Introdução
Neste artigo, discutimos como as ações do atual governo de Michel Temer têm alterado políticas educacionais que estavam em curso no Brasil, esvaziando seu sentido democrático-participativo e aprofundando a relação com o setor privado mercantil que, embora não tenha sido iniciada neste governo, - cada vez mais - interfere nas políticas educacionais brasileiras, mantendo-se fortemente organizado e atuante no redimensionamento ou na implantação das mesmas.
Situamos que tal processo foi desencadeado a partir do “golpe parlamentar e empresarial que aprovou o impeachment” (JULIÃO, 2016, p.52) da presidenta eleita Dilma Rousseff, em agosto de 20161, “orquestrado por uma parte da sociedade conservadora que põe em risco conquistas históricas das classes populares e trabalhadoras” (Ibidem).
Armando Boito Jr. (2016) concebe esse processo como uma luta de projetos, em que vemos o conflito entre neoliberais e desenvolvimentistas. Conforme o autor, os liberais são os “defensores do livre jogo das forças do mercado e críticos do intervencionismo estatal; os segundos, partidários da intervenção do Estado na economia para estimular o crescimento econômico” (Idem, p. 19).
Esse conflito nos remete a definir dois conceitos para compreensão dos nossos argumentos: o de classe e o de hegemonia. Entendemos classe como um “fenômeno visível apenas no processo” (WOOD, 2003, p.77) e, tal como Thompson (1991), não a vemos como uma categoria ou estrutura, mas como algo que ocorre e pode ser demonstrado nas relações humanas que unificam a experiência e a consciência. Assim, o movimento de classe só pode ser compreendido como uma formação social e cultural que opera num dado período histórico, e consideramos que ele não é estático; ao contrário, está sempre mudando.
Sobre hegemonia, compreendemos que sua construção não é algo abstrato, mas produzido através da disputa entre grupos e classes sociais. Gramsci (2002, p.40) afirma que “através do direito, o Estado torna homogêneo o grupo dominante e tende a criar um conformismo social que seja útil à linha de desenvolvimento do grupo dirigente”. Assim sendo, para analisarmos a construção do grau de organização alcançada pelos grupos sociais e da construção de consensos - “como domínio ou como direção moral” (Idem, p.62) - precisamos agregar os elementos sobre a correlação de forças que se estabelecem numa sociedade, ou seja, na luta de classes.
Também na construção do consenso e da direção de uma política pública, precisamos observar que ela não é estática e considerar que as fronteiras e as interfaces entre quem produz e quem implementa a política, quem tem permissão ou condições de estabelecer o quê e o como da política (GALE, 2003), isto é, como ocorre a coalizão de interesses, o que será adotado neste artigo.
Agregamos um terceiro conceito que é o da democratização; amparamo-nos na definição apresentada por Vera Peroni (2016) de que a democracia deve ser entendida como a materialização de direitos e de igualdade social (WOOD, 2003), a coletivização das decisões (VIEIRA, 1998) em que a participação na elaboração de políticas se efetiva com base na prática social crítica e autocrítica no curso de seu desenvolvimento (MÉSZÁROS, 2002). Ou seja, na discussão sobre democratização da educação, é fundamental considerar os processos, os sujeitos que constroem as políticas e os múltiplos estágios democráticos que podem ser observados a partir desses movimentos.
Seguindo a metodologia de pesquisa bibliográfica e da análise documental, apresentamos a atuação do Ministério da Educação - MEC, seu discurso e sua proposta de ação junto a algumas políticas educacionais em curso, especialmente na política e nos processos democráticos das Conferências Nacionais de Educação- CONAE, da criação do Fórum Nacional de Educação e da elaboração e implementação da Base Nacional Comum Curricular - BNCC (2017).
Diversas políticas educacionais em curso são fruto de muita luta dos movimentos organizados e participativos ao longo das últimas décadas. Quando se percebem rápidas alterações no curso das mesmas, há que se atentar para a redução dos processos democráticos e para a intensificação da influência dos empresários na parceria com o governo, transformando o direito à educação num produto ofertado ao público pelo setor privado também. Precisamos, então, ponderar sobre os interesses que a classe mercantil (que apoiou o golpe e a interrupção do estado democrático no país) tem na disputa de projeto societário que está se esboçando.
Cabe destacar que o protagonismo da classe empresarial brasileira na proposição de políticas educacionais não se iniciou no governo Temer, porém, nele se intensifica. A título de exemplo podemos citar o Plano de Desenvolvimento da Educação, criado no governo Lula e que teve como principal interlocutor o Todos pela Educação, desde a criação das metas e estratégias até o lançamento do mesmo. Tais relações também se observam no Plano de Desenvolvimento da Escola (PDE escola) e no Guia de Tecnologias, entre outros. Porém, no escopo deste artigo, vamos restringir a análise ao período indicado2.
A base material desta pesquisa traz os dados coletados no site, nos principais documentos disponibilizados pelo MEC sobre as políticas educacionais e no site do grupo empresarial denominado Movimento pela Base Nacional Comum - MBNC, bem como entrevistas em jornais brasileiros nos últimos dois anos (2016 e 2018) e outros sítios on line que tratam do tema.
A sustentação teórica do estudo respalda-se nos argumentos de Thompson (1991), Gramsci (2002), Wood (2003), Boito Jr. (2016), Rossi, Bernardi, Uczak (2017), Peroni (2016), dentre outros.
O artigo organiza-se em quatro seções: (i) O contexto democrático brasileiro na encruzilhada: 2016 a 2018, em que apresentamos brevemente argumentos sobre o golpe de 2016 e destacamos alguns elementos do discurso que o Ministério da Educação vem realizando na defesa da ampliação da parceria com setores privados para a oferta da educação; (ii) Da criação à desconstituição da Conferência e do Fórum Nacional de Educação, em que apresentamos as ações realizadas para o esvaziamento desses espaços de participação e a construção das políticas educacionais no país; (iii) A hegemonia dos empresários na construção da Base Nacional Comum Curricular, apresentando as orientações para materialização da elaboração e implementação desta política, bem como a ação do empresariado organizado neste processo; e (iv) Considerações sobre as alterações realizadas nas políticas educacionais em curso e algumas implicações nos processos de democratização da educação.
O contexto democrático brasileiro na encruzilhada: 2016 a 2018.
Desde o final dos anos de 1980, após longa ditadura civil militar (desde 1964), o Brasil vive um período histórico conhecido como redemocratização. Vários autores afirmam que esse foi um período de conciliações burguesas (FERNANDES, 1985; FRIGOTTO, 2011), estendendo-se desde a primeira eleição direta (que colocou no poder Fernando Collor de Melo), passando pelo governo neoliberal e reformista de Fernando Henrique Cardoso até os governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Frigotto (2011) afirma que estes últimos governos apresentaram continuidades de políticas em curso, mas também descontinuidades e até rupturas, realizando “recuperação de direitos sociais das classes populares” (CHAUI, 2016, p.11).
Destarte, não podemos ignorar que, na contramão do movimento neoliberal, que naquele momento histórico propunha a redução de direitos com a abertura política, no Brasil havia intensa luta por direitos sociais e por democracia. A correlação de forças fez com que a Constituição Federal de 1988, conhecida como ‘Constituição cidadã’ (nascida desse processo de redemocratização do país ainda que permeado de conciliações com as elites), consagrasse uma série de direitos, no plano jurídico, entre os quais a educação e a sua democratização.
Tais conquistas e direitos ampliados ao longo dos últimos anos produziram um novo contexto aos trabalhadores na constituição de sua cidadania. Todavia, ao mesmo tempo, havia elementos trazidos pelo neoliberalismo, como a fragmentação, a terceirização e a precarização do trabalho (CHAUI, 2016), que exigiram reformas e ajustes estruturais no país para que os capitalistas continuassem a ter lucros.
Nesse movimento, cumprindo rigorosamente a ordem neoliberal revigorada pelo Consenso de Washington3, os ajustes exigiram a diminuição dos investimentos do Estado em políticas sociais e na intervenção estatal na economia para estimular o desenvolvimento econômico (contrariando os desenvolvimentistas), defendendo o livre jogo das forças do mercado. Esse campo liberal e burguês brasileiro, que se ancora no capital internacional, na venda de estatais e na abertura comercial (BOITO JR, 2016), apoiou junto ao Congresso Nacional o afastamento da presidenta Dilma.
Surfando nas insatisfações da população, a mídia brasileira apoiou movimentos conservadores e de direita4 que, a partir de 2015, se mobilizaram cobrando mudanças no governo Dilma Rousseff. Armando Boito Junior (2016) alerta que os interesses reais da burguesia foram mascarados principalmente pela ‘pretensa luta contra a corrupção’ que estimulou um ódio ao governo e centrou nele todas as denúncias, mesmo que os processos envolvessem governos anteriores.
A campanha de desgaste da presidenta chegou ao Congresso que votou o impeachment em 2016, com apoio das instituições judiciárias. Esse processo, porém, foi denunciado como ilegítimo, pois deputados e senadores foram acusados de terem vendido seus votos; as acusações contra Dilma eram frágeis e não comprovadas, mas o processo não foi revertido. Michel Temer, que era vice-presidente, assume o poder e rapidamente passa a executar o ajuste liberal de abertura do mercado às empresas estrangeiras, venda de estatais, do pré-sal, entre outros.
Daniel Cara, coordenador-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, em entrevista ao Jornal Extra Classe, avaliou que o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff foi ilegítimo e que há uma agenda decorrente dessa ilegitimidade. Segundo ele, “o governo Temer é composto por uma unção retrógrada e perigosa entre ultraliberais e ultraconservadores, comandados economicamente pelo mercado financeiro e socialmente por empresários e fundamentalistas cristãos” (CARA, 2017, sp).
No campo educacional, a gestão democrática passou a conviver cada vez mais com práticas gerencialistas e com a ampliação da influência do setor privado mercantil na elaboração de políticas, do seu conteúdo e execução5. O crescimento de parcerias público-privadas materializa as novas formas de relação e a naturalização da gradativa substituição do direito à educação pela oferta de produtos educacionais aos consumidores.
O então Ministro da Educação, Mendonça Filho (deputado federal do partido Democratas, de orientação liberal), defensor das privatizações e parcerias público-privadas, em entrevista publicada no portal do MEC, em 2016, afirmava:
O levantamento mais recente do índice de desenvolvimento da educação básica (IDEB) mostrou que, em 2015, o ensino médio não atingiu a meta estipulada de 4,3. O indicador se mantém estável desde 2011, na casa dos 3,7. “A nota da educação pública brasileira é baixa. Foi percorrido um bom caminho no que diz respeito ao acesso, mas não com relação à qualidade”, destacou o ministro. Segundo ele, são necessárias mudanças estruturais para promover uma transformação radical na educação do Brasil.6
Sua preocupação era com os índices da avaliação externa e com as mudanças estruturais. Este foi o ministro que viajou aos Estados Unidos para se reunir e discutir educação com o Banco Mundial e com o Banco Interamericano de Desenvolvimento, sobre essas propostas.7
Em relação às mudanças estruturais, ele esclareceu em outra entrevista, publicada no mesmo portal e no mesmo ano, que a “prioridade à educação não pode ser apenas uma prerrogativa do governo: A educação só será prioridade absoluta no Brasil quando a sociedade avançar nessa compreensão”8.
O Ministro refere-se à ampla possibilidade de participação do mercado no campo educacional seja na formação ou por meio do financiamento privado da educação superior, seja pela organização da Base Nacional Curricular do Ensino Médio. Seu carro chefe de governo foi construído com o movimento empresarial ou, ainda, com a negociação de recursos para as instituições privadas que hoje avança em forma de projeto de lei que altera o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos profissionais da Educação - FUNDEB.
Para Daniel Cara (2017, s/p.), no campo educacional, o governo Temer/ Mendonça significou
a ascensão da agenda da privatização, o desmonte das leis educacionais como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a desconstrução da educação infantil, a prevalência da agenda de reforma empresarial e o descumprimento do PNE. Para sintetizar, é a reforma do ensino médio com o apoio tácito a iniciativas antipedagógicas e antidemocráticas como o Escola Sem Partido.
O autor refere-se à proposta de congelamento de investimentos em políticas sociais por 20 anos, estabelecida pela Emenda Constitucional 95, de dezembro de 2016, que inviabiliza o cumprimento das metas do PNE e leva ao esvaziamento de políticas inclusivas como o Fies9, o ProUni10, a expansão das universidades federais, e também para a imposição de um viés privatizante. O Novo Financiamento Estudantil prevê ganhos aos empresários, pois, como afirma Daniel Cara (2017), eles “recebem um valor de matrícula exorbitante, o curso é de baixa qualidade, os estudantes ficam endividados, e a sociedade brasileira não recebe um profissional qualificado”.
Em sua avaliação, Daniel Cara afirma que Mendonça Filho tem dado indícios de que “pretende cobrar matrículas nas universidades e aprovar lei de gestão de unidades escolares por organizações sociais. É um governo que sabe o que quer: destituir direitos e dividir o erário público com os empresários que o apoiam” (CARA, 2017, s/p.).
Sua proposta de cobrança de matrículas em universidades públicas vem na contramão das conquistas históricas desse nível de ensino, inclusive com a ampliação da rede federal no governo Lula com a criação de dezoito novas universidades, além das dezenas de Institutos Federais de Educação. Também sua proposta ataca a educação básica ao estimular que a gestão das escolas11 seja realizada por instituições privadas que receberão os recursos e definirão como gastá-lo.
Corroborando com essas questões, valemo-nos de outros argumentos apresentados por Gaudêncio Frigotto (2018) em entrevista para a Revista Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio12 em que afirmou que o Governo Temer, no campo educacional, “representou o maior retrocesso dos últimos 70 anos ou mais”, com consequências brutais a médio e longo prazo. Também analisou o retrocesso da EC 95 e o impedimento dos investimentos em políticas públicas, afirmando:
Interessante registrar que os intelectuais do golpe são muito articulados com o capital financeiro e, portanto, são funcionários dos grandes intelectuais coletivos, dentre eles o Banco Mundial. Você deve ter visto o relatório do Banco Mundial que se chama 'Um Ajuste Justo', que prega a austeridade no gasto público especialmente nas áreas de educação e saúde. Então todas essas reformas estão lá. São reformas que abocanham a parte do fundo público que era destinada a garantir direitos universais (FRIGOTTO, 2018, sp.).
Para Gaudêncio Frigotto, a retirada de recursos enterra a possibilidade de execução do PNE e agrava as condições de vida dos mais pobres da seguinte forma:
Primeiramente estanca o aumento do salário mínimo real, um mecanismo que nos últimos 15 anos garantiu efetiva distribuição de renda. O salário mínimo triplicou praticamente. Hoje o salário mínimo está estagnado e quem paga o preço? Vai ter menos qualidade de vida, menos saúde, menos possibilidade de as famílias apoiarem seus filhos na educação (FRIGOTTO, 2018, sp.).
Além de todos esses retrocessos, sobre os quais apresentamos argumentos, queremos demarcar mais dois movimentos históricos de luta pela democratização da educação, cujas trajetórias são asfixiadas pelo governo entre 2016 e 2018: o esvaziamento de dois importantes instrumentos de participação, controle e debate sobre a educação nacional: a Conferência Nacional de Educação (CONAE) e o Fórum Nacional de Educação (FNE).
Outro destaque que queremos discutir é a Base Nacional Comum Curricular (cuja trajetória do ensino médio já delineia um “fluxo de profissionalização (para os mais pobres) e uma trajetória propedêutica (para os mais ricos). Temer, inclusive, assumiu que a intenção era voltar a um modelo do passado” (CARA, 2017, s/p.), abrindo caminho para ampliar a participação do setor privado na educação básica. Estamos num movimento de recuo da democratização da educação nos últimos dois anos e, a seguir, trataremos de argumentar sobre esses dois processos.
Da criação à desconstituição da Conferência e do Fórum Nacional de Educação
A Conferência Nacional de Educação - CONAE realizada em Brasília, em abril de 2010, representou uma grande mobilização e participação da sociedade civil organizada na área educacional. Segundo dados do Ministério da Educação (BRASIL, 2010 p. 8),
A Conae mobilizou cerca de 3,5 milhões de brasileiros e brasileiras, contando com a participação de 450 mil delegados e delegadas nas etapas municipal, intermunicipal, estadual e nacional, envolvendo, em torno de 2% da população do País.
A etapa nacional da Conferência reuniu algo em torno de 3.000 pessoas, entre delegados e participantes observadores, com o propósito de buscar elementos para a construção de um Sistema Nacional Articulado de Educação e, ainda, com a expectativa de que o Documento Final, construído democraticamente, pudesse expressar “valores e posições diferenciadas sobre os aspectos culturais, políticos, econômicos, (que) apontam renovadas perspectivas para a organização da educação nacional e para a formulação do Plano Nacional de Educação 2011-2020” (Idem, p.9). Para compreendermos a relevância desses dados e de nossos argumentos subsequentes, é importante que retomemos o contexto em que ocorreu este evento.
Historicamente diversos movimentos buscam construir uma concepção ampla de educação, como indica o Documento Referência (BRASIL, 2009). Tais mobilizações sociopolíticas têm como objetivo articular os níveis e as modalidades de educação com as práticas escolares e não escolares que ocorrem em diversos tempos e espaços na prática social. O primeiro movimento que sinalizou essa luta foi o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, em 1932, que demarcava a construção do sistema educacional único, que ofertasse uma formação “comum, igual para todos” (VIDAL, 2013). A luta em defesa de uma escola pública, leiga, obrigatória e gratuita teve início com este grupo de intelectuais brasileiros e, desde a década de 1930 até os dias atuais, estes ideais marcaram a história da educação brasileira e são objeto de disputas nas reformas educacionais.
Com os movimentos de redemocratização do país na década de 1980, foram realizadas seis Conferências Brasileiras de Educação e, entre os anos de 1996 e 2004, foram cinco Congressos Nacionais de Educação. Segundo Francisco das Chagas Fernandes (2010, p. 1033), essas são “as duas experiências importantes da sociedade civil. Porém, essas conferências aconteceram sob a responsabilidade e sob a condução específica das entidades; não houve a participação do Estado, da institucionalidade”. Além dessas, a Câmara dos Deputados, por meio da sua Comissão de Educação e Cultura, realizou outras cinco Conferências Nacionais de Educação entre 2000 e 2005 (BRASIL, 2009). É importante destacar que as conferências nacionais, durante três décadas, envolveram uma ampla participação da sociedade civil organizada e dos trabalhadores em educação. Essa participação buscou
consolidar a educação como direito social, a democratização da gestão, o acesso e a garantia da permanência bem-sucedida de crianças, adolescentes, jovens e adultos nas instituições de ensino brasileiras e o respeito e a valorização à diversidade. E, sobretudo, por ensejar, enfim, a construção de uma Política de Estado, na área de educação, para o Brasil (BRASIL, 2009, p.6).
Para a preparação da CONAE 2010, compôs-se uma comissão organizadora plural que “representasse a complexidade federativa, a diversidade e a sociedade civil” (FERNANDES, 2010, p. 1034). A Portaria Ministerial nº 10/2008 nomeou 35 membros, representantes de entidades governamentais e da sociedade civil organizada, além do Secretário Executivo Adjunto do MEC, Francisco das Chagas Fernandes para coordenar a Comissão. Pela primeira vez, o Estado participou efetivamente.
No desdobramento dos trabalhos, o tema da Conferência foi definido pela comissão, considerando a necessidade de articulação nacional entre os sistemas de ensino, o “Construindo o Sistema Nacional de Educação - O Plano Nacional de Educação, Diretrizes e Estratégias de Ação”. Mais do que um tema, tal título indicava a intencionalidade de construir coletivamente uma “Política de Estado para a educação na qual se concretizassem as ideias de educação como direito social, de gestão democrática do sistema educacional e de garantia de acesso da população brasileira às instituições de ensino” (CARVALHO, 2010, p.14, grifos no original). Não entraremos na discussão dos eixos; queremos destacar neste artigo apenas o modo como foram planejados e realizados esses eventos, evidenciando a efetiva participação da sociedade e o exercício democrático que marcou essa trajetória, na busca de construção de uma proposta de educação de qualidade para todos.
Durante a realização da CONAE, à medida que aconteciam as discussões e estabeleciam-se metas para a educação, os participantes pontuaram que, para efetivação das propostas, seria necessária a criação de espaços articulados de decisão com deliberações coletivas e, então, propuseram a criação do Fórum Nacional de Educação - FNE, cuja composição deveria refletir o arranjo da comissão organizadora da CONAE, ou seja, incluiria ampla representação dos setores sociais envolvidos com a educação. Uma das atribuições do Fórum, definida durante o evento, foi a de convocar e coordenar as próximas edições da CONAE e acompanhar a tramitação do novo PNE no Congresso Nacional ( B).
Durante sua vigência, no formato original, o Fórum realizou, além das funções iniciais, o acompanhamento de toda política pública de educação, constituindo-se uma instância de debates permanentes e até mesmo subsidiando o poder executivo e legislativo no fornecimento de dados para formulação de políticas13. Responsável por acompanhar o cumprimento do PNE 2014-2024, o FNE, legitimamente constituído dentro do movimento educacional, exerceu esse papel, analisando e posicionando-se criticamente.
Em abril de 2017, o Ministério da Educação do governo Temer arbitrariamente redefiniu a composição do Fórum Nacional de Educação, excluindo entidades de classe como a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação - Anped e a Conferência Nacional dos Trabalhadores em Educação - CNTEE, legítimos representantes da sociedade civil e entidades de classe, incluindo órgãos governamentais como o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação - FNDE, este ligado ao próprio MEC. Ao liquidar o FNE, o governo Temer inviabilizou também a realização da CONAE 2018 nos moldes em que vinha sendo planejada por este colegiado.
Ao assinar um decreto e desconstituir/reconstituir uma comissão, o governo golpista desconsiderou anos de mobilização e participação democrática na luta pelo direito à educação. Desrespeitou sujeitos coletivos e ignorou seus propósitos educacionais. Tentou asfixiar a participação popular e enfraquecer a luta pela democratização da educação, desconstituindo as relações com movimentos historicamente organizados e participativos e fortalecendo a parceria com movimento empresarial. Além de beneficiar os empresários no segmento de negócios, abriu a possibilidade para construção de outro projeto de nação, como veremos no próximo item.
A hegemonia dos empresários na construção da Base Nacional Comum Curricular.
No Brasil, a discussão sobre a criação de uma base comum perpassou várias legislações. A Constituição Federal do Brasil de 1988 já previa no artigo 210 que “Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar a formação básica comum e o respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais”. Além da Constituição Federal de 1988, a Lei de Diretrizes de Bases da Educação Nacional de 1996 também previu, em seu Art. 26, a criação de uma base nacional comum. Recentemente o Plano Nacional de Educação, Lei Federal nº 13.005/2014, previu a elaboração de uma base nacional comum nas metas 2, estratégia 2.2, meta 3, estratégia 3.3, meta 7, estratégia 7.1 e na meta 15, na estratégia 15.6.
Considerando o marco legal acima exposto, a criação da Base já estava prevista desde 1988 com a formulação da Constituição. Na Lei de Diretrizes e Bases da Educação - LDB, aprovada em 1996, essa discussão se ampliou, afirmando que a criação da mesma ia além do conceito de “conteúdos mínimos” como indicava a Carta Magna:
A LDB articula de maneira mais detalhada a necessidade de uma parte diversificada do currículo; estabelece que a base comum deve compreender o estudo da língua portuguesa e da matemática, o conhecimento do mundo físico e natural e da realidade social e política, especialmente do Brasil, o ensino da arte, educação física, língua estrangeira moderna, música e educação ambiental; inclui temas transversais, tais como conteúdos relativos aos direitos humanos e à prevenção de todas as formas de violência contra a criança e o adolescente e, através das Leis nº 10.639 e 11.645, torna obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena (CNTE, 2015, p. 415).
Em junho de 2015, através da Portaria nº 592, foi instituída a comissão de especialistas para a elaboração da proposta da Base Nacional Comum Curricular. Dentre as atribuições da Comissão, constava a construção preliminar da proposta da BNCC, posteriormente aberta à consulta pública. De acordo com o Artigo 2 da presente portaria, em seu Parágrafo Único, a discussão deveria incentivar a consolidação do debate pelos entes federados, bem como instituições e sociedade civil, para construir a Base:
Parágrafo único. A discussão pública a que se refere o caput desse artigo será realizada nas unidades da federação sob a coordenação das secretarias de educação dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, bem como com as associações acadêmicas e científicas que atuam nas áreas de conhecimento da Educação Básica (BRASIL, 2015, p. 16).
Na primeira versão da Base, o Governo Federal chamou a sociedade civil a participar, opinando sobre seu conteúdo. Este processo somou 12 milhões de contribuições. O primeiro momento foi coordenado pelo MEC; no segundo, o Ministério contou com a parceria do Consed e da Undime para realizar os 27 seminários nos estados.
Após essa primeira etapa, em que houve a participação da sociedade civil na construção da Base, o Governo Federal iniciou o processo de análise das contribuições, chamando especialistas em educação de várias universidades públicas e privadas do Brasil. Concomitante a esse movimento, um grupo de empresários passou a atuar e influenciar em tais análises. Compreendemos que esse grupo de empresários, em uma correlação de forças, passou a ser hegemônico na construção da Base. Além disso, questionamos o que foi feito com essas contribuições dadas através de consulta popular.
Em abril de 2017, a terceira versão da Base foi entregue pelo MEC ao Conselho Nacional de Educação (CNE) que realizou cinco audiências públicas, uma em cada região do país, para debater a proposta. Em dezembro de 2017, o CNE apresentou a Resolução CNE/CP Nº 2/2017 que instituiu e orientou a implantação da BNCC. De acordo este documento, a Base deverá “ser respeitada obrigatoriamente ao longo das etapas e respectivas modalidades no âmbito da Educação Básica”.
Cabe destacar que, antes da apresentação da primeira versão BNCC pelo MEC, foram realizados inúmeros eventos (seminários e encontros) nacionais e internacionais, nos quais se discutiram aspectos amplos e específicos das políticas educacionais.
Ainda que primeira versão a BNCC tenha tido 12 milhões de contribuições da sociedade civil, a questão para a qual chamamos a atenção é o interesse e a influência do setor privado na construção da mesma e na garantia de que ela seja implementada. Trata-se de instituições financeiras, empresas, fundações e instituições filantrópicas que são chamadas pelo governo de ‘parceiras’.
Com maior ou menor protagonismo, fazem parte da ‘parceria’ os bancos Itaú/ Unibanco, Bradesco, Santander, as empresas Gerdau, Natura, as Fundações Victor Civita, Roberto Marinho, Camargo Corrêa, Lemann e Todos pela Educação e Amigos da Escola. Vale destacar ainda que tais instituições do setor privado criaram, em 2013, o Movimento pela Base Nacional Comum - MBNC que se define como um grupo não governamental de ‘profissionais da educação’ que atuam junto ao processo de construção da Base Nacional Comum Curricular - BNCC (MBNC, 2017). Daí decorre uma indagação: por que esses empresários estariam interessados em promover iniciativas na educação em âmbito nacional? Quais são os seus interesses em influenciar no processo de criação da Base? Entendemos que a BNCC influencia na criação de um novo modelo curricular que por sua vez expressa um projeto de nação.
Recentemente, Katia Smole, representante do Grupo Mathema14, uma das instituições que participa do MBNC, foi nomeada Secretária de Educação Básica do MEC. Em uma matéria da Revista Nova Escola, a nova secretária afirma que
“O ministério tem pela frente a discussão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) no Ensino Médio e a preocupação em deixar o trabalho reforçado na formação continuada dos educadores brasileiros". [De acordo com o entrevistador] Ela diz que a repercussão de sua indicação traz muita responsabilidade para fazer um trabalho importante no MEC, e que as diretrizes do SEB a motivaram a aceitar o convite. "Ter esse conhecimento foi o que me encantou em apoiar o ministro [Rossieli Soares] nesse momento importante” (Site da Revista Nova Escola, 08 de Junho de 2018)15
A partir da nomeação de Katia Smole como secretaria de educação básica, verificamos que o alinhamento, isto é, a relação desses empresários com o governo se fortalece. Chamamos a atenção a partir da citação quando a secretária afirma sua preocupação com a implementação da Base no que diz respeito à formação de professores. De acordo com Bernardi, Uczak e Rossi (2018),
fica claro o interesse desse Movimento [Movimento pela Base Nacional Comum] em participar ativamente não só nos debates de elaboração da Base, mas também nas etapas posteriores, tais como implementação e monitoramento. Ou seja, além de acompanharem e darem ‘o apoio necessário’ para que as redes consigam implementar a mesma, querem garantir a sua influência nas políticas em todas as suas etapas, a exemplo da formação de professores e gestores, assim como a avaliação (BERNARDI, UCZAK, ROSSI, 2018, p. 45).
Após a aprovação da BNCC, vem a etapa de implementação. Em entrevista à Revista Gestão Escolar, Paula Louzano, integrante do MBNC, ao ser questionada sobre o foco de atenção, após a aprovação da Base, afirma que a implantação da mesma requererá “o [seu] alinhamento com outras políticas, como avaliação, elaboração de material didático e formação de professores.”16 Bernardi, Uczak, Rossi, afirmam, em artigo de 2018, sobre o modus operandi do movimento empresarial; segundo eles,
quando este coletivo foi interlocutor do Estado e induziu a definição de propostas e programas educacionais junto ao Plano de Ações Articuladas (PAR) e ao Guia de Tecnologias Educacionais, tornou-se posteriormente o fornecedor das tecnologias e programas de formação para docentes e gestores, caracterizando-se assim como clientes do Estado (BERNARDI, UCZAK, ROSSI, 2018, p. 44).
Ou seja, os mesmos sujeitos que dão o tom para criação de algumas políticas educacionais brasileiras são os que irão ofertar as ‘soluções’ para os ‘problemas’ educacionais. Neste caso, destacamos a forte atuação de dois grupos de empresários que integram o MBNC: primeiro a Fundação Lemann, que tem atuado como parceira do MEC na área de formação de professores e gestores. Segundo o Grupo Kroton Educacional que, além de ser a maior empresa de educação superior privada no Brasil, tem se voltado para um novo nicho de mercado que é o da educação básica, em especial, o ensino médio.
Considerações sobre as alterações realizadas nas políticas educacionais em curso e algumas implicações nos processos de democratização da educação
Neste artigo, apresentamos discussões sobre como, desde 2016, após o golpe parlamentar e empresarial do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, o atual governante Michel Temer aproxima-se cada vez mais do setor privado mercantil para a criação de políticas educacionais. Tal relação aprofunda a naturalização da incorporação da associação entre o público e o privado.
Exploramos o redimensionamento de políticas em curso e de movimentos organizados e participativos que realizaram a discussão e o acompanhamento das políticas públicas de educação no país e como estão sendo desarticulados ou rearranjados nessa “política da política” (GALE, 2003) e a construção da hegemonia, fruto da correlação de forças que se estabeleceu.
Ao discutirmos como tem ocorrido a formulação do consenso, apresentamos os movimentos que construíam políticas públicas com a participação da sociedade organizada e que vêm sendo paulatinamente desconstruídos/reconstruídos, diminuindo os espaços de democratização da educação, sendo substituídos pela interlocução com os empresários e pela priorização do mercado na oferta do direito à educação.
Exemplo disso é o processo que ocorreu na política de reforma educacional para construir a Base Nacional Comum Curricular num processo de discussão que mobilizou a sociedade civil e que gerou 12 milhões de contribuições. Ressaltamos que se desconhece o que foi feito com essas contribuições, uma vez que não são reconhecidas na Base instituída pelo governo através de Resolução em 2017.
Outro ponto a destacar é de que a Base apresentada está alinhada com as ideias defendidas pelos empresários organizados no MBNC e que agora são proclamados parceiros para sua execução, assim como os processos dali decorrentes, como a necessidade de formação de professores, elaboração de material didático e as novas avaliações de larga escala. Neste caso, fica evidente o privilégio do diálogo com os empresários em detrimento a sociedade civil participativa.
No processo de correlação de forças em relação às instituições do Fórum Nacional de Educação e das CONAEs, houve uma guinada mais impositiva e autoritária. O governo nomeou novas comissões, desrespeitando o próprio processo dessas instituições que foram democraticamente construídas e consolidadas na prática durante a realização das Conferências ao longo dos últimos anos. Isso demonstra a arbitrariedade do governo ilegítimo que utiliza decretos para materializar suas propostas e o retrocesso da democratização da educação e dos espaços construídos com a coletividade.
Também argumentamos sobre a preocupação com o congelamento dos investimentos em políticas públicas a partir da aprovação da EC 95. Em nossa avaliação, essa emenda constitucional segue orientações de ajustes liberais do Banco Mundial e prejudica a possibilidade de execução do Plano Nacional de Educação e consequentemente a qualificação da educação no país. Concordamos com Cara e Frigotto (2018) que o atual governo tem promovido grandes retrocessos na educação brasileira.
Constatamos que o governo Temer é aliado e apoiado pela classe empresarial e vem articulando propostas educacionais que materializam a relação entre o público e o privado, ampliando a ação do mercado na educação pública brasileira e asfixiando os processos historicamente constituídos de democratização da educação. Trata-se de projetos societários de nação antagônicos: um defende o direito de que precisa do movimento democrático para se materializar; o outro defende a venda de serviço que se consolida nas relações comerciais que tratam o direito à educação enquanto mercadoria.
Por fim, destacamos que o governo, tendo a classe empresarial como ‘parceira’, avança rapidamente asfixiando e desconstruindo os movimentos educacionais participativos, plurais e democráticos, substituindo-os pela sua proposta gerencial e mercantil.
Ao considerarmos a correlação de forças na construção deste processo, precisamos pontuar que, ao fim da escrita deste artigo, recebemos informações sobre o processo de resistência da sociedade civil aos desmanches do Fórum Nacional de Educação e da CONAE, organizados através do Fórum Nacional Popular de Educação - FNPE17.
Composto por 35 entidades, no final de junho este fórum lançou um documento que defende a restauração do processo democrático no planejamento, na implementação e no monitoramento de políticas educacionais no país e que se contrapõe a todas as formas de sujeição à retirada de direitos e ao mercado. Não analisaremos aqui tal documento, pois se trata de novo estudo, mas quisemos mencioná-lo para reforçar que, em toda e qualquer reforma, existe espaço para a resistência em defesa da escola pública, democrática e de qualidade.