Introdução
O presente trabalho buscou analisar processos de mercantilização da educação pública a partir da discussão teórica com pesquisadores críticos sobre as reformas na educação e sua relação com a política educacional de governo no Espírito Santo. Metodologicamente, sob orientação da perspectiva dialética, buscamos nas produções acadêmicas uma articulação que subsidiasse nossa análise documental que se pautou, sobretudo, nas publicações na imprensa e dados da rede escolar. Aqui, ao tratarmos das reformas e das políticas educacionais pressupomos que elas não podem ser compreendidas sem que seus aspectos fenomênicos estejam articulados com uma lógica global mais ampla de análise e, portanto, buscamos observar o movimento do real no seu processo de transformação, e ainda identificar e analisar as relações que vinculam aspectos mais singulares do campo das políticas educacionais com aspectos mais gerais da totalidade.
Para o desenvolvimento da pesquisa dialogando com o percurso histórico da produção acadêmica de olhar crítico sobre nosso objeto de estudo, utilizamos como recurso complementar a coleta de dados e a análise documental. Para além de dados e relatos, documentos e informações importam uma análise macro e micro para superarmos a aparência do objeto de pesquisa. Cotejando informações e buscando a origem de determinados indicadores educacionais, problematizamos notícias comuns divulgadas na imprensa local e nacional, e a construção do discurso hegemônico presentes nelas e o seu uso para a legitimação das ações do governo, tendo em vista solidificar a nossa crítica ao descompromisso da gestão do executivo estadual com a oferta escolar, o direito e a qualidade da educação pública.
Desse modo, o presente trabalho desloca-se da análise histórica do objeto de pesquisa sinalizado pelo ponto de vista crítico de relevantes pesquisadores da educação, passa pela problematização conceitual, até chegar a uma abordagem empírica que revela aspectos contraditórios de realidade educacional de um estado do Brasil que como campo da particularidade revela-se como síntese de múltiplas determinações. Sobre a materialidade local, o Espírito Santo, afirmam-se dados e notícias que consideramos como a materialidade do aprofundamento da mercantilização da educação que se processa no deslocamento real da implementação dos gerencialismos dos sistemas de educação ao empresariamento dos seus resultados.
Desenvolvimento histórico das reformas educacionais
Desde os anos de 1970, sobretudo a partir da crise do petróleo nos países do núcleo do capital, vinha enorme inflexão no padrão de acumulação fordista-keynesiano que corroeram as bases do welfare state que solaparam o pleno emprego, a seguridade social e os direitos sociais nos países ditos desenvolvidos. Na América Latina, depois do fim das ditaduras militares e ressurgimento das democracias na década de 1980, com a volta das eleições diretas, as populações esperavam que os sistemas políticos fossem capazes não só de restaurar os direitos civis e políticos, mas também de tornar a sociedade menos desigual com a construção de sistemas públicos que promovessem desenvolvimento social e crescimento econômico.
Na virada das décadas 1980-1990, no entanto, com a queda do muro de Berlim e a crise profunda do socialismo real, os países membros da comunidade dos países da periferia do capital foram atingidos por ondas neoliberais que, em resposta às crises do capital, sobretudo a partir do consenso de Washington, impuseram rigoroso receituário de ajuste econômico que abortou, violentamente no nascedouro, o estado de bem-estar, assim como esvaziou a legitimidade e o financiamento que viabilizassem a criação e ou consolidação dos direitos sociais à educação, à saúde, à seguridade e assistência social.
Segundo Gentili (1994), os reformadores neoliberais ofereciam o diagnóstico de crise da educação e de crise do Estado, cuja solução estaria na adoção de medidas restritivas à cobertura do atendimento escolar e de gestão da pobreza, e propugnavam uma educação mais adequada à globalização, pela via da incorporação de elementos da Nova Gestão Pública (NGP), devidamente quantificada e qualificada na sua eficiência e eficácia. Tendo como ponto de partida a crítica do estado burocrático, lento, ineficaz e caro, propõe-se a aplicação de critérios considerados mais eficazes para promoção e avaliação do que, sob olhar do Banco Mundial, considerava-se qualidade.
Segundo Duarte (2010), a partir de 1990, vários países da América Latina (Chile - 1990, Guatemala -1991, Argentina - 1993, México - 1993, Bolívia - 1994, Colômbia - 1994, Brasil - 1996 e Paraguai - 1998) implantaram reformas educacionais e estabeleceram novos parâmetros em relação ao público e ao privado, reduzindo o direito à educação a serviço educativo e, assim, esses países impuseram novos critérios de avaliação de sistemas educativos, professores e alunos, além de novas formas de gestão.
Duarte (2010) afirma que, desde a década de 1980, são três gerações de reformas. A primeira visou reorganizar a gestão e reposicionar o financiamento no sentido de ampliar o acesso aos sistemas educativos. Já a segunda focalizou no desenvolvimento e na aplicação de critérios de avaliação da qualidade com foco em resultados. E a terceira buscou redefinir os papéis das instâncias administrativas no sentido de maior descentralização e privatização.
Nesse sentido, Silva (2009, p. 219) defende que a participação de agentes “(...) técnicos dos organismos financeiros internacionais e nacionais” nas políticas sociais sinaliza a implementação, nas políticas educacionais, “(...) do conceito de qualidade, do âmbito da produção econômica”, na oferta escolar, em um processo que descaracteriza a educação pública como direito (SILVA, 2009, p. 219).
Desse modo, “(...) nos anos de 1990, acelerou-se a transposição de medidas, níveis e índices próprios das relações mercantis para quantificar e aferir a quantidade e qualidade dos conteúdos disciplinares de séries/anos escolares” (SILVA, 2009, p. 220). Essa perspectiva aponta o conceito de qualidade sob a lógica dos parâmetros financeiros que dispõem de medidas indicadoras, classificadoras, comparativas e hierarquizantes, próprias do campo da mercadoria. Nessa lógica, o valor de um produto, ou serviço, pode ser aferido, suficientemente, por meio de gráficos, tabelas e de padrões previamente escolhidos. Assim, estabelecer uma qualidade significaria medir, comparar, classificar com base em modelos exigidos (SILVA, 2009).
Contudo, no que se refere à educação, a questão é mais complexa, pois os processos educacionais não podem ser reduzidos aos parâmetros,
(...) tabelas, estatísticas e ou fórmulas numéricas que tentam enquadrar resultados de processos tão complexos e subjetivos, como advogam alguns setores empresariais, que esperam da escola a mera formação de trabalhadores e de consumidores para os seus produtos (SILVA, 2009, p. 225).
Desse modo, o uso das referências econômicas e das relações de consumo para avaliação dos processos educacionais penetra no direito à educação, tornando o currículo escolar refém dos testes de larga escala, produzindo muitas implicações negativas.
Entre os anos de 1990 e 2000, a educação passou por um período de reforma que impactou questões que envolveram a oferta da educação básica e a valorização docente, tendo como marco a própria alteração da Lei de Diretrizes e Bases que resultou na Lei (LDB) 9.394/1996. De maneira subterrânea, fomos percebendo a privatização adentrar a educação por meio do discurso reducionista da coisa pública, persuadindo a população com a ideologia que as instituições privadas ofertavam maior qualidade em seus serviços, e isso não só em relação à educação, mas a todos os serviços básicos de responsabilidade do Estado, na tentativa de minimizar as atribuições do Estado para com a sociedade, pressupondo um Estado Mínimo na concepção que deu origem ao neoliberalismo.
Essas reformas representavam a perspectiva do gerencialismo advinda de uma tendência mundial imposta pelas agências internacionais, sobre a qual Ball (2005, p. 544) afirma ter “(...) sido o mecanismo central da reforma política e da reengenharia cultural do setor público nos países do norte nos últimos 20 anos”, principalmente na Inglaterra e Estados Unidos, nos quais o “(...) gerencialismo tem sido o principal meio pelo qual a estrutura e a cultura dos serviços públicos são reformadas” (BALL, 2005, p. 544).
Nessa lógica, Santiago et al. (2003, p. 87) definem o gerencialismo como “(...) tentativas para impor (no setor público) técnicas de gestão importadas do sector privado”, seguindo numa lógica neoliberal de reestruturação do Estado-providência. Assim, o gerencialismo prioriza em suas ações a competitividade, a eficácia e a meritocracia.
No Brasil, esse processo gerencialista se iniciou nos anos de 1990 e foi bastante discutido pelos campos da Política Educacional e do Trabalho-Educação, nos quais destacaria dois textos fundantes de Gentili (1994) e de Frigotto (1994). Nesses textos, por meio dos conceitos de “falsificação do consenso” e “rejuvenescimento da teoria do capital humano”, os autores já sinalizavam o intenso processo de ajuste econômico e de restruturação produtiva em curso no Brasil que seria viabilizado pela reforma do Estado, pela desregulamentação generalizada da economia e das relações de trabalho e, sobretudo, pela aplicação da tríade câmbio flutuante, metas de inflação e superávit primário, elementos estruturais do neoliberalismo.
No bojo desse processo, os governos neoliberais, sobre a crise fiscal, abusam da retórica de produzir “mais com menos”, mesmo que isso comprometa a qualidade do bem social da educação. Por essa razão, em tempos de neoliberalismo e de crise fiscal, a gestão pública tem primado pelo princípio da austeridade como credencial de boa gestão, legitimando a corrosão das bases do financiamento público do direito à educação.
Sobre isso, é preciso salientar que
“Austeridade” não é um termo de origem econômica, a palavra tem origens na filosofia moral e aparece no vocabulário econômico como um neologismo que se apropria da carga moral do termo, especialmente para exaltar o comportamento associado ao rigor, à disciplina, aos sacrifícios, à parcimônia, à prudência, à sobriedade e reprimir comportamentos dispendiosos, insaciáveis, pródigos, perdulários (DWECK; OLIVEIRA; ROSSI, 2018, p. 15).
Nesse sentido, para esses autores, a austeridade é assumida como marca de uma gestão supostamente eficaz; mas que, na verdade, desvincula-se dos direitos sociais, reforçando as renúncias fiscais e as reduções de impostos como algo positivo e necessário.
Para Dweck, Oliveira e Rossi (2018, p. 07), “(...) as políticas de austeridade-econômica sustentam o discurso do arrocho fiscal, colaborando para o desmonte de políticas públicas e abrindo espaço para uma nova agenda do governo”. Isso permite o aumento do protagonismo dos setores empresariais na condução da coisa pública, comprometendo os “(...) avanços conquistados nas últimas décadas no acesso a bens públicos e na redução da pobreza” (DWECK; OLIVEIRA; ROSSI, 2018, p. 07).
Nos últimos anos, o Brasil “(...) observou intensa transferência de recursos públicos de programas sociais estatais para amortização e pagamento de juros da dívida pública” (DWECK; OLIVEIRA; ROSSI, 2018, p. 57), o que representa a inversão na distribuição dos recursos públicos, levando governos a comprometerem-se com o uso cada vez maior “(...) de recursos não para a realização de direitos” (DWECK; OLIVEIRA; ROSSI, 2018, p. 57), mas para a acumulação do capital financeiro.
Outra implicação brutal que se enraíza na histórica precarização e no subfinanciamento crônico da escola pública resulta no esvaziamento da esfera pública, tomada como espaço de corrupção, clientelismo, desperdício e ineficácia. Além de estabelecer o setor privado como modelo de qualidade, embute a ideia de que os processos de gestão da produção de mercadorias devem ser o paradigma, do que resultam os ataques à gestão democrática a ser substituída pelo gerencialismo.
Nesse movimento, além de absorver os valores e métodos do gerencialismo, uma nova etapa de aprofundamento do ethos privado ganhou ainda mais força. Desde o surgimento de entidades de origem empresarial, como o movimento “Todos pela Educação”, estabeleceu-se no espaço da gestão educacional a participação direta desses sujeitos nas decisões governamentais sobre a educação. Aos poucos, o movimento “Todos pela Educação” foi delineando sua penetração na gestão pública e interferindo no Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) e nas discussões que resultaram, em 2014 (Lei N° 13.005/2014), no novo Plano Nacional de Educação (PNE). Portanto, o que antes ditava as regras, hoje as elabora e as opera por dentro das estruturas de gestão, configurando o que chamamos de empresariamento. Essa nova configuração empresarial na gestão da escola pública pressupõe “(...) uma nova estratégia que auxiliará as instituições educacionais a melhorarem a qualidade do seu trabalho, através de um enfoque gerencial nas suas atividades administrativas e pedagógicas”(BARBOSA, 1994, p. 3).
Segundo Martins (2016), a aglutinação privada com força para influenciar na reorganização da educação pública brasileira vem penetrando as instâncias decisórias do governo, com legitimidade perante a sociedade civil e, nesse sentido, agrega os interesses, antes dispersos, por meio de uma intrincada e complexa teia de relações, uma rede de membros e instituições com poder de alcance e influência nas mais diversas classes e frações de classe, articulando interesses comuns de grupos empresariais.
Trata-se da organização denominada “Todos Pela Educação” (TPE) que vem repondo o lugar do empresariado no âmbito da formulação de políticas e da mobilização social em prol da hegemonização de um projeto educacional, dando nova configuração para a esfera pública (MARTINS, 2016). “(...) Seu principal objetivo é incidir em políticas públicas para a Educação Básica brasileira, em nível nacional, a partir da bandeira do direito à qualidade da educação” (MARTINS, 2016, p. 13).
As propostas do TPE, para a educação
trazem em seu bojo a alteração na relação entre sociedade e Estado no que se refere ao espaço de produção e implementação de políticas públicas. Isso porque, há correlação de forças entre classes sociais e suas frações por um projeto para educação” (MARTINS, 2016, p. 63).
Como estratégia de legitimação, os setores não estatais vêm construindo consensos por meio “(...) do fortalecimento de discursos e a difusão de ideias” (MARTINS, 2016, p. 63). No entanto, como alerta Martins (2016), instituições do campo do TPE elaboram e divulgam diagnósticos e formulações para dar visibilidade a um projeto educacional supostamente neutro e promover sua aceitação em nome do interesse público e do país (MARTINS, 2016).
Desse modo, com o consentimento e adesão dos governos, a proposta ideológica liberal do TPE para o currículo da educação pública se alastra em seus diversos níveis em todo território nacional. “(...) Estrategicamente, o TPE vem privilegiando a interlocução e articulação com o Estado, na tentativa de estabelecer um diálogo direto permanente com os governos nas suas três esferas” (MARTINS, 2016, p. 86). O autor, num contínuo, adverte que “(...) financeiramente, o TPE organiza-se a partir da captação de recursos privados, feitos através de doações de grandes grupos empresariais” (MARTINS, 2016, p. 66).
Seguindo nessa mesma lógica, afirma:
Finalmente, a forma como o TPE foi estruturado - a partir de um pacto entre iniciativa privada, terceiro setor e governos - contribui para a ocultação dos conflitos entre classes, e frações de classe, tornando mais complexa a compreensão da realidade, sobretudo no que se refere aos tênues limites entre o público e o privado - de modo a tornar também menos nítida a distinção entre os direitos sociais e os direitos individuais (MARTINS, 2016, p. 119).
O movimento mais recente de avanço do empresariamento na gestão da educação pública, além de fazer convergir gastos de consultoria e de compra de pacotes educativos do setor privado, constituiu um novo referencial intelectual do conhecimento e da pesquisa em educação em substituição às universidades. Juntos com a mídia capitalista e justificados por indicadores supostamente indiscutíveis, esses novos intelectuais orgânicos, no interesse do mercado da educação, respondem pragmaticamente sobre quais seriam os diagnósticos corretos e as soluções adequadas para os problemas da educação brasileira.
Nutrindo-se, em parte, da incapacidade dos pesquisadores do campo educacional e da universidade, em geral, de fornecerem soluções simples e objetivas (de baixo custo e aplicáveis em curto prazo), os governantes optam por aderir a instituições ligadas ao TPE. Tais instituições forneceriam fórmulas simples e objetivas, alinhadas aos valores da NGP (nova gestão pública), propugnada como solução avançada diante de um Estado tomado como lento e burocrático, para orientar e executar políticas públicas.
Além de contarem com o apoio da mídia e do pensamento hegemônico, as instituições educacionais de orientação empresarial oferecem, sedutoramente, serviços de formulação e gestão educacional e vêm substituindo os quadros mais qualificados das universidades e dos sistemas na definição e na implementação da oferta escolar. É o caso da Fundação Lemann que, segundo o site da própria instituição, promoveu, no período de 25 a 30 de novembro de 2018, evento na Inglaterra, na Universidade de Oxford, para 65 autoridades brasileiras (algumas recém eleitas como governadores e parlamentares), além de especialistas e empresários do terceiro setor, para debater gestão pública e educação.
Esse encontro (Figura 1) contou com o apoio da Fundação Brava e da Blavatnik School of Government, da Universidade de Oxford, e com o Todos pela Educação, para que, juntos, pudessem definir a agenda educacional dos próximos anos. Nesse encontro, estavam presentes ex-ministros do governo Temer na área de educação, Mendonça Filho e Helena Guimarães Castro, o governador eleito do Rio Grande do Sul e, especificamente do Espírito Santo, estiveram presentes o deputado eleito Felipe Rigoni, José Carlos da Fonseca Júnior, então secretário chefe da casa civil do estado e o, à época governador, Paulo Hartung.
Chauí (1992), ainda nos anos de 1990, já alertava para o despotismo inerente à desvalorização de princípios coletivos com o surgimento das práticas anticivilizatórias de subsunção do público ao privado. Para ela, mais do que a redução do Estado em favor do mercado, o que está em curso é a implementação de formas mais intensas de despotismo e autocracia, que evidenciam o esvaziamento da esfera pública.
Dardot e Laval (2016), em texto mais recente, destacam que, com o surgimento do neoliberalismo no quadro agudo de crise do capital, o que emerge não são apenas processos mais intensos de desestatização, mas inaugura-se um novo fundamento epistemológico para o capitalismo contemporâneo, no qual
(...) o direito privado busca estar isentado de qualquer deliberação e qualquer controle, mesmo sob a forma de sufrágio universal e seu autofortalecimento e radicalização produz a desativação do jogo democrático e estabelece era pós-democrática” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 07-08).
Para Dardot e Laval (2016, p. 17), o neoliberalismo, mais que uma ideologia ou forma política e econômica é, “(...) em primeiro lugar e fundamentalmente uma racionalidade” e, como tal, organiza governo, governantes e governados. Nesse sentido, os autores defendem que “(...) a racionalidade neoliberal tem como característica principal a generalização da concorrência” como conduta e subjetivação (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 17).
Como sabemos, a transformação de tudo em mercadoria atravessa a vida das pessoas, bem como a política e as formas de gestão dos direitos transformados em serviços a elas direcionados. Desse modo, há uma vinculação entre essa nova racionalidade com a qualificação e a implementação de políticas públicas. Nessa trilha, Silva (2009, p. 221) afirma que o Banco Mundial e os técnicos brasileiros “(...) imprimem uma visão também mercadológica, econômica, na estrutura dos sistemas de educação, com o objetivo de legitimar critérios de qualidade e produtividade, bem como a forma de medi-los sob a frágil aparência de eficácia”.
Nesse contexto, a privatização da educação parece estar num processo progressivo, no qual as instâncias democráticas dão ares de naufragar sem reagir diante da inexorabilidade da mercantilização da educação pública. Entretanto, tal assertiva precisa ser relativizada. Acreditamos que é, tanto teórica quanto empiricamente, difícil sustentar que estaríamos convivendo com um processo de avanço da mercadoria sobre a esfera pública e a transformação da educação escolar em mercado.
Em 2018, Luís Carlos de Freitas, importante pesquisador e crítico das práticas internacionais dos processos de privatização da escola pública, em encontro regional da Anped Sudeste, afirmava que as últimas reformas educacionais no Brasil buscavam, definitivamente, transformar a educação em mercado. Embora concordemos que as intenções dos setores golpistas sejam essas, acreditamos que tal formulação esteja um pouco fora da realidade, pois os mecanismos de esvaziamento, de precarização e de empobrecimento das condições objetivas de funcionamento da escola pública não produzirão a total transposição do direito à educação à condição de mercadoria.
Para afirmarmos isso, partimos da ideia de que, embora exista um mercado da educação, a capacidade econômica dos indivíduos para atuarem como consumidores da educação é muito restrita. Além disso, a oferta mercantilizada da educação não absorveria as desmandas de formação para o mercado. Ou seja, dado os limites da expansão do setor privado da educação, a privatização absoluta não permitiria prescindir da oferta pública, existindo entre elas, na prática, certa complementariedade.
Assim, questionamos a penetração da privatização na estrutura escolar brasileira (na educação básica, no ensino superior, nas etapas e modalidades de ensino), pois se sabe que nem todo ensino público é atraente ao capital. Para tentar responder a essa questão, dialogamos com Souza e Portela (2003), os quais já trabalhavam com o conceito de educação como quase-mercado2; e com Lima (2016), que estuda a Educação Profissional e propõe a dialética da formação para o mercado ao mercado da formação3. Do mesmo modo, propomos discutir o movimento inconcluso, mas ainda intenso, que vem ocorrendo no interior da gestão das escolas e dos sistemas educacionais, que configura o deslocamento do gerencialismo para processos mais agudos de empresariamento da educação.
Nessa nova fase, além do esvaziamento da escola pública e da corrosão do direito à educação pela via da internalização dos valores e métodos gerencialistas que transformaram a qualidade em bases quantitativas, tornou-se necessário aos interesses privados ligados ao mercado da educação interferir diretamente na gestão educacional com vistas a substituir os intelectuais da educação nesses espaços e a direcionar decisões compatíveis com interesses particulares e mercantis.
Aproximar o dimensionamento do valor de um direito social (trabalho imaterial socialmente útil) com o de uma mercadoria (trabalho material baseado no tempo socialmente necessário) gera uma antinomia, pois o direito tem seu valor de uso ampliado à medida que se universaliza, atingindo a todos; por outro lado, a mercadoria tem seu valor de troca aumentado na medida em que se torna exclusivista, atingido a poucos. Logo, enquanto o consumo de mercadoria é individual, a formação educacional é social; isto é, quando todos se educam, o gênero humano evolui como um todo, já o valor de uma mercadoria cai se todos a possuem.
De todo modo, concordamos com Freitas (2014) quando diz que, além da privatização direta de serviços públicos, estamos assistindo a um processo que garante aos empresários a ampliação do “(...) controle político e ideológico da escola e garantem as suas funções clássicas: exclusão e subordinação” (FREITAS, 2014, p. 54). Tais tendências recentes ganham lugar específico em dois fortes grupos ligados aos setores neoliberais e neoconservadores que, no congresso, aprovaram a Reforma do Ensino Médio e tentam, ainda sem sucesso, aprovar o projeto da Escola sem Partido.
Experiência local de educação e sintonia com o retrocesso do direito à educação
Governos do Espírito Santo, Ceará, Minas Gerais, Goiás, São Paulo e outros vêm aprofundando o processo de mercantilização da educação pública por meio de um movimento que tem promovido o deslocamento da ênfase do gerencialismo para o empresariamento da oferta escolar. Tais governos utilizam quatro elementos principais: austeridade, práticas antidemocráticas, esvaziamento dos gastos com as políticas públicas e intensa propaganda institucional.
Mas esses governos, como é o caso do Espírito Santo, conseguiram, ao internalizarem procedimentos e valores de instituições empresariais, produzir um pseudo avanço na educação. Ou seja, em busca de atingir os indicadores de fluxo e desempenho escolar que denotariam qualidade da educação, mas sem fazer mudanças estruturais no direito à educação, algumas prefeituras e governos estaduais têm sido eleitos como ilhas de excelência na educação pública no Brasil. No ensino médio, algumas redes estaduais da federação encontram-se em estágio avançado na implementação de mudanças curriculares, aumento do tempo na escola, bonificação dos professores, na direção das orientações de organismos internacionais, e já indicam passos importantes na implementação da reforma do ensino médio.
Aqui destacamos o caso do Espírito Santoque, em 2016, já apoiava o golpe parlamentar-jurídico-midiático que ceifou o governo Dilma e tornou presidente Michel Temer. Desde o primeiro governo Paulo Hartung (2003-2006), o Espírito Santo vem buscando tornar-se excelência no campo da administração pública (projeto 2025, IJSN, 2007). Seguindo a trilha dos quatro elementos acima referidos, no seu terceiro mandato, a gestão de Paulo Hartungconquistou excelência no cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Tal fato, ainda em 2016, diante da crise fiscal dos estados do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Minas Gerais, alçou à secretaria do tesouro nacional, a economista capixaba Ana Paula Vescovi (BRASIL, 2018). Ato contínuo, em fins de 2018, no jornal O Globo de 14 de novembro de 2018, a jornalista Miriam Leitão afirmaria, em material sobre a crise fiscal dos estados, que “(...) nem todos foram mal”. Segundo dados apresentados no jornal, “(...) o Espírito Santo foi o único a tirar A, a melhor nota de crédito dada pelo tesouro”.
Esse protagonismo, no entanto, não ocorreu sem grandes lacunas no provimento dos direitos sociais e sem combinar gastos exorbitantes em propagandas políticas. Ainda nos anos de 2016 e 2017, um deputado estadual4 e o Ministério Público do Espírito Santo (MPES) denunciavam muitos problemas na oferta escolar com a não aplicação de recursos5, além do fechamento autoritário de turmas de Educação de Jovens e Adultos (EJA) e de escolas do campo, e que o governo gastava mais em publicidade que em manutenção das escolas. Segundo o documento “Educação em foco - Informativo do Cape - centro de apoio operacional de implementação das políticas públicas”:
O Ministério Público Estadual ajuizou, no mês de fevereiro de 2016, uma Ação Civil Pública visando obstar o fechamento de turmas e escolas da rede estadual de ensino em todo o estado do ES, tanto na área urbana quanto na rural, com pedido liminar. Na demanda, manejada pela 7ª Promotoria de Justiça Cível de Vitória, são citadas duas escolas estaduais fechadas: Escola Estadual de Ensino Fundamental Maria Ericina Santos, em Vitória, e a Escola Estadual de Ensino Médio Santin Morosine Cupertino, em Linhares. O fechamento foi considerado arbitrário por não terem sido atendidos os requisitos legais, como comunicação prévia às comunidades e autorização do Conselho Estadual de Educação, e por violar o direito fundamental à educação de muitos cidadãos (Educação em foco - Edição nº 40 - Janeiro/Fevereiro 2016, p.01).
Não obstante, o Espírito Santo apresenta números bastante positivos no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) em comparação com outros estados da federação. Ou seja, mesmo com mais de dois terços de seus professores sem concurso, salários abaixo da média nacional e restrição de investimentos devidos à educação, o estado vem se colocando no cenário nacional como exemplo de competência e de austeridade.
Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2017/12/1941999-escola-do-seculo-21-tera-que-ensinar-a-ter-concentracao-diz-secretario-do-es.shtml
A despeito disso, A Folha de São Paulo publicou entrevista exclusiva do então secretário de educação de Paulo Hartung, Haroldo Corrêa Rocha, dando destaque às políticas de governo para a educação, colocando o estado como um exemplo a ser seguido por todo o país, sobretudo, no que tange aos programas para o ensino médio. Em toda a entrevista, o representante da pasta atribui todos os louros dos bons resultados da educação capixaba aos programas firmados com o setor privado e seu currículo diferenciado com foco nas habilidades socioemocionais: “(...) de 2015 para cá, trabalhamos com duas metodologias que não inventamos. No ensino médio, trabalhamos com metodologia do Instituto Unibanco para melhorar a gestão da escola, com foco na aprendizagem” (FOLHA DE SÃO PAULO, acesso em 09 nov. 2017).
Uma reportagem do jornal A Gazeta (Acesso em: 03/09/2018) destaca o resultado do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) em que o Espírito Santo ficou na posição de 1º lugar em relação aos outros estados brasileiros, na avaliação de proficiência em conhecimentos de Língua Portuguesa e de Matemática no ensino médio. Segundo o jornal, o secretário de educação atribui o êxito aos investimentos realizados nos últimos anos, sobretudo, os que se desdobram de parcerias público-privadas, como os programas “Escola Viva” e “Jovens de Futuro”. Para Haroldo Rocha, “quando olhamos o conjunto dos estados, muitos decresceram. É a prova de que aqui no Espírito Santo ocorreu algo diferenciado”. Assim, os resultados estaduais na pasta da educação culminaram com o noticiado convite feito ao então secretário estadual de educação para o cargo de Secretário Executivo do Ministério da Educação (MEC), entendido pelo governo como mais uma forma de valorização e reconhecimento do seu trabalho6.
Vale lembrar que, em nível local, foi constituída uma importante instituição que congrega várias empresas como Arcelor Mittal, Garoto, A Gazeta, Faculdades Privadas e outras, a ONG “Espírito Santo em ação”, para conduzir inúmeras políticas governamentais como a educação. Em 2002, essa instituição propôs ao governo os programas “Bolsa Sedu” e “Nossa Bolsa” para comprar vagas em cursos técnicos e de ensino superior, transferindo, regiamente, vultosos recursos para o mercado da educação. Tais iniciativas esvaziaram e mataram no nascedouro o projeto de criação de uma estrutura estadual de ensino técnico e de ensino superior.
EMPRESAS | VIGÊNCIA | VAGAS | MENSAL | TOTAL |
Centro Educacional Apogeu Eireli -ME | 13/07/2016-13/07/2018 | 760 | 586.051,20 | 14.065.228,80 |
Centro Educacional Técnico São Mateus Ltda. - ME | 29/06/2016 -27/06/2018 | 760 | 179.992,80 | 4.319.827,20 |
Escola Técnica De Saúde Do Espirito Santo S/S Ltda. - ETESES - EPP | 06/07/2016- 05/07/2018 | 760 | 289.584,00 | 6.950.016,00 |
Escola Técnica Premier Aracruz Ltda. - EPP | 06/07/2016- 05/07/2018 | 760 | 649.957,60 | 15.598.982,40 |
IDES - Instituto De Desenvolvimentos Educacionais & Serviços Ltda. | 28/06/2016 -28/06/2018 | 760 | 580.644,00 | 13.935.456,00 |
IESG-Instituto De Educação São Gabriel Da Palha Ltda. | 09/07/2016 -09/07/2018 | 760 | 317.052,00 | 7.609.248,00 |
TOTAL | 4560 | 2.603.281,60 | 187.778.758,40 |
Fonte: Elaborada pelos autores. Dados extraídos da base do Portal da Transparência.
Essas parcerias entre o governo estadual e os proprietários de empresas educacionais de formação profissional fazem da educação mercadoria e o serviço prestado à sociedade tende a ser esvaziado das questões que tangenciam a qualidade da educação em seus aspectos sociais e cognoscitivos. É notório, nesse processo, o objetivo de equilibrar lucros e interesses mercadológicos do setor empresarial e a afirmação positiva de um governo que vende a imagem de que se preocupa com a formação integral e integradora da juventude.
Temos também dados dos recursos repassados via programa “Nossa Bolsa”, criado em 2016, que concede bolsas de estudo de graduação presencial e a distância, bolsas de iniciação científica e bolsas de mestrado aos estudantes comprovadamente sem condição de custear seus estudos. Apenas no Edital 09/2016 da Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo (Fapes), o governo investiu o valor de R$ 7.380.000,00 (sete milhões, trezentos e oitenta mil reais) distribuídos em 200 bolsas. Nesse programa, o que nos chama a atenção é a negação de investimentos na criação de uma universidade estadual, tão solicitada pelos capixabas.
Nesse processo, o empresariamento da educação ganhou cada vez mais força e, aos poucos, e, sobretudo a partir de 2009, passou a atuar, incisiva e diretamente, no Plano de Desenvolvimento do Espírito Santo (2009-2025). Por conseguinte, isso permitiu a um grupo restrito de privilegiados estipular metas e estratégias para o estado, o que gerou uma roupagem privada com uma participação política qualificada nas diferentes instâncias de tomada de decisões públicas, promovendo os interesses de um grupo que faz valer seus interesses de classe.
Considerações finais
No estado do Espírito Santo há uma inversão de valores e papéis, em que a lógica de mercado dita as regras e as normas dos serviços educativos. A baixa qualidade do ensino, os resultados negativos frente às demandas impostas pelas organizações internacionais que instituíram os índices e o ranking das instituições educacionais em nível nacional e mundial também impuseram a necessidade de um modelo educacional que se mostrasse eficaz para a população. Esse modelo seria a privatização da prestação do serviço educativo como única forma de obter êxito nos resultados.
Entendemos que o empresariamento da educação permite o esvaziamento das atribuições do Estado, dado ao fato de que a gestão privada deixa de ser ideológica para assumir, criar e executar projetos públicos educacionais, uma vez que a interferência do setor privado se dá por dentro das escolas e dos sistemas de ensino, interferindo na gestão, na definição dos objetivos educacionais, na organização curricular, na formação docente e até mesmo no ensino.
Um governo que coloca a educação como uma mercadoria a serviço do capitalismo assume novos paradigmas, cuja compreensão de qualidade fere o princípio da oferta do direito a educação. A perspectiva neoliberal que o Estado impõe ao adotar esse modelo de gestão educacional revela que o governo atual do Espírito Santo implanta uma política pouco dialógica, institui projetos que desintegram o direito à Educação Básica e Profissional pública, integral e integradora e adota a perspectiva do gerencialismo, que prioriza a lógica de gestão mercadológica, empresarial e privatizante da educação.
Desse modo, governos estaduais que se esforçam para seguir os ditames do Banco Mundial, acabam focando numa melhora artificial da educação ao mesmo tempo em que reduzem investimentos estruturantes do direito. Alguns dados aqui delineados apontam que a combinação entre a austeridade e a focalização do ensino orientado para o desempenho escolar ao mesmo tempo em que projeta nacionalmente o governo do estado do Espírito Santo podem estar aprofundando características mercantis e antidemocráticas da educação. Nesse movimento que vai do gerencialismo ao empresariamento na prática, ao contrário do que aparenta, tende a esvaziar o sentido público da gestão, além de corroer as bases do direito a educação.