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Childhood & Philosophy

versión impresa ISSN 2525-5061versión On-line ISSN 1984-5987

child.philo vol.19  Rio de Janeiro ene./dic. 2023  Epub 30-Mayo-2023

https://doi.org/10.12957/childphilo.2023.69054 

Artigos

Entre corpos, danças e educações: uma experiência infantil

Between bodies, dances and educations: a childlike experience

Entre cuerpos, danzas y educaciones: una experiencia infantil

Mayra Giovaneti de  BarrosI 
http://orcid.org/0000-0003-4166-0497

César Donizetti Pereira  LeiteII 
http://orcid.org/0000-0001-8889-750X

IUniversidade Estadual Paulista, Rio Claro, Brasil - E-mail: mayrabarros90@gmail.com

IIUniversidade Estadual Paulista, Rio Claro, brasil - E-mail: cesar.leite@unesp.br


resumo

O presente texto tem por objetivo colocar em movimento algumas notas acerca de experiências educativas e de pesquisa com crianças, uma pesquisa inspirada por encontros dançantes e produção de imagens que provocaram questões e nos convidaram a pensar as relações entre corpos, danças e educações. Das diversas interrogações que nos deparamos, gostaríamos de destacar as seguintes: quais modos de pensar e experimentar os corpos que se apresentam nos encontros com as crianças? Quais aprendizagens, com as crianças, são possíveis nas experiências desses corpos que dançam? Que educações podem ser pensadas ao nos depararmos com as infâncias das crianças nestes momentos de uma experiência com corpos e danças? Desse modo, encontramos em autores como Gilles Deleuze, Félix Guattari, Michel Foucault, Jan Masschelein e Manoel de Barros, entre outros, possibilidades de agenciar algumas imagens, algumas perspectivas de olhares, alguns sentidos… Essa escrita dançadeira é, portanto, fruto de uma pesquisa experiência; uma pesquisa que foi se delineando durante o caminho, passo a passo pelos trajetos que se abriram, uma pesquisa infantil que convocou os olhos, a boca, o nariz, a pele, os olhares, os cheiros, os sabores e as texturas. Uma pesquisa sobre movimento, com movimento, em movimento. Assim, não temos aqui qualquer intencionalidade em fixar respostas, o que temos é um convite a pensar filosoficamente e infantilmente, levantar perguntas e, quem sabe, produzir algum movimento nos corpos e no pensamento: um convite a dançar por entre as interrogações.

palavras-chave: corpo; infância; dança; educação; filosofia com crianças.

abstract

This paper is the result of reflections inspired by observing and participating in dancing sessions with children. Our experience of the latter led to the production of images that provoked a variety of questions, and invited us to think about the relationships between bodies, dance, and various forms of education. Among these questions were: what clues about the experience of human embodiment are given through observing children’s dance? What can children teach us through participating with them in this performative medium, and what are its implications for education, most especially in light of our observations of children's inventiveness in this regard? Our impressions resonate and find expression in the oeuvre of Gilles Deleuze, Félix Guattari, Michel Foucault, Jan Masschelein and Manoel de Barros. Placing ourselves under their influence, we mobilized our thinking and opened ourselves to the emergent character of their ideas, resulting in what might be called a form of “dancing-writing” in which those two forms of expression interact. This dancing-writing is informed by and imbued with children’s lived experience: step by step, we walked the paths that they opened, recording as best we could their multisensorial approach to the world-gaze, taste, smell, sound, touch, movement. Ours was an experience of research on movement, with movement, in movement. As such, we harbor no intention to present final answers, but rather offer the reader an invitation to think philosophically and childishly. Ours is an invitation to dance with and among the questions which that very dance inspired.

keywords: body; childhood; dance; education; philosophy with children.

resumen

El presente texto tiene por objetivo poner en movimiento algunas notas sobre experiencias educativas y de investigación con niños y niñas, una investigación inspirada por encuentros danzantes y producción de imágenes que provocaron preguntas y nos invitaron a pensar sobre las relaciones entre: cuerpos, danzas y educaciones. De las diversas cuestiones que nos surgieron, nos gustaría destacar las siguientes: ¿qué formas de pensar y experimentar los cuerpos que se presentan en los encuentros con los niños y niñas? ¿Qué aprendizajes, con los niños y niñas, son posibles en las experiencias de estos cuerpos que danzan? ¿Qué educaciones pueden ser pensadas cuando nos encontramos con las infancias de los niños y niñas en estos momentos de una experiencia con cuerpos y danzas? De este modo, encontramos en autores como: Gilles Deleuze, Félix Guattari, Michel Foucault, Jan Masschelein y Manoel de Barros, entre otros, posibilidades de agenciar algunas imágenes, algunas perspectivas de miradas, algunos sentidos... Esta escritura danzadora es, por lo tanto, fruto de una experiencia de investigación; una investigación que se fue delineando en el camino, paso a paso por los senderos que se abrían, una investigación infantil que convocó los ojos, la boca, la nariz, la piel, las miradas, los olores, los sabores y las texturas. Una investigación sobre el movimiento, con movimiento, en movimiento. Así, no tenemos aquí ninguna intención de fijar respuestas, lo que tenemos aquí es una invitación a pensar filosóficamente e infantilmente, plantear preguntas y, quién sabe, producir algún movimiento en los cuerpos y en el pensamiento: una invitación a bailar por entre las interrogaciones.

palabras-clave: cuerpo; infancia; danza; educación; filosofía con niñas y niños.

entre corpos, danças e educações: uma experiência infantil

Com pedaços de mim eu monto um ser atônito. Manoel de Barros (2018)

Imagem 1: Desformações Corporais 

Fonte: Arquivo pessoal

primeiros movimentos… em modo de apresentação

Este texto tem por objetivo colocar em movimento algumas notas acerca de experiências educativas e de pesquisa com crianças que frequentavam a ONG Núcleo Artevida, localizada na periferia da cidade de Rio Claro - SP. A referida ONG é um espaço socioeducativo que tem o propósito de oferecer atividades de educação não formal e, através destas, potencializar e proporcionar encontros entre crianças, adolescentes, educadoras e educadores. Esse espaço socioeducativo leva até a comunidade um conjunto de ações, como “aula” de desenho, atividades esportivas e artísticas, entre estas atividades destacamos as aulas de dança para crianças e adolescentes. De antemão indicamos que o propósito da ONG, das “aulas” de dança, como também deste texto é apresentar algumas experiências desenvolvidas não como “atividades para crianças”, ou mesmo “aulas de dança”, mas como encontros, espaços onde a educação, os corpos, as crianças e adolescentes experimentam, pela dança, outras possibilidades de relação com o corpo, com os espaços, com as outras crianças/adolescentes. Por isso, optamos chamar esses momentos de encontros dançantes com as crianças.

A escrita que agora apresentamos é a materialidade de esforços, movimentos, experiências de escrita que visam dar visibilidade a algumas situações vivenciadas nesse espaço. Procuraremos partilhar algumas destas experiências, experiências de pensamentos, que chamaremos de “pensamentos moventes”, e por que não dizer “pensamentos dançantes”? Mas estas experiências também produziram movimentos pensantes; ou, dito de outra forma, maneiras de pensar com o próprio corpo, tudo isso durante um percurso de pesquisa1. Optamos apresentar este texto através de algumas notas por vezes mais claras, outras vezes mais densas, algumas delas mais explícitas, algumas delas que movimentam, outras que colocam em movimento, o que objetivamos aqui é produzir materialidades aos encontros, ao que se apresenta nos “entre” dos corpos dançantes de uma “menina grande” e meninas e meninos pequenos.

Estes encontros, capturados por câmeras e olhares que situam as danças, os tempos e os espaços de práticas educativas, são pontos de entradas para as experiências de escrita e seus vazamentos presentes nos encontros dançantes com as crianças. Assim, este texto não pretende responder a perguntas em torno da educação, da educação com crianças e adolescentes, da educação com arte e, mais especificamente, com dança; o propósito aqui é levantar perguntas e, quem sabe, produzir algum movimento nos corpos e no pensamento.

experiências com educação e pesquisa… um convite a dançar com crianças

Como já apresentado anteriormente, o conjunto dessas atividades com as crianças se deu a partir de um trabalho desenvolvido por nós juntamente a uma ONG em uma cidade no interior do estado de São Paulo. Entre várias outras atividades da ONG, as “aulas de dança” eram uma delas. Nessas aulas as crianças eram convidadas a experimentar o ato de dançar pela “escuta do corpo”2. Um conjunto dessas experiências acabaram sendo formas de “entradas” para a pesquisa3. Além das atividades com as crianças nesses encontros, eram oferecidas câmeras fotográficas, filmadoras e aparelhos de celulares que foram permeados pelo convite, feito às crianças, para capturarem imagens enquanto dançavam e mesmo em momentos em que não dançavam. Acerca desses momentos, acompanhamos Leite, Leite e Christofoletti (2017) quando discutem a ideia de “corpos-câmeras”, pois através desses aparatos tecnológicos não só foram capturando imagens ou ainda, dito de outro modo, imagens-dançantes, mas também foram dançando aos modos de danças-imagéticas, que povoaram a pesquisa e as experiências, ou dito de outro modo, pesquisa-experiência.

O povoado universo de sons e ruídos e silêncios e de focos - nítidos ou não -, rostos e pés e cabeças e chãos e corpos perambulando, dançando, se misturando com outros corpos, se batendo, se tocando, irritando, confundindo. Corpos câmeras, câmeras corpos. Como se o corpo pensasse, como se pensasse pelo corpo. Pensamentos sem sentidos, rotineiros e ameaçados, há sempre a ameaça de um corpo invadindo outro, outros lugares; sempre a câmera pode ser parte do corpo e ser retirada; passa a ser amputada, passa a ser mutilada, passa a ser corpo mutilado, amputado. Nessas mutilações, incorporações de outros corpos e em outros corpos, vemos baba, bafo, movimentos disformes, corridas, círculos. Temos vertigens nos corpos movimentos que se apresentam (LEITE; LEITE; CHRISTOFOLETTI, 2017, p. 355).

Nos entre das danças, das imagens e das crianças, esbarramos com perguntas, com muitas perguntas: quais modos de pensar e experimentar os corpos que se apresentam nos encontros com as crianças? Quais aprendizagens, com as crianças, são possíveis nas experiências desses corpos que dançam? Que educações podem ser pensadas ao nos depararmos com as infâncias das crianças nestes momentos de uma experiência com corpos e danças?

Junto às experiências, aos movimentos de pensamentos, às provações que foram nos tomando, mobilizando, encontramos em autores como Gilles Deleuze, Félix Guattari, Michel Foucault, Jan Masschelein, Manoel de Barros, entre outros, possiblidades de agenciar algumas imagens, algumas perspectivas de olhares, alguns sentidos para aquilo que em nós se fazia presente. Assim, nossa pesquisa foi se apresentando com o que durante o percurso fomos chamando de experimentações dançadeira junto às crianças. Ou ainda, pensando com Leite (2016), uma “pesquisa experiência”; uma pesquisa que vai se delineando durante seu percurso, passo a passo pelos caminhos que se abrem, uma pesquisa infantil que convida à atenção e à entrega.

[…] poderíamos dizer que nem a pesquisa, nem a infância, nem a educação podem ser orientadas, pensadas, conduzidas por um a priori, por um ponto de partida localizado e delineador de pontos de chegadas previamente definidos; nem mesmo podem ser pensadas assim. Mas este trabalho tem nos provocado a pensar uma pesquisa e uma educação atenta, atenciosa ao que se apresente por uma atitude em relação às múltiplas dimensões da infância, em um movimento de invenção recíproca e indissociável da educação e do mundo. A pesquisa com crianças aproxima-nos de uma educação da infância e de uma infância da educação que se abre à aventura ao desconhecido, à produção do novo, de uma educação inventiva, brincativa, sem função explicativa, descritiva, padronizada (LEITE, 2016, p. 21).

Arquivo pessoal

Imagem 2 impulsos 

Arquivo pessoal

Imagem 3 Braços e abraços 

Desse modo, procuramos aqui partilhar algumas provocações que se apresentaram durante o desenvolvimento do trabalho com as crianças e durante a caminhada da pesquisa. Nesse sentido, fazer mobilizar com as infâncias, as danças, as imagens, permeada por olhos, olhares, bocas, narizes, orelhas e peles; trazer aqui alguns recortes de uma pesquisa que se fez - talvez, não só fazemos pesquisas, mas também as pesquisas se fazem - com corpos lançados a experiência e as afetações daquilo que experimentamos. Assim, o texto não tem a pretensão de responder perguntas, nem mesmo de que as palavras, ideias, conceitos, imagens se posicionem como algo definitivo ou representativo acerca de nossas experiências com as crianças. Aqui, tanto o texto como os conceitos não se apresentam como ferramentas que possam fazer circular uma ideia hegemônica de trabalho com as crianças, mas podem (e talvez devam - ser usados como “armas” em nossas lutas por uma educação que potencialize os corpos, as danças, as crianças, as infâncias.

Da mesma maneira, as imagens não estão aqui para representar uma ideia, para ilustrar e/ou explicar um conceito, ou para que um conceito as explique, mas estão aqui porque fazem parte do processo de produção e de nossa experiência de pensamento. O texto que segue objetiva encontrar formas para o que vivemos com as crianças e está dividido em algumas partes: o corpo, a dança, a educação. Estas partes estão compostas por fragmentos - às vezes maiores, às vezes menores - onde apresentamos alguns conceitos, algumas perspectivas, algumas experiências e/ou modos de olhar/ver/pensar. Estes fragmentos são entremeados por imagens, por perguntas, por…, por…, por…, por reticências…

corpos…

Arquivo pessoal

Imagem 4 Fonte: Vestido de chão 

Arquivo pessoal

Imagem 5 Fonte: Provocações circulares 

Das questões que atravessaram essa pesquisa, o corpo foi se colocando como um potencial campo de questionamentos e perguntas. Como um forte e necessário espaço de nossas investigações. Desse modo, as experiências com o corpo, com os corpos nos fizeram produzir algumas dobras, torções em nossos modos de olhar para o que as crianças nos apresentavam, uma verdadeira experiência de pensamento que abriu (abria/abre) novos caminhos.

A lógica dualista que separa o corpo e a mente, grosso modo dominante em nossa cultura ocidental, ao menos desde René Descartes, também se faz presente nos discursos pedagógicos e/ou psicopedagógicos de nossa era; apresentamos essa noção não apenas baseados nas abordagens presentes nos campos educativos. Muitas dessas abordagens assumem discursos cognitivistas e/ou mais discursos comportamentais mesmo que considerem o que chamam de aspectos afetivos e/ou emocionais; outras ainda apresentam perspectivas chamadas sócio-interativas e/ou histórico-cultural e ampliam algumas discussões. No geral, são perspectivas conceituais de cunho representacional do e no desenvolvimento infantil. Na forte adesão de um discurso psicológico no campo educacional, como por exemplo as noções de construção do conhecimento, competências, entre outros termos, vimos essas ideias se fazerem presente e esses discursos tomarem forma não só nas práticas educativas, mas também em documentos oficiais de Governos Federal, Estadual, Municipal, em Projetos Políticos Pedagógicos de Escolas. Nessas perspectivas, de modo geral, o sujeito é separado algumas vezes da própria sociedade, além disso, como dito anteriormente, corpo e mente são considerados instâncias distintas, havendo uma crença de que há um domínio da mente em relação ao corpo e, como consequência, o corpo é reduzido a um recipiente no qual as informações são armazenadas e, portanto, passíveis de controle.

Embora o corpo venha sendo tratado de uma maneira bastante diferente nas últimas décadas, características muito fortes do pensamento dualista ainda estão presentes e de forma ainda dominante, reverberando em certo distanciamento do que talvez possamos chamar de primitividade - dos desejos, dos sentires, dos movimentos. No livro Discurso do Método, podemos observar esse pensamento que culmina na ideia do corpo-máquina e corpo-mecânico.

Depois, examinando atentamente o que eu era e vendo que podia fingir que não tinha nenhum corpo e que não havia nenhum mundo, nem lugar algum onde eu existisse, mas que nem por isso podia fingir que não existisse, mas que nem por isso podia fingir que não existia; e que, pelo contrário, pelo próprio fato de eu pensar em duvidar da verdade das outras coisas, decorria muito evidentemente e muito certamente que eu existia; ao passo que, se apenas eu parasse de pensar, ainda que tudo o mais que imaginara fosse verdadeiro, não teria razão alguma de acreditar que eu existisse; por isso reconheci que eu era uma substância, cuja única essência ou natureza é pensar, e que, para existir, não necessita de nenhum lugar nem depende de coisa alguma material. De sorte que este eu, isto é, a alma pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo, e até mais fácil de conhecer que ele, e, mesmo se o corpo não existisse, ela não deixaria de ser tudo o que é (DESCARTES, 2001, p. 39).

Diante dessa lógica, será possível afirmar que a dissipação do controle é facilitada? Se damos menos atenção aos nossos sentires e damos ênfase para a racionalidade, ignoramos parte do modo como o mundo nos afeta. Nesse sentido, será mais fácil sermos conduzidos a uma lógica utilitarista e mecanicista? Essas questões aparecem como reflexões diante do modo como o corpo tem sido concebido, sendo, muitas vezes, ignorado em todas suas potencialidades e possibilidades com o mundo. Nesse sentido, a questão não está na abdicação da racionalidade, mas nas dualidades que estão postas, nos modos e modelos já dados que nos aprisionam e nos separam das multiplicidades que os encontros com o mundo nos convidam.

Junto dessas perguntas um questionamento se apresentou: será que a ideia de racionalidade pode ser aberta para outros possíveis, de forma a experimentá-la também enquanto corpo, e o corpo também enquanto pensamento? Dessa maneira, reafirmamos que a questão não está em tornar a razão como problema central desta discussão, mas de problematizar sua hegemonia nas práticas pedagógicas, ou ainda no modo como o pensamento é representado e entendido, em via de mão única, sem muito espaço para sair (dançando) desta situação. Em contrapartida, o que pode acontecer ao experimentarmos o pensamento enquanto corporeidade? O que podemos ao experimentar um pensamento que sente e um sentir que pensa? O que podemos ao experimentar uma escuta entre os fluxos que nos atravessam?

Klauss Vianna4 (2005) oferece algumas pistas:

Obviamente, a todo instante somos submetidos a uma série de condicionamentos sociais e culturais. De acordo com a lógica e a disciplina de um mundo orientado para o trabalho, somos levados à mais completa imobilidade e a desempenhar uma forma mecânica de gestos. O universo da produção é hoje um universo de trabalho alienado, no qual também o corpo é submetido a um conjunto de práticas de domesticação social. Essa ordem começa a sofrer um revés, no entanto, no momento em que nos recusamos a desempenhar certos papéis segundo fórmulas preconcebidas. Nesse sentido, um corpo livre de condicionamentos e dono de suas expressões, em alguma medida revela-se um incômodo à ordem social existente, uma vez que busca recuperar a percepção da totalidade dentro de uma sociedade fundada exatamente na fragmentação. Essas observações são ainda muito superficiais diante do universo que é o próprio corpo humano. Certamente, há muita coisa que até hoje não foi possível compreender e que talvez transcenda qualquer plano de entendimento. Ainda assim, os problemas e obstáculos que se apresentam diante de nós no cotidiano obrigam ao encadeamento de ações e à busca de soluções que podem vir a ser mais ou menos satisfatórias, matando ou vivificando o corpo (VIANNA, 2005, p. 127).

Voltando a questão pontuada entre o controle dos corpos e a ideia de superioridade da mente/pensamento recorremos a Deleuze e Guattari:

O pensamento já seria por si mesmo conforme a um modelo emprestado do aparelho de Estado, e que lhe fixaria objetivos e caminhos, condutos, canais, órgão, todo um organon. Haveria portanto uma imagem do pensamento que recobriria todo o pensamento, que constituiria o objeto especial de uma “noologia”, e que seria como a forma-Estado desenvolvida no pensamento (DELEUZE; GUATTARI, 2012a, p. 45).

Já não se trata das poderosas organizações extrínsecas, nem dos bandos estranhos: o Estado devém o único princípio que faz a partilha entre sujeitos rebeldes, remetidos ao estado de natureza, e sujeitos dóceis, remetendo por si mesmos à forma do Estado. Se para o pensamento é interessante apoiar-se no Estado, não é menos interessante para o Estado dilatar-se no pensamento, e dele receber a sanção de forma única, universal (DELEUZE; GUATTARI, 2012a, p. 46).

Para os autores, o Estado, ou dito de outro modo, os aparelhos de Estado, tem se apropriado e ditado os modos “corretos” dos corpos-pensamentos e dos pensamentos-corpos espremendo os campos dos possíveis em espaços limitados àquilo que é controlável. Diante desse cenário, o corpo é dominado pelos signos que circulam como modos pré-definidos, como formatações das maneiras de ser-estar-agir que embora sejam impostas de fora para dentro, no percurso de nossas experiências diárias vamos assumindo maneiras de ser-estar-agir, elas incorporadas por nossos modos, sendo que os próprios pensamentos também executam controle.

Nesse sentido, o corpo (de)composto pelos atravessamentos na relação com o mundo tem sido calado, pensar os sentires e sentir os pensares parecem não fazer parte das muitas vidas humanas, somos ensinados a calar nossos muitos “eus” para (co)responder a um modelo hegemônico, para encaixar em uma formatação. A diferença é banida, entretanto ela está em nós, somos a própria diferença, mas a colocamos sob controle; nos ensinam a “corrigir” aquilo que escapa à norma.

Aqui podemos pensar com Foucault (2014) ao propor a ideia dos “corpos dóceis” a partir de um modelo disciplinar; este propõe uma estreita relação entre obediência e utilidade, afirma que quanto mais obediente é o corpo mais útil, bem como o contrário também se faz verdade: “A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos ‘dóceis’. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência)” (FOUCAULT, 2014, p. 135).

Ou seja, parece haver um investimento na mecanização do corpo como forma de controle, nesse sentido Foucault analisa as maneiras que o poder adentra nos campos sociais, por exemplo, investiga a questão do espaço e a maneira pela qual as estruturas são pensadas para enquadrar os indivíduos em pequenos e solitários espaços: “Cada indivíduo no seu lugar; e em cada lugar, um indivíduo. Evitar as distribuições por grupos; decompor as implantações coletivas; analisar as pluralidades confusas, maciças e fugidias” (FOUCAULT, 2014, p. 140).

Desse modo, retomando a questão do corpo/emoções/afetos e buscando um possível entrelaçamento com os apontamentos colocados até aqui, algumas questões (re)aparecem: será que o distanciamento dos sentires do corpo pode nos reduzir a prisioneiros de nós mesmos? Será que ao separar nossos pensares de nossos sentires nos distanciamos das pluralidades e nos aproximamos da homogeneização? Assim, somos homogeneizados e disciplinados e dóceis e obedientes e separados das nossas potencialidades, pois não parece permitido sentir e pensar e sermos outros e outras para além do masculino e do feminino e do normal que nos foi ensinado; aquilo que escapa às modulações de uma determinada lógica é marginalizado e/ou diagnosticado; não há espaço para diferença. Nesse sentido, será que é preciso de corpos carrancudos, encurtados, duros, tensos, bravos, tristes? Corpos sem espaço, corpos que esmagam as multiplicidades? Será preciso desses corpos para que sejamos dominados?

É difícil vivenciar com intensidade nossas emoções e sentimentos mais profundos. Por vezes, esse enfrentamento assume a conotação de um risco, que nem todos estamos dispostos a correr. Acostumados a introjetar a ordem à nossa volta, habituamo-nos a não olhar, não ouvir, não sentir intensamente e desprezar a importância dos fatos e acontecimentos menores, quase imperceptíveis - embora fundamentais. Quando trabalhamos o corpo é que percebemos melhor esses pequenos espaços internos, que passam a se manifestar por meio da dilatação. Só então esses espaços respiram (VIANNA, 2005, p. 70).

Podemos observar e refletir como essas questões atravessam as escolas; lugar que conforme o tempo cronologicamente passa para cada indivíduo, o sentir vai sendo substituído pelo sentar, ou seja, conforme a idade “avança” para as crianças, as possibilidades de movimento vão cessando, e apoiar o quadril nas cadeiras parece ser o principal cenário que ali se encontra, sentar-escutar-responder quando alguém te pergunta. Os corpos em suas multiplicidades vão sendo calados: (n)os ensinam a obedecer e (n)os separam das corporeidades plurais, da multiplicidade que habita cada corpo; das necessidades de mover, de experimentar, de pensar de outras maneiras. As escolas parecem investir no silenciamento das potencialidades criancescas que protestam a todo momento essa violência “educacional”.

No descomeço era o verbo. Só depois é que veio o delírio do verbo. O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos. A criança não sabe que o verbo escutar não funciona para cor, mas para som. Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira. E pois. Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer nascimentos - O verbo tem que pegar delírio. (BARROS, 2016a).

Imagem 6: O que podem os pés? 

Arquivo pessoal

Imagem 7 Fonte: O que podem as mãos? 

Salientamos que, durante nosso trabalho com as crianças, houve um forte deslocamento no modo pelo qual compreendíamos as práticas educativas. Um deslocamento que nos fez sair de uma perspectiva pedagogizante das relações, perspectivas que preveem e planejam as aulas, uma forma de condução em que alguns conteúdos e posturas já se apresentavam antes mesmo do encontro com as crianças; de alguma forma, as falas e as orientações de ações, ou seja, os ditos verbos tão presentes nas práticas pedagógicas formais ou não formais eram arrancados, tirados de suas ditas funções. É como, nas palavras de Manoel de Barros, o verbo delira e faz delirar ações, práticas e modos, o verbo, em seu delírio, produz nascimentos. Estes modos infantis abertos acabaram, durante nosso trabalho, dando pistas para outros campos possíveis.

Nas experiências dançantes com as crianças, fomos provocados a movimentarmo-nos por caminhos desconhecidos, por percursos que fogem às nossas lógicas pedagógicas, nossos modos de pensar os tais como ensinar? As crianças com as câmeras nas mãos nos tiram de nossos modos adultos, nos deslocam da centralidade adulta abrindo espaços para o novo. As crianças, em suas aberturas para o novo, nos colocam diante desses momentos infantis na mesma perspectiva que os autores colocam abaixo:

É a palavra que vem de fora, do mundo e não do interior de si. É o desvelo maior, supremo: o cuidado por silenciar a própria palavra para escutar a palavra do mundo. Assim, a reniñez é uma imaginação aberta e atenta. Supõe risco e coragem, abertura ao mundo, à infância, à infância do mundo. (KOHAN; FERNANDES, 2020, p. 6).

A questão é que, neste percurso de reflexão, o que vemos é que a infância nos mostra nossa verdadeira face, a incompletude, nossa in-fância. Não cabe aqui falar de uma infância do homem, mas sim dizer de uma condição infantile da própria condição humana, o inacabamento, a possibilidade de abertura. Algo que não se fecha. Porém, temerosos desta verdade e presos a um modelo em que se apresentam saber e poder, certezas e verdades, a modernidade nos separou da experiência e das incertezas e, nesse processo, separou-nos também de nós mesmos. (LEITE, 2010, p. 81).

corpos… danças…

Junto às crianças, portanto, a primeira questão entra em jogo: quais modos de pensar e experimentar os corpos revelaram-se nos encontros com as crianças? A pergunta aparece justamente como uma necessidade emergente dos encontros entre corpos e danças que fissuravam as explicações modelizadas, estas pareciam ser implodidas e os corpos pareciam experimentar suas caoticidades; parecia haver uma subversão daquilo que entendemos por lógica, o corpo aparecia diante de perspectivas que fogem ao universo das normatividades pré-definidas e já estabelecidas aos corpos; eram outras perspectivas, logicidades plurais e inventivas; quase como uma lógica do delírio.

Desse modo, as crianças convidaram a um povoamento de possibilidades da questão em jogo, convidaram à multiplicação do (im)possível; à criação. Houve, portanto, uma implicação que gerou certa desorganização daquilo que está dado, ou ainda, dito de outro modo, as modelizações prévias eram desmodelizadas por e com outras afetações; e novas perguntas emergiram: o que é o corpo para além dos conceitos? O que é corpo para além das classificações e nomeações? O que é o corpo para além das significações?

Diante dessas perguntas nos lançamos a questionar a possibilidade de modificar a pergunta inicial de pesquisa, deixando de ser “o que é o corpo?” e passando a ser, ao modo do pensamento de Espinosa, “O que pode o corpo?”, ou ainda: “O que pode o corpo que dança?”. A mudança de ritmo apareceu pois nos deparamos com um estreitamento; parece que a ideia de “o que é?” já vem carregada de significações fechadas que não acompanham as transformações incessantes dos corpos; o corpo já não é, mas está sendo, em processos, em movimentos, aqui e ali, aqui ele “é” isso, ali ele “é” aquilo e depois já é outro, tempo e espaço penetram o corpo e o corpo os penetra. Portanto, voltamos aqui às caoticidades corpóreas dançadas com as crianças que talvez nos dêem algumas pistas: como dizer o que pode o corpo se não pela multiplicação das possibilidades apresentadas pelas crianças?

O coletivo dos corpos criancescos nos chamaram atenção, as crianças parecem povoar os espaços em suas coletividades, infiltrando, escorrendo, invadindo e, em certa medida, transgredindo aquilo que lhes é imposto pelos adultos. Emprestando o termo de Deleuze e Guattari (2012a), as crianças são “máquina de guerra” escancarando o escape dos fluxos, vazando em suas intensidades. As crianças em suas movimentações ocupam o espaço sem medi-lo; elas percorrem, experimentam e rompem com ele.

O que queremos dizer, na verdade, é que os corpos coletivos sempre têm franjas ou minorias que reconstituem equivalentes de máquina de guerra, sob formas por vezes muito inesperadas, em agenciamentos determinados tais como construir pontes, construir catedrais, ou então emitir juízos, ou compor música, instaurar uma ciência, uma técnica…Um corpo de capitães faz valer suas exigências através da organização dos oficiais e do organismo dos oficiais superiores. Sempre sobrevêm períodos em que Estado enquanto organismo se vê em apuros com seus próprios corpos, e em que esses, mesmo reivindicando privilégios, são forçados, contra sua vontade, a abrir-se para algo que os transborda, um curto instante revolucionário, um impulso experimentador (DELEUZE; GUATTARI, 2012a, p. 34).

As crianças, máquinas de guerra, se lançam em estreita relação com os afetos, (a)parece que as multiplicidades presentes se relacionam com tudo que lhes acontece, ou seja, os corpos se criam enquanto fluxos, não parece haver solidez; tudo se faz e se desfaz em instantes; instantes revolucionários. São corpos que não se apegam ao “eu”, corpos coletivos que agarram, entrelaçam, entram, tocam, lambem, caem, empurram, abraçam, correm, corpos, corpos, corpos… São muitos, são todos e nenhum deles, são e não são, corpos-brincadeira, brincam de “ser” corpos.

O corpo se apresenta como a própria experiência, experiência no sentido de experimentação; nada está dado, tudo está em jogo, um jogo compositivo que vai se fazendo nas relações, um jogo que, como muitos jogos, não se sabe qual será o próximo lance, um jogo de aberturas. O corpo se apresenta como espaço de abertura e afirmação; experimenta isso e aquilo; ora isso, ora aquilo, isso e aquilo também nos experimentam, é nesse jogo que o corpo tudo pode; pode experimentar enquanto se abre aos encontros. Corpo em experiência de experimentar; transformações incessantes…

A partir dessas experiências corporais e criancescas, podemos encontrar diálogos também com Deleuze e Guattari e o conceito de Corpo sem Órgãos (CsO). Diante da denúncia do corpo cotidianamente aprisionado pelas diversas organizações, o CsO é a afirmação de que o corpo pode mais do que lhe foi atribuído, e que a organização é apenas uma camada de suas múltiplas intensidades. O CsO pode ser compreendido, grosso modo, como um convite a desorganizar-se para encontrar outros possíveis; experimentar e criar, criar e experimentar e, assim, desapegar (ou se libertar) dos modos e modelos estabelecidos como únicos, um corpo que se lança no encontro com o mundo sob a medida da prudência.

Onde a psicanálise diz: Pare, reencontre o seu eu, seria preciso dizer: vamos mais longe, não encontramos ainda nosso CsO, não desfizemos ainda suficientemente nosso eu. Substituir a anamnese pelo esquecimento, a interpretação pela experimentação. Encontre seu corpo sem órgãos, saiba fazê-lo, é uma questão de vida ou de morte, de juventude e de velhice, de tristeza e de alegria. É aí que tudo se decide (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 13).

Longe de pleitear responder à questão “O que pode o corpo?”, mas em busca de experimentar movimentos pensantes e pensamentos moventes, talvez os possíveis do corpo permeiem pela afirmatividade, pela abertura aos encontros, pela escuta atenta e sensível, pelas experimentações com as coisas, com o mundo, com a vida. Talvez seja pela afirmação ao corpo que experimenta que posso encontrar as potências da vida e talvez seja pelo movimento com as coisas que multiplico as possibilidades de agir. Será sobre dançar com o mundo?

Imagem 8 Fonte: Entre nós Arquivo pessoal 

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Imagem 9 Fonte Nós entre 

Em diálogo com o corpo que se propõe a experimentar o que pode, se apresenta um dançar corporificado pela experiência de afetar-se, um dançar que aprende com a infância e, portanto, que se desloca e se abre aos encontros que aparecem no percurso, um dançar que se arrisca e se expõe ao fora; dobra, torce e rompe; um dançar que se lança a experimentação e se alegra. Podemos pensar em um “dançar com o mundo” como aquele que encontra caminhos nos fluxos incessantes da vida?

É por esse pensamento dançante que fomos induzidos em nosso trabalho com as crianças; uma dança que se lança ao povoamento de incertezas e segue as trilhas que se apresentam durante a caminhada; ora sobe ora desce, ora rodopia ora se senta, depois deita e salta e desliza e encolhe e expande e… e… e…; cria movimentos presentes. É sobre dançar, dançar interessado em percorrer; dançar que convida o corpo à experimentação e à multiplicação, convida aos incessantes movimentos do entre; dança que corporifica as relações.

Foi ao nos lançarmos nessas aventuras dançantes com as crianças que afirmativamente a-riscamos a possibilidade de pensar em uma “dança infantil”; dançada infantilmente, mas não apenas porque se é criança, e sim porque somos atravessados pela potência da infância, não importa cronologicamente a idade que se tenha, o que importa é a possibilidade de adentrar nas intensidades infantis ou, pensando com Walter Kohan, em adentrar nessa condição misteriosa que é a infância…

A infância, devemos dizê-lo claramente desde o início, é um mistério, um enigma, uma pergunta. Não me refiro, claro está, apenas a uma etapa cronológica da vida humana, mas antes que qualquer outra coisa, a essa condição que nos habita - às vezes de forma mais perceptível, às vezes quase imperceptível - desde que habitamos o mundo. Essa condição que, também devemos dizê-lo desde o começo, não nos abandona, mesmo na forma do silêncio ou de uma presença imperceptível, até que abandonamos o mundo (KOHAN, 2012, p. 217).

Com as crianças encontramos um dançar que sempre se apresenta como verbo, porque o prazer estava lá e ali, no ato. Os corpos brincavam com o tempo e com o espaço, tudo era/é movimento; corpo, tempo e espaço dançavam juntos e novas realidades são criadas a cada instante, existir como ato de criação.

Dançar como ação, como forma de entrar no furacão estabelecido pelos encontros, mobilizar-se por um fluxo de afetos que nos retira do lugar e nos arremessa para todos os lados; com as crianças dançar é entrada sem destino. Dançar e experimentar estar diferente a cada movimento instaurado pelas intensidades, e nesse perder-se de si que apareciam os encontros, perder-se como corpos errantes; dançar com as crianças e experimentar a misteriosidade da infância, habitar a infância enquanto mistério, delírio, delirar, delirantemente; dançar.

corpo… dança, educação…

Desse modo, as crianças nos ensinaram que dançar é múltiplo e simples, ensinaram que o corpo não é só o que a ciência diz, mas é também o que as artes, as filosofias e o que as crianças dizem, ensinaram que “presença”, “articulações”, “peso” e “apoios”5 são tantas outras coisas no ato da experiência, ensinaram a produzir alguns deslocamentos em nossos pensamentos e a potencializar as criações professorantes, pesquisantes e dançantes. “Pois o problema do pensamento é precisamente o da invenção de ideias, mais que de sua organização sob a forma das proposições e dos juízos que lhes impomos” (SCHÉRER, 2005, p. 1189).

A partir do exposto, propomos cinco “postulados” para pensar e brincar com uma educação que talvez possa dançar infantilmente, são eles:

  • - perguntar;

  • - criar;

  • - cortar/romper (tempo);

  • - sentir (intensidades);

  • - delirar.

O primeiro postulado, “perguntar”, é pressuposto para os demais, ele sempre está em jogo. A partir de nosso trabalho parece não haver educação e dança infantil sem ele. O ato de perguntar não cessa nunca, ele cria uma infinidade de repetições que se diferenciam a cada volta: primeiro duvida-se de algo, então as dúvidas postulam algumas possíveis perguntas; as perguntas movimentam, direcionam caminhos possíveis a serem experimentados; experimentamos possíveis respostas, em seguida as respostas se desfazem e se reconstituem em novas dúvidas e o processo todo recomeça… Portanto, uma “dança infantil” duvida, pergunta, experimenta, responde e duvida novamente.

É nesse percurso gerado pelo “perguntar” que acontecem os atos de criação, dessa maneira, uma “dança infantil” vai criando modos outros de experimentar o corpo causado pelo estado de dúvida, o movimento criado no/pelo corpo reconfigura a própria ideia de ser corpo, a dança não é pensada a priori, ela acontece no ato de aventurar-se na criação que pergunta.

O segundo postulado, “criar”, portanto, é a ação gerada pelas perguntas, pela ação de perguntar, e nesse caso específico, o ato de criação diz respeito ao movimento que acontece no encontro entre os corpos e o espaço em um determinado tempo, é como se o espaço fosse uma tela em branco que vai ganhando desenhos pelo trânsito dos corpos, é desse encontro que surgem novas existências, pensamentos, movimentos…

O terceiro postulado tem a ver com o tempo. “Cortar/romper”, portanto, são ações que o corpo que dança infantilmente vai provocando no tempo, pois não há uma linearidade nem uma ordem nessas danças, o tempo jamais poderia ser cronológico, o que há são cortes e rupturas causados pela reconfiguração do corpo, dito de outro modo, causados pela multiplicação das possibilidades de ser/estar corpo, sendo assim, esses corpos outros vão se apropriando de novos modos de se relacionar com o tempo. Entretanto, essas duas instâncias - tempo e corpo - estão interligadas, portanto, o sentido oposto também é verdadeiro; um outro uso do tempo também implode um outro modo de operar o corpo, não há domínio de um sobre o outro, o que há é uma relação que se estabelece no ato, o tempo parece ser um dos termos desse ato. De modo geral, pensamos que a dança está no movimento, mas, como apresenta Giorgio Agamben,

El verdadero lugar del bailarín no está en el cuerpo y en su movimento, sino en la imagen como ‘cabeza de Medusa’, como pausa inmóvil, sino cargada, al mismo tempo, de memoria y de energía dinámica. Pero esto significa que la esencia de la danza no es ya el movimento, es el tiempo (AGAMBEN, 2007, p. 15).

O quarto postulado, “sentir”, indica aquilo do qual uma dança infantil é feita, mas, mais do que isso, sentir é também um fim em si mesmo quando se trata desse “tipo” de dança, não há qualquer desejo em produzir sentidos, não há qualquer propósito em fixar ou estabilizar, dançar infantilmente é efêmero, passageiro e incerto, pois trata-se de escutar o próprio corpo na relação com o mundo, trata-se de mover aquilo que se sente enquanto sente. Portanto, uma “dança infantil” desenha no espaço aquilo que sente o corpo, essas danças não temem esses vazamentos, elas os experimentam e os degustam; sentem e movem, movem e sentem, movem o que sentem e sentem o que movem, uma “dança infantil” não é feita de entendimentos, mas de atravessamentos e vazamentos.

“Delirar” é o quinto e último postulado dessa possível “dança infantil”, esse princípio é inspirado pela poesia de Manoel de Barros (2016a), que parafraseada diz: “No começo era a dança. Só depois é que veio o delírio da dança.”, portanto, uma “dança infantil” precisa pegar delírio, talvez esse delírio possa ser chamado de magia da dança, pois não é uma dança de fatos e passos, mas uma dança de aberturas e descompassos, uma dança coberta de irrealidades, de imaginações, de memórias e das geografias dos corpos que a dançam, é a própria magia vista a olhos nu, é delirar, sempre em verbo. Dessa maneira, “delirar” a dança é habitá-la na invenção de outros mundos possíveis, é profanar o dançar e subverter uma lógica possível do que possa ser dança.

Assim, podemos resumir que com as crianças dançantes apresentaram-se convites: para adentrar na infância da dança e experimentar danças-infâncias; para um dançar que abre espaço para a brincadeira; para o desfranzir das sobrancelhas, para os risos soltos, para o descanso quando necessário; para as mudanças abruptas de ritmos e velocidades; para as quedas e choros quase como passos de dança, um dançar a vida, com a vida. Afinal, o que é a vida se não uma dança? O que é a dança se não a própria vida em movimento?

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Imagem 10: Mergulho no chão  

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Imagem 11: Salto no ar 

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Imagem 12: Voar e aterrissar 

Dançar para (des)educar nossos corpos ou (des)educar nossos corpos para dançar com o mundo. É também, portanto, por um educar que se abre às intensidades da vida que percorrem os interesses dessa pesquisa, um educar que se move com os afetos, que afirma as pluralidades, que experimenta infantilmente, um educar que quer dançar.

A proposição aqui desliza, portanto, por uma educação que não é uma, mas várias, já que variam junto às relações que se apresentam, e para além dessa imagem que multiplica, a proposição também está em pensarmos em educações-corpos e corpos-educações; um educar em escuta, em movimento, que movimenta. Por isso, insistimos no problema do modo como o corpo tem sido aprisionado e diminuído pelas instituições e reivindicamos a urgência do olhar para ele: enquanto o corpo estiver aprisionado em um modelo imposto hegemonicamente, não haverá espaço para dançar com o mundo; enquanto não pudermos desviar das linhas retas para ziguezaguear os deslocamentos pensantes, não haverá espaço para uma educação alegre. Portanto, a tarefa de duvidar daquilo que está dado se faz urgente, é urgente a tarefa de olhar para si para descobrir aquilo que podemos: duvidar, escutar, experimentar, criar!

Dessa maneira, talvez uma das direções possíveis para experimentarmos modos outros de educações esteja nas experiências corporificadas, na maneira como nos relacionamos com os atravessamentos que se fazem e se desfazem incessantemente; portanto, um desinvestimento na fixação de modos e modelos e na interpretatividade do mundo, e um investimento nas afetividades e naquilo que talvez possamos chamar de presença, na relação atenta e aberta aos movimentos entre, dentro e fora. Será possível pensar uma educação que se alimenta de corpos presentes?

A pesquisa educacional crítica não trata de tornar consciente ou ser consciente, mas sim de atenção e estar atento. Estar atento é abrir-se para o mundo. Atenção é precisamente estar presente no presente, estar ali de tal forma que o presente seja capaz de se apresentar a mim (que ele se torne visível, que possa vir a mim e eu passe a ver) e que eu seja exposto a ele de tal forma que eu possa ser transformado ou “atravessado” ou contaminado, que meu olhar seja libertado (pelo “comando” daquele presente). Pois tal atenção torna a experiência possível (MASSCHELEIN, 2008, p. 42).

Com Masschelein, portanto, aparecem provocações para pensar na possibilidade de uma educação que subverta a ideia de representação e de interpretação, mas uma possível educação que se faz enquanto instigada por aquilo que se apresenta, por aquilo que os olhos tocam e são tocados por eles, que a pele sente pelo encontro com o presente, sente ao estar presente. Nesse sentido, educar é desabitado do lugar do ensinar e passa a não habitar; educar é sem lugar, um convite à abertura para o encontro com o fora, ou dito de outra maneira, educar desloca-se dos possíveis objetos e objetivos para deslocar-se, apenas. “O que é necessário é a vontade de movimentar-se e exaurir a energia da projeção e da apropriação” (MASSCHELEIN, 2008, p. 44).

Junto a essa subversão da ideia de educação, experimentamos com as crianças o convite para um educar-vertiginoso, semelhante a sensação de rodar, rodar, rodar e em seguida experimentar um novo movimento; este seria destituído da possibilidade de uma direção, de um rumo ou de um sentido dado a priori; a vertigem provoca, portanto, um estado de não-saber que amplia uma escuta sensível daquilo que se apresenta ao olhar, entretanto, arriscamos a compor com Masschelein e a pensar em um olhar que se estende por toda pele, um olhar que funde ver e sentir, um “corpolhar”.

Ao sermos tomados pela vertigem, os poros da pele se abrem para receber o novo e desconhecido; um movimento desorientado que acontece pela força do encontro. Diante desse jogo, somos tomados por aquilo que se passa no momento presente e é desses movimentos que, talvez, uma e-ducação atenta se faça, movimentos esses que talvez possamos chamar de dança. Uma e-ducação-vertigem provoca, portanto, uma dança, uma dança vulnerável, atenta e sensível. Assim, afirmo que as crianças desorientaram e convidaram à destruição dos limites de uma educação única, ampliando o corpolhar para o encontro com tantas outras educações: e-ducações, e-ducações-atentas, e-ducações-atentas-vertiginosas, e-ducações-atentas-vertiginosas-sensíveis, e-ducações… e… e… e…

Junto a Masschelein exploro: uma e-ducação do olhar necessita de uma pedagogia pobre, que não tem a ver com planejamentos e organizações, mas tem algo a ver com espera, com certo desconforto e com movimentos incessantes… trata-se, portanto, de uma força que faz mover, e a questão é: “o que há lá para se ver e ouvir?” (MASSCHELEIN, 2008, p. 44). Diante dessa pedagogia pobre não há lugar algum para chegar, mas há a possibilidade de experimentar o que está lá, aí e aqui… o que se vê? O que se ouve? O que se sente?

Desse modo, propomos pensamentos que rabiscam um educar que transforma todos os agentes dessa ação, um educar que se abre ao desconhecido e que se coloca em delírio de criação uma vez que nunca sabe o que é a priori, mas que está sempre a criar e abrir campos possíveis de algo que nunca se encerra, que está em constante fluxo de transformar e de transformar-se, e é nesse sentido que se faz necessário “desprender-se de si” e de tudo aquilo que de alguma maneira te estabiliza em ser, para que se possa estar. “[…] não se pode aprender sem começar a se desprender. A se desprender, é claro, dos preconceitos anteriores, mas, antes de tudo, e sempre, a se desprender de si” (SCHÉRER, 2005, p. 1187).

Desprender de si para que possamos efetivamente experimentar aquilo que se passa; destituir-se daquilo que nos aprisiona em “ser” para simplesmente “estar”. Finalmente, encontrar as potências de um corpo ativo é alimento essencial para a criação de novos modos de vida e, consequentemente, de novas possíveis educações.

A intenção aqui não é apresentar qualquer fechamento em ideias fixas, pelo contrário, queremos propor aberturas; desestabilizar aquilo que está fixado para que possamos adentrar em novos caminhos, percorrer o incerto para descobrir outros possíveis; mas, novamente, sem qualquer intenção de criar um novo roteiro para uma nova educação, uma nova dança, um novo corpo; afinal, queremos a pluralidade da vida, dos pensamentos, dos movimentos, dos afetos, queremos afirmar o risco de percorrer pelo não saber, que, apesar de arriscado, é também a beleza, a magia e o encantamento da trajetória; queremos afirmar um corpo ativo e uma educação inventiva; queremos afirmar uma vida que dança e uma dança que vive!

Arquivo pessoal

Imagem 15 Fonte Imensidão 

referências

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1As notas aqui apresentadas são recortes de uma pesquisa de mestrado que realizamos (BARROS, 2022).

2O termo “escuta do corpo” (MILLER, 2012) aqui faz referência a técnicas de educação somática que propõem, como um de seus princípios, um trabalho de corpo atento ao momento presente e engajado nas relações com o ambiente. No caso em questão, utilizou-se principalmente da Técnica Klauss Vianna (MILLER, 2007), técnica brasileira de dança e educação somática.

3BARROS, M. G. Dança e infância: entre corpos e corpos e corpos… 2022. 101 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Rio Claro, 2022.

4Bailarino e coreógrafo brasileiro que inspirou o desenvolvimento da Técnica Klauss Vianna.

5Tópicos da Técnica Klauss Vianna elucidados a partir de sua sistematização e experimentados nas aulas com as crianças.

Recebido: 08 de Julho de 2022; Aceito: 18 de Maio de 2023

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