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Educação UFSM

versión impresa ISSN 0101-9031versión On-line ISSN 1984-6444

Educação. Santa Maria vol.46  Santa Maria ene./dic 2021  Epub 04-Dic-2023

https://doi.org/10.5902/198464439817 

Artigo Demanda Contínua

A escola como espaço de formação para a autonomia numa perspectiva existencialista

School as a formation space for autonomy in an existentialist perspective

Vanderlei Carbonara1  , Professor doutor
http://orcid.org/0000-0002-0752-1189

Altemir Schwarz2 
http://orcid.org/0000-0002-9573-9056

1Professor doutor na Universidade de Caxias do Sul, Caxias do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil. vanderlei.carbonara@ucs.br

2Mestre pela Universidade de Caxias do Sul, Caxias do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil. altemirfilosofia@gmail.com


RESUMO

O presente artigo integra uma investigação teórica ampla que visa a uma revisão do conceito de formação em bases filosóficas contemporâneas. Nesta etapa pontual da pesquisa, a investigação volta-se a algumas contribuições do existencialismo sartreano, em especial à concepção de liberdade e suas implicações na formação para a autonomia. Assim, o texto aborda a formação do sujeito autônomo no contexto escolar, considerando a condição relacional em que acontece a educação, bem como o que implica a existência do conflito nessas relações. Propõe-se, com a análise de aspectos da obra de Jean-Paul Sartre, uma análise do conflito como propulsor da constituição da liberdade e da autonomia. Tanto a perspectiva do aluno, quanto a do professor nas relações interpessoais na escola são objeto desta análise conceitual. Destacam-se os desafios ao aluno e ao professor em suas responsabilidades frente à constituição da autonomia. Nesse percurso argumentativo, o texto propõe a presença do professor como sujeito de referência para o desenvolvimento da autonomia dos educandos. Justifica-se, assim, a posição de afastamento das perspectivas idealistas de viés unitário, e a decorrente exigência formativa de que se assuma a pluralidade como condição original da educação.

Palavras-chave: Formação; Subjetividade; Liberdade

ABSTRACT

This article integrates a broad theoretical investigation that aims a revision of the concept of formation in contemporary philosophical bases. In this punctual stage of the research, the investigation turns to some contributions of Sartrean existencialismo, especially to the conception of freedom and its implications to the formation for the autonomy. Thus, the text adresses the formation of the autonomous subject in the school context, considering the relational condition in wich education occurs, and what implies the conflict in these relationships. With the analysis of aspects of the work of Jean-Paul Sartre, it is proposed an analysis of the conflict as propellant of the constitution of freedom and automomy. Both student and teacher perspectives on school interpersonal relatioships are the subject of this conceptual analysis. We highlight the challenges to students and teachers in their responsibilities regarding the constitution of autonomy. In this way, the text proposes the presence of the teacher as a reference subject for the development of the students’autonomy. With the current argumentation, the departure from idealistic perspectives of unitary bias is justified, and the resulting formative requirement that plurality be assumed as the original condition of education.

Keywords: Formation; Subjectivity; Freedom.

Introdução

Durante muito tempo as perspectivas idealistas de educação sustentaram uma visão de escola como espaço da igualdade e da busca de fins comuns a todos. O discurso da Bildung, demarcador do projeto formativo de esclarecimento da modernidade, instaura no discurso educacional a possibilidade de que, pela educação, cada sujeito possa alcançar a sua mais plena condição, assim como a sociedade possa realizar no coletivo esse mesmo ideal dos indivíduos que a constituem. Ora, o projeto educacional da modernidade colocou o debate sobre a formação humana num patamar bastante elevado e permitiu que se passasse a pensar a educação como projeto de nação e não mais como simples assunto da vida privada das famílias. São bastante significativas as contribuições dessa visão educacional para o desenvolvimento de sociedades democráticas e de busca de bem estar coletivo.

A História, porém, permitiu perceber limites a todo esse projeto: os mesmos fins mais nobres que orientam projetos educacionais de referência podem converter-se em instrumentalização de algo oposto às suas pretensões. Muitas das experiências históricas que causaram perplexidade à humanidade - e aqui cabe enfatizar os eventos bélicos do século XX, originados na Europa - só se efetivaram em sua plenitude porque o projeto civilizatório moderno forneceu-lhe sofisticado aparelhamento científico e tecnológico. Assim, a crença numa educação redentora precisará aprender a interpretar as suas próprias contradições. Cabe, então, que se abra espaço para pensar nas possibilidades de concepção de projetos formativos que contemplem os desafios que a contemporaneidade nos apresenta, ultrapassando os limites dos idealismos.

Observando-se referenciais teóricos contemporâneos, tais como as rupturas filosóficas frente a concepções de orientação metafísica (cf., p. ex., HERMANN, 2001), as implicações psicanalíticas às visões idealistas de subjetividade e autonomia (cf., p. ex., HONNETH, 2009) e, em especial, a preponderância de vertentes construtivistas1

do discurso pedagógico, há significativos caminhos que apelam a elaborações não mais idealistas da educação. E, dentre as implicações que essas rupturas trazem, é importante perceber que, cada vez menos, a escola é um espaço de realização de fins comuns a todos que dela participam, e que a almejada igualdade como um de seus fundamentos cada vez mais dará lugar ao reconhecimento da diferença.

Feito esse arrazoado preliminar, propõe-se discutir alguns aspectos em torno da possibilidade de uma educação para a autonomia num contexto escolar compreendido a partir da pluralidade. Tratar da educação para a autonomia nessa perspectiva implica assumir a tensão entre o exercício da liberdade e o equacionamento da convivência plural. Essa constatação não é nova. Ainda assim, parece-nos que ela segue sendo um desafio à educação. Importa enfatizar que a escola caracteriza-se como um ambiente social intersubjetivo em que as liberdades dos indivíduos confluem a um ponto comum, por isso, há um inevitável conflito. Trata se do potencial formativo que se revela nesse tenso encontro que nos interessa debater.

O percurso aqui assumido para discutir a educação para a autonomia orienta se, em especial, pela concepção sartreana de liberdade. Para o autor, a liberdade parte da subjetividade, sendo a liberdade a condição humana por excelência. Ao partir da subjetividade, o autor apresenta a vida humana como projeto. Livre de qualquer natureza, só resta ao homem inventar seu próprio existir: “Assim, pensa que o homem, sem nenhum tipo de apoio nem auxílio, está condenado a inventar a cada instante o homem” (SARTRE, 2012. p. 25). Temos, desse modo, em Sartre, a liberdade como sentido da existência humana. Não somos livres porque somos humanos, somos humanos porque somos livres. A liberdade é anterior a qualquer essência ou princípio universal que defina o homem como espécie, gênero ou natureza.

E em decorrência dessa ideia de liberdade se chega ao itinerário de constituição do sujeito autônomo, que se origina na subjetividade, mas que só se constitui plenamente na intersubjetividade. Quando livremente escolhe por si, o homem escolhe pela humanidade, faz de seu projeto o projeto da humanidade que almeja e, inevitavelmente, responde pelas suas consequências. Assim, chega-se a uma concepção de liberdade diretamente vinculada à responsabilidade. Uma educação para a liberdade e para a responsabilidade implica, diretamente, educar para o engajamento e para o acolhimento das diferenças. Isso se dá partindo da consciência individual, mas não se encerra nela. Por mais intensa que seja a pretensão de um modelo social orientado pela competitividade e pelo aprimoramento individual, isso se dissipa em uma educação que prioriza a constituição subjetiva e o engajamento do indivíduo no universo relacional do outro. (cf. PEREIRA, 2019).

Sabe-se, no entanto, que Sartre não propôs nem uma pedagogia e nem um projeto de educação. Por isso, posicionar conceitos sartreanos no contexto educacional é um exercício de investigação que requer cuidados. Ainda que este texto se valha de ideias do autor, aqui são assumidas posições que estão também em outras perspectivas de reflexão, a fim de justificar o desdobramento educacional pretendido. A problematização em torno da educação para a liberdade e para a responsabilidade, tanto no contexto escolar quanto no contexto social, emerge das relações humanas, que são, por si só, potenciais formativos derivados do encontro subjetivo.

Algumas das reflexões aqui trazidas sobre liberdade, e relacionadas à educação, estão orientadas a partir da obra literária Entre quatro paredes (1977), em que o confronto intersubjetivo se torna revelador das subjetividades, apontando os limites e as potencialidades dos projetos individuais. O espaço em que a história se desenvolve é um espaço formativo, plural e conflitivo. O foco é pensar a escola como espaço possível para uma formação para a autonomia, considerando-se seu contexto plural. Admite-se desde já que toda reflexão e toda ação formativa acabam contribuindo na constituição do professor como sujeito em constituição e não apenas formador de outrem, bem como do educando como agente indiretamente formador de todos com que se relaciona.

A concepção sartreana de liberdade frente à pluralidade

Assumindo as categorias do Ser em Sartre - o Em-si, o Para-si e o Isto - pretende se vinculá-las ao debate social e educacional, apresentando reflexões acerca da presença livre do ser que se apresenta e que se põe em relação com outros. Importante, então, explicitar as diversas categorias relacionais que o ser estabelece a partir de si, a partir do outro e com o outro, sempre em liberdade, sempre em relação, sempre imbricado em escolhas.

A escola, espaço de relações, é também o espaço onde o ser (Em-si) percebe se e percebe o mundo a sua volta a partir das possibilidades de ser que aquela realidade de mundo apresenta. Nesse sentido, o Em-si torna-se objeto de constituição em relação com outros objetos dados, o que Sartre chama de outros istos (SARTRE, 2016, p. 249). O ser compreende a si nesse confrontar-se com o mundo. A presença diante do mundo é dialética, uma vez que o ser compreende o mundo e se compreende no mundo em uma separação compreensivo-relacional de constituição da subjetividade.

mundo

A percepção só se articula sobre o fundo ontológico da presença ao mundo, e o mundo se desvela concretamente como fundo de cada percepção singular. (SARTRE, 2016, p. 243).

Esse desvelar-se do mundo é relacional, não só em sentido do Isto com os objetos, mas por excelência com o Outro que integra o campo da experiência possível do eu. A presença do Outro impõe e estabelece a constituição do eu. A experiência subjetiva de mundo só é possível pelo desvelamento dos objetos da experiência possível, por sua vez, a compreensão como subjetividade livre se dá pela presença do outro que se desvela enquanto diferença. “O Outro, como unidade sintética de suas experiências e como vontade, tanto como paixão, vem organizar minha experiência” (SARTRE, 2016, p. 294-295). Porém, essa experiência não ocorre de modo unilateral do eu com os istos, mas relacional e reciprocamente constituídas pelo ser-para-o outro. Enquanto o eu se constitui objeto para o outro, este se apresenta como objeto para o eu. Tudo quanto é válido para si, é válido para o outro.

Está sendo apresentada aqui a ideia do conflito como o sentido mais genuíno e original do ser-para-outro. “Esse projeto de unificação é fonte de conflito, posto que, enquanto experimento-me como objeto para o outro e projeto assimilar o outro na e por esta experiência, o outro apreende-me como objeto no meio do mundo e não projeta de modo algum identificar-me com ele.” (SARTRE, 2016, p. 290). Trata-se de conflito porque a relação do ser-para-outro impõe ao eu um limite claro e uma organização das experiências e, por consequência, um limite à liberdade; impõe ao ser, que se constitui em sua liberdade, a necessidade de agir sobre a liberdade do outro.

É importante perceber que, em Sartre, o tema da liberdade se apresenta como constituinte do ser. Cabe-nos ressaltar que a liberdade constitui-se na existência, justamente naquilo que o autor chama de escolha. Diante de todas as relações que se estabelecem, o eu é condenado a escolher, ou, como sugere o autor, condenado à liberdade. Assim o eu, a partir desse constante constituir-se livre, vai constituindo

se como Em-si. “A cada ato negador, pelo qual a liberdade do Para-si constitui espontaneamente seu ser, corresponde um desvelar total do ser ‘por um perfil’. Esse perfil nada mais é que uma relação entre a coisa e o Para-si realizada pelo próprio Para-si.” (SARTRE, 2016, p. 251). Diante de tal limite, o eu pode lançar-se em um projetar-se. Tal relação entre a coisa e o Para-si, mais do que qualquer negatividade do eu, põe-no em curso como projeto.

O ponto de partida para se compreender o caráter de projeto das relações e da constituição do próprio eu, aqui, será a ideia da facticidade. Burstow explica: “facticidade é ‘aquilo que é’”. E segue: “Diz respeito a resistências e objetos com os quais a liberdade necessariamente se defronta e aos quais reage ao criar a situação” (2000, p.107). A facticidade é a presença do real nas relações; são os fatos que não podem ser negados ou apagados como, por exemplo, a presença de paredes divisórias que impõe um limite entre as salas de uma escola. A parede é um fato que impõe um limite à vontade de um eu de acessar a sala ao lado, de trocar olhares e palavras com aquele que lá está. Tal facticidade é vista por Sartre como resistência. Não é possível remover a resistência da parede, apesar da vontade inicial de acessar a outra sala, ou de comunicar-se com alguém que lá está, mas sempre é possível remover a força como obstáculo à vontade do eu. Pode-se, pela liberdade, transpor os limites impostos. “Sem essa resistência não poderiam existir nem a liberdade nem o ser humano. Em outros termos, a resistência é intrínseca à liberdade e ao humano” (BURSTOW, 2000, p. 108).

A facticidade da vida se apresenta como real limite à liberdade e, portanto, como conflito porque impõe um limite ao agir do eu. Não se pode tudo. Na liberdade há limites espaço-temporais evidentes. Há também o limite imposto pela presença do outro que, como sujeito de vontades e projetos, impõe um limite ao projeto do eu. O outro age com vistas a constituir-se em seu projeto e tais ações interferem no projeto que o eu tem e é.

Mas esses limites extremos da liberdade, precisamente por serem extremos e só se interiorizarem como irrealizáveis, jamais serão um obstáculo real para a liberdade, nem um limite padecido. A liberdade é total e infinita, o que não significa que não tenha limites, mas sim que jamais os encontra. (SARTRE, 2016, p. 651)

Cabe, outrossim, um breve esclarecimento sobre a existência em Sartre. A existência é a condição de todo o ser. Não há uma existência a ser revelada ou mesmo conhecida como algo para além do fenômeno que se apresenta como partícipe do ser ou como algo que se relaciona com este ser. A existência revela todo o ser. O ser que se apresenta em existência se apresenta todo. É o que é, facticidade, realidade, inteireza. “O ser é simplesmente a condição de todo desvelar: é ser-para-desvelar, e não ser desvelado” (SARTRE, 2016, p. 19-20). O que se conhece do ser aquilo é o que se percebe dele. Desse modo, pode-se conhecê-lo inteiro em sua realidade contingente, percebê-lo como um objeto (isto), e esse fato não o torna diferente do que é. Assim, quem conhece não exerce poderes sobre o ser conhecido pelo fato de conhecê-lo. “(...) toda a qualidade do ser é todo o ser; é a presença de sua absoluta contingência, sua irredutibilidade de indiferença; a captação da qualidade nada acrescenta ao ser, a não ser o fato de que há ser como isto” (SARTRE, 2016, p. 250). Nesse sentido, o outro, como fenômeno que se apresenta e que impõe um limite ao agir do eu, apresenta-se inteiro em sua existência e é compreendido como inteiro frente à liberdade do eu. Não é um objeto como os demais, por isso não pode ser manipulado com vistas à realização de projetos do outro. Nega-se a isso pela sua liberdade. Aqui julgamos aparecer o caráter positivo2 do conflito nas relações escolares, pois é, também, na escola que o eu livre se confronta com os outros eus livres e precisa aprender a construir seu projeto de liberdade junto a outros projetos.

Todavia, a existência do Outro traz um limite de fato à minha liberdade. Com efeito, pelo surgimento do Outro, aparecem certas determinações que eu sou sem tê-las escolhido. Eis-me, com efeito, judeu ou ariano, bonito ou feio, maneta etc. Tudo isso, eu o sou para o Outro, sem esperanças de apreender o sentido que tenho do lado de fora, nem, por razão maior, modificá-lo. Somente a linguagem irá me ensinar aquilo que sou, e, ainda assim, sempre como objeto de uma intenção vazia. (SARTRE, 2016, p. 642).

A escola como espaço de pluralidade e seus desafios à educação para a liberdade

A pluralidade presente no espaço escolar impõe limites à liberdade do sujeito. A presença do outro é facticidade que revela o limite e, muitas vezes, a fragilidade do projeto subjetivo. Sendo a presença do outro um limite, então se poderia supor que o ambiente escolar seja impeditivo da liberdade. Porém, é justamente o contrário que se quer propor. A escola é espaço de pluralidade e de relações; é o lugar da constituição livre do Em-si e do Para-si - o sujeito sai do isolamento e põe-se em relação. É na presença da facticidade das relações que a liberdade dá significado aos projetos. “Corremos rumo a nós mesmos, e somos, por tal razão, o ser que jamais se pode alcançar” (SARTRE, 2016, p. 267). Quando a facticidade e a liberdade se conjugam, temos a transição do egoísmo para a humanidade. Na conjugação liberdade-facticidade é que o ser constitui-se humano. Tal constituição não é biológica, mas social e moral. Isso significa que nas relações humanas aprendemos a sermos humanos. Ao experimentar a subjetividade, o Eu se percebe como um objeto para o Outro. Há um reconhecimento: o Eu se percebe como projeto a partir do Outro. O eu, na relação intersubjetiva, lança-se rumo às possibilidades que contempla de si. Considerando-se o alcance da premissa de que a existência precede a essência, cabe dizer que não há uma natureza humana boa ou má, nem há um fator predeterminante anterior ao sujeito. O homem está livre de qualquer projeto predefinido de humanidade ao qual pudesse ser compelido a executar com vistas a um objetivo, seja moral ou transcendente3. É com essa concepção de humanidade que se instaura livre de predeterminações que se quer, aqui, destacar as relações educacionais escolares como condição que pode favorecer a constituição desse projeto de humanidade. O tensionamento próprio do conflito - condição das relações entre sujeitos livres - inaugura um conjunto de possibilidades constitutivas, até então ausentes. Essas possibilidades apresentam-se como condições de possibilidade para os projetos. E o conflito expressa com grande vigor os limites da liberdade do eu e, ao mesmo tempo, abre a possibilidade de construção de um novo projeto. A partir de Sartre, cabe destacar que a vida que se vive é projeto. A existência se expressa como projeto. As escolhas individuais e livres vão construindo e moldando aquilo que comumente chamamos de histórias de vida, caráter pessoal da facticidade. Além disso, a existência do passado e a possibilidade de um futuro são modos de não ser, uma vez que, apesar de comporem o projeto do eu, não estão sob seu domínio e são limites individuais à liberdade. Pode-se dar um sentido diferente ao próprio passado, às experiências vivenciadas, mas não se pode alterar esse passado. Assim também, ainda que o eu possa dar um sentido e traçar uma meta rumo a um futuro, jamais se poderá determinar que se efetivarão as expectativas geradas. O ser é o que é e realiza seu projeto a partir da realidade que toca.

O Para-si é “abstrator”, não porque possa realizar uma operação psicológica de abstração, mas porque surge como presença ao ser com um porvir, ou seja, com um para-além do ser. Em-si, o ser não é concreto nem abstrato, nem presente nem futuro: é o que é. (SARTRE, 2016, p.253).

Cada projeto dá ao mundo uma interpretação e, embora se possa ter projetos semelhantes, cada ser molda-o ao seu modo e o constitui a partir dos sentidos atribuídos às relações com os outros istos. Perscrutando elementos formativos na filosofia sartreana, cabe dizer: é esse conviver com o outro e com o seu projeto o que torna humano o eu. Sobre esse aspecto esclarece Burstow: “Se a existência do Outro constitui um limite para minha liberdade, contudo, não me limita ‘como ser humano’. Como assim? Porque é o Outro que me torna um ser humano” (2000, p. 109). Assim, o Ser-em-si se torna um ser-para-muitos-outros e o projeto adquire um caráter de sociedade. O desafio sartreano para a constituição da humanidade do eu exige que o próprio projeto seja posto frente aos demais: sou desafiado a aprender a constituir meu projeto junto aos demais projetos; assim, sou interpelado a tornar o projeto em meu-projeto-para-o-outro. Dessa consciência frente à efetivação do projeto do eu frente ao outro chega-se à ideia de autenticidade. Explica Burstow:

Sartre define a autenticidade em termos de estar totalmente consciente, aceitar e assumir a responsabilidade pela situação de alguém (Sartre 1965; 1995). Se a autenticidade requer que estejamos plenamente conscientes de nossa situação e por ela assumamos responsabilidade, e se nosso ser-para-outro é parte necessária de nossa situação, a autenticidade requer que estejamos plenamente conscientes de nosso ser-para-outro e que o aceitemos. (BURSTOW, 2000, p. 111).

É com a concepção sartreana de autenticidade, pensada como projeto-para-o outro que se quer apresentar o ambiente escolar com significativa relevância para a constituição do ser como ser-responsável e ser-consciente. A maturidade das relações, com seus conflitos, mediadas no ambiente escolar, possibilita que cada projeto individual se converta em um projeto autêntico de responsabilidade livre diante das escolhas. Cada eu tem a possibilidade de moldar seu projeto com vistas à responsabilidade para com o outro. Veja-se o alcance de tal autenticidade: quando percebo que a escolha livre que fiz afeta diretamente o ambiente em que estou inserido, posso aprender a me responsabilizar por ela. Faz parte da autenticidade a possibilidade de se exigir reciprocidade do outro: quando percebo a implicação das escolhas do outro no meu projeto, posso exigir-lhe responsabilidade e, até mesmo, justiça. É por isso que o conflito assume uma importância decisiva no ambiente escolar: do seu enfrentamento decorre a constituição do eu. É nesse percurso argumentativo que se quer construir, a partir de Sartre, uma concepção sobre o papel formativo do conflito em relação à constituição do sujeito livre. Observe-se como Sartre descreve o tensionamento e a mediação a partir da aparição do Outro:

O Outro é o mediador indispensável entre mim e mim mesmo (...) E, pela aparição mesmo do Outro, estou em condições de formular sobre mim um juízo igual ao juízo sobre um objeto, pois é como objeto que apareço ao Outro. Contudo, este objeto que apareceu ao Outro não é uma imagem vã na mente do Outro. (...) Reconheço que sou como o Outro me vê. Não se trata, contudo, de comparação entre o que sou para mim e o que sou para o Outro, como se eu encontrasse em mim, ao modo de ser do Para-si, um equivalente do que sou para o Outro. Assim, o Outro não apenas me revelou o que sou: constituiu me em novo tipo de ser que deve sustentar qualificações novas. (SARTRE, 2016, p. 290).

Não se propõe aqui estabelecer alguma forma de correspondência, mas de guardar certa distância relacional, uma vez que o eu encontra um limite, porém não é determinado pela presença do outro. Altera as significações de seu projeto, mas não o anula exigindo e oferecendo reciprocidade corresponsabilizante. Quando o limite encontrado na existência do outro oferece risco ou anula o projeto, o eu exige tal reciprocidade. Não se trata de se responsabilizar, igualmente, por todas as ações que o outro desenvolve, mas de compreender o próprio eu como responsável por suas ações diante do outro para, então, exigir do outro a correspondência da responsabilidade pelos seus atos. Eis como o eu em constituição coloca-se diante do outro: ao mesmo tempo que necessito do outro para compreender-me e captar-me, remeto-me ao outro e contribuo para sua constituição e compreensão.

Nesse sentido, as diferenças individuais apresentam-se como limites à liberdade, mas sem violá-la. A intersubjetividade é um fator formativo decisivo na constituição do indivíduo em sua vida social, pois a presença do outro afeta o eu de modo a fazê-lo confrontar seu projeto com os projetos dos outros eus. “E, como eu sou minhas possibilidades, a ordem dos utensílios no mundo é a imagem projetada no Em-si de minhas possibilidades, ou seja, do que sou. Mas jamais posso decifrar esta imagem mundana: a ela me adapto na e pela ação” (SARTRE, 2016, p. 265). Eis o contexto em que o eu se percebe em constituição: ajo e, por isso, me exponho em relação. O corpo, que constitui um isto para o outro, dá ao eu acesso ao mundo e comunica seu projeto a esse mundo. A primeira dimensão de ser é a sua existência como corpo. Trata-se de um eu que se constitui como corpo e assim se revela. Esse corpo - existência - é conhecido e utilizado pelo outro, não ao modo da usurpação ou da posse, mas como instância de reconhecimento e de constituição de mundo. Essa é a segunda dimensão do ser, puramente relacional e, assim, ser como linguagem.

Dir-se-á que essas diversas tentativas de expressão pressupõem a linguagem. Não discordamos. Diremos melhor: elas são a linguagem, ou, se preferirmos, um modo fundamental da linguagem. (...) A linguagem não é um fenômeno acrescentado ao ser-Para-outro: é originariamente o ser-Para-outro; ou seja, é o fato de uma subjetividade experimentar-se como objeto para o Outro. (SARTRE, 2016, p.464).

Outro aspecto que ainda cabe destacar sobre a dimensão positiva do conflito é a evidência da angústia frente à responsabilidade que deriva da liberdade. Ao se relacionar, ou seja, ao apresentar seu projeto ao mundo intersubjetivo, ao constituir se humano, o eu defronta-se com uma possibilidade que é a sua, no sentido de individualidade ontológica. O ser se apresenta por inteiro, sem reservas ou escusas, mas também sem estar acabado; assim, o ser é possibilidade. Esse reconhecimento do projeto como possibilidade gera a angústia de ser o único responsável pela constituição do Em-si e Para-si. “Com efeito, angústia é reconhecimento de uma possibilidade como minha possibilidade, ou seja, constitui-se quando a consciência se vê cortada de sua essência pelo nada ou separada do futuro por sua própria liberdade” (SARTRE, 2016, p. 80).

A escola, nesse sentido, atua com o papel de formadora do homem para o engajamento e a acolhida do projeto comum de humanidade. As relações no ambiente escolar apresentam um caráter muito particular de evidenciar a necessidade da acolhida e da responsabilidade para com o Outro. “(...) o homem que se engaja e que se dá conta de que ele não é apenas o que escolhe ser, mas é também um legislador que escolhe ao mesmo tempo o que será a humanidade inteira, não poderia furtar-se do sentimento de sua total e profunda responsabilidade” (SARTRE, 2012, p. 21). Ao que se revela no conflito como urgência da responsabilidade inerente à ação livre, gerando a angústia que põe o projeto em curso, chamamos maturidade.

Professor como sujeito de referência da autonomia

Ao longo do texto vem sendo explicitado um percurso investigativo sobre alguns aspectos da complexidade decorrente da ideia de pluralidade. Observe-se que, diferentemente das perspectivas idealistas de educação, aqui não se toma a pluralidade como deficiência ou condição a ser superada. Ao contrário, assume-se a pluralidade como condição original da educação. Assumindo tal posição frente à pluralidade, a argumentação aqui seguirá refletindo sobre o papel do professor no ambiente escolar a partir da filosofia sartreana, e o fazemos considerando o pressuposto de que o professor é um sujeito de referência no desenvolvimento da autonomia. É do professor o papel de organizar, de planejar o processo de construção do conhecimento e de estabelecer os possíveis fins aos quais as ações pedagógicas se destinam. Em síntese, cabe primeiro ao professor agir com vistas a um fim. Por “fim” compreenda-se uma intencionalidade efetiva, o objetivo último a que se destina uma ação. O fim em Sartre afasta-se da ideia de um ideal e apresenta-se como a contemplação do não ser que motiva todo o ato intencional e todo o desenvolver de um projeto.

O professor, ao estabelecer um fim para sua ação educativa, desencadeia, a partir da liberdade e da escolha, uma série de ações que acarretarão a construção de muitas subjetividades e balizarão projetos livres. Assim, o professor passa a ser um real limite à liberdade dos estudantes. É plausível que se espere do professor um conjunto de modos de intervenção que desencadeiem enfrentamentos dos próprios limites dos estudantes, de maneira que façam suas consequentes escolhas e avaliem as responsabilidades daí decorrentes. É nesse contexto de enfrentamento, pedagogicamente mediado, que se poderá potencializar a formação subjetiva e os projetos dos sujeitos envolvidos. Nessa mediação, o professor apresenta-se como limite à liberdade dos estudantes. No tensionamento frente a esse limite, está o maior potencial de intervenção formativa.

Todo aquele que age, o faz com vistas a um motivo, busca uma determinada situação. Conforme a situação vai se revelando, vai se apresentando como apto ou não para atingir o fim desejado. Também é assim o modus operandi do agir do professor enquanto profissional da educação responsável por um projeto pedagógico, pela construção de um planejamento que contemple a realização de um fim - a aprendizagem.

(...) agir é modificar a figura do mundo, é dispor de meios com vistas a um fim, é produzir um complexo instrumental e organizado de tal ordem que, por uma série de encadeamentos e conexões, a modificação efetuada em um dos elos acarrete modificações em toda a série, para finalizar, produza um resultado previsto. Mas ainda não é isso que nos importa. Com efeito, convém observar, antes de tudo, que uma ação é por princípio intencional. (...) A adequação do resultado à intenção é aqui suficiente para que possamos falar de ação. (SARTRE, 2016, p. 536).

Aqui cabe enfatizar uma ideia já mencionada: o ambiente escolar é um ambiente social intersubjetivo que confronta as diversas liberdades. Neste mundo social, cabe ao professor a função primordial de apresentar um sentido de mundo, de esclarecer o mais possível esse mundo que o rodeia. Portanto, é tarefa do professor propor uma significação aos inúmeros istos que se apresentam e podem ser conhecidos. É claro que o professor pode ensinar as partes do corpo, a composição morfológica das rochas, as ligações iônicas. E pode fazê-lo sem incorrer em uma violação das liberdades individuais dos estudantes e de seus pares, sem que a multiplicidade de diferenças entre os sujeitos seja ferida. Vale considerar que muitas das relações pedagógicas têm implicações diretas sobre aspectos que dizem respeito ao exercício individual da liberdade. Diferentemente de uma neutralidade na ação do educador, o que se propõe é uma prática pedagógica responsável e de profundo respeito pelo outro. O desafio da profissão docente está em criar um ambiente favorável ao aprendizado possibilitando que o Outro seja o Outro, sem que seja instrumentalizado ou anulado.

Este outro, cuja relação comigo não podemos captar e jamais é dado, nós o constituímos aos poucos como objeto concreto: não é o outro o instrumento que serve para prever um acontecimento de minha experiência, mas os acontecimentos de minha experiência é que servem para constituir o outro enquanto outro, ou seja, enquanto sistema de representações fora de alcance, como objeto concreto e cognoscível. (SARTRE, 2016, p. 297)

Como podemos, então, pressupor uma ação do professor com vistas a um fim (a aprendizagem) sem que esta fira as liberdades individuais? Em síntese: como pode o professor agir de modo a respeitar o Outro, não o objetivando ou o instrumentalizando, mas permitindo que cada um e todos os seus estudantes desenvolvam-se em sua liberdade e, assim, tornem-se sujeitos autônomos da própria liberdade? Surge então, diante dessa indagação, o desafio de transcender. O professor é um agente de transcendência por excelência. É aquele que transcende o ser-para-si com vistas a um ser-para-muitos-outros e o faz a partir do olhar. Ao lançar mão do projeto de ser professor, almejando um fim à ação educativa, o professor parte rumo ao nada, no sentido de pôr em curso uma construção que é sua com muitos outros. Mais que um ato simbólico ou uma visão romantizada, contrário à lógica totalizante que visa à submissão do outro a partir de mim, o olhar de que nos referimos é um olhar de intermediação: “Assim, o olhar é, antes de tudo, um intermediário que remete de mim a mim mesmo.” (SARTRE, 2016, p. 334).

O professor é aquele que primeiro pode expressar seu ser-para-outros, sua facticidade que é compartilhada. Nesse contexto, educar é visto como o ato intencional que parte da facticidade compartilhada pelo professor em sua realidade similar situacional como condutor de um ato que visa um fim. Pensemos em um sujeito que, em sua liberdade e autonomia, constitui-se professor em um projeto que não se esgota em egoísmo, mas que é acolhida e construção que promove a liberdade do Outro. A educação como autenticidade, na perspectiva sartreana, é a que “(convoca) a nós educadores para despertar as pessoas quanto à violação da liberdade e sociedade e a meios de consertar isso por auxílio ao indivíduo em suas espirais, isto é, em seu próprio e original emergir” (BURSTOW, 2000, p. 117). Sartre enfatiza uma subjetividade que se constitui com a presença do outro:

Alguém me olha. Que significa isso? Fui de súbito atingido em meu ser e surgem modificações essenciais em minhas estruturas - modificações que posso captar e determinar conceitualmente por meio do cogito reflexivo. Primeiro lugar, eis que passo a existir enquanto eu para minha consciência irrefletida. É inclusive esta irrupção do eu o fato que mais comumente se descreve: eu me vejo porque alguém me vê, como se costuma dizer. (SARTRE, 2016, p. 335).

Portanto, o processo formativo - e quem é agente nesse processo - não poderá furtar-se de ver e ser visto como constituintes dos eus envolvidos. O professor é convidado a lançar olhares sobre os Outros que estão a sua frente. Ao mesmo tempo que se revela e é olhado pelos outros, torna-se Outro dos Outros. Trata-se de relação por excelência, expressa pela linguagem. Manifesta sua maneira de ser liberdade pelos atos desenvolvidos “Todas as minhas ‘maneiras de ser’ manifestam igualmente a liberdade, pois todas são maneiras de ser meu próprio nada” (SARTRE, 2016, p. 550).

Corre-se o risco, no ambiente educacional, de se tornar o professor apenas mais um junto aos demais quando se supervalorizam as experiências individuais dos estudantes. O professor é alguém que, responsavelmente, atua na constituição de subjetividades. Todavia, é importante atentar para que não se anule esse papel docente por conta de um entendimento equivocado a respeito das liberdades individuais, como alheias ao conflito que lhes é inerente. Por outro lado, quando a figura do professor é supervalorizada em detrimento das liberdades individuais, tomando-se a ideia do professor como única referência, incorre-se na doutrinação e na uniformização. No primeiro caso, priva-se o encontro entre outros; no segundo, eleva-se ao posto de único, aquele que é outro diante de outros. Ambas as posturas, além de perigosas, interpõem-se à liberdade e desvinculam o professor de um papel de sujeito de referência da autonomia.

Na busca de esclarecimento sobre o papel docente é pertinente trazer o modo como Sartre posiciona o Ser em relação ao Outro a partir da intenção, e justamente pela intenção do ato é que podemos avaliá-lo como alguém que interfere na liberdade. O olhar posiciona a intenção do ato do professor com um fim fora de si. “Se a tendência, ou ato, deve ser interpretado pelo seu fim, é porque a intenção tem por estrutura posicionar seu fim fora de si. Assim, a intenção se faz ser escolhendo o fim que a anuncia” (SARTRE, 2016, p. 588). O fim do ato docente é o aprendizado, não só em sua dimensão técnica, mas também e, principalmente, com o alcance moral desse aprendizado. O professor como referência de autonomia baliza a construção das liberdades individuais a partir da autonomia.

Conceber o professor como sujeito de referência na educação, considerando-se a perspectiva sartreana em voga, põe em questão a construção do Eu-professor que, com suas escolhas livres, projeta um fim que inclui o que está além de si. É nessa direção que o professor faz-se sujeito da mudança. Defender a ideia de liberdade, de ação intencional livre, implica pressupor que essa liberdade interfira diretamente no mundo que cerca o sujeito. Dessa forma assume-se que não há neutralidade na ação do professor. Todo ato livre é intencional e motivador da mudança social. Sartre vincula a liberdade à mudança na temporalidade:

Examinemos mais de perto esse paradoxo: a liberdade, sendo escolha, é mudança. Define-se pelo fim que projeta, ou seja, pelo futuro que ela tem-de-ser. Mas, precisamente porque o futuro é o-estado-que-ainda-não-é daquilo que é, só pode ser concebido em estreita conexão com aquilo que é. E não é possível que aquilo que é ilumine aquilo que ainda não é: pois aquilo que é falta e, consequentemente, só pode ser conhecido enquanto tal a partir daquilo que lhe falta. É o fim que ilumina aquilo que é. Mas, de modo a ir buscar o fim por-vir para, através dele, anunciar a si que é aquilo que é, é necessário estar já Para-além daquilo que é, em uma tomada de distância nadificadora que faz surgir claramente aquilo que é estado de sistema isolado. Aquilo que é, portanto, só adquire sentido quando transcendido rumo ao porvir. Aquilo que é, portanto, é o passado. (SARTRE, 2016, p. 610-611).

Observe-se que o autor acentua as ideias de mudança, falta e porvir como próprias da liberdade e do projeto de existência que dela decorre. Nessa perspectiva é que se posiciona a ação docente: um projeto que visa a um fim como falta, e não como garantia a ser assegurada. Pensa-se educação como projeto possível e não como ideal. Daí a ideia do Eu-professor como sujeito de referência: aquele que apresenta uma possibilidade diante da falta e, assim, atua favorável ao porvir formativo. Não há uma natureza inata de professor. Há, sim, um projeto expresso no ser professor.

Nesse contexto argumentativo, a ação educativa revela o todo do Ser-professor, revela todo o projeto, unidade organizada de comportamentos que constituem o ser humano professor. O docente, ao estabelecer suas relações, ao delimitar a liberdade e se apresentar, igualmente, como limite, constitui-se humano com-outros. Retoma

se, assim, a ideia de que, nas relações, o homem se constitui em sua humanidade. Também evidencia-se a ideia de que o professor é referência de humanidade, pois suas ações revelam seu ser. “Assim, a realidade humana não é primeiro para agir depois; mas sim que, para a realidade humana, ser é agir, e deixar de agir é deixar de ser” (SARTRE, 2016, p. 587).

Liberdade concebida como transcendência é liberdade como responsabilidade,engajamento. Ao planejar o fim de suas ações, o professor lança olhares sobre os Outros-alunos e interfere na sua liberdade. Não que esteja determinando ou privando as liberdades individuais, mas ao delimitá-las, confronta-as e questiona-as. A cada ação docente, os dados da realidade modificam-se. Esta é a base de toda a ação, em especial da ação do professor: mudar a realidade com vistas ao fim escolhido. A liberdade de todos é constituída nessa realidade relacional contingente. Os projetos se confrontam, encontram barreiras, são questionados e se moldam com vistas ao fim. Porque há um fim pretendido, que não é determinação de futuro, mas possibilidade, os outros intervêm sobre esse projeto em curso de modo a moldá-lo. Desse modo, o projeto de um eu efetiva-se com a forma possível nas relações vivenciadas. Cabe ao professor, em suas ações, lançar olhares sobre os fins dados em sua liberdade às suas ações educativas e pessoais com a responsabilidade que lhe é inerente enquanto sujeito de referência da autonomia.

Liberdade, por fim, é subjetividade. É ação individual responsável em conexão com outras individualidades. A presença da subjetividade e o respeito a ela é o que garante que o olhar não seja totalizante. A argumentação sartreana permite dizer que o outro é exterior a mim, mas não como posse ou uma extensão de mim. Ou seja, ele intervém em minha liberdade sem que haja qualquer imbricação de posse de um sobre outro. Eis aí a subjetividade radical: ao projetar minha vida e minhas ações me torno responsável pelas implicações dessas, nas liberdades dos demais.

Considerações finais

No início deste artigo indicou-se a intenção de refletir sobre a formação para a autonomia, tendo presente os debates sobre a superação do projeto educacional da modernidade - aos moldes do que fora pensado como Bildung - e os desafios hodiernos trazidos pela perspectiva da pluralidade como condição para a educação.

No presente artigo a opção deu-se a partir de Sartre e sua concepção de existência como projeto. Observe-se que, enquanto a modernidade ocupa-se com a ideia de um projeto de educação, aqui se está tratando da educação pensada como projeto. Não é o caso apenas de se mudar a ordem das palavras, mas de deslocar o debate do plano da necessidade para o plano da contingência. Ao invés de um projeto de educação com fins predeterminados, aos quais a educação volta-se para atingi-los plenamente, a educação como projeto almeja fins que se constituem como possibilidades que se desdobram em seu próprio acontecimento. Por isso, a constituição de sujeitos autônomos, como ideal pretendido de modo imanente pela modernidade, transmuta-se em experiência formativa histórica daqueles que se fazem autônomos a partir das respostas de cada indivíduo como escolhas diante das contingências da existência.

Por essa razão, ganha especial atenção o tema do conflito: o encontro humano é experiência diante da diferença e indeterminação, em que a pluralidade tanto é potencialidade das relações, como também delimitadora das ações dos indivíduos. A argumentação aqui assumida indica que o conflito tem a potencialidade de promover a constituição humana: o indivíduo, frente ao outro, é interpelado a operar com suas escolhas não somente considerando a si mesmo, mas também o outro. Não há eu puro, fruto de um ato da consciência e independente do mundo. O eu possível é um eu que está no mundo e se constitui em resposta aos tensionamentos da existência com o mundo e com outro. E é o conflito que inaugura essa dimensão de constituição subjetiva. Ora, enfrentar o tensionamento que daí decorre é uma das questões mais relevantes a que a educação poderá oferecer subsídios formativos.

A educação que se ocupa em tematizar o tensionamento decorrente do conflito está dando espaço privilegiado à formação de uma autonomia à altura dos desafios das sociedades plurais de nosso tempo. Já não é mais uma educação para uma autonomia que cada sujeito alcança por sua própria consciência, mas é educação que se orienta na direção de uma autonomia da facticidade e que assume uma responsabilidade que não é abstrata, mas é responsabilidade em resposta aos conflitos presentes nas relações humanas. E porque toda presença do outro é sempre um delimitador para as escolhas livres do eu, é que se deriva a reflexão sobre a presença do professor como sujeito de referência no contexto educativo. O professor tem a potencialidade de operar limites intencionais que provoquem a constituição subjetiva sob aspectos que visem a fins formativos claramente articulados às contingências próprias do contexto educacional. Quando bem compreendida essa dimensão da atuação docente, tem-se aí a possibilidade de potencializar as existências dos estudantes como projetos que se desenvolvem em resposta aos enfrentamentos dos desafios presentes nas relações.

Referências

BURSTOW, Bonnie. A filosofia sartreana como fundamento da educação. Educ. Soc., Campinas, v. 21, n. 70, p. 103-126, abr. 2000. Disponível em Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-73302000000100007&lng=pt&nrm=iso . Acesso em 23 jun. 2019. http://dx.doi.org/10.1590/S0101-73302000000100007. [ Links ]

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SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. 24. ed. Petrópolis, Vozes, 2016. [ Links ]

11 Construtivismo aqui é referido em sentido amplo do termo e envolve todas as matrizes teóricas que se afastam do objetivismo e reconhecem toda a legitimidade do conhecimento como decorrente de processos constitutivos.

22 É necessário sublinhar que o conflito pode assumir um caráter negativo quando as relações intersubjetivas anulam o projeto do sujeito, seja pela imposição, privação da liberdade ou outra forma de violência.

33 O termo transcendente, em todas as ocorrências do presente texto, não é tomado em um sentido metafísico, mas em um sentido factual de pôr-se em curso frente às possibilidades de um projeto a ser executado. Assim, a transcendência limita-se à experiência que o ser tem de seu próprio existir, sem esperas, apoios ou realidades metafísicas a que possa recorrer. É o nada no qual a experiência humana desafia o ser à construção da própria humanidade.

Recebido: 02 de Setembro de 2019; Aceito: 09 de Abril de 2020; Publicado: 25 de Fevereiro de 2021

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