INTRODUÇÃO
A história da Educação Física no Brasil demonstrou, desde o seu começo, um vínculo bastante significativo com as instituições militares, tanto que os primeiros cursos de formação de professores aconteceram na Escola de Educação Física do Exército em 1929 (FIGUEIREDO, 2016). Essa relação não se deu apenas no âmbito da formação profissional, mas, nas práticas, inclusive escolares, direcionadas para a melhoria da saúde (leia-se higiene) e da raça (eugenia), de acordo com estudos de Soares (2007) e Góis Junior e Silva (2016).
Nos últimos anos, o estado de Goiás tem passado por um intenso processo de militarização das escolas públicas estaduais, o que tem sido visto de maneira bem contraditória. Por um lado, grande parte da população goiana, principalmente na figura dos militares, apoia a iniciativa por considerar que militarizar o ambiente escolar proporcionaria “disciplina” (grifo nosso) e aprendizado geral acima da média e, por outro, os movimentos educacionais progressistas que se preocupam com o tipo de ser humano e sociedade apresentados e reforçados aos alunos nas instituições militarizadas, que muitas vezes parece retroceder ao modelo educacional das décadas de 1960 e 1970, com a utilização de normas que distanciam os educandos das possibilidades de expressão, elemento fundamental na formação de sujeitos críticos.
Atualmente, no estado de Goiás, são 35 instituições militares existentes, distribuídas em 26 municípios goianos. Até o início de 2013 eram apenas 6 instituições em todo estado, mas ao longo do referido ano foram construídas mais 12 unidades. De 2014 a 2016 houve um acréscimo de mais 17 instituições, totalizando as 35 unidades vigentes em 2017.
Com base nesta problemática, vinculada ao trato dado, sobremaneira nas aulas de Educação Física das escolas militares, o presente estudo tem como objetivo principal investigar como as questões relativas ao corpo têm sido desenvolvidas nas aulas desta disciplina escolar em um colégio da Polícia Militar de Goiânia, tendo como objetivos específicos: a) verificar a concepção de corpo sob a perspectiva dos professores entrevistados e; b) identificar os limites e possibilidades apresentados pelos docentes quanto ao trato com o corpo nas aulas de Educação Física.
O Colégio da Polícia Militar de Goiás (CPMG) foi criado de forma desvinculada aos demais colégios militares do Brasil. Previsto na Lei 8.125, em julho de 1976, artigo 23, item I, letra b, o colégio possui parceria com a Secretaria Estadual de Educação, por meio do termo de Cooperação Técnico Pedagógico 009/12 em vigor e encontram-se subordinados à Secretaria de Segurança Pública por meio da Polícia Militar de Goiás. O colégio funciona em regime seriado, com turmas da 2ª fase do Ensino Fundamental (6º ao 9º ano) e Ensino Médio (1º ao 3º ano).
De acordo com o regimento interno publicado no site de uma das instituições militares de Goiânia, o ensino ministrado no CPMG será baseado nos seguintes princípios, fins e objetivos (GOIÁS, 2017, p. 2):
I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola, dentro das normas previstas neste Regimento;
II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber;
III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas;
IV - respeito à liberdade e apreço à tolerância;
V - valorização do profissional da educação escolar;
VI - garantia de padrão de qualidade;
VII - valorização da experiência extraescolar;
VIII - vinculação entre educação escolar, o trabalho e as práticas sociais;
IX - gestão democrática do ensino público, na forma da lei e da legislação do ensino deste CPMG.
A expansão desse modelo de ensino e a aceitação da sociedade nos mostra o referencial de educação que vem sendo disseminado e almejado por muitas famílias, caracterizado por um modelo mais rígido de disciplina e um maior controle dos corpos estudantis. Talvez, uma saída para muitos pais que acreditam ser a disciplina militar o caminho para o sucesso, bom desempenho acadêmico e a formação de uma pessoa realizada e um “cidadão de bem”. Sucesso este, associado à produtividade e ao ingresso no mercado de trabalho.
Atrelado ao sistema capitalista, a educação segue os moldes da produção, tendo como fim a busca pela inserção no campo de trabalho e sucesso profissional. Os estudos de Horkheimer (1990) sobre autoridade e família permite elucidar uma série de questões relacionadas às formas de poder sob o domínio do capital e o caráter autoritário advindo de uma razão convertida aos moldes do sistema capitalista. Segundo o autor, a sociedade burguesa se desenvolve por meio da ruptura com o modelo tradicional de autoridade do período medieval, reestruturando, por conseguinte as relações de poder e as novas figuras de autoridade. Desta forma, regido pelo ideário iluminista da autonomia, com ênfase na liberdade e no discurso antiautoritário, o modelo burguês se constitui. No entanto, o ideal ao qual consubstanciava o iluminismo ainda permanece no campo das ideias, convertendo-se em razão instrumental para manutenção das relações de produção da vida material da sociedade. A liberdade almejada pela sociedade burguesa torna-se ideologia, uma forma de amenizar ou esconder as relações de poder que se estabelecem no novo regime societário e, mais ainda, na perspectiva da reprodução da organização social da produção vigente. Mas Horkheimer (1990) não se limita a pensar as relações de poder e submissão apenas no campo político e econômico, pois entende que sua base está na família, grupo que compõe a unidade fundamental da sociedade. A família marca o local sob o qual a sociedade burguesa molda sua estrutura e componentes de autoridade.
Visto que a autoridade e a disciplina permeiam as diversas esferas que compõem a sociedade e tendo no colégio militar uma referência de ensino que traz em seu regulamento a manutenção da ordem e da disciplina como componentes norteadores da prática pedagógica, pois, de acordo com a perspectiva positivista de educação, esta tem que garantir que a sociedade seja funcional (DURKHEIM, 1955). Destarte, pretende-se com essa pesquisa verificar para além dos objetivos já citados, de que forma esses aspectos surgem nas aulas de Educação Física e até que ponto a normatização e a disciplina podem interferir na práxis pedagógica dos professores entrevistados. Segundo Guimarães (1985), a escola, no âmbito da sociedade capitalista, tem como um dos objetivos o controle dos corpos das crianças da classe trabalhadora, de modo sistemático, inserindo uma gama de comportamentos que no futuro servirão de alicerce ao modo de produção. Logo, com base em uma formação crítica e superadora, o professor deve considerar as diversas dimensões que compreendem a educação emancipatória, distanciando o sujeito das mais variadas formas de alienação, que apenas alimentam e conservam o poder da classe dominante.
METODOLOGIA
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, de caráter exploratório, tendo como instrumento de pesquisa a entrevista semiestruturada e a análise dos documentos norteadores da prática pedagógica: o regimento interno da instituição, o projeto de ensino de Educação Física do colégio militar em questão e a Orientação Curricular da Secretaria de Educação do Estado.
O estudo qualitativo pauta-se na rede de significações que constituem o objeto em questão e a necessidade da compreensão deste, por meio dos fenômenos do mundo social. A pesquisa qualitativa:
[...] se preocupa, nas ciências sociais, com um nível de realidade que não pode ser quantificado. Ou seja, ela trabalha com um universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis (MINAYO, 1994, p. 21).
A escolha pela pesquisa de caráter exploratório se justifica pela oportunidade em aprofundar o conhecimento acerca do estudo em questão, característico da experiência adquirida pelo diálogo com os participantes. Segundo Triviños (1987, p. 109), quanto ao estudo exploratório:
Os estudos exploratórios permitem ao investigador aumentar sua experiência em torno de determinado problema. O pesquisador parte de uma hipótese e aprofunda seu estudo nos limites de uma realidade específica, buscando antecedentes, maior conhecimentos para, em seguida, planejar uma pesquisa descritiva ou de tipo experimental.
O diálogo com os participantes se deu por meio da entrevista semiestruturada, visto que esse tipo de entrevista:
[...] parte de questionamentos básicos, fundamentado nas teorias e nas hipóteses que interessam à pesquisa, oferecendo-lhe uma diversidade de interrogativas a partir das respostas dos entrevistados (informantes), ou seja, no momento que o informante, seguindo espontaneamente a sua linha de pensamento, responde os questionamentos feitos pelo investigador, esta resposta poderá gerar uma série de novos questionamentos e a partir desse momento o informante passa a participar da elaboração do conteúdo questionado pela pesquisa (TRIVIÑOS, 1987, p.146).
Foram entrevistados três professores de Educação Física, dois do sexo masculino e uma do sexo feminino, com idades entre 35 e 48 anos. Um dos professores atua apenas com turmas do ensino fundamental (6º ao 9º ano) e os outros dois com turmas do ensino fundamental (6º ao 9º ano) e médio (1º ao 3º ano). Todos os professores possuem especialização, sendo essas voltadas para os temas: Esporte e Reabilitação; Docência no Ensino Superior; Musculação e Treinamento de Força; Neuropedagogia e Motricidade; Psicopedagogia Clínica e Institucional.
Os professores entrevistados serão mantidos em anonimato e para tanto, serão identificados apenas como professores 1, 2 e 3. Tiveram resguardado o direito de se retirarem da pesquisa a qualquer momento caso desejarem. Como documentos de autorização da pesquisa, foram entregues o Termo de Consentimento Institucional (TCI) ao coordenador da instituição e aos professores entrevistados foram entregues os Termos de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), contendo os dados do estudo, bem como, os objetivos e características da pesquisa. Os dados foram transcritos e analisados diretamente para este estudo, uma vez que, a divulgação dos resultados e das falas dos professores estava prevista no TCLE.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
O roteiro de entrevista foi desenvolvido com base em sete perguntas abertas. Ao longo das entrevistas, outros questionamentos foram surgindo, característica recorrente do modelo de entrevista semiestruturada apresentada por Triviños (1987).
Para melhor compreensão dos discursos dos professores participantes e da discussão advinda dos questionamentos, essa parte encontra-se organizada com a sequência de falas, seguidas da análise de cada questão.
Questão 1: Qual metodologia você utiliza para a elaboração de suas aulas?
“Não vou te dizer que todas, mas geralmente quando você vai elaborar uma aula, eu vejo qual vai atingir o objetivo daquela aula. Então, uma pode ser utilizada o tecnicismo e outras eu posso utilizar de outra metodologia [...] vai depender de como eu vou chegar ao meu objetivo” (PROFESSOR 1).
“Bom, aqui no colégio militar nós trabalhamos muito o lado do esporte, mas não em busca de especialização, mas em busca da formação corporal, em busca da formação humana e da formação social do aluno” (PROFESSOR 2).
“Eu acho que questão de metodologia em si, ela é uma diferenciada em minhas aulas. Eu utilizo muito de aulas práticas, aulas teóricas. Utilizo muito a questão mais voltada às vezes para o desenvolvimento do corpo como um todo, na parte mais motora, e outras vezes na parte mais cognitiva, outras vezes mais na parte crítica. Então, os métodos eles são muito diferenciados na minha prática, mas se a gente fosse colocar mais em uma questão de abordagem, a questão pedagógica mesmo da Educação Física, eu acho que eu me encaixaria muito na questão crítico-emancipatória de Elenor Kunz. Eu gosto muito, porque eu utilizo muito do esporte nas minhas aulas. Mas eu utilizo muito do esporte fazendo uma grande abrangência com os alunos. O porquê de usar aquela atividade que estão fazendo, por que eu tenho que pensar naquilo que estou fazendo. Então eu uso muitos aspectos também da neurociência com os meninos [...]. Então, eu uso muitas, depende do objetivo da aula” (PROFESSOR 3).
Percebe-se no discurso dos professores que não existe uma única metodologia ou abordagem utilizada na elaboração de suas aulas. Ambos possuem sua metodologia pautada no objetivo da aula e percebem a Educação Física em seus diversos aspectos, sem uma tendência definida. Pode-se perceber durante a entrevista que os professores 1 e 2 tiveram dificuldade em responder tal pergunta, enquanto o Professor 3, apesar de não defender uma única linha de ensino, apresenta a abordagem crítico-emancipatória como parte constituinte em sua metodologia. A abordagem crítico-emancipatória tem como principal idealizador Elenor Kunz, tendo como característica a didática comunicativa, que se desenvolve por meio do diálogo e da consciência crítica do aluno, além de destacar a importância da compreensão da linguagem do movimento humano enquanto forma de expressão e de entendimento dos fenômenos sociais (KUNZ, 1994).
Questão 2: Você possui autonomia no planejamento e na ação didática de suas aulas?
“Sim. Mas a gente tem que seguir o currículo, temos nosso objetivo da escola, um projeto da escola e ,dentro disso, o professor tem a liberdade de planejar as aulas para atingir esse projeto e esse conteúdo que tem que ser dado. Mas como eu vou chegar, aí eu tenho que seguir algumas regras da escola, mas não interfere, chega ser irrelevante dentro da liberdade que a gente tem para trabalho. [...] a gente tem um projeto na escola que ele é voltado para nossa comunidade, vendo a realidade da nossa escola, como isso é orientado dentro de todo processo educacional, então, a gente tenta mesclar dentro da nossa realidade e dentro do que a Secretária de Educação manda que a gente trabalhe. Então, a gente mesclando os dois, a gente tenta ir levando esses dois eixos, que é o projeto da escola e o currículo que é orientado pela Secretária de Educação” (PROFESSOR 1, grifo nosso).
“Totalmente. Nós temos o projeto, ele é feito em conjunto, todos os professores participaram na elaboração desse projeto e é um projeto onde o aluno vivencia os esportes nos 6º e 7º anos e no 8º ele faz uma opção do esporte onde ele mais se adaptou. Então, dentro desses esportes que nós oferecemos, a liberdade é total. Nas minhas aulas o planejamento é meu!” (PROFESSOR 2).
“Parcialmente. A gente sabe que o planejamento da instituição estadual ela tem como norte o currículo da Secretaria de Educação. Mas o que eu tentei fazer a mais? Eu tentei pegar aquele currículo e adaptar para minha realidade institucional. Para minha realidade que são os meus alunos e com a proposta de trabalho que temos no colégio militar [...] O colégio militar não tem uma chefia ou chefe de inspeção [...] O norte maior que a gente tem que ter lá dentro é essa questão da Secretaria de Educação, do currículo” (PROFESSOR 3).
É possível verificar que o planejamento dos professores se encontra limitado ao currículo advindo do Estado e ao projeto de ensino do colégio militar. Ao analisar tais documentos, percebe-se que no Currículo de Referência para as aulas de Educação Física enviado pela Secretaria de Educação, ao qual norteiam o ensino dos colégios estaduais e, nesse caso, também os militares, possuem grandes divergências com a proposta de ensino do colégio militar. Pautado quase que exclusivamente pelo ensino do esporte, ao verificar a fala dos professores, é possível perceber que o referido colégio negligencia o ensino de conteúdos como a dança e as lutas, por exemplo, que inclusive são indicados como conteúdos de ensino no Currículo de Referência da Secretaria de Educação. Dessa forma, entende-se que o professor do colégio militar possui sua “autonomia” limitada, além de lidar com propostas antagônicas, o que pode influenciar de modo negativo na construção de aulas nas perspectivas críticas. Identifica-se inclusive a contradição do professor 1, ao dizer que apesar das regras determinadas pelo colégio, não há influência na organização e seleção do seu trabalho.
Questão 3: Como as questões relativas ao corpo têm sido desenvolvidas nas aulas de Educação Física?
“No meu caso, eu sempre procuro trabalhar com os meninos essa questão de movimento corporal, as possibilidades que a gente pode ter ou não. A questão de trabalhar em escola militar, a gente trabalha muito essa questão, porque aqui o menino é muito fechado em roupa! Aqui o pessoal se veste, se tampa muito! Aqui o adolescente ele quer às vezes mostrar um pouco mais e a gente tenta trabalhar isso com o aluno: que não é isso que vai trazer essa “alusão” libertadora dele [...] E através da Educação Física, nas minhas aulas, eu tenho alguns deficientes visuais, deficiente de locomoção. Eu trabalho muito essa questão do corpo para os meninos aceitarem esses meninos com essa deficiência. É logico que não é normal igual a eles! Mas que eles aceitem isso, pode acontecer com eles! Então quando a gente começa aceitar isso no outro, fica até mais fácil. Então, eu tento inserir muito isso, essa visão de corpo com eles” (PROFESSOR 1).
“Bom, a gente trabalha o esporte, mas não trabalha o esporte visando que o aluno aprenda somente o gesto técnico, nós trabalhamos o esporte pra que esse indivíduo trabalhe tanto o lado físico, quanto o lado social e o lado cognitivo do indivíduo. Então, eu não vou cobrar de um aluno que ele faça o gesto técnico de qualquer esporte perfeitamente, mas que ele supere os seus medos, supere as suas inseguranças, supere o seu limite e alcance um limite maior” (PROFESSOR 2).
“Eu levo muito para os meninos as questões das mídias, dos transtornos que hoje são desenvolvidos nas pessoas por causa desses pensamentos midiáticos do corpo esbelto, do corpo perfeito, do corpo atlético. E a gente procura mais é a questão do corpo saudável em si e que esse corpo saudável não é um corpo que não tem colesterol, que é um corpo atlético, que tem um VO2 lá em cima, mas que também é um corpo pensante. E aí é onde eu entro muito assim com os meninos. E todo mundo lá na escola sabe que eu acredito demais no esporte enquanto mobilidade social. Eu acredito muito na Educação Física como mobilidade social. Não só a educação física! Pra mim, a educação, é o único caminho [...]” (PROFESSOR 3).
Esta questão traz diversos posicionamentos e ideias diferentes entre os professores, visto também a complexidade e a gama de elementos que podem emergir de tal questionamento. O Professor 1 traz duas reflexões, uma voltada para a questão da vestimenta no colégio militar, com a ideia de aprisionamento dos corpos e outra voltada para o âmbito da inclusão, voltados para a pessoa com deficiência, contudo, a maneira como ele se expressa, demonstra um trato superficial com o corpo considerando que o corpo pode ser entendido como a relação entre o físico/orgânico e a natureza (MARX, 2010). No caso do professor 2, não fica claro se não houve compreensão da pergunta, ou se ele não compreende as suas aulas para além do conteúdo específico e os impactos das aulas sobre o corpo. Já o Professor 3, apresentou algumas possibilidades de ensino desenvolvidas em suas aulas, trazendo uma reflexão ampliada de corpo e saúde com base em aspectos midiáticos. De acordo com Castro (2003, p. 108): “A mídia e a indústria da beleza são aspectos estruturantes da prática do culto ao corpo”. Sendo a mídia veículo de comunicação que sustenta a ideia vigente de corpo belo e saudável, vincula-se um padrão estético inatingível, tendo na indústria da beleza a garantia da materialidade da tendência a ser seguida e que “[...] só poderá existir, se contar com um universo de objetos e produtos consumíveis” (CASTRO, 2003, p. 108).
Dessa forma, percebe-se a relevância que tal tema assume em âmbito escolar na busca por uma formação crítica e autônoma, capaz de desmistificar determinados discursos divulgados pela mídia, como o culto ao corpo com base em um padrão estético, que na contemporaneidade tem ganhado muitos adeptos, os quais têm levado as pessoas das diversas faixas etárias ao desenvolvimento de transtornos como a anorexia e a vigorexia (RAMOS.; PEREIRA NETO; BAGRICHEVSKY, 2011: OLIVEIRA, 2012).
Questão 4: Qual sua concepção de corpo?
“Boa pergunta! [...] A gente vê as possibilidades que esse movimento do corpo pode atingir: tanto para autonomia dessa pessoa que a gente está tralhando, no caso, nossos alunos e uma concepção de corpo que não seja voltada só para o esporte. É uma pergunta difícil, vou ser sincero, que às vezes a resposta eu não tenho! Mas acho que é mais ou menos isso. Eu trabalho o corpo com meus alunos de modo que eles possam melhorar a sua coordenação motora, nisso, poder refletir tanto no desenvolvimento cognitivo deles tanto em outras disciplinas na escola; a sua autonomia dentro do espaço; dentro do seu cotidiano e através do esporte poder mudar isso com eles, então, minha visão de corpo no caso seria isso” (PROFESSOR 1).
“Depende de qual a linha de pensamento cada um tem. Eu acho que o corpo é um veículo onde a alma se expressa. Então, o corpo é o tudo e às vezes até o nada. Então, tudo: o mental, o psicológico do indivíduo, tudo reflete no corpo! E tudo que você às vezes vivencia pelo corpo reflete na sua alma e às vezes no seu psicológico” (PROFESSOR 2).
“Eu li essa palavra em um artigo e eu achei maravilhoso: eu vejo o corpo de uma forma biopsicossocial! Eu vejo o corpo como um todo. Hoje eu trabalho muito com a questão do comportamento em si e eu vejo que esse corpo hoje sofre influências comportamentais ao longo da sua história. Então, seja pela questão da história familiar desse indivíduo, a história genética que esse indivíduo tem e as histórias comportamentais da sociedade que são influenciadas nesse corpo também. Então, eu procuro muito trabalhar esse corpo e mostrar aos alunos a grandeza que é um corpo. Nessa altura o que a mídia prega, o que a mídia passa, não é só aquela revolta que ele tem, aquela pouca compreensão às vezes de si mesmo. Então, isso é muito trabalhado em minhas aulas [...] Todos os bimestres, além do conteúdo técnico, a história do handebol, atualidade, regras, é trabalhado um texto paralelo que eu chamo ele: para refletir. Então, se eu estou trabalhando, por exemplo, regras no handebol, eu faço um texto paralelo: por que são necessárias as regras em nossa sociedade para ter uma harmonia? [...]. Então, assim, eu vejo muito que é por aí. O corpo como um todo mesmo. E o corpo, ele não tem aquela definição: o corpo é isso e isso... O corpo pra mim é um todo! E é isso que eu tento passar para os alunos” (PROFESSOR 3).
Aqui temos três ideias de corpo diferentes. O Professor 1 apresenta em seu discurso uma visão dicotômica de corpo. Esta visão dualista apresenta traços que impactam diretamente no fazer pedagógico em Educação Física, em que corpo e mente são vistos de forma independente. O que dificulta a inserção de atividades que levem a reflexão e ao trabalho do corpo como um todo, tendo como base a concepção ontológica do corpo que visa a superar tal visão.
Já o Professor 2 apresenta um discurso voltado para a ideia de corpo-alma, no entanto, também dualista. Que ora prioriza a mente, ora prioriza a materialidade do corpo. Sobre isso, podemos salientar os estudos de Descartes (1596-1640) em que o autor defende que além de Deus, haviam outras duas substâncias que constituíam o universo. Uma delas chamada de res extensa, do latim “coisa extensa”, relacionado ao corpo, e a outra chamada de res cogitans, do latim “coisa pensante”, relacionado à alma, divisão denominada de Dualismo Cartesiano. Essa teoria tinha como centro verificar as relações existentes entre a substância pensante e substancia extensa, ou seja, entre substância imaterial e matéria. Nesse momento, o homem passa a se ver como sujeito e objeto do pensamento (DESCARTES, 1996).
Já o Professor 3, apresenta outra definição de corpo voltada para o conceito de corpo biopsicossocial. Este conceito tem origem na medicina psicossomática, um modelo defendido e elaborado por George L. Engel (1977), que também não deixa de ser dicotômica, pois analisa o sujeito em três partes: na sua dimensão biológica, psicológica e social. No entanto, a professora 3 traz em seu discurso uma visão que entende o corpo como o conjunto e a conexão entre essas três dimensões, que ao contrário de uma visão dicotômica, procura ter nessas esferas a visão de corpo em sua totalidade, embora não avance de maneira significativa.
Questão 5: Quais conteúdos têm sido desenvolvidos nas aulas de Educação Física levando em consideração os aspectos da corporalidade e/ou da linguagem corporal?
“[...] a gente casa esse momento com os jogos internos, que é o JINCOM. A gente faz oficinas. Nessas oficinas a gente disponibiliza oficina de dança para os meninos. Um exemplo: esse ano a gente teve oficina com expressão corporal, uma dança, a gente teve zumba aqui, foi uma oficina porque a gente não conseguiu outras oficinas por questão financeira da escola para pagar alguém para vir. Enfim, a gente não teve outras modalidades, outros tipos de expressão aqui na escola. A gente já teve balé, já teve lutas e era como modalidade extra-aula de Educação Física, porque a gente nas aulas de Educação Física, a gente dá vivência às vezes coisas de uma, duas aulas, como a Secretaria de Educação impõe pra gente, mas que seja uma vivência, até para o nosso aluno conhecer um pouquinho o que é isso. Mas não é algo do cotidiano escolar? É algo esporádico mesmo? Esporadicamente, hoje a gente tem aqui na escola algumas modalidades que a gente dá para os alunos vivenciarem. Ela começa mais no ensino fundamental porque no ensino médio a gente tem visão de Enem. A gente trabalha o esporte, a gente trabalha temas transversais, mas sempre trabalhando o cognitivo para o Enem. É lógico que nossa atividade prática é esportiva, com jogos, brincadeiras, enfim, só que aí a gente tem os temas transversais que a gente trabalha muito voltado para o Enem. Porque o foco da escola, eu volto a dizer, o projeto, o foco da escola, é o menino chegar no 3º ano, ele ser aprovado no Enem” (PROFESSOR 1).
“Bom, no nosso projeto, nós ainda tínhamos projeto até maior antigamente, como o Estado limitou o número de professores de Educação Física a carga horária da Educação Física diminuiu também. Nós diminuímos um pouco a quantidade de vivências corporais que o aluno tem. Geralmente, nós tínhamos lutas, nós tínhamos dança, nós tínhamos atletismo, atletismo na realidade nós temos ainda, mas nós tínhamos o futebol de campo, nós tínhamos a natação e vários outros esportes, atualmente, nós trabalhamos a partir do 6º ano. Nós trabalhamos o atletismo, a natação, o basquetebol, o handebol e o voleibol. Esse ano nós introduzimos o badminton, que eu fiz um curso na Universidade Federal que me trouxe pra cá a experiência, eu e outro professor fizemos juntos. Trouxemos experiências e anexamos no currículo também o badminton. Fora isso, nós também temos a natação, o tênis de mesa como esporte de treinamento, o atletismo como esporte de treinamento e todos os esportes de quadra: basquete, o vôlei, o futsal e o handebol. Conteúdos como dança ou lutas são trabalhados aqui? Atualmente não. Porque nós não temos nenhum professor especialista em lutas, mas alguns anos atrás ainda tínhamos pelo menos para o treinamento dos alunos na dança. Não é todo mundo que trabalha com isso. A gente pode até trabalhar, porque eu acho que você não precisa saber dançar para trabalhar o conteúdo da dança, mas como o tempo é muito pequeno, o bimestre é muito pequeno, se a gente acaba estendendo muito o mundo de opções, o aluno acaba vendo pouca coisa de nada. Porque um bimestre é muito curto para você trabalhar uma modalidade corporal. Então, atualmente, a gente está trabalhando com isto [...] a escola trabalha muito essa questão de times que é algo inerente ao militarismo”. (PROFESSOR 2).
“Então, eu utilizo muito a questão do esporte, eu uso o esporte como meio para abranger os meus outros objetivos. Mas, eu trabalho muito essas questões de mobilidade social através do esporte, trabalho essas questões de saúde, alimentação saudável, hábitos de vida que vão desenvolver essa melhoria do corpo. Aí eu entro em outros aspectos: como trabalhar o cérebro com os meninos, para que eu mantenha o cérebro oxigenado, que está fazendo um monte de sinapses ali, em questão de trabalho da memória, da atenção, criar estratégias. Então, assim, de forma geral mesmo, eu trabalho assim. Não só a questão da parte técnica do esporte, mas com atividades motoras também, que propiciem essa tomada de decisão rápida, essa análise do grupo: como que eu vou fazer uma atividade individual, mas agora eu tenho que ter uma participação dentro desse coletivo e como que eu vou fazer dentro desse coletivo? Então, assim, o corpo, realmente, pegando todas as esferas dele como um todo, mas também esse corpo inserido na sociedade” (PROFESSOR 3).
Ao conversar com os professores sobre esta questão, foi possível perceber que poucas são as experiências em que a linguagem corporal se encontra inserida como elemento constituinte de diálogo e reflexão nas aulas de Educação Física. Por meio dos documentos que norteiam a prática pedagógica do colégio em questão e pela análise das entrevistas, podemos identificar a não aplicação de determinados conteúdos, tendo como prioridade o caráter esportivo. Podemos perceber tal afirmação no relatado do professor 2, ao dizer que “[...] a escola trabalha muito essa questão de times que é algo inerente ao militarismo”. Tradicionalmente, o colégio realiza todos os anos os Jogos Internos do Colégio da Polícia Militar (JINCOM). Conforme apresentado no site do colégio, “[...] os jogos internos têm como objetivo conscientizar a Comunidade Escolar sobre a necessidade da prática regular de atividades físicas, fortalecer a concepção de trabalho em equipe entre os alunos, bem como estreitar o vínculo entre docentes e discentes por intermédio da prática esportiva” (GOIÁS, 2017, p. 1). Uma visão bem próxima ao que os professores vêm apresentando em seus discursos quanto ao ensino do esporte, enquanto propulsor da mobilidade social e da cidadania.
De acordo com o depoimento do Professor 1, este é o único momento no ano em que os alunos têm a oportunidade de vivenciar práticas que não estejam relacionadas apenas ao conteúdo esporte. O mesmo professor traz uma reflexão muito pertinente quanto ao atual cenário educacional brasileiro: a educação voltada para a preparação e ingresso do aluno no ensino superior e consequentemente a entrada no mercado de trabalho. Segundo Mészáros é “[...] necessário romper com a lógica do Capital se quisermos contemplar a criação de uma alternativa educacional significativamente diferente” (MÉSZÁROS, 2008, p. 27). Ainda que estejamos falando da educação em um colégio militar, existem processos contraditórios demonstrados, inclusive na fala dos professores, que abre algumas possibilidades.
Os processos pelos quais a burguesia procura configurar o campo social, no intento de superar a crise do capital, materializaram-se ao longo dos anos em projetos de reformas institucionais mais amplos. O campo da educação tornou-se para o capital espaço estratégico tendo em vista as necessidades postas pela crise do capital. Crise do capital que assumiu as mais diferentes denominações: reestruturação produtiva, revolução tecno-científica tecnológica, neoliberalismo, globalização da economia etc. Em sentido amplo e geral, o discurso reformista na educação tem mencionado a necessária constituição de um novo ser social, apto a responder a essas mudanças e suas demandas (CARVALHO; BAUER, 2011, p. 97).
Nessa perspectiva, percebe-se a necessidade de se questionar a valorização que tem se propagado enquanto incentivo de uma política educacional pautada na qualificação da força de trabalho e sustentação do modelo capitalista, em que, temos na escola, um princípio de formação capaz de atender aos interesses da indústria e consequentemente da classe dominante. E na perspectiva dos interesses do capital, as aulas de Educação Física do colégio militar, aparentemente, não têm superado muito as dicotomias e a percepção de organismo (CANGUILHEM, 2005).
Questão 6: Como as questões relativas ao corpo estão inseridas no planejamento anual?
“O nosso planejamento acontece primeiramente em cima do currículo que vem da Secretária de Educação e aí de posse do projeto da escola a gente vai pensar sobre o que será feito durante o ano. Principalmente os textos transversais! Por exemplo: o menino vai ver badminton em determinado bimestre, que é o esporte daquele bimestre, mas aí ele tem temas transversais, como a influência da mídia no corpo, então a gente vai trabalhar isso com aquela criança naquele determinado bimestre e aí a gente cobra isso em trabalho, em prova, em simulado, então a gente tenta trabalhar isso aí com os meninos [...]” (PROFESSOR 1).
“Nós seguimos um pouco o planejamento do Estado, porque o Estado já tem um planejamento básico dentro da Educação Física. Baseado nas vivências que os alunos têm e que a gente está oferecendo para os alunos [...]” (PROFESSOR 2).
“[...] todos os professores, não só eu, dá realmente uma significância a esse corpo a ser trabalhado em si. E por mais que nós estejamos dentro do colégio militar, às vezes a gente acha que uma pessoa que não conhece pode até falar: “Ah! Lá deve ser uma questão de atividade mais tecnicista, muitas vezes até calistênicas”. Quem não conhece fala. “Ah os meninos devem ficar correndo na quadra lá, fazendo abdominal, flexões” [...] a gente abrange em primeiro momento o cidadão em si. [...]. Mas eu vejo isso refletido em todos os momentos. Em todas as aulas deles. Alguns dão um pouco mais de ênfase, alguma coisa nesse sentido, mas eu vejo que essa questão do corpo não é vista como uma forma extremamente física ou então de uma forma extremamente técnica, vejo isso dentro de um contexto bem bacana” (PROFESSOR 3).
Segundo informações disponibilizadas pelos professores, o planejamento é constituído com base na Orientação Curricular da Secretaria de Educação do Estado de Goiás. No entanto, foi informado que não existe um documento de planejamento anual na instituição, mas um projeto de ensino para a Educação Física. Dentro desse projeto, temas como corpo e mídia, corpo e saúde, são contemplados, mas apenas como forma de reflexão, como ensino teórico. Conforme mencionado nas falas anteriores, poucas são as ações pedagógicas que valorizem a práticas corporais enquanto linguagem e consequentemente poucas são as experiências, no sentido proposto por Benjamin (1983), com os conteúdos não-esportivizados desenvolvidos no colégio militar.
Questão 7: Os aspectos da norma e da disciplina fortemente inseridos nos colégios militares influenciam de determinada forma no comportamento e nos corpos estudantis. Esses aspectos em algum momento influenciam/influenciaram no desenvolvimento das aulas de Educação Física?
“Eu particularmente dou aula em outra escola também né, professor hoje em dia não dá conta de ficar só em uma! Então eu dou aula em outra escola que não é militar. O que a gente vê é a questão de disciplina, porque essa cultura de exigir do corpo, de determinada postura do aluno, ela gera disciplina e ,a disciplina, eu falo por mim, essa é uma resposta individual! A disciplina, ela ajuda sim no desenvolvimento dos alunos dentro das aulas de Educação Física, eles aceitam mais algumas coisas que são colocadas pelo professor! Não é que a gente quer ter alunos calados e mudos que não sejam críticos. Eu por exemplo, gosto de ter uma discussão dentro da minha aula, só que também eu acho que tem que ter momentos pra isso e aí tem aquela questão de mediação do professor, não é toda hora que você vai vir com uma discussão, é o meu ponto de vista, eu acho que eu deixo sempre para o final da aula para eu abrir essa discussão. Então, influência sim! [sic!]. Uma escola Estadual que às vezes não tenha disciplina é mais difícil, o aluno não tem disciplina para ir na aula sempre, eles às vezes não te respeitam, eles às vezes mexem no celular, que não é devido, isso tudo pedagogicamente atrapalha no desenvolvimento do próprio aluno. Então, eu penso, tenho quase essa certeza, que sim, nas escolas militares, devido a toda essa cultura e tudo isso que eles cobram o resultado aqui é maior, é lógico, dentro do projeto da escola” (PROFESSOR 1).
“Não, eu costumo falar que às vezes me perguntam: “Você dá aula em colégio militar?” Eu falo: “eu dou aula lá”. “Nossa mas deve ser bem diferente né? Os alunos respeitam mais!” Eu digo: “criança é criança, aluno é aluno em qualquer lugar, independente se é um aluno da escola da periferia ou se é um aluno do colégio militar”. Mas essa questão da norma e disciplina que existe aqui dentro do colégio, que faz parte mesmo da norma da escola, isso influencia de alguma forma no modo que eles reagem nas aulas de Educação Física? Ou não? Não, é a mesma coisa. Chega na quadra eles se soltam! Ou seja, lá às vezes, dentro de sala de aula, onde ele está sentado, ele fica muito mais travado, porque qualquer coisa o professor às vezes pode dar uma advertência. Mas aí quando eles vão para aula de Educação Física às vezes eles até dão mais trabalho ainda, porque é o momento que eles estão soltos, é o momento onde às vezes o cara tá jogando um “futebolzinho”. [...] A gente não pode ser autoritário e nem discutir os assuntos abertamente com os alunos. E os militares em nenhum momento interferem na sua aula? Não, nas minhas aulas não, eles nunca interferiram, porque eu acho que a aula é do professor e cada professor tem sua metodologia, às vezes, cada professor tem um jeito de lidar com o aluno.” (PROFESSOR 2, grifo nosso).
“Então, na minha aula não! Eu tenho uma postura, sempre tive, isso é bem individual mesmo, sou muito enérgica com os meus alunos, e hoje, tendo a questão do aprimoramento em análise do comportamento, eu faço uma análise muito funcional da turma que eu acabo de pegar. Então, eu consigo fazer ali uma avaliação do comportamento geral da turma. E eu não trabalho com punição, porque se a gente pensar historicamente, o colégio militar trabalha com punição. Mas dentro das minhas aulas não! Eu trabalho com a questão do reforço positivo. Então tudo, o mínimo que o aluno me apresenta de bom é aquilo que eu vou reforçar nele. E as respostas são maravilhosas! [..] Então, na minha não! Na minha aula não. Porque assim, ela iria acontecer da mesma forma se fosse em outra instituição. Porque isso é uma coisa que eu pauto muito: o professor ele tem o domínio da sala dele. Independente se ele está dentro de uma instituição militar ou não. Muitas instituições acham às vezes que transformar o colégio para militar é a salvação para a indisciplina do colégio, eu não concordo! Eu acredito no potencial do professor, eu acredito que quando o professor quer, ele faz a diferença” (PROFESSOR 3).
O Professor 1 possui uma visão diferente dos professores 2 e 3. Ele percebe que a questão da disciplina facilita o trabalho do professor e que no colégio militar este elemento aparece de forma mais intensa do que em colégios não militarizados. Assim como mencionado pelo Professor 3, historicamente, o colégio da polícia militar tem como característica de controle dos corpos e dos comportamentos estudantis o método de punição, que favorece a disciplina. Ao lermos o Regimento do CPMG é possível perceber como os mecanismos de controle e a normatização são enaltecidos e destacados como marca positiva da instituição. No título IX, Capítulo I, do Regimento Interno do CPMG, são apresentadas as classificações das transgressões disciplinares:
Art. 162. As transgressões disciplinares classificam-se em: I - leve; II - média; III - grave. Parágrafo Único. A classificação da transgressão compete a quem couber aplicar a sanção, respeitando as considerações estabelecidas no art. 4º.
Art. 163. As transgressões de natureza leve são aquelas que não chegam a comprometer os padrões morais, pedagógicos e escolares, situando-se exclusivamente no âmbito disciplinar.
Art. 164. As transgressões de natureza média são aquelas que atingem aos padrões de disciplina e/ou comprometem o bom andamento dos trabalhos escolares.
Art. 165. As transgressões disciplinares de natureza grave, são aquelas que comprometem a disciplina, os padrões morais e os costumes, bem como o andamento dos trabalhos pedagógicos (GOIÁS, 2017, p. 46).
Acerca do controle nas aulas de Educação Física na instituição, percebe-se que esta prática ocorre de forma abrangente, de modo que o aluno seja controlado não apenas pelo professor que está com a turma, mas também por outros professores/coordenadores. Essa supervisão se dá por meio de um departamento localizado estrategicamente no alto e em frente à quadra poliesportiva do colégio em questão. Cercado por paredes de vidro, ao qual se tem a visão total e ampla do ambiente em que ocorrem as aulas de Educação Física. Tal projeto arquitetônico nos remete a ideia de panóptico, termo utilizado por Jeremy Bentham, em 1785, para designar seu projeto de prisão circular, sob o qual um observador central poderia vigiar todos os presos (TOMAZ, 2008). Segundo o autor, tal sistema poderia ser aplicado às escolas, fábricas e hospitais, o que facilitava o controle e disciplina dos indivíduos. Tal dispositivo de controle é discutido e analisado por Foucault (1975), no entanto, com dimensões mais amplas, associado à sociedade disciplinar e ao exercício de poder. O efeito mais importante do panóptico está no poder de controle dos corpos de forma consciente e constante, de modo a garantir a manutenção do comportamento dos indivíduos mesmo sem saber se estão sendo vigiados.
O Professor 3, assim como o Professor 2, entende que independente do colégio ser militar ou não, as questões relacionadas com a norma e a disciplina não se alteram e que o professor sim, é o responsável pelo desenvolvimento e comportamento de sua turma. O professor 3 ainda salienta que transformar instituições em colégios militares não seja a salvação para fugir da indisciplina, considerada por muitos como um dos problemas centrais da educação brasileira.
Tal discurso nos leva a refletir sobre o modelo de educação que tem sido almejado e propagado no Estado de Goiás, que tem na militarização dos colégios públicos a esperança de mudança por meio da ordem e da disciplina (discurso muito comum entre as famílias e autoridades políticas, militares e civis do Estado), estando este aspecto, no cento do debate sobre o tratamento dado ao corpo nas aulas de Educação Física destas instituições.
Esse debate não é tão recente assim. A ideia do controle do corpo como processo disciplinar também já acontecia, por exemplo, na Alemanha dos anos 1930 e 1940 e são descritas por Adorno e Horkheimer (1985, p. 219):
O amor da propaganda totalitária pela natureza e pelo destino é apenas uma superficial formação reativa a essa servidão ao corpo, à civilização malograda. Não podemos nos livrar do corpo e nós o louvamos quando não podemos golpeá-lo. A cosmovisão “trágica” do fascista são vésperas ideológicas a festejar verdadeiras núpcias de sangue. Os que na Alemanha louvavam o corpo, os ginastas e os excursionistas, sempre tiveram com o homicídio a mais íntima afinidade, assim como os amantes da natureza com a caça.
Essa passagem demonstra certa relação entre o controle do corpo e sua disciplina como forma de se manter um controle da natureza e da sociedade. Na própria perspectiva fascista, o controle do corpo, seu domínio e a busca de manter isso na sociedade era um desejo, ainda que as contradições sociais e os processos de resistência se mantenham presentes. Na fala do professor 1, em que se evidencia uma ideia de disciplina mais rígida, é possível pensar no trato com o corpo de uma maneira fragmentada. Assim, esses professores “[...] veem o corpo como um mecanismo móvel, em suas articulações as diferentes peças desse mecanismo, e na carne o simples revestimento do esqueleto. Eles lidam com o corpo, manejam seus membros como se eles já estivessem separados” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 219).
Ainda dentro dos aspectos da contradição, se por um lado, o trato com o corpo em uma perspectiva mais fragmentada pode fazer com que o aluno se construa com base na heteronomia, o reconhecimento da autoridade técnica do professor, também comentado pelo professor 3, constitui-se em um importante contexto para que, posteriormente, o aluno consiga se tornar autônomo (ADORNO, 2000).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O ensino nas aulas de Educação Física deve proporcionar vivências e conhecimento para além do ensino técnico, muitas vezes associado quase que exclusivamente ao conteúdo esporte. Temos uma diversificada gama de manifestações da cultura corporal de movimento, como a dança, as lutas, as práticas corporais alternativas e de aventura, dentre outros, que podem possibilitar o trabalho da Educação Física enquanto linguagem e emancipação corporal. Vale salientar que não descartamos o conteúdo esporte enquanto possibilidade de ensino associado à linguagem corporal, até porque, ele pode trazer conhecimentos significativos de si e, posteriormente, a construção de uma disciplina relacionada com a construção da autonomia, como diria Adorno (2000). No entanto, este não é o único meio de se chegar a uma educação que valorize os elementos de comunicação e expressão do corpo.
A linguagem deve propiciar ao aluno a sensibilidade corporal, a possibilidade de se relacionar com os outros e de se compreender em sua totalidade. Um corpo que carrega história, cultura, experiências e valores. Segundo Taborda de Oliveira (1998, p. 6), “[...] somente o homem é capaz de produzir cultura e a Educação Física só existe como construção humana e não como um a priori natural”. Dessa forma, percebe-se a importância de considerar aquilo que o aluno já traz como característica cultural advinda de suas experiências e contato social com aquilo que a cultura escolar pode proporcionar enquanto elemento formativo. O reconhecimento da diversidade possibilita à Educação Física uma ressignificação em termos de prática escolar, abrindo espaço para uma educação crítica, tendo na linguagem corporal um forte subsídio para a superação dos modelos segregadores e reducionistas que por muitos anos tem marcado a história da Educação Física.
Apesar de o corpo, aparentemente, não ser tão discutido e valorizado no projeto de ensino e ação pedagógica do colégio militar, a noção de educação para mobilidade social surgiu por diversas vezes nos discursos dos professores entrevistados. O que demonstra que apesar de os objetivos não estarem centrados na relação corpo-educação, existe um projeto direcionado para a construção da cidadania, embora nas falas dos professores, sobremaneira do professor 1, tenha-se em alguns momentos a presença de um discurso voltado ao modelo durkheiminiano, considerando certa relação com a construção de uma sociedade funcionalista. Desse modo, é possível perceber a valorização da educação instrumental em oposição à educação crítica, contribuindo para a manutenção do status quo ao atender aos preceitos do modelo social e econômico capitalista.
Pode-se perceber na fala dos professores uma preocupação quanto à reflexão sobre temas transversais, como a saúde, questões voltadas para a violência, o respeito no esporte e nas esferas da vida social, dentre outros. Tais elementos não podem ser descartados e caracterizados como fatores menos importantes no processo de aprendizagem, pois estes temas podem contribuir na construção de uma formação crítica e emancipatória, que constantemente são negligenciados na práxis pedagógica da Educação Física escolar. No entanto, apenas o debate, sem experiências sistematizadas em tempo e espaço adequados, não seria o suficiente para a aquisição de conhecimento das diversas manifestações culturais que poderiam emergir das aulas de Educação Física.