Introdução
Trata-se, aqui, de um breve ensaio, exploratório e incipiente, que propõe a articulação entre corpo humano e corpo animal, tanto no sentido de retomar (para tentar desfazer) a “eterna” polaridade natureza-cultura (RIBEIRO, 2003; DESCOLA, 2016), quanto na direção de se fazer mais perguntas, propor algumas cenas e costurar dadas leituras que nos permitam “abrir os olhos” para novos caminhos investigativos1 - visto que, embora um de nós tenha estudado algumas questões sobre o corpo (humano) e explorado alguns aspectos (de forma mais tangencial) acerca da biopolítica (como, por exemplo, em SANTOS, 1997; 1998; 2002; 2006; 2012; 2017; SANTOS; RIBEIRO, 2011; SANTOS; ZAGO, 2013; SANTOS; MANSKE, 2015), nossa aproximação com o tema “animalidade” é bastante recente - um dos efeitos da pandemia de Covid-19.
Aproximamo-nos deste tema da animalidade (que articula, para além do que conhecemos como “temas da biologia”, outros campos do saber, como antropologia, filosofia, sociologia, arte, ética, literatura, entre outros) a partir da leitura de alguns textos de antropologia (SORDI, 2016; SEGATA, 2016; BEVILACQUA, 2019; DESCOLA, 2020; FAUSTO, 2020; KÉCK, 20202), mas
com o olhar voltado para a Biologia. Mais exatamente, nos perguntando como essa área do conhecimento, mais especialmente, no que tange ao ensino de ciências e de biologia3, poderia articular esse tema da animalidade (advindo da forma como outras áreas, como antropologia e literatura, a vem tratando) como uma forma de tensionar não apenas as usuais e já criticadas formas de se ensinar aspectos ligados à “utilidade dos animais” e dos seres vivos em geral (SANTOS, 2000), mas, sobretudo, abrir outras formas de ver e de agir sobre/com os animais e “a natureza”. Nesta direção, talvez as perguntas pudessem seguir, como um tipo de agenda de pesquisa desde o campo da educação ou do ensino de ciências e de biologia, aquelas apresentadas no Editorial do dossiê Zooantropologías - a questão animal, da Revista Tábula Rasa:
qual é o lugar do animal na teoria social contemporânea? (...) Como as práticas sociais e culturais emergem de relações entre múltiplas espécies? Que histórias das redes do capital levaram à extinção de formas de vida animal e à instauração de novos cenários de precariedade? Que perguntas são pertinentes para levar a cabo uma investigação social que considere relevante a capacidade de resposta dos animais? (...) Que práticas de cuidado e formas de obrigação (ético-políticas) são pertinentes para um mundo em processo de extinção? (CAJIGAS-ROTUNDO; MONTENEGRO; MARTÍNEZ, 2019, p.13).
Essas são algumas das perguntas possíveis de se fazer quando se começa a repensar as relações com o mundo vivo, especialmente, nossa relação com os animais mais próximos, sejam os de estimação (SEGATA, 2016), sejam aqueles que empregamos em nossa alimentação (SORDI, 2016), sejam aqueles que admiramos e queremos preservar (BEVILACQUA, 2019) ou aqueles “considerados feios, nojentos, escorregadios, transmissores de doenças, perigosos, venenosos, sujos, etc. [que] dificilmente são considerados ‘dignos’ de sobreviverem” (como as “aranhas, escorpiões, piolhos, baratas, vermes, cobras, sapos, lagartixas, tubarões, morcegos, entre vários outros animais”) (SANTOS, 2000) e, no limite, deveriam ser eliminados (FAUSTO, 2020).
A crônica de Carlos Drummond de Andrade (1979)4, empregada para problematizar a referida crítica ao ensino sobre “a utilidade dos animais” (SANTOS, 2000) faz menção a um tipo de prática bastante comum quando se fala(va) acerca dos animais, das plantas ou da natureza, sobretudo, nos anos iniciais de ensino. Talvez tal prática esteja - felizmente - ficando no passado, em razão, por exemplo, da forma como os livros didáticos passaram a ser analisados no Programa Nacional do Livro Didático, bem como da formação de professores e professoras de Pedagogia, Ciências e Biologia numa perspectiva mais crítica, em relação à articulação natureza e/versus cultura. Contudo, sob a discussão mais recente acerca da animalidade, tal crítica ganha novos contornos e novos aportes, a partir de diferentes tipos de pertencimentos teóricos, os quais têm em comum uma valorização das diferentes formas de vida em relação ao “homem” (do humano) e suas ações sobre os seres vivos, a natureza, a paisagem, etc., acionando, para tanto, dimensões éticas, jurídicas, políticas, econômicas, entre outras, de forma articulada. Trata-se, portanto, de um tema importante e que coloca em xeque as visões de natureza, de animal, de humanidade, entre outras, como a questão ética e seus múltiplos desdobramentos (uso de animais em laboratórios, criadouros, como pets, para alimentação, como recreação, etc.).
Cabe ressalvar que, apesar de destacarmos tal interesse em perscrutar e articular esse tema em relação à biologia, não se trata de explorarmos o tema animalidade desde o lugar da biologia per se, que seria, “por natureza” também o “lugar da natureza do corpo”5, ou seja, daquilo que nos aproxima(ria) do animal, que nos igualaria em certo sentido, e, no limite, daquilo que, para nos tornarmos seres de cultura, viramos as costas (SELIGMAN-SILVA, 2010; DESCOLA, 2016; SIBILIA, 2015). Trata-se, antes, de estabelecer uma escuta sensível às possíveis pontes teórico-metodológicas que poderíamos explorar, desde as provocações literárias (“a literatura [como] essa ‘pesquisa’ sobre o humano que se dá via mergulho no nosso ser animal”, SELIGMAN-SILVA, 2010, p. 208) feitas, por exemplo, por Maciel (2016) e Seligman- Silva (2010) neste primeiro momento de aproximação ao tema, e aqui apresentadas no sentido de pensarmos caminhos possíveis para o estudo da relação humanidade-animalidade / corpo humano-corpo animal.
Comecemos, então, com Maria Esther Maciel (2016), que, logo no início de livro Literatura e Animalidade, expõe que
os animais, sob o olhar humano, são signos vivos daquilo que sempre escapa a nossa compreensão. Radicalmente outros, mas também nossos semelhantes, distantes e próximos de nós, eles nos fascinam ao mesmo tempo em que nos assombram e desafiam nossa razão. Temidos, subjugados, amados, marginalizados, admirados, confinados, comidos, torturados, classificados, humanizados, eles não se deixam, paradoxalmente, capturar em sua alteridade radical. Como diz John Berger, ‘quanto mais julgamos saber sobre eles (...), mais distantes eles ficam’. Essa estranheza, por outro lado, provoca o lado animal que trazemos dentro de nós (p. 13).
Mais do que pensar o como tais articulações poderiam ser realizadas com a biologia em si e com o ensino de ciências e de biologia em particular6, o percurso acerca da animalidade nos faz retomar outro campo de discussão - mesmo que, novamente, de modo superficial
-, qual seja, aquele acerca do corpo e da biopolítica (SANTOS, 2002; SANTOS; ZAGO, 2013; SANTOS; MANSKE, 2015; SANTOS, 2017) e no qual faz sentido a pergunta tomada como título deste texto: “o que a importância dada aos animais nos revela sobre as pessoas?” (MACIEL, 2016, p. 63)7. A ideia de revelar, contudo, não significa a revelação de uma verdade, de algo supostamente escondido e tornado visível por algum tipo de análise, mas na direção de dar a ver, de perspectivar uma possível chave interpretativa para a importância dada a alguns animais e a alguns animais humanos em detrimento de outros.
É precisamente esta relação eu - semelhante ou corpo humano - corpo animal que gostaríamos de esboçar aqui (mais na forma de perguntas ou insinuações/justaposições do que de respostas), no sentido de estabelecer como a emergência deste campo acerca dos estudos denominados de animalidade nos permite pensar este outro como uma forma de tratarmos a nós mesmos e aos nossos outros (humanos) semelhantes. Nesta direção, é produtivo retomar as considerações de Márcio Seligman-Silva (2010) acerca de como Kafka abriu um espaço tão privilegiado para os animais em seus textos, como uma forma de poder “pensar melhor no próprio animal-humano” que, como um homem do século XX (mas também deste conturbado início do XXI), “não se sente em casa nem no próprio corpo” (...) “a um passo do ser-animal” (p. 205), a outro passo de precisar domar a “vida-natural” (zoe), a “vida nua” (p. 207), pois,
ao tratar da vida animal, Kafka toca na crise da soberania e da nossa autoimagem. Essas duas crises se lhe aparecem como paralelas. Ele mostra o animal em nós, como Freud e, antes dele, Darwin o fizera. Ele mostra um poder amorfo, teoricamente o monopolizador da violência, que tenta gerir essa vida nua que lhe escapa (p. 207).
Esse animal em nós, nossa animalidade, nosso corpo, nossa matéria biológica comum situa a distância e a proximidade, o contágio, a contaminação, a “aproximação perigosa” entre o corpo humano e o corpo animal no âmbito do mundo da racionalidade - científica, talvez possamos afirmar! E, ao mesmo tempo vida humana e vida animal, ou corpo humano e corpo animal, se reúnem sob uma mesma pergunta balizadora e problematizadora que está no centro das questões biopolíticas envolvendo humanos (entre si) e não-humanos: “who lives and who dies, and how, in this kinship rather than one?” (HARAWAY, 2016). Essa pergunta, que traduzimos mais livremente aos nossos propósitos como “quem pode viver e quem pode morrer, como e em nome de que(m)?”, foi enunciada por Donna Haraway8 (op. cit.) e “mistura”, por assim dizer, vários domínios (moral, ético, religioso, jurídico, biológico, econômico, social, ambiental, biopolítico, entre outros) e diferentes práticas (aqui apresentadas na forma de alguns verbos: comer; caçar; preservar; criar; ajudar; matar; cuidar; prender; estudar; expurgar; pelar; controlar; empacotar; migrar; fugir; pedir; entre outros).
Em outras palavras, isso envolve discutir como se trata a vida de pessoas, crianças (como, a seguir, discutiremos), animais (“úteis” e “não úteis”), bem como outras formas de vida como “coisas”. “Coisas” que podem, no limite, ser “empacotadas”, deslocadas e comercializadas (inteiras ou em partes, como diferentes commodities) ou traficadas (BONE, BLAISE, 2015) e, por outro, por exemplo, a ascensão de certos animais ao status de pessoas “não-humanas” (como a chimpanzé Cecília e a orangotanga Sandra - BEVILACQUA, 2019), bem como de animais (pets) ou plantas “domésticas”, “ornamentais” ou de interesse agronômico a ocuparem lugar de destaque (em termos de sentimentos, ética, economia, religião, etc.) (ALMEIDA, 2016) - e de direitos - entre os humanos (LOURENÇO, 2019; DESCOLA, 2020; 2016). Assim, por um lado, extração, supressão e negação de diretos, e, por outro, extensão de direitos, até há pouco, atribuíveis apenas a determinados tipos de humanos (proteção, alimentação, habitação, ambientação e vida dignas de serem vividas - por vezes, e talvez na maioria das vezes, negadas a muitos outros humanos e, na maior parte e, na maior parte das vezes, a outras formas e vida.
Invisibilizar (desnomear), empacotar, processar...
Tendo feito esta brevíssima introdução ao tema, apresentamos algumas derivações a partir de um texto pós-humanista, no mínimo, intrigante - An uneasy assemblage: prisoners, animals, asylum-seeking children and posthuman packing (livremente traduzido como Uma aglomeração inquieta: prisioneiros, animais, crianças requerentes de asilo e empacotamento pós- humano), de Jane Bone (Monash University, Australia) e Mindy Blaise (College of Education, Victoria University, Australia, 2015). Isso porque, seguindo o que foi dito anteriormente, podemos ver um certo paralelo em se tornar um “pacote”/“embalagem” e ser tratado como um animal - ao menos, algumas parcelas da população, talvez a maioria da população, ou talvez a população inteira de um país, quando nas mãos de um governo voltado ao ódio e à morte (MBEMBE, 2018).
O que poderia significar, então, ser empacotado, comodificado (isto é, transformado em commodities) e desumanizado/desanimalizado? Tal como sugerido por Bone e Blaise (2015), “uma vez embaladas/empacotadas, certas experiências tornam-se normalizadas e a (re) embalagem de pessoas e animais se prolifera, permitindo novas iterações” (p. 18). Então, como normalizamos o empacotamento de certos animais e de certos humanos animalizados/quase- animais? Como eles, ao serem empacotados, “somem” de nossa visão, de nossas perguntas, de nossos cotidianos?
As autoras apresentam a imagem icônica de seres humanos empacotados/embalados9 ao mostrarem a fotografia de, pelo menos, dez prisioneiros ajoelhados e com as mãos amarradas, na Baía de Guantánamo, “supervisionados” por dois homens jovens (soldados), fardados (com roupas com estampa característica de camuflagem militar), em pé. Os seres humanos amarrados e ajoelhados (sete à esquerda e três à direita) estão virados para as telas de arame da cela/cercado/curral, a céu aberto, usando vestimentas/embalagens cor de laranja (calça, camisa, máscara e toca): “(...) eles foram embalados em roupas especiais, algemados e mascarados, para remover vestígios de sua humanidade. A embalagem, é claro, torna o abuso mais fácil” (BONE; BLAISE, 2015, p. 19). De acordo com as autoras, a imagem (que é vista desde a perspectiva do fotógrafo, como alguém que está do lado de fora e olha para os que estão lá dentro, acentuada pela trama da tela - na forma de um losango - desfocada no primeiro plano) de um ser humano empacotado/embalado “provocou a reflexão sobre o empacotamento como meio de mercantilização e reducionismo que começa a formar uma barreira entre pensar sobre a vida ser senciente como qualquer outra coisa que não seja um objeto ou coisa” (ibid., p. 19). E elas também fornecem algumas definições para um pacote (entre as quais, “um objeto embrulhado ou embalado” e “um contêiner” - com comida ou mercadoria - prontos para o transporte, ou para o movimento forçado, e para serem recebidos facilmente por alguém).
Mais duas formas de empacotamento: refugiados e gado; transporte de humanos e transporte de animais não-humanos, vivos, para virarem comida de outros animais (humanos e, talvez, seus pets). A biopolítica (FOUCAULT, 1999, 2008) ou a necropolítica (MBEMBE, 2018, 2020) - que Kohan (2020) define muito bem como “um dispositivo de governo para fazer morrer e não deixar viver” (p. 3) - que os une, passa pelo processo de empacotamento. Empacotados, longe de nossa visão, tornam-se, de certo modo, mais “humanizados” ou, antes, humanizam nosso olhar (nossa cegueira do olhar). Bone e Blaise (op. cit.) continuam, referindo que “refugiados e pessoas em busca de asilo, incluindo menores (crianças) desacompanhados, quem chega à Austrália pelo mar, são coletiva e coloquialmente conhecidos como “boat people” (pessoal do barco) (p. 20). Assim, “embalados em barcos, que são frequentemente inseguros e indignos de navegar”, tais pessoas deixam seus países, após aguardarem em uma lista de espera para ingressarem no programa de refugiados da Austrália (p. 20-21). Porém, elas não ingressam na Austrália, tampouco desfrutam das promessas de uma nova vida em um país supostamente (ou alegadamente) melhor do que o delas ao pagarem “contrabandistas de pessoas” para colocá-las (sem visto) em barcos. Antes, elas perdem seus laços (deixados em razão da guerra, da fome, da pobreza, da violência, etc.) e se tornam “não- cidadãos ilegais”, sendo “reembalados como ‘ilegais’ e colocados em centros de detenção” (p. 21) fora da Austrália (conforme define a política de governo australiana), em Papua Nova- Guiné para processamento e, se considerado refugiado, para estabelecimento. Isso tanto para mulheres, quanto para crianças. Na sequência, as autoras compõem uma narrativa acerca do que se sabe sobre crianças que viajam sozinhas e que solicitam asilo como refugiados. Elas não lhe atribuem nome, pois crianças que chegam à Austrália como requisitantes de asilo não são nomeadas nas comunicações oficiais:
Esta criança não sabe, mas foi oferecido a ela um ‘pacote de viagem’ para a Ilha de Manus. Poderia ter sido a Malásia, mas o destino mudou para esta pequena ilha do Pacífico. Esta criança pode estar esperançosa ou assustada, ela pode gostar de ler, correr ou jogar futebol, mas o público australiano não sabe disso, uma vez que as pessoas em barcos que tentam entrar na Austrália ficam rapidamente invisíveis. O menino de sete anos que estava desacompanhado em sua jornada para a Austrália, não tem nome e é anônimo. Não há um ‘rosto’ para o público australiano poder ver. O que se sabe é que ele (geralmente ele) deixou o Afeganistão, seus amigos e sua família e fez o seu caminho para um porto. Ele então fez a longa e árdua jornada através do mar em um barco com destino à Austrália. Alguém pagou a viagem e os contrabandistas providenciaram o resto. Uma vez na Austrália, ele será reembalado e enviado para outro lugar. É provável que sua infância se passe em um campo de detenção sem família ou educação adequada. O local onde a criança será detida é superlotado e as condições são anti-higiênicas. Em alguns casos, as crianças são detidas deliberadamente em condições severas ou humilhantes como uma estratégia para encorajá-los a sair e voltar para ‘casa’. Assim que a criança tiver sido removida da Austrália, presume-se que ela foi processada com sucesso” (BONE, BLAISE, 2015, p. 21 - destaques nossos).
Tornar invisível (não atribuindo um nome), (re)embalar e processar são ações que, usualmente, reputamos aos animais que comemos, que perdem suas formas de bicho e adquirem as de cortes (nobres, premium ou menos valorizados)10 ou, mais recentemente, de cortes descartáveis (como sobras, tripas e ossos) e que, no Brasil de hoje, passaram a ser consumidos mais recorrentemente e vêm estampando manchetes de diferentes jornais11. Por outro lado, alguns animais de corte ganham nomes específicos (de suas raças ou de suas fazendas de origem), rótulos e embalagens selando a certificação de origem12.
As autoras (Bone e Blaise, 2015) também mencionam um documentário realizado pela Anistia Internacional, em 2010, que “tentou reempacotar” a suposta jornada (ficcional e típica) de um destes meninos que solicitam asilo na Austrália, como alguém que merece nome (Rajeed) e identidade. E é exatamente um nome e uma identidade (de raça e de lugar) que são atribuídos a um boi de corte que também será empacotado/embalado em um navio:
Bill nasceu nos Territórios do Norte da Austrália e esta história é sobre sua jornada para um lugar distante. Como seus parentes, Bill é um touro brâmane gentil, com pelagem fulva, orelhas longas e inquiridoras, mas com olhos resignados. Nada disso salvará Bill. Ele é embalado em um barco e enviado para o exterior como parte do comércio de exportação de animais vivos. Ele faz a longa e árdua jornada através do mar e, uma vez lá, ele é mantido em um pasto com milhões de outros bois. Então, ele é enviado para um matadouro aprovado pela Meat and Livestock Australia, onde nenhum mecanismo de atordoamento é usado. Em vez disso, ele é colocado em um aparelho projetado e fornecido pelo Meat e Livestock Australia. Isso deixa Bill deitado de lado e, uma vez lá, e lutando, talvez com uma perna quebrada, desorientado e angustiado, ele é chutado no rosto e lavado com mangueira antes que sua garganta seja cortada. A morte, no caso dele, é misericordiosa. Neste ponto, Bill foi satisfatoriamente ‘processado’ (BONE, BLAISE, 2015, p. 22).
Como destacam as autoras, nem a atribuição do nome, nem a identificação de raça ou de lugar, e tampouco sua história, salvaram Bill de seu “destino”. Contudo, “...dar nome é instituir um sujeito” (MACIEL, 2016, p. 64) e foi esta estratégia, de individualização, que adotou a Animals Australia13 “para encorajar um sentimento de empatia pelo gado envolvido neste comércio [de animais vivos]” (BONE; BLAISE, 2015, p. 22). Dar um nome a um boi, dar nome aos nossos animais domésticos (nossas espécies companheiras), dar/resgatar o nome de Alan Kurdi14, o menino sírio cujas fotos de seu afogamento numa praia da Turquia correram o mundo, após o afundamento do barco em que seus pais tentavam cruzar o Mediterrâneo em busca de um “destino melhor” na Europa, fazem, guardadas as proporções entre animais humanos e não-humanos, parte de uma mesma estratégia de resistência - se é que a pornografia (isto é, o excesso) de imagens que vemos diariamente nos permite refletir - que faz frente à insistência da “vida nua”. Embora, ao nosso ver, se trate mais do que “apenas” “vida nua”, na medida em que há projetos/racionalidades necropolíticas em jogo, cujo fim não é fazer viver a todos, mas de escolha de certos modelos, usualmente vistos como “apenas” econômicos, de destituição de vida, de esgotamento e usurpação do que sobra de vida nestes corpos, passíveis de extração de alguma forma de produto que se converta em commodities, em lucro. Mais uma vez, tal como propõem Bone e Blaise (2015),
a análise de pessoas e animais como um produto é perturbadora, mas necessária, pois é assim que eles são embalados”. (...) Para a exportação de vivos funcionar e para a movimentação de problemas e de corpos do centro para a periferia, a entidade envolvida (o prisioneiro, a criança, o animal) deve passar por uma transformação (...). Quando (re)embalado como refugiado ou requerente de asilo, a identidade do ser humano é apagada: o pessoal que chega ilegalmente de barco não tem permissão para falar, ser fotografado, entrevistado ou nomeado, mesmo na morte (...). Parte do nosso argumento aqui é que, por causa dessa reembalagem, o público está se tornando insensível para exportar vivos em todas as suas formas”. (...) Essa forma de lidar com pessoas e animais vai além de sua mercantilização (comodificação), porque eles desaparecem, eles são apagados. O único sinal de sua existência que permanece é como um número ou uma estatística que acabará por contribuir para um gráfico em um relatório oficial dentro da ‘máquina giratória/[processadora]’ (Braidotti, 2013: 58) do capitalismo avançado. (BONE; BLAISE, 2015, p. 23-24)
Este outro, animal ou animal-humano, nas operações de diferenciação (ver BRAH, 2006), torna-se sempre um menos, menos-humano/quase-animal. Enfim, como refere Braidotti (2013 apud BONE; BLAISE, 2015, p. 24), “como corpos descartáveis. Somos todos humanos, mas alguns de nós são apenas mais mortais do que outros”, ou, talvez, devêssemos dizer mais “matáveis” do que outros, ou, ainda, cujas vidas importam menos do que as de outros. Embalar/ empacotar, então, é uma forma de tornar tudo distante, sem nome, sem lugar, sem história, enfim, em um referente ausente (ADAM, 2010, citado por BONE; BLAISE, 2015): a carne sem o boi; a criança sem seus vínculos; o adulto sem sua língua, seu contexto cultural. Conforme elas referem, seguindo autores pós-humanistas, como Cary Wolfe, Karen Barad e Donna Haraway, que recusam a ideia de uma divisão natural entre natureza e cultura e que reiteradamente questionam como essa divisão surgiu, “não estamos argumentando que as pessoas precisam se preocupar mais com os animais do que com outros humanos. Nosso argumento é que a forma como tratamos o outro, incluindo o animal ou mais especialmente o animal, muito rapidamente se amplia para abranger os membros mais vulneráveis da sociedade” (BONE; BLAISE, 2015, p. 25-26).
Desempacotar/desembalar algumas coisas
As análises de Bone e Blaise (2015), apresentadas na seção anterior, nos permitem fazer algumas perguntas sobre a forma como vimos empacotando muitas coisas em nossos cotidianos, em nossas cidades, em nosso país - apenas para ficarmos no “mais local”, a despeito da vastidão geográfica, social, cultural e de vidas envolvidas. Será mesmo que o empacotamento é uma forma de tornar a existência de alguns (mais) “vivível” frente às realidades (da desigualdade, do racismo, da indiferença, da pobreza, da desvalorização daquilo que é público ou mesmo humano) de outros humanos quase-animais e de animais quase-humanos? Que tipos de cegueira, ou de efeitos ópticos, nos permitem empacotar (e não sentir como quase-humano como nós) o outro (mais) animalizado (porque está na rua, de pés no chão, nos pedindo comida, sem banho tomado, etc.) e, por vezes, desempacotar (e nos sentir como quase-animal) o outro (mais) humanizado (porque está se tornando parte de nossas casas, porque nos olha com olhos que parecem nos entender, porque sente frio e fome como nós, porque nos faz companhia sem pedir muitas coisas, etc.)?
E se fossemos todos cegos, cegos porque não queremos ver? Como já disse José Saramago, nós estamos realmente todos cegos: cegos da razão, cegos da sensibilidade15. Talvez nossa cegueira, caracterizada pelo processamento e empacotamento de um outro seja uma estratégia desumana de sobrevivência humana (da humanidade que atribuímos a nós mesmos), uma vez que desumaniza alguns para humanizar outros ou para manter alguma humanidade frente a dadas ameaças de sua perda em nossos corpos, aproximando-nos de nossa própria (e fugidia) animalidade - daquilo que podemos ver como perda de nossa humanidade, mesmo que às expensas da desumanização de outros ou da ascensão de alguns corpos-animais a quase-humanos ou mais humanizados que os animais humanos.
Então, mesmo que operando em torno das oposições que forjamos entre animal- humano/natureza-cultura, a fim de nos diferenciarmos, em sempre adiadas operações de diferenciação (de diferir), não pretendemos sugerir uma análise de oposições binárias, de colocar de um lado humanos e de outro, animais, de um lado cultura e de outro, natureza.
Buscamos, pelo contrário, ao ingressar no tema das animalidades, falar de extensões, daquilo que nos liga, mistura, conecta e faz pensar de outro modo. E foi nesta direção que procuramos fazer algumas insinuações/justaposições de respostas em relação a, pelo menos, três das perguntas que levantamos neste ensaio: o que a importância dada aos animais pode nos revelar sobre as pessoas? De que forma tal debate pode contribuir na despolarização natureza- cultura? E como se pode esboçar um caminho investigativo, desde o campo da educação (e mais particularmente dos estudos culturais em educação16), para a articulação corpo-animalidade assentados na biopolítica? São perguntas para as quais, tal como referimos, apenas insinuamos algumas respostas provisórias, mas que, ao mesmo tempo, parecem constituir um possível programa de pesquisa, com múltiplas articulações, e orientado - em nosso caso - desde o campo da biologia e da formação de professores de ciências e de biologia.
Por fim, voltando às considerações de Bone e Blaise (2015), e pensando nas formas de processamento e de empacotamento que nos acometem cotidianamente, como certos tipos de brasileiros, diríamos que, mesmo que a embalagem torne “o abuso mais fácil” e que, “empacotados, longe de nossa visão”, ou disfarçados sob dados efeitos ópticos, tornem-se, de certo modo, mais “humanizados” ou, antes, humanizem nosso olhar, nem os animais-humanos e nem os não-humanos somem de nossa visão... Se estamos todos cegos é porque, de certo modo, queremos permanecer nessa condição. Pois, certamente, esses outros não somem! A materialidade de seus corpos animais e animais-humanos nos confrontam e nos posicionam no tempo e no espaço de nossas cidades.
No Brasil, além dos porões dos navios negreiros (atualizados em contêineres para transporte de mercadorias, por vezes de animais-humanos) talvez também possamos dizer que o empacotamento se deu nas práticas higienistas de limpeza das cidades (praticadas, pelo menos, desde o “Rio Bota Abaixo”17), empurrando humanos e “coisas” (como animais e plantas) para as margens, para as periferias das cidades. E, aqui e agora, o empacotamento também acontece com as caixas de papelão, que se tornam casas de humanos e, frequentemente, de cachorros, nas esquinas das grandes avenidas das cidades, bem como nas portas de supermercados, na cidade de Porto Alegre, ou nas barracas enfileiradas e em profusão, em vários locais históricos da cidade de São Paulo, por exemplo. Como Carolina Maria de Jesus (catadora de papel e moradora da Favela Canindé em São Paulo) relatou em um dos seus diários sobre a lida com o papelão: “5 de janeiro ... Está chovendo. Fiquei quase louca com as goteiras nas camas, porque o telhado é coberto com papelões e os papelões já apodreceram” (DE JESUS, 2014, p. 150)18.
Ainda sobre modos de empacotamento, poderíamos dizer que nós mesmos usamos nossos carros como formas de nos embalarmos e de “nos protegermos” (de outros humanos quase-animais) enquanto nos deslocamos entre nossas ethnoscapes19 de segurança (para lembrar APPADURAI, 1996) - nossas casas gradeadas e com cercas elétricas e nossos locais de trabalhos com cancelas, câmeras, cartões de acesso e senhas por todas as partes - para nos protegermos daqueles que, mais uma vez, usam caixas de papelão para escreverem curtas mensagens truncadas sobre a fome, a falta de trabalho, de moradia e de qualquer tipo de futuro diferente daquele que ali se encontra.
Além disso, no Brasil, como canta Elza Soares20, “a carne mais barata do mercado é a carne negra / Que vai de graça pro presídio /E para debaixo do plástico /E vai de graça pro subemprego /E pros hospitais psiquiátricos”. Sobretudo, se for pobre! Carne de pessoas que, historicamente, foram embaladas e transportadas (nos porões dos navios negreiros) como escravizadas, destituídas de nome e origem, e que, nos últimos anos (ou desde aquilo que podemos referir como “sempre”), vêm sendo aquela (carne) a ser imobilizada e empacotada nos supermercados brasileiros, em um processo de violenta plastificação e anoxia21. Animais humanos, humanos animalizados, corpos negros, assim como corpos indígenas e imigrantes, aos quais é atribuída um tipo de animalidade desprestigiada e sem valor, que legitima que certas práticas se tornem normalizadas.
Então, podemos dizer que as práticas de empacotamento não são apenas aquelas que se dão durante a suspensão de direitos nas guerras, no deslocamento de migrantes ou na travessia do gado vivo para se tornar carne em outro país - para fazer alusão aos exemplos de Bone e Blaise (2015). Antes, elas estão dentro de nossas cidades, em nossas ruas, nas rotas que perfazemos, nos corpos dos outros e nos nossos próprios corpos, de diferentes modos. São corpos-humanos animalizados que não cansam de nos interpelar, de nos chamar a atenção, mesmo que seja apenas para o seu próprio tipo de empacotamento. Tal como citam Bone e Blaise (2015): “não estamos argumentando que as pessoas precisam se preocupar mais com os animais do que com outros humanos” (p. 25-26), ou mesmo que as pessoas deixem de cuidar de seus animais... Mas, tanto em um sentido como em outro, gostaríamos de nos perguntar como poderemos desempacotar dadas formas de ver, certas formas de tratar e alguns modos de conviver em relação a esse outro vulnerabilizado e que é “fundamentalmente animal” (MACIEL, 2016, p. 16) como nós, seja animal ou seja animal humano.