmbito da diferenciação de tratamento (Santos, 2021).
No caso dos homens, é perceptível que se valem de cautela, criatividade, resiliência e coragem enquanto estratégias de sobrevivência organizacional (Santos; Cruz; Marques, 2022). Percebem-se inseridos em um contexto desigual em comparação com as mulheres (Santos, 2021) que enfrentaram desafios singularizados desde que cogitaram trabalhar com crianças até o in loco propriamente dito, como exemplo, os questionamentos de familiares e amigos diante da escolha profissional, devido á estranheza causada por ser uma “profissão de mulher”. Soma-se a desconfiança por parte da comunidade escolar e a recusa em candidaturas para vagas de emprego, o que estabelece uma barreira no mercado de trabalho (Santos; Cruz; Marques, 2022).
Em relação ao objetivo principal do texto, ao analisar o aceso e a permanência dos homens na educação infantil visualizou-se a demanda de reconstruir entendimentos outros às percepções que muitas vezes são impostas pela sociedade por meio do senso-comum sobre o profissional pedagogo que exerce sua prática profissional na educação infantil. É notório que, se faz importante pesquisar o professor homem em espaços de educação infantil de forma a retomar reflexões sobre sua discriminação, que na maioria das vezes, traz sofrimento revelando opiniões que nada tem a ver com sua capacidade e qualidade profissional (Silva; Bacellar; Vita; Berenblum, 2020, p. 17).
É na escola e para a escola que precisamos iniciar a construção de um pensamento que agora e futuramente coloque como normalidade a presença de homens nos espaços de trabalhos de mulheres e vice-versa. É através da escola que iniciaremos a formação de indivíduos repensando no seu papel social para que não sejam causadores e nem vítimas de preconceitos, desigualdade, falta de respeito e desconhecimento de suas escolhas futuras.
Em vista disso, pode-se reconhecer que os papéis de gênero encontram espaços que os potencializam. Ainda, há de se levar em conta que a educação infantil ilustra claramente a divisão sexual do trabalho e, conforme Rabelo (2010) duas forças são responsáveis por tornar esse espaço feminilizado: os atributos ditos femininos e o discurso de afastamento dos homens do magistério. Logo, a presença homem representa uma forma de transgressão (De Oliveira; Viviani, 2019).
Dos locais de atuação, foram apontados a educação infantil e o berçário. A educação infantil, que precisa contemplar tanto as dimensões do cuidado quanto a inserção social das crianças, tem como desafio a superação da introjeção maternal, que constrói o estereótipo da aprendizagem-maternagem e substitui a exigência de uma profissionalização de qualidade, a negar o treinamento específico (Galvão; Brasil, 2009). Compõem essa modalidade mais de 90% das educadoras, em oposição, as mulheres são a minoria no Ensino Superior, carreira tida como masculina (Vianna, 2002).
Uma vez que os papeis de gênero atribuem sentidos múltiplos e contraditórios à docência (Vianna, 2002), o cenário atual, atento a essa particularidade, exige além da profissionalização, a prática multidimensional e multidisciplinar. É também necessária uma definição ontológica da criança e da infância que a apreenda enquanto ser no mundo, e, a partir disso, será possível construir novas políticas educacionais e artefatos utilizados no processo educacional (Daros; Paludo, 2013).
Já no berçário a dualidade cuidar-educar vai ao encontro do processo de desenvolvimento humano, que exige atitudes diferenciadas dos professores-cuidadores. De acordo com Simões (2020, p. 2) “o conhecimento sobre o trabalho pedagógico desenvolvido com bebês em creches ainda carece de diálogo com a produção acadêmica” isso porque os bebês e a creche são desconsiderados enquanto categorias autônomas, visto que a literatura denomina bebês como crianças pequenas e a creche como sub etapa. Depreende-se que são necessários mais estudos que se ocupem de modificar essa epistemologia, bem como considerar o professor homem enquanto educador e cuidador também no berçário.
Em conjunto, os artigos incluídos nessa revisão descrevem um cenário complexo frente a presença masculina, cenário este que se opõe as qualidades de virilidade, força, agressividade e insensibilidade que permeiam a representação social da masculinidade hegemônica, nesse caso, os homens não são bem-vindos (Jaeger; Jacques, 2017). Ao romperem com esse aviso, distintas expressões de masculinidades são visíveis nas relações e no fazer pedagógico (Santos, 2021). É importante destacar que a presença dos homens, em nenhum artigo, foi concebida como uma ameaça ou desafio as hierarquias de gênero, uma vez que a assimetria profissional foi pouco explorada. Sobre o rompimento das dicotomias, tal asserção se fez presente tanto no campo profissional, entre pares e comunidade escolar, quanto na educação infantil propriamente dita, a levar as crianças referências de modelos de masculinidades e feminilidades desassociados dos estereótipos, preconceitos e papéis de gênero.
As recomendações dadas pelos artigos, de modo geral, implicam no aprofundamento da temática, na abordagem da masculinidade enquanto parte das questões de gênero que necessitam serem discutidas e refletidas. Não se trata apenas de incluir homens nesse contexto, mas de realizar coletivamente uma transformação profissional sistêmica.
Da (re)existência dos professores homens na educação infantil
A escolha de uma profissão está longe de ser algo simples, é um processo que ocorre pelo somatório das influências do ambiente externo e da subjetividade. Os papéis de gênero adentram em uma dimensão oculta da escolha profissional, que é desvelada quando sujeitos não pertencentes àquela categoria passam a se inserir, a ocupar o espaço e enfrentar o status quo. Esse é o caso dos homens na educação infantil, cuja menor presença pode provocar diferentes representações de gênero (Rabelo, 2013).
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (2021) a educação infantil brasileira contava com 593 mil docentes, desses, 94,6% do sexo feminino e 3,6% correspondem ao sexo masculino. Em consonância, no ano de 2021 esse valor aumentou para 595 mil em todo o país, resultando em 312.872 docentes em creches, desses, 209.938 em municipais, 401 em estaduais, 150 em federais e 102.933 nas privadas. Já na modalidade pré-escolar, há o total de 322.850 docentes, onde 237.341 encontram-se em escolas municipais, 3.361 em estaduais, 180 em federais e 83.253 no ensino privado (Instituo Brasileiro de Geografia e Estatística, 2021).
Em reflexão sobre os motivos da escolha profissional, há de se considerar que cada sujeito, com suas vivências, interesses, crenças e culturas encontra no próprio caminho da profissão sua singularidade (Jaeger; Jacques, 2017). No entanto, alguns fatores predominam na escolha profissional, a incluir experiências na infância, vivências profissionais anteriores, histórico de educadores e educadoras na família.
Entre as causas que distanciam os homens da profissão, estão o baixo salário e estatuto social, hegemonia feminina, estigmatização, associação a pedofilia, preconceitos e julgamentos diante da orientação sexual, desconfiança, receio de acusações de abuso infantil, pouco prestígio e isolamento na perspectiva de gênero (Santos; Cruz; Marques, 2022).
Quando o homem se insere na educação infantil, a comunidade coloca em questão a sua orientação sexual, bem como a desconfia de suas intenções ao associá-lo a figura de pedófilo, uma vez que há a disseminação da noção do homem hiper sexuado, ativo e perverso que deve ficar longe de crianças (Sayão, 2005). Todas as suas ações precisam ser justificadas para a comunidade, principalmente no trato com crianças do sexo feminino.
Ainda assim, Teodoro (2016) aponta que, ao adentrar na educação infantil, o homem está face ao estranhamento coletivo dos colegas de trabalho e, para que consiga legitimação, há de se enfrentar duas provas denominadas estágio probatório e comprobatório. O primeiro é definido em lei e explicita os critérios necessários para a sua aprovação, o segundo é uma delimitação simbólica em que precisa provar que tem competências, habilidades, sensibilidade e afabilidade para atuar na educação infantil. Destarte, todos os contextos de trabalho estão suscetíveis aos conflitos e dinâmicas de prazer e sofrimento (Dejours, 2000), no entanto, Smedley (2005) enfatiza que os sofrimentos dessa categoria estão ligados ao tratamento diferenciado entre pares, a partir da repressão e invisibilidade por parte das mulheres.
O objetivo de professoras e professores da educação infantil é atender, de modo integral, a criança em seu devir. Portanto, as práticas são indissociáveis da fusão entre o cuidar e o educar e, para isso, existem desafios próprios que comprometem esse atendimento, entre eles estão as implicações sócio-históricas da maternagem profissional, a redução do protagonismo infantil e a formação continuada. No caso dos homens, além das problemáticas do gênero, somam-se as dificuldades da profissão.
Uma vez que tantos desafios se sobrepõem, quais são as atitudes, fatores e motivos que dão sentido a permanência dos homens em um contexto tão desafiador? De que modo constroem a si mesmo e produzem ensino, cuidado e aprendizagem a partir dessas condições? São questionamentos que precisam se manter vivos quando se fala no ser-homem na educação infantil.
Esses profissionais utilizam-se da calma, tranquilidade e resiliência para demonstrar as competências diante das inúmeras situações que podem ocorrer, trabalham diariamente para desconstruir os papéis de gênero, para provar que são suficientes para o trabalho (Santos; Cruz; Marques, 2022). Em suma, as palavras-chaves são: resistência, autodefesa, adaptação e paixão pela profissão, pilares que os mantém (re)existentes e imprescindíveis o fazer pedagógico.
Considerações finais
O presente artigo objetivou, pela revisão sistemática da literatura, investigar o lugar que os homens ocupam no acesso e permanência na educação infantil. Desse modo, foi possibilitada a compreensão de que gênero e ensino são indissociáveis e de que a docência infantil masculina é, a priori, uma transgressão que produz dinâmicas de prazer e sofrimento singularizadas, sendo de grande valia considerá-las na busca pela superação dos preconceitos, estereótipos e problemas advindos da divisão sexual do trabalho que discrimina e estigmatiza profissionais essenciais.
Na esfera doméstica, os homens são considerados educadores e cada vez mais convidados a práxis educativa e afetiva na vida das crianças. Já nas escolas, geralmente é composta pelo distanciamento, segregação e associação a pedofilia, movimento que impede o potencial de contribuição dos homens no processo educacional. Portanto, a escola se mostra um espaço necessário de desmistificação do educar masculino, a demonstrar que podem e devem atuar como docentes na educação infantil.
Em suma, os resultados foram: a) as masculinidades são mais discutidas em revistas do campo educacional, em comparação com periódicos de psicologia; b) apesar do aumento das publicações a partir da década de 1990, o cenário da literatura é escasso; c) a literatura tende a se debruçar sobre os aspectos históricos, políticos e culturais que afetam a práxis. Contudo, se limita a descrever seus impactos e não a promover estratégias de combate aos referidos problemas; d) os desafios da superação representação social masculina pejorativa residem na complexidade da superação da concepção da educação infantil enquanto materna e matriarcal; e) as possibilidades de entendimentos outros necessitam partir de estratégias coletivas, sistêmicas e grupais.
Indubitavelmente, este artigo destaca a necessidade de uma articulação dialética e dialógica com a comunidade científica sobre a temática, bem como o exercício da escuta dos homens nesse contexto, já as limitações envolvem o uso de dados secundários e o baixo quantitativo de publicações analisadas. Por fim, espera-se que o sirva de auxílio para a construção de ações voltadas para qualidade laboral, relacional e existencial dos docentes, de modo a valorizar suas competências, conhecimentos e habilidades em prol da formação integral da criança.