Introdução
As investigações recentes sobre a incidência de deficiência múltipla entre os estudantes brasileiros retratam os obstáculos em seu processo de escolarização e as potencialidades do trabalho pedagógico no contexto da política de inclusão escolar. A temática “deficiência múltipla” tem sido pouco estudada pelas pesquisas em Educação Especial, sendo necessário compartilhar uma definição comum para permitir o avanço das análises sobre o tema no Brasil (LEITE; GATTI, 2019; PEREIRA; OLIVEIRA; COSTA, 2021; ROCHA, 2014, 2018; CAMPOS, 2023). Importante mencionarmos que, com a epidemia do Zika Vírus que acometeu mulheres grávidas fortemente entre os anos de 2015 e 2016, tivemos o nascimento de inúmeras crianças com a Síndrome Congênita do Zika Vírus (SCZV) com deficiência múltipla severa (PLETSCH; SÁ; ROCHA, 2021; SÁ; PLETSCH, 2021).
Os dados de algumas investigações revelam que as práticas educativas e do sistema de apoio especializado têm sido insuficientes para atender às especificidades de aprendizagem desses alunos, sobretudo nos casos que demandam intervenções mais sistematizadas com comunicação alternativa que podem favorecer a participação educacional e social desses sujeitos, assim como a sua qualidade de vida (LIMA; ANDRADE; APARÍCIO, 2021; FREITAS; JACOB, 2019; AVELINO; FERRAZ, 2021). Há falta de formação e de conhecimento entre os profissionais da educação sobre as implicações da deficiência múltipla para a escolarização e de discussões sobre estratégias para que esses alunos participem das atividades e das práticas educativas (ROCHA; PLETSCH, 2018). Assim, a participação dos alunos com deficiência múltipla nas práticas educacionais é marcada pela precariedade das condições sociais e institucionais. Em pesquisa realizada por Maciver et al. (2019), a participação na escola significa participar não apenas das atividades em sala de aula, mas inclui eventos escolares, viagens, esportes, artes e relacionamentos com adultos e amizades com colegas. Souza e Dainez (2016) já haviam sinalizado para a necessidade de mediações que potencializem a participação desse aluno no contexto escolar.
Pesquisas revelam ainda que, no processo educacional de alunos com deficiência múltipla matriculados no Atendimento Educacional Especializado (AEE) oferecido em sala de recursos multifuncionais, por exemplo, há ausência de articulação com a classe comum (JACOB, 2017; PLETSCH, 2015; ROCHA, 2014, OLIVEIRA, 2018). Mostram, também, problemas para definir quem são esses sujeitos e quantos integram o sistema educacional, assim como revelam fragilidades nas propostas educativas e políticas mais articuladas entre os instrumentos públicos como educação, saúde e assistência social (NUNES; FERNANDES, 2018; PLETSCH; SÁ; MENDES, 2021).
Tomando essa realidade como pano de fundo, este artigo objetiva analisar os indicadores de matrículas de alunos com deficiência múltipla entre 1974 e 2021 e as orientações políticas para a educação dessa parcela da população.
Procedimentos metodológicos e éticos
Este artigo apresenta resultados de projetos que temos desenvolvido desde 2012 sobre a escolarização de pessoas com deficiência múltipla e, mais recentemente, com deficiência múltipla em decorrência da Síndrome Congênita do Zika Vírus. A investigação foi aprovada pelo Protocolo de Ética 135/2021, Processo nº 23083.031153/2019-40.
Em termos metodológicos, para este artigo realizamos uma pesquisa documental. Foram consultados documentos oficiais normativos e orientadores sobre o atendimento dos alunos designados público da Educação Especial, assim como levantamentos estatísticos em Educação no período de 1973 até 2021. As fontes documentais da Educação Especial publicadas entre 1973, ano de criação do Centro Nacional de Educação Especial (CENESP) e 2020 foram buscadas nos endereços eletrônicos do Ministério da Educação (MEC)2, do Programa de Legislação Educacional Integrada (PROLEI)3 - portal de legislação educacional suprimido -, do Portal da Legislação - Planalto4, e do Domínio Público5. A escolha por essas bases de dados eletrônicas deve-se ao fato de possibilitarem o acesso remoto a documentos legais e históricos, os quais muitos não estão disponíveis na forma física. O corpus de análise compõe-se por documentos que trazem definições ou menções à categoria deficiência múltipla.
O discurso sobre a deficiência múltipla na sociedade apresenta fragmentos dos textos educacionais (documentos oficiais, artigos científicos, publicações não acadêmicas, manuais etc.) e a elaboração dos documentos apresenta influências das forças sociais em disputa. A constituição discursiva da sociedade não emana de um livre jogo de ideias nas mentes humanas, mas, como uma prática social, está firmemente enraizada em estruturas sociais, materiais, concretas, orientando-se para elas (FAIRCLOUGH, 2001). Acerca dessas questões, procuramos considerar um intervalo de tempo maior entre os documentos que possibilitasse a incorporação de materiais publicados desde a década de 1970, momento em que a Educação Especial se estabeleceu como uma política pública de abrangência nacional (KASSAR; REBELO; JANNUZZI, 2019).
Posteriormente, foram selecionados e organizados indicadores de matrícula de alunos com deficiência múltipla dos levantamentos estatísticos da Educação, disponibilizados na página web do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep)6 e em suas publicações impressas. As estatísticas públicas relativas ao período de 1974 (ano do primeiro levantamento estatístico em Educação Especial, realizado pelo Serviço de Estatística do MEC) a 2021 foram obtidas por meio de resumo técnico e de Sinopses Estatísticas do Censo Escolar da Educação Básica. Consultamos o resumo técnico de 1974 e as Sinopses de 1988, de 2002 e de 2021. Devido à forma com que os dados estão agregados nas fontes estatísticas, no ano de 1988, foram apresentadas as matrículas por Ensino Regular (provavelmente em sua maioria em classes especiais) e por instituições especializadas (majoritariamente privado-assistenciais), assim como, em 2021, foram distinguidas matrículas em classes comuns e exclusivas (classes e escolas especiais).
Ao longo de sua história, as estatísticas definiram qualidades e características da humanidade em categorias populacionais. As características populacionais serviram como associações entre os grupos estatísticos de pessoas e os atributos de crianças em particular, embora previsões estatísticas não tenham, estritamente, qualquer poder preditivo sobre indivíduos (POPKEWITZ; LINDBLAD, 2016). O uso das estatísticas na avaliação em políticas públicas é arbitrário em determinados sentidos, por exemplo, quando sob os princípios da eficiência procura legitimar o corte de recursos e a descontinuidade de programas (JANNUZZI, 2020). Ao mesmo tempo, as estatísticas podem ser utilizadas para que se conheça as condições materiais e objetivas de vida da população, na proposição e na reivindicação por mudanças.
Para complementar nossa discussão sobre os aspectos conceituais e os processos educacionais presentes nas diretrizes oficiais para alunos com deficiência múltipla, também analisamos, sucintamente, os documentos que tratam das diretrizes políticas de Educação Especial, a saber: a) 1994 - Política Nacional de Educação Especial (BRASIL, 1994a); b) 1999 - Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (BRASIL, 1999); c) 2001 - Diretrizes Nacionais para Educação Especial na Educação Básica (BRASIL, 2001b); d) 2008 - Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2008); e f) 2020 - Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizagem ao Longo da Vida (BRASIL, 2020a).
Para discutirmos sobre nossos achados, organizamos os resultados em dois eixos: a) O público com deficiência múltipla nas políticas de Educação Especial; e b) Matrículas de alunos com deficiência múltipla na Educação Básica. Os resultados serão apresentados seguindo uma ordem cronológica de publicação dos documentos.
O público com deficiência múltipla nas políticas de Educação Especial
Em 1973, foi criado o Centro Nacional de Educação Especial (CENESP) na estrutura do MEC como um órgão diretivo para conduzir as políticas de Educação Especial no país (BRASIL, 1973). Naquele momento, o Governo brasileiro institucionalizou a atenção a populações com deficiência e outras necessidades educacionais nas escolas, o que incidiu sobre o planejamento de ações conjuntas a outros setores da administração pública, tendo em vista atender, entre outros, os alunos com deficiência múltipla.
Representando essa intenção, a Portaria Interministerial N° 186, de 10 de março de 1978, elaborada pelo MEC e pelo Ministério da Previdência e Assistência Social, estabeleceu que o atendimento educacional, “numa linha de ação preventiva e corretiva”, deveria ser organizado para diferentes “categorias e tipos de excepcionais”, entre elas, os “portadores de deficiência múltipla” descritos como “(...) alunos que apresentam deficiência em áreas diferentes, necessitando de métodos, recursos didáticos e equipamentos especiais para sua educação” (BRASIL, 1978, p. 2).
Na década de 1980, houve mudanças importantes na organização central da política de Educação Especial, decorrente da substituição do Governo Militar por um Governo eleito por voto indireto, o que se refletiu na extinção do CENESP, mas não em mudanças significativas em relação à política de Educação Especial, inclusive com a continuidade da atuação dos mesmos agentes políticos, ligados às instituições especializadas privado-filantrópicas (LANNA JUNIOR, 2010). Pouco antes da criação da Secretaria de Educação Especial que substituiria o CENESP, o MEC definiu e caracterizou a “clientela” do atendimento educacional prestado por órgãos ou por entidades públicas e particulares. Foi apresentada, entre outras categorias, os “portadores de deficiências múltiplas” como “(...) educandos que apresentam duas ou mais deficiências, necessitando de métodos, recursos didáticos e equipamentos especiais para sua educação” (BRASIL, 1986, p. 1), o que parece buscar condicionar esse grupo e uma educação especializada, alvo de uma área de conhecimento específica, com pouca relação com o ensino comum (NUNES, 2016).
Na década de 1990, ocorreram mudanças na gestão do Poder Executivo que levaram a descontinuidades nas políticas de Educação Especial. Nesse contexto, houve pressão de instituições privado-assistenciais sobre o GovernoFederal (APAE, 1991; ARNS, 1991). Assim, continuam em cena esses atores, por meio do texto da Política Nacional de Educação Especial (BRASIL, 1994a), promulgado no ano da Declaração de Salamanca, a qual anunciou a Educação Inclusiva (BRASIL, 1994b). Ainda assim, a Política de 1994 incorporou princípios difundidos pelos organismos internacionais, ao apontar a deficiência múltipla no contexto escolar como uma “necessidade educativa especial” (BRASIL, 1994a, p. 22-23), e a “(...) oferta de recursos pedagógicos adequados às necessidades dos portadores de deficiência múltipla” (BRASIL, 1994a, p. 51). No que diz respeito à Educação Inclusiva, a Secretaria de Educação Especial ainda tinha reservas, mantendo, na ocasião, o uso do termo “integração instrucional” no documento. Vejamos o que disse a Professora Rosita Edler Carvalho, Secretária de Educação Especial à época:
Temos estimulado a integração instrucional (portadores de necessidades especiais e ditos normais juntos, na mesma sala). Acreditamos que é possível e útil para ambos. Como as dificuldades são inúmeras e complexas, entendemos que trazer nossos alunos para as escolas públicas governamentais já é um grande avanço. Entretanto, há que agir com prudência, garantindo-se o êxito dos educandos e, principalmente, respeitando sua vontade (CARVALHO, 1993, p. 95).
Ainda em relação à deficiência múltipla, a Política Nacional de Educação Especial (BRASIL, 1994a, p. 15) dispõe que ela é a associação, no mesmo indivíduo, de “(...) duas ou mais deficiências primárias (mental/visual/auditiva/física), com comprometimentos que acarretam atrasos no desenvolvimento global e na capacidade adaptativa”. A ideia de associação de duas ou mais deficiências também permanece presente no Decreto Nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999, que dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (BRASIL, 1999). Em relação às necessidades educativas desses alunos, a Política Nacional de Educação Especial (BRASIL, 1994a, p. 15) sinaliza que seriam “(...) priorizadas e desenvolvidas através das habilidades básicas, nos aspectos social, de autoajuda e de comunicação”. Por sua vez, a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiêncianão faz menção específica aos alunos com deficiência múltipla, evidenciando uma generalização nas medidas e nas estratégias a serem adotadas para todo o público da Educação Especial, no que se refere aos processos educacionais (BRASIL, 1999).
Na eminência de uma mudança significativa no enfoque da política de Educação Especial empreendida pelo Governo brasileiro, que deixaria de atribuir um caráter predominantemente substitutivo a essa modalidade de ensino, para enfatizar o seu entendimento como serviço complementar/suplementar à escolarização comum no contraturno, no Parecer CNE/CEB Nº 17/2001 (BRASIL, 2001a) publicado durante o Governo de Fernando Henrique Cardoso, apresentou-se a ponderação de que:
Os indivíduos com deficiências, vistos como “doentes” e incapazes, sempre estiveram em situação de maior desvantagem, ocupando, no imaginário coletivo, a posição de alvos da caridade popular e da assistência social, e não de sujeitos de direitos sociais, entre os quais se inclui o direito à educação. Ainda hoje, constata-se a dificuldade de aceitação do diferente no seio familiar e social, principalmente do portador de deficiências múltiplas e graves, que na escolarização apresenta dificuldades acentuadas de aprendizagem. (BRASIL, 2001a, p. 7, grifo nosso).
Para alunos com deficiência múltipla, essas diretrizes políticas previam a organização de classes especiais. Dizia-se que esse espaço poderia ser utilizado principalmente em localidades onde não havia a oferta de escolas especiais quando se detectasse, nesses estudantes, “grande defasagem idade/série”, quando faltasse, ao aluno, “(...) experiências escolares anteriores, dificultando o desenvolvimento do currículo em classe comum” (BRASIL, 2001a, p. 25). O documento indicava que as escolas da rede regular de ensino deveriam prever e prover, na organização de suas classes comuns, “temporalidade flexível do ano letivo”, para atender às necessidades educacionais especiais de alunos com graves deficiências múltiplas, de forma que pudessem “(...) concluir em tempo maior o currículo previsto para a série/etapa escolar, principalmente nos anos finais do ensino fundamental, conforme estabelecido por normas dos sistemas de ensino, procurando-se evitar grande defasagem idade/série” (BRASIL, 2001a, p. 22).
Durante o Governo Luiz Inácio Lula da Silva, no material do Programa Educação Inclusiva: direito à diversidade, identificou-se a deficiência múltipla como a “(...) associação de duas ou mais deficiências primárias (mental/visual/auditiva/física), com comprometimentos que acarretam atrasos no desenvolvimento global e na capacidade adaptativa” (BRASIL, 2005, p. 16). Ao abordar a transição da “Educação Especial ao apoio educacional especializado” e as atribuições das escolas especiais, dizia-se que se vivia um momento de mudança, no qual as escolas especiais estariam relegadas a funções mais restritivas em relação ao papel que tiveram no passado recente.
O momento atual é de transição e de desenvolvimento de sistemas educacionais inclusivos em muitos países. Atualmente, em algumas nações, observa-se nas escolas especiais uma tendência para assumirem um duplo papel: escolarizar os aluno(a)s mais gravemente afetados e com múltiplas deficiências e que, em geral, não tiveram acesso à educação; atuar como centro de recursos de apoio à inclusão de alunos com deficiência e necessidades educacionais especiais, estendendo seus serviços educacionais às escolas comuns. (BRASIL, 2006, p. 157, grifo nosso).
Entretanto, na Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva - PNEEPEI (BRASIL, 2008), não se faz menção explícita à categoria deficiência múltipla, apresentando como público da Educação Especial os alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação. A não menção à deficiência múltipla na Política de 2008 dificulta a tomada de decisão para os gestores locais nos estados e nos municípios e contribui para a invisibilizar esses estudantes na escola (ROCHA; PLETSCH, 2015). É preciso ressaltar que a maioria desses estudantes demanda de suportes e de apoios mais intensivos e, em determinados casos, de intervenções com recursos específicos de Tecnologia Assistiva, como mencionado na introdução deste artigo. Isso acaba afetando a qualidade da escolarização desses alunos como sinalizado nos estudos de Rocha (2014, 2018) e Campos (2022). Além disso, a invisibilidade nos documentos oficiais pode provocar vazios de políticas públicas demandadas por esse grupo social. Por exemplo, no caso das crianças com deficiência múltipla em decorrência da SCZV, a questão da intersetorialidade, prevista na Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência - Lei N° 13.146, de 6 de julho de 2015 (BRASIL, 2015a) -, e na própria PNEEPEI (BRASIL, 2008), é central para o seu desenvolvimento e maior qualidade de vida (PLETSCH; ARAUJO; ROCHA, 2020; CAMPOS, 2022; ANTONIOLI, 2023).
Ainda sobre o conceito de deficiência múltipla, em conformidade com a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações Unidas (ONU, 2007) e da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (BRASIL, 2015a), o Censo Escolar da Educação Básica atualmente considera alunos com deficiência aqueles que têm impedimentos de longo prazo, de natureza física, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. Possui, entre outras, de acordo com o documento “A consolidação da inclusão escolar no Brasil”, a seguinte classificação: “(...) deficiência múltipla - definida pela associação, de dois ou mais tipos de deficiência (intelectual/visual/auditiva/física)” (BRASIL, 2016, p. 66).
Importante lembrarmos que, no Governo de Dilma Rousseff, em 2011, a Secretaria de Educação Especial foi extinta, sendo criado um setor na Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI) como pasta condutora das políticas para essa área. Em 2019, no Governo de Jair Bolsonaro, a Educação Especial passou a ser gerida pela Secretaria de Modalidades Especializadas de Educação (SEMESP). Como resultado da mudança de Governo, das diretrizes que guiariam a política educacional e da luta política mais ampla, ocorreram dois movimentos: na primeira alteração, há uma tentativa de incorporação da Educação Especial entre as demais políticas afirmativas de inclusão no campo dos Direitos Humanos; e, na segunda, há a intenção de delimitar a Educação Especial e a escolarização dos alunos com deficiência como modalidade especializada.
Em que pesem os avanços nacionais no âmbito dos direitos educacionais e sociais das pessoas com deficiência, com o Decreto Nº 10.502, de 30 de setembro de 2020 (BRASIL, 2020a), que instituiu a Política Nacional de Educação Especial (PNEE), intitulada “Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida”7, suspensa ao final de 2020 pelo Supremo Tribunal Federal e revogada em 2023 no Governo Lula, podemos observar um conjunto de retrocessos. Vejamos o que dizia a PNEE sobre o AEE em escolas públicas e em instituições especializadas privadas de caráter filantrópico:
O Centro de Atendimento Educacional Especializado - CAEE é o espaço público ou privado (incluídos os espaços conveniados) onde podem funcionar Serviços de Atendimento Educacional Especializado e Serviços de Atendimento Educacional Especializado Bilíngue de Surdos - SAEE-BS, com salas de recursos específicas ou multifuncionais, de acordo com as demandas identificadas. (...). O CAEE pode ter diversos formatos organizacionais, inclusive ser organizado por meio de consórcios de municípios. Pode, ainda, funcionar em parceria com instituições privadas ou sem fins lucrativos, com vistas a somar esforços e otimizar a acessibilidade nos deslocamentos de educandos que demandem um conjunto numeroso de serviços de atendimento educacional especializado, como oseducandos comdeficiências múltiplas. (BRASIL, 2020b, p. 67, grifo nosso).
Nesse documento, havia a sugestão de que os alunos com deficiência múltipla deveriam ser atendidos “(...) preferencialmente, num CAEE, visto que esses estabelecimentos reúnem especialistas das diversas áreas” (BRASIL, 2020b, p. 68), em parceria com instituições privadas ou sem fins lucrativos. Caso o sistema educacional local não disponibilizasse um CAEE, a equipe escolar e do AEE juntamente à família do aluno com múltiplas deficiências deveriam “(...) propiciar as melhores condições possíveis de atendimento às demandas específicas desse estudante, induzindo a rede de ensino a estabelecer um convênio na perspectiva intersetorial e colaborativa” (BRASIL, 2020b, p. 68). Dessa forma, responsabilizava-se a escola e, sobretudo, a família pelo atendimento intersetorial necessário para esses alunos. O papel da família foi sublinhado, ao argumentar que sua participação e seu protagonismo seriam “(...) determinantes para o sucesso do processo de ensino-aprendizagem desse estudante, tendo em vista os encaminhamentos a serem empreendidos” (BRASIL, 2020b, p. 68). Há, portanto, uma prevalência do papel das instituições especializadas e da família e uma secundarização das responsabilidades dos sistemas de ensino e de outros instrumentos públicos, como o setor da Saúde e da Assistência Social, em uma tentativa de que essa condição permaneça como uma questão da esfera privada e não pública (coletiva) e, portanto, foco de políticas públicas.
É importante frisarmos a tentativa de estabelecer-se um arco de história em benefício da atuação das instituições privado-assistenciais, da responsabilidade das famílias e da ausência de compromisso do Estado, sobretudo no atendimento dos alunos com deficiências graves/severas. Historicamente, a mudança da concepção médica para pedagógica da deficiência caracterizou um avanço por sistematizar um conhecimento que possibilitasse a essas crianças alguma forma de vida em sociedade. Contudo, a consequência foi que as crianças com deficiências mais graves e que não se sujeitaram ao processo disciplinar ou se tornaram capazes de garantir a sua própria manutenção foram confinadas, sob o auspício da ciência, no hospício8, “visto sua impossibilidade de educabilidade” (MÜLLER, 2000, p. 95).Em um determinado momento, foi dito que elas não se beneficiariam de um tratamento ou de uma educação (MÜLLER, 2000), cujo modelo era a reabilitação focada na deficiência e não nas possibilidades de desenvolvimento desses sujeitos. Esses argumentos são utilizados ainda hoje na defesa de escolas e de classes especiais por dentro das políticas públicas, ao dizer-se que alunos com deficiência múltipla não se beneficiam da escola comum.
Matrículas de alunos com deficiência múltipla na Educação Básica
Um maior dimensionamento foi dado à Educação Especial na década de 1970, com outras perspectivas se apresentando para atendimento aos “excepcionais”. A reforma do ensino por meio da Lei N° 5.692, de 11 de agosto de 1971 (BRASIL, 1971), trouxe o princípio da universalização do ensino de 1° grau para a faixa etária de 7 a 14 anos, que não poderia excluir dessa intenção esse grupo (LEMOS, 1981). Tanto que, entre 1974 e 2014, o número de matrículas de alunos da Educação Especial aumentou nove vezes, enquanto o número de matrículas da população em geral na Educação Básica aumentou apenas 2,67 vezes. Por sua vez, a proporção de matrículas de alunos da Educação Especial em relação ao total de matrículas na Educação Básica não chegou a 2% dos registros (REBELO; KASSAR, 2018).
Na Tabela 1, apresentamos o número dos alunos da Educação Especial, por tipo de deficiência no Brasil, disponibilizado no primeiro levantamento estatístico realizado pelo Serviço de Estatística do MEC e pelo CENESP, ainda durante o regime militar em 1974.
Total | Deficientes da visão | Deficientes da audição | Deficientes físicos | Deficientes mentais | Portador de deficiências múltiplas | Portador de problemas de conduta | Superdotados |
---|---|---|---|---|---|---|---|
88.453 | 3.082 | 6.442 | 7.330 | 58.719 | 4.630 | 8.202 | 48 |
Fonte: Elaborada pelas autoras com base em Brasil (1975).
A deficiência múltipla encontrava-se distante de figurar entre os maiores registros. Foram contabilizados 58.719 alunos com deficiência mental, 8.202 portadores de problemas de conduta, 7.330 com deficiência física, 6.442 com deficiência auditiva, 4.630 “portadores de deficiências múltiplas”, 3.082 com deficiência visual e 48 superdotados. Essas nomenclaturas seriam alteradas ao longo do tempo, sendo mantida a categoria deficiência múltipla nos levantamentos estatísticos posteriores.
Em resposta a uma maior atuação política dos movimentos de pessoas com deficiência que iria repercutir na Constituição Federal de 1988, em 1985, o Ministro da Educação entregou ao presidente José Sarney uma proposta de estudo sobre a Educação Especial no Brasil para a detecção de problemas e para a elaboração de propostas. O Presidente da República, por meio do Decreto N° 91.872, de 4 de novembro de 1985, instituiu o Comitê Nacional para Educação Especial, com o objetivo de traçar a política de ação conjunta para aprimorar a Educação Especial e integrar à sociedade as pessoas com deficiência, com problemas de conduta e superdotadas (BRASIL, 1985).
A secretaria executiva do Comitê à época era ocupada pela diretora-geral do CENESP. Nas primeiras reuniões do ano de 1986, o Comitê teve dificuldades em encontrar dados estatísticos sobre a incidência da deficiência no país. Não era possível quantificar o público-alvo da Educação Especial. “Essa dificuldade converteu-se em uma das ações propostas, que recomendava a realização de um censo sobre a deficiência no Brasil” (LANNA JUNIOR, 2010, p. 73). Para prosseguir com os trabalhos, o Comitê decidiu utilizar a média de incidência da deficiência calculada pela ONU, que previa, aproximadamente, 10% da população mundial com algum tipo de deficiência para países que não viviam situações de guerra e estabelecia a proporcionalidade por deficiência. A estimativa era a de que a deficiência múltipla correspondia a 1,3 milhão de pessoas (1% da população) (LANNA JUNIOR, 2010).
Ao final da década de 1980, foi realizado o levantamento da matrícula inicial de excepcionais no Ensino Regular e do número de excepcionais com atendimento educativo em instituição especializada (públicas e privadas), “por tipo de excepcionalidade”, como podemos visualizar na Tabela 2.
Total | Cegos | Parc. cegos | Surdos | Parc. surdos | Def. físicos | Def. mentais | Def. múltipla | Portador de problema de conduta | Super-dotados | Não Identifi-cados | Não Informa-dos | |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
ER | 78.322 | 1.255 | 1.451 | 8.412 | 2.114 | 3.858 | 54.729 | 2.066 | 2.198 | 190 | 1.962 | 87 |
IE | 101.201 | 2.014 | 1.583 | 8.656 | 2.568 | 5.046 | 14.785 | 61.792 | 4.726 | 31 | - | - |
Total geral | 179.523 | 3.269 | 3.034 | 17.068 | 4.682 | 8.904 | 69.514 | 63.858 | 6.924 | 221 | 1.962 | 87 |
Fonte: Elaborada pelas autoras com base nas Sinopses Estatísticas da Educação Básica do MEC/Inep de 1988 (BRASIL, 1991a, 1991b).
Legenda: ER: Ensino Regular; IE: instituição especializada; Parc.: Parcialmente; Def.: Deficientes/Deficiência.
Foram contabilizadas 78.322 matrículas de alunos “excepcionais” no Ensino Regular (provavelmente em sua maioria em classes especiais) e 101.201 em instituições especializadas (majoritariamente privado-assistenciais), totalizando 179.523 matrículas. A deficiência múltipla concentrava-se nas instituições especializadas (61.792 matrículas), enquanto a presença desse público no Ensino Regular era de 2.066 matrículas, quantidade ínfima se comparada às matrículas nos espaços exclusivos/segregados. Cerca de 96,7% das matrículas de alunos com deficiência múltipla pertenciam a espaços exclusivos, algo amplamente retratado pelas pesquisas em Educação Especial, sobretudo em relação à arbitrariedade dos critérios de encaminhamento para classes e escolas especiais (FERREIRA, 1992; KASSAR, 1999; TOREZAN; CAIADO, 1995). A deficiência múltipla correspondia a 35,6% do total de matrículas geral, percentual somente inferior ao de deficiência mental, o que mostra uma mudança em relação ao averiguado na década anterior, quando a deficiência múltipla ainda não figurava entre os maiores registros (BRASIL, 1975). Como podemos depreender considerando o Ensino Regular e as instituições especializadas em conjunto, em ordem decrescente, as “excepcionalidades” registradas foram deficiência mental, deficiência múltipla, surdez, deficiência física, problemas de conduta, surdez parcial, cegueira, cegueira parcial, não identificado, superdotação e não informado (Tabela 2).
Na Tabela 3, exibimos o número de matrículas de alunos portadores de necessidades educativas especiais, em escolas exclusivamente especializadas ou em classes especiais de escola regular, por tipo de necessidade educacional especial no início da década de 2000.
Total | Visual | Auditiva | Física | Mental | Múltipla | Altas habilidades/ superdotados | Portadores de condutas típicas | Outros |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
337.897 | 9.622 | 35.582 | 11.817 | 199.502 | 50.484 | 625 | 9.744 | 20.521 |
Fonte: Elaborada pelas autoras com base em Sinopse Estatística da Educação Básica (BRASIL, 2002).
Constavam 337.897 matrículas de alunos “portadores de necessidades educativas especiais”: 199.502 de alunos com deficiência mental, 50.484 com deficiência múltipla, 35.582 com deficiência auditiva, 20.521 com outras necessidades, 11.817 com deficiência física, 9.744 portadores de condutas típicas, 9.622 com deficiência visual e 625 com altas habilidades/superdotados.
Novamente, a deficiência múltipla aparece como a segunda necessidade educativa especial mais prevalente, enquanto a deficiência mental possui o maior registro entre as necessidades educativas especiais (BRASIL, 2002). Somente em 2015, o Inep abandonou o uso da categoria deficiência mental para adotar, oficialmente, a nomenclatura deficiência intelectual (BRASIL, 2015b). Por sempre figurar entre os maiores registros ao longo da história, a população com deficiência intelectual e múltipla carece de investigações que retratem as suas condições de escolarização, considerando aspectos mais amplos de suas condições de vida. O Censo Demográfico de 2010 mostrou que as pessoas com deficiência intelectual eram as que mais sofriam desvantagens nos indicadores sociais de acesso ao trabalho, à renda e à alfabetização, cotejando essa condição com as demais categorias de deficiência (LOPES; GONZALEZ; PRIETO, 2021; CBEE, 2021).
Quanto às matrículas da Educação Especial em classes comuns e classes exclusivas, por tipo de deficiência, transtorno global do desenvolvimento ou altas habilidades/superdotação, tem-se a subsequente distribuição em 2021. Atualmente, não há obrigatoriedade de laudo para o registro dos alunos com deficiência no Censo Escolar (BRASIL, 2014).
Total PAEE | Cegueira | Baixa visão | Surdez | DA | Surdoce-gueira | Deficiência física | Deficiência intelectual | DMúlt | Autismo | AH/ SD | |
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Classes comuns | 1.194.844 | 6.066 | 73.724 | 17.795 | 36.239 | 495 | 130.354 | 741.991 | 63.007 | 273.924 | 23.506 |
Classes exclusivas | 156.077 | 1.048 | 3.456 | 4.046 | 2.751 | 83 | 22.767 | 130.926 | 23.055 | 20.470 | 252 |
Total PAEE | 1.350.921 | 7.114 | 77.180 | 21.841 | 38.990 | 578 | 153.121 | 872.917 | 86.062 | 294.394 | 23.758 |
Fonte: Elaborada pelas autoras com base em Sinopse Estatística da Educação Básica (BRASIL, 2021).
PAEE: Público-alvo da Educação Especial; DA: Deficiência Auditiva; DMúlt.: Deficiência Múltipla; AH/SD: Altas Habilidades/Superdotação.
No Censo Escolar, o número de matrículas não designa, necessariamente, o número de alunos (BRASIL, 2021). Desde 2007, com a implantação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB), alunos que frequentam salas de recursos multifuncionais recebem dupla matrícula, como forma de incentivo às redes educacionais a aderirem à política implantada (REBELO; KASSAR, 2018). Na Tabela 4, estão descontadas as matrículas em AEE, contabilizando-se, somente, as matrículas em classes comuns e exclusivas (classes e escolas especiais).
No ano de 2021, havia 1.350.921 matrículas gerais (em classes comuns e exclusivas). Destas, 1.194.844 estavam nas classes comuns e 156.077 em classes exclusivas. Em outras palavras, cerca de 88% do geral das matrículas estava no ensino comum. No que se refere às categorias, no geral, foi registrado em ordem decrescente: deficiência intelectual, autismo, deficiência física, deficiência múltipla, baixa visão, deficiência auditiva, altas habilidades/superdotação, surdez, cegueira e surdocegueira. Em todas as categorias, o maior número de matrícula concentra-se nas classes comuns. Há 63.007 matrículas de estudantes com deficiência múltipla em classes comuns e 23.055 matrículas em classes exclusivas, totalizando 86.062 matrículas (Tabela 4).
No primeiro levantamento estatístico em 1974, a deficiência múltipla foi a quinta categoria mais registrada, em 1988 e 2002, foi a segunda e, em 2021, foi o quarto maior registro (BRASIL, 1975, 1991a, 1991b, 2002, 2021). Os levantamentos estatísticos registraram evolução nas matrículas de estudantes com deficiência múltipla na Educação Básica, de 4.630, em 1974, para 86.062, em 2021 (Tabelas 1 e 4), acompanhando a ampliação das matrículas de alunos público-alvo da Educação Especial, sobretudo nas classes comuns.
Apesar do aumento das matrículas entre 1974 e 2021, na atualidade, a dificuldade do acesso e da frequência desses estudantes às escolas prejudica a efetivação da escolarização; há práticas pedagógicas pouco sistematizadas e planejadas, bem como ausência de investimento em estratégias diferenciadas de ensino no ensino comum e nas classes especiais; falta articulação e trabalho colaborativo entre as docentes do ensino comum e da sala de recursos e o atendimento das especificidades de desenvolvimento dos alunos no processo de escolarização (ROCHA, 2018). Assim, é preciso pensarmos propostas sobre como os suportes e os apoios podem se constituir em instrumentos no desenvolvimento dos sujeitos, reconhecendo que, para a intersetorialidade das políticas públicas, a escola tem um papel fundamental como mecanismo de articulação, passível de potencializar as ações entre os setores para efetivar a inclusão educacional, social e melhorar as condições de vida desses alunos e suas famílias (ARAÚJO, 2021; SANTOS, 2021).
Recentemente, em atendimento às normas previstas na Lei Nº 13.709, de 14 de agosto de 2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais - LGPD), restringiu-se o acesso aos microdados do Censo Escolar da Educação Básica com a remoção do acesso a bases históricas (BRASIL, 2018), desconsiderando a necessidade de publicidade dos dados como informações de acesso público, nos termos da Lei N° 12.527, de 18 de novembro de 2011 (BRASIL, 2011) - Lei de Acesso à Informação. Apesar de se disponibilizar informações sobre o quantitativo de matrículas, de docentes e de turmas, elas estão agregadas em variáveis específicas, impedindo seu maior detalhamento e cotejamento. “Há um total de matrículas da educação especial incluídas, não podendo aferir em quais etapas/modalidades esses estudantes se encontram” (ABALF et al., 2022, p. 2), assim como há um total de matrículas exclusivas, sem distinção entre classe exclusiva ou escola exclusiva.
Considerações finais
Ao longo da história, permanece uma visão conservadora sobre como o poder público deve atender aos alunos com deficiência múltipla, pois predominantemente, a alternativa do Estado tem sido a de que esses estudantes se constituam como nicho de atuação das instituições privado-assistenciais segregadas. Essa visão é conservadora por optar pela não ampliação do direcionamento de recursos públicos a instituições e escolas públicas e pela manutenção do financiamento a instituições privado-assistenciais, que possuem histórico de atendimento a essa população desde o início do século XX (KASSAR, 1999). Os documentos educacionais, exceto a PNEEPEI que não menciona tais sujeitos de forma explícita (BRASIL, 2008), evidenciam essa preferência. No entanto, as estatísticas educacionais demonstram o contrário (BRASIL, 2021), quer dizer, que a população brasileira tem optado por matricular esses alunos nas escolas comuns, inclusive aquelas com a SCZV.
Em 1988, havia 61.792 matrículas de alunos com deficiência múltipla nas instituições especializadas (majoritariamente privado-assistenciais) e 2.066 no Ensino Regular (provavelmente em sua maioria em classes especiais) (Tabela 2). Em 2021, havia 63.007 matrículas de estudantes com deficiência múltipla nas classes comuns e 23.055 nas classes exclusivas (classes e escolas especiais) (Tabela 4), alterando completamente o quadro anterior de predominância da atuação das instituições especializadas sobre essa população, o que ocorre em relação a todo o público da Educação Especial.
A matrícula de alunos com deficiência múltipla em escolas comuns também tem sido observada no caso das crianças com a SCZV. Pesquisas indicam que essa escolha das famílias acaba favorecendo a participação da criança em atividades em casa e na escola, melhorando o desenvolvimento de sua funcionalidade, de sua inclusão educacional e social. Além disso, acaba contribuindo para a melhoria da qualidade de vida e do bem-estar da criança e de suas famílias (SÁ; PLETSCH, 2021).
Tais constatações podem ser realizadas a partir de dados de acesso público, esforço de técnicos, de pesquisadores e da população do país, que financia o levantamento das estatísticas públicas por meio do recolhimento de impostos. As alterações na publicização dos dados do Censo Escolar interrompem um ciclo virtuoso na disponibilização de estatísticas públicas e de análise pelos pesquisadores em Educação, que, na área da Educação Especial nos últimos dez anos, se consolidou sob a forma de projetos conjuntos entre as universidades e o Inep (MELETTI; GONÇALVES, 2021; CBEE, 2021). Os prejuízos decorrentes dessa descontinuidade atingem a produção do conhecimento sobre as condições de escolarização do público da Educação Especial, entre os quais os alunos com deficiência múltipla consistem em uma importante e crescente parcela.
Descontinuidades como esta, levam a questionar se efetivamente, em todos os governos, ao longo desses 50 anos desde a criação do CENESP, os grupos de trabalho para formular as políticas de Educação Especial foram constituídos por professores que atuavam diretamente com esses estudantes.
Entendemos ter contribuído ao privilegiar fontes documentais pouco abordadas pela literatura na área da Educação Especial, com foco na deficiência múltipla, público por vezes invisibilizado nas políticas educacionais. A análise aprofundada dessas fontes em estudos futuros, que complementem os resultados desta pesquisa, pode vir a ampliar o conhecimento sobre a presença desses alunos nas escolas públicas e instituições especializadas brasileiras e subsidiar a implementação de políticas públicas para essa população.