INTRODUÇÃO1
Estudos que investigam o tema da saúde nos currículos de formação em Educação Física (EF) apresentam dados que permitem-nos considerar que os mesmos ainda são, hegemonicamente, biologizados e que neles predominam os modelos tradicional-esportivo e técnico-científico e a abordagem médico-centrada (DESSBESELL; CABALLERO, 2016; BRUGNEROTTO; SIMÕES, 2009; PASQUIM, 2010). Esse cenário se assenta na própria constituição histórica da EF em sua relação com a saúde em moldes eminentemente anátomo-fisiológicos. Apesar de tal constituição histórica, ainda se observa que a EF atravessa (ou é atravessada por) momentos de problematização dessa hegemonia biomédica. A década de 1980 abre uma agenda de questionamentos/críticas sobre a tradição biomédica e esportivizada com base nas Ciências Sociais e Humanas e na Saúde Coletiva.
Dessbesell e Caballero (2016) destacam que a legislação brasileira propõe a transformação de profissionais de EF em profissionais da saúde, com destaque para as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) para os cursos de graduação da área da saúde aprovadas entre 2001 e 2004. Sobre as DCNs, Costa et al. (2018) argumentam que essas mantiveram aspectos do modelo tradicional de ensino. Ainda colocam que as DCNs da EF (bacharelado) “não explicitam a formação no contexto do SUS [Sistema Único de Saúde]” (COSTA et al., 2018, p. 1191, insertos nossos). Por seu turno, Dessbesell e Caballero (2016) comentam que essa aproximação com o SUS ainda tem um longo caminho a ser percorrido e que a tradição curricular da área, no anseio de se desvincular da formação para a educação básica e se consolidar na área da saúde, acaba por reproduzir e se subordinar aos pressupostos biomédicos. No entanto, os próprios autores consideram que, mesmo se aproximando da área da saúde, o profissional de EF ainda necessitará de conhecimentos pedagógicos provenientes da licenciatura (de forma que esses saberes sejam transpostos didaticamente).
Destarte, apesar de a EF ser considerada recentemente como profissão da área da saúde, o seu vínculo com esse tema antecede tal requisição. Inclusive, esse vínculo é observado nos currículos de formação do Centro de Educação Física e Desportos da Universidade Federal do Espírito Santo (CEFD/UFES). Nesse sentido, buscar uma análise em nível institucional poderá nos fornecer subsídios contextualizados para compreender como o tema da saúde se caracteriza frente as construções históricas da área. Na presente investigação, buscaram-se evidências a partir dos documentos que expressam como o tema da saúde é caracterizado na dinâmica curricular do CEFD/UFES. Partimos da premissa de que os documentos curriculares expressam as condições de possibilidades das opções políticas conformadas em determinado contexto institucional.
Os Projetos Pedagógicos de Curso (PPC) se tornaram um dos pontos de entrada no campo empírico da investigação. Primeiramente, orientamos uma leitura atenta para todos os elementos dos PPCs e não apenas para as disciplinas e ementas, assim, buscando pistas que indicassem perspectivas de saúde que viessem a corroborar a compreensão de como foi possível a abordagem do tema da saúde em alguns períodos históricos no CEFD/UFES. Na busca dessas pistas, vimos na teoria da estruturação (GIDDENS, 2009) elementos profícuos para a análise dos contextos institucionais, tanto quanto, a constituição da reflexividade que constitui (e, também, cria condições de possibilidades para mudar) os documentos curriculares.
Temos, na esteira da teoria da estruturação, a noção de “episódio” como chave de leitura utilizada para explicar os fenômenos de mudança social (GIDDENS, 2009). O episódio ou “caracterização episódica” significa o “delineamento de modos de mudança institucional de forma comparável” (GIDDENS, 2009, p. 287). Giddens (2009) se refere a episódio no tocante à explicação do surgimento e transformação dos Estados. No entanto, pretendemos nos apropriar dessa noção aqui para o caso particular ligado à análise dos fenômenos ligados aos PPCs do CEFD/UFES. Encontramos essa possibilidade quando o autor ressalta que:
Toda a vida social é episódica, e eu reservo a noção de episódio, como a maioria dos conceitos da teoria da estruturação, para aplicá-la a toda a gama de atividade social. Caracterizar um aspecto da vida social como um episódio é vê-lo como um certo número de atos ou eventos com um começo e um fim especificáveis, envolvendo assim uma determinada sequência (GIDDENS, 2009, p. 287).
Concebendo a construção de um PPC como uma atividade social é possível, então, lançarmos mão da noção de episódio para melhor compreender quais atos ou eventos são desenvolvidos em um determinado tempo-espaço com determinação do seu começo e fim. Partimos da premissa de que a sequência dos eventos e das ações se desdobram no tempo-espaço em um determinado contexto (ou seja, não há como separar a análise de um episódio da conjuntura na qual ele se passa). Nesse sentido, podemos visualizar as sequências das condições de possibilidades no decorrer das ações desenvolvidas no CEFD/UFES a partir da constituição dos PPCs e como neles estão expressos os eventos ligados à tematização da saúde. Essa ferramenta conceitual nos possibilita operar com a ideia de que a descrição de sequências como processos de mudança institucional pode indicar como o tema da saúde foi abordado em cada contexto onde se é produzido um novo PPC. Ou seja, tais processos acompanham a própria mudança institucional conforme a atuação de agentes capazes que operam segundo uma monitoração reflexiva (GIDDENS, 2009).
Giddens (2009) especifica quatro dimensões que auxiliam na categorização dos modos de mudança social conforme a natureza específica dos episódios: origem, tipo, momentum e trajetória. Com relação a primeira dimensão, afirma o autor, que é necessário observar as origens que demarcam o episódio, pois tal exercício poderá especificar um pano de fundo para avaliação das mesmas. A segunda dimensão se refere ao tipo de mudança social e se refere à intensidade e à extensão de determinada ação no tempo-espaço, ou seja, tem que ver com o grau de profundidade e a amplitude que ganha uma série de mudanças que desintegram ou remodelam as instituições. A terceira dimensão, ou momentum, deve-se à rapidez das mudanças em relação a formas específicas de caracterização episódica. A quarta, e última dimensão, que é a trajetória, relaciona-se com a direção da mudança.
Inicialmente, essas ferramentas conceituais nos ajudaram no desenvolvimento da narrativa no sentido de observamos cada momento em que um PPC é desenvolvido no CEFD/UFES como um episódio em que o tema da saúde surge enquanto eventos necessários à estruturação dos currículos de formação. Consideramos, também, o fato de que as dimensões citadas podem auxiliar na observação das formas em que se aborda o tema da saúde no sentido de propor uma análise sobre as origens dessa tematização, o quanto ela é intensiva ou extensiva e qual a trajetória que ela segue no decorrer das mudanças curriculares nessa IES.
O objetivo deste texto é investigar como se dão as caracterizações episódicas do tema da saúde nos currículos do CEFD/UFES. Temos nesse escopo, a possibilidade de perceber como tais processos influenciam e são influenciados pelas políticas de formação em EF.
MÉTODO
Trata-se de uma pesquisa de cunho qualitativo na qual habitamos o CEFD/UFES, principalmente, com vista a acompanhar suas tramas curriculares. Segundo informações do histórico obtidos no sítio eletrônico2, o curso de EF foi criado em 26 de junho de 1931, federalizado em 1940 e reconhecido como curso superior em 1961. Atualmente, o CEFD se destaca nacionalmente pela excelência na formação ofertada tanto em nível de graduação quanto de pós-graduação. Possui dois departamentos: Departamento de Ginástica e Departamento de Desportos. O objetivo do Centro é formar profissionais de EF, visando a inserção em distintos campos de atuação e intervenção. São ofertados, no âmbito da graduação, as formações em licenciatura e bacharelado em EF.
Inicialmente, acessamos os PPCs disponibilizados pelos Colegiados de Curso: PPC-L3 de 1991 (reforma curricular); PPC-L de 2002 (ajuste curricular); PPC-L de 2006 (reforma curricular); PPC-L de 2011 (ajuste curricular); PPC-L de 2012 (ajuste curricular); PPC-B4 de 2016 (primeiro currículo). A partir desses documentos, obtivemos acesso a informações sobre disciplinas ofertadas e narrativas sobre o tema da saúde em cada período de reforma/ajuste curricular.
Também realizamos entrevistas com alguns dos professores que participaram das construções curriculares dos cursos do CEFD/UFES. Adotamos a postura de utilizar a entrevista como uma espécie de intervenção com o(a) entrevistado(a). De certa forma, pensávamos que, a depender da potencialidade do encontro, poderíamos produzir distintos diálogos com variadas informações (TEDESCO; SADE; CALIMAN, 2013).
As entrevistas semiestruturadas foram balizadas, inicialmente, por três grandes questões: 1) o envolvimento com discussões nos currículos do CEFD/UFES (ora da licenciatura, ora do bacharelado ou ora de ambos); 2) como se davam as abordagens, o desenvolvimento do tema da saúde e suas tensões/jogos de força; 3) compreensão(ões) conceitual(is) que se tinha(m) sobre a saúde em cada período histórico. Esse esquema, aqui expresso didaticamente, nem sempre acabou sendo seguido linearmente/literalmente, até pelo fato de a própria história/memória trazida pelo(a) professor(a) constar de singularidades que fugiam a essas questões.
O acesso aos professores se deu por meio da técnica da “amostragem em bola de neve” (VINUTO, 2014). Utilizamos essa técnica no sentido de proporcionar o acesso a uma população da qual não tínhamos, a priori, precisão sobre sua quantidade. Tivemos contato inicial com dois professores (informantes-chave) considerados nessa técnica como “sementes”. O acesso a esses professores se deu por nossa aproximação com os mesmos, assim, facilitando o contato5. A partir de suas redes, eles indicaram6 outros cinco professores que participaram das construções e reformas curriculares no CEFD/UFES. Essas indicações surgiam conforme íamos conversando com os professores. Ao todo, tivemos contato e entrevistamos sete professores dos quais preservaremos as identidades conforme especificação ética da pesquisa. Esses professores participaram das reformas e dos ajustes curriculares. Conforme progredíamos na realização das entrevistas, observamos que as entrevistas e os contatos apontavam para um processo de saturação da temática investigada, pois acabavam por repetir informações.
As análises foram realizadas a partir da teoria da estruturação, mormente, na formulação da caracterização episódica (GIDDENS, 2009). As análises dos PPCs e o seu cruzamento com as entrevistas permitiram-nos desenvolver a caracterização das mudanças curriculares relacionadas ao tema da saúde em três episódios e dois momentum: I) o episódio sobre a ruptura com o currículo mínimo e a presença exógena do tema da saúde no CEFD/UFES; II) o episódio com relação ao redirecionamento para a formação de professores ou da ruptura com a formação generalista - em que observamos a saída do Centro Biomédico; dentro do episódio dois observamos dois momentum: a) o aumento da presença do tema da saúde no curso de licenciatura; e b) as ambiguidades e a baixa do tema da saúde no curso de licenciatura; III) o último episódio destaca o nascimento de um novo curso e suas ambiguidades.
A pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética e Pesquisa da UFES, obtendo aprovação com número de parecer 2.104.457. Todos os participantes foram esclarecidos e assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Episódio um: a ruptura com o currículo mínimo e a presença exógena do tema da saúde no CEFD/UFES
O PPC-L de 1991 (e o ajuste de 2002) empreende narrativa de ruptura para com a antiga norma formativa regimentada pela Resolução 69/69 (também conhecida como currículo mínimo). Nesse sentido, passa a seguir a Resolução 03/877 (BRASIL, 1987) a qual conclama uma nova orientação voltada para a ênfase pedagógica, em que “ser professor será à [sic.] base de sua identidade profissional” (PPC-L, 1991, p. 4). Assim, portanto, define a fundamentação precípua do currículo na área humanista permitindo a introdução ao conhecimento do ser humano em sua complexidade. Tal fundamentação tem ênfase nas áreas do conhecimento técnico-específico e da “ciência pedagógica”.
A formação do profissional de EF seria assegurada na competência do exercício da docência para atuar dentro e fora da escola. Entendemos aí, as condições de possibilidades da origem de tal episódio que inaugura no CEFD/UFES novas formas de se compreender e fazer as ações curriculares. Observemos a narrativa da professora 1:
Na época, ele era um currículo que se colocava de forma bastante ousada em relação às reformas curriculares da época. [...] E tinha, também, uma coisa que para mim era o fundamental de interessante naquele currículo. Mas que não funcionou. Que era a proposta, primeiro, da licenciatura plena assumir a formação pedagógica como sendo um mote central da formação do licenciado (PROFESSORA 1, entrevista).
A narrativa que apresenta o conceito de uma formação orientada no preceito da docência traz consigo a ideia de um projeto “ousado” para seu tempo. Essa ideia reverbera com outra narrativa: “[...] o currículo deu uma mudança muito significativa. Mudou o rumo mesmo, vamos dizer assim” (PROFESSORA 3, entrevista). Em tais elementos observa-se uma intensidade nesse currículo que se volta para a formação de professores orientada na reflexão pedagógica. Tal intensidade é percebida no tocante à presença maior de conhecimentos advindos das Ciências Sociais e Humanas, o que segue processos maiores. Corroborando esses argumentos, Machado (2012) comenta que a Resolução 03/87, ao trazer a flexibilização das diretrizes para a formação de professores de EF, possibilitou que as disciplinas advindas das Ciências Sociais e Humanas obtivessem relevância na formação inicial.
Contudo, mesmo que o PPC-L de 1991 se colocasse em outro rumo rompendo com a orientação anterior da Resolução 69/69, em relação ao tema da saúde não é percebida nenhuma interferência capaz de alterar uma visão tradicional posta pela influência biomédica no campo da EF. Levantamos como hipótese a ideia de que a influência dos conhecimentos das humanidades parece não ter chegado nas discussões sobre o tema da saúde nesse período, em nosso contexto pesquisado, muito em decorrência dos sujeitos que o desenvolviam estarem vinculados ao Centro Biomédico.
Abaixo vemos elementos acerca da presença biomédica no CEFD/UFES, inclusive, a partir do vínculo dessa presença no/com o Laboratório de Fisiologia do Exercício.
Tínhamos três laboratórios no Centro: o LAFEX, que era de longa data em parceria com o Centro de Ciências da Saúde. O LAFEX era um pé do CBM dentro do Centro de Educação Física.
[...] nós também tínhamos problemas na ordem da formação com as disciplinas do Centro Biomédico. Naquela época, o núcleo duro que fazia uma aproximação com o então Centro de Ciências da Saúde eram as disciplinas de anatomia, bioquímica, fisiologia. Bioquímica, a gente tinha filas imensas porque era um ponto de estrangulamento do currículo (PROFESSORA 1, entrevista).
Na visão da professora, essa relação com as disciplinas do Centro Biomédico era problemática no sentido de causar um “ponto de estrangulamento8 do currículo”. Consideramos que essa questão ressalta pontos de saturação no relacionamento entre professores que perspectivavam outro tipo de formação com relação ao tema da saúde, qual seja, que não se detivesse apenas em princípios orgânicos e biofisiológicos.
Ao observar a grade curricular e as ementas das disciplinas, notamos que o currículo não se refere primariamente ao tema da saúde, sendo esse mencionado apenas em duas disciplinas. A primeira é “Bioquímica”, que aborda o tema da saúde em sua ementa no trecho: “Recursos bioquímicos de laboratório na avaliação do estado de saúde” (PPC-L, 1991, p. 12). A segunda é “Higiene”, que apresenta o seguinte trecho vinculado ao tema da saúde: “Estudo e análise dos conceitos e objetivos da higiene, enfocando os fundamentais do binômio saúde/enfermidade” (PPC-L, 1991, p. 14). Ambas as disciplinas estavam vinculadas aos departamentos do Centro Biomédico - Departamento de Ciências Fisiológicas e Departamento de Medicina Social, respectivamente.
Essas disciplinas e suas origens demonstram como o tema da saúde foi engendrado nesse currículo ainda pela ação do Centro Biomédico o que nos apresenta uma forte ênfase biomédica. Temos aqui uma ambiguidade diante da origem do PPC-L de 1991. As mudanças em relação ao escopo da formação orientada para a docência não trazem em sua trajetória o tema da saúde, muito pelo fato de tal tema estar estruturado em outros Centros que não acompanharam essa mudança. Dessa forma, observa-se que tal perspectiva se liga a um contexto maior em que “[...] as atenções da [EF] estiveram voltadas para uma determinada saúde!” (CARVALHO, 2005, p. 99). Ou seja, uma saúde biológica e vinculada às Ciências Naturais. Vemos aqui que, uma vez que a transformação institucional referente ao tema da saúde não seguiu as transformações que o novo PPC possibilitou, acabou por impossibilitar uma trajetória própria na qual outras ações vinham sendo feitas. Dito de outra forma: as transformações engendradas nas ações dos professores do CEFD pareciam estar em descompasso com as ações dos professores do Centro Biomédico, pois, enquanto os primeiros buscavam dar uma nova orientação pedagógica ao currículo de formação em EF, os segundos pareciam não participar de tal processo. Tal perspectiva do processo nos traz indícios que, possivelmente, o Centro Biomédico tenha feito valer uma tradição biomédica que se colocava distante do que se esperava para a formação específica em EF (questão que traremos em narrativas de professores adiante).
Não obstante à presença do tema da saúde via Centro Biomédico, outras narrativas indicam que, nesse período, um grupo de docentes se colocou insatisfeito ante a tal espectro exógeno em um curso de EF voltado para a formação de professores.
Nós tínhamos um problema [...] que era da questão da abordagem, do que se aprendia, do que se estudava nessas disciplinas [se refere à disciplina de bioquímica - inserto nosso]; numa formação de licenciatura que tinha, declaradamente, a ideia de formar professores (PROFESSORA 1, entrevista).
E tinha muitos problemas, porque quem dava as disciplinas não tinham formação nem em EF e nem em área afim. [...] Quem dava essas disciplinas para a EF, geralmente, era uma pessoa formada em Odontologia. [...] E aí a gente começava a pensar isso: poxa vida, por que a gente não consegue trazer para cá essas disciplinas? (PROFESSORA 3, entrevista).
As duas narrativas apresentam um descontentamento sobre a abordagem da área de Ciências da Saúde no curso de licenciatura em EF. A questão posta confere a crítica ao tratamento exógeno que se vinculava mais às áreas em que os professores do Centro Biomédico se detinham do que uma aproximação à área da EF e suas peculiaridades. Na esteira de Cunha (2005), nota-se que os professores dos outros Centros orientavam sua docência segundo o estatuto político-epistemológico de sua área de formação e atuação. Em outras palavras, tratava-se de uma abordagem que não atendia as necessidades específicas da formação em EF, com vista à formação de professores. Compreendemos que esse descontentamento tenha originado as condições de possibilidades para a materialização da mudança institucional, como veremos no episódio a seguir.
Episódio dois: o redirecionamento para a formação de professores, ou da ruptura com a formação generalista; a saída do Centro Biomédico
O PPC-L de 2006 empreende narrativa que rompe com a formação generalista para dar ênfase à “formação de professores para atuar na educação básica”. Se o currículo anterior já havia sido orientado para a formação pedagógica, essa reforma radicaliza esse processo. Isso foi possível mediante a publicação das Resoluções nº 1 e 2 de 2002, que orientam os cursos de licenciatura e solicitam que os mesmos sejam distintos dos cursos de bacharelado (BRASIL, 2002a; 2002b). Essa reforma curricular toma como base a identidade profissional a partir da docência como apresentado no trecho a seguir:
[...] a identidade profissional encontra-se definida na docência e pautada em uma Educação Física que pode ser compreendida como área que tematiza as atividades corporais em suas dimensões culturais, sociais e biológicas, extrapolando a questão da saúde, relacionando-se com as produções culturais que envolvem aspectos lúdicos e estéticos, deixando de ter como foco apenas o esporte ou os exercícios físicos voltados para uma perspectiva restrita de saúde ou performance (PPC-L, 2006, p. 4, grifos nossos).
Percebe-se, no documento, a crítica a uma concepção restrita de saúde, a ideia de que a EF é uma área que dialoga com as várias dimensões de saberes para além da saúde (biológica/natural/orgânica). Temos aqui a origem sobre a qual se assenta tal reforma curricular ao mesmo tempo em que indica a trajetória para onde a mesma aponta, qual seja, a eminente formação de professores para a educação básica. A crítica realizada no PPC-L de 2006 se soma a outra sobre uma perspectiva de EF vinculada à saúde restrita ao aspecto biológico, o que se mostra um entrave à sua compreensão em uma dimensão educacional mais ampla. Ou seja, orientar o tema da saúde em moldes restritos de saúde acabam por propagar uma formação que não leva em consideração as complexidades da produção de saúde das populações (BAGRICHEVSKY, 2007).
Associado a essas críticas, o documento curricular ainda faz menção ao Parecer 009 da Secretaria de Ensino Superior (SESu) que retoma os trabalhos de elaboração de propostas curriculares. Também infere que se ignorou toda a discussão acumulada pela Comissão de Especialistas de Ensino em Educação Física (COESP/EF), assim, agrupando os “[...] trabalhos de elaboração das propostas por blocos de carreira, considerando o critério utilizado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (CAPES), o que fez com que a Educação Física ficasse no grupo dos cursos das Ciências Biológicas e Saúde” (PPC-L, 2006, p. 8).
O próprio documento faz a crítica sobre as implicações desse percalço no processo. Segundo a narrativa: 1) há o comprometimento da possibilidade de compreender as interfaces da EF com os diferentes campos de saberes; 2) há uma abertura para que professores de outras áreas interferissem e decidissem sobre questões importantes para a formação do profissional de EF; 3) há um resultante numa proposta cujo perfil profissional se indefine, mas acaba por se identificar com o perfil dos profissionais da área da saúde. O PPC-L de 2006 parece fugir dessas implicações orientando um documento com perfil definido para a docência escolar. Nesse sentido, é dedicado um espaço para a discussão da matriz e organização curricular do curso. Dessa forma, para além das disciplinas curriculares, o documento trabalha com a ideia de componentes curriculares (Seminários de Estudo, Seminários Articuladores de Conhecimento, Oficinas de Docência e Atividades Interativas de Formação - ATIF).
Dentro da organização curricular, observa-se a disciplina “Educação Física e Escola” que traz um trecho de sua ementa vinculada à saúde: “Discute as relações entre a Educação Física escolar e saúde” (PPC-L, 2006, p. 19). Sobre essa disciplina, a professora 3 comenta: “Então, a saúde era contemplada anteriormente na ementa, porque quando falava em EF e escola se entendia que ia trabalhar com toda a lógica da disciplina da educação básica” (PROFESSORA 3, entrevista). De todas as disciplinas que compunham esse currículo, somente a citada fazia referências para se discutir o tema da saúde. A fala da professora 3 direciona a ideia de que a saúde pensada nessa disciplina se ligava, estritamente, ao ambiente escolar o que coaduna com a concepção de formação pedagógica para a educação básica. No entanto, parece-nos difícil compreender que houvesse algum aprofundamento da discussão sobre o tema da saúde uma vez observada sua reduzida presença já na ementa da disciplina.
Outra questão observada foi que, em relação ao currículo anterior, não há mais a presença dos Departamentos do Centro Biomédico. Em artigo publicado sobre a implementação desse currículo ressalta-se a seguinte questão:
Foi essa atitude dialógica entre disciplinas acadêmicas, para abordar questões afetas à escola, à educação e à pedagogia e à educação física, que o novo currículo assumiu. Assim, prescindiu-se de disciplinas acadêmicas sobrepostas às disciplinas curriculares, que, por vezes, centram discussão em seus objetos e teorias clássicas (PAIVA; ANDRADE FILHO; FIGUEIREDO, 2006, p. 223).
A ação de prescindir das disciplinas clássicas e tradicionais pode ser vinculada à ideia de que “o tema da saúde no currículo de licenciatura foi cuidadosamente pensado para mudar a lógica das disciplinas da saúde” (PROFESSORA 3, entrevista). A professora se refere às disciplinas da área biológica como Anatomia, Biologia, Fisiologia, etc.
A crítica endereçada à perspectiva biologicista predominante na formação em EF, tinha como objetivo dar uma nova ênfase ao trato do tema da saúde. Contudo, parece-nos que os movimentos realizados na reforma curricular de 2006 se importaram mais com a crítica à saúde vinculada ao paradigma da aptidão física do que, segundo Carvalho e Ceccim (2006), com a proposição de questões que se seguiram a partir do movimento sanitarista no Brasil - tais questões pouco estavam presentes no documento analisado. Parece-nos que o documento apresenta, com relação ao tema da saúde, uma faceta muito mais crítica do que propositiva.
Retomando a questão da saída do Centro Biomédico do CEFD/UFES, vemos duas facetas para tal fenômeno. A primeira, pela aproximação dos professores que construíram o documento com a área da Educação e sua resistência ao modelo esportivo e da saúde vinculada ao paradigma da aptidão física (BRACHT, 2014). A segunda foi a possibilidade criada pela contratação de novos docentes a partir de concursos públicos9. É nesse cenário que se encontram as disputas em torno da hegemonia curricular e é nesse momento que o Centro Biomédico sai do CEFD/UFES.
Momentum um: o ajuste curricular do PPC-L 2006 e o aumento da presença do tema da saúde
Na revisão curricular do PPC-L de 2011, observa-se a emergência de quatro componentes curriculares voltados especificamente para o tema da saúde, além da disciplina “Educação Física e Escola” já apresentada anteriormente.
São os componentes curriculares as Oficinas de Docência: “Socorros de Urgência” - voltada para as noções de saúde vinculadas às situações de urgência e emergência; e “Inquéritos em Atividade Física, Saúde e Nutrição” cuja ementa se concentra no trato pedagógico desse conteúdo de ensino. Também se observam duas ATIFs: Educação Física e Saúde I e II. A ementa da ATIF I é a “vivência, estudo e problematização de questões relativas à Educação Física e saúde e sua inserção em diferentes ambientes educacionais”, a ementa da segunda é o aprofundamento da primeira. Aqui temos o aumento da presença do tema da saúde - pelo menos, no aspecto documental. Contudo, o documento, por si só, não precisa se tais componentes curriculares foram ou não ofertados, uma vez que eles são elementos optativos10.
Diante desse ajuste curricular, questionamos a proposição que remete à fragilidade dos cursos de licenciatura em EF para a área da saúde (RODRIGUES et al., 2013), pelo menos, no caso do CEFD/UFES que nesse momentum passa a desenvolver componentes curriculares que abordam tal temática. Um dos argumentos que abarcam a crítica sobre a fragilidade das licenciaturas é decorrente do fato de não haver disciplinas direcionadas ao tema da saúde em detrimento de disciplinas estritamente pedagógicas para o campo escolar. A grande questão é que esse tipo de narrativa vem acompanhada da noção de que seria apenas o bacharelado a formação condizente com o desenvolvimento do tema da saúde. Vemos, então, que, no CEFD/UFES, a inclusão de componentes curriculares que passam a tematizar a saúde em espaços pedagógicos corrobora uma crítica contrária a tal argumentação, demonstrando que os cursos de licenciatura também necessitam de espaços-tempos que fortaleçam o desenvolvimento da saúde voltada para seu campo de atuação, quais sejam, os ambientes educacionais.
O ajuste referido aqui se expressa como um momentum que delineia maior presença do tema da saúde nos currículos de formação do CEFD/UFES. Entendemos que há sobre o tema da saúde uma maior intensidade devido, em parte, às condições de possibilidades criadas anteriormente na reforma curricular de 2006. Acreditamos, então, que em tal momentum o tema da saúde ganha certa visibilidade da qual ainda não havia recebido em PPCs anteriores.
Momentum dois: um novo ajuste curricular e a baixa do tema da saúde no curso de licenciatura
Em 2012 um novo ajuste parte da justificativa por um duplo movimento: reduzir a carga horária total do curso de forma a organizá-lo, prioritariamente, em um único turno sem perder de vista a lógica interna de formação de professores.
A comissão responsável pelo trabalho de ajuste observou “[...] a necessidade de se problematizar questões afetas ao treinamento esportivo, à saúde e ao lazer no contexto escolar” (PPC-L, 2012, p. 9). Observa-se a constatação da comissão da redução de discussões acerca de temáticas como o lazer e a saúde na sua interface com a educação e a EF. Especificamente, foi proposto alterar a disciplina “Educação Física e Escola” do PPC anterior e criar a disciplina “Educação Física Escolar: saúde e lazer”. No processo de discussão entre os departamentos, foi solicitado que a disciplina fosse desmembrada, criando-se, então, a disciplina “Educação Física e Saúde”11 com a seguinte ementa:
Saúde como um fenômeno simultaneamente coletivo e individual, biológico e cultural: dimensões subjetivas, políticas, sociais, históricas. Relação entre conceitos-chave do campo e os modos de pensar/realizar o cuidado em saúde: um olhar para a educação física. Educação em saúde no espaço escolar (PPC-L, 2012, p. 24).
Todo esse movimento é expresso também na fala da professora 4:
Mas, especificamente, em relação ao bloco da saúde, ela não existia no primeiro currículo. [...] E a comissão entendeu que era importante um debate, mesmo que inicial e introdutório, sobre qual é o entendimento de saúde que se gostaria de problematizar com os professores. Porque eles estão na escola, onde diferentes questões aparecem do ponto de vista da saúde (PROFESSORA 4, entrevista).
É possível inferir que a criação de uma disciplina com especificidade vinculada aos preceitos do movimento sanitarista brasileiro (BAGRICHEVSKY, 2007) parece aproximar um esforço desse currículo com o cenário acadêmico da área que vem dialogando, nos últimos anos, com os debates da Saúde Coletiva.
No entanto, percebe-se uma ambiguidade entre a justificativa da comissão (de que discussões nessa temática se encontravam reduzidas) e a retirada das Oficinas de Docência e das ATIFs “Educação Física e Saúde I e II”, até então, presentes no último ajuste curricular. Ou seja, parece contraditório o movimento de retirar tais componentes curriculares, os quais se mostravam espaços ímpares de discussão e formação em educação para a saúde.
Dos dois episódios citados anteriormente, somamos agora um terceiro com o nascimento do curso de bacharelado. De certa forma, entendemos que sua criação encontra condições de possibilidades não somente na legislação, mas, principalmente, nas ações de professores em dois sentidos: o primeiro, de um grupo de professores que orientou os episódios anteriores até chegarem ao curso de formação de professores o que causou, impremeditadamente, o segundo, em que outro grupo de professores acabou por encontrar como alternativa diante do contexto vigente a criação de um novo curso (muito pelo viés de um descontentamento como comentaremos a seguir).
Episódio três: o nascimento de um novo curso e seus paradoxos
O PPC do curso de bacharelado, criado em 2008, inicia anunciando as novas exigências/demandas da sociedade e o “intuito de formar profissionais qualificados para atuar nas áreas de Práticas Corporais relacionadas à Saúde e do Esporte/Lazer” (PPC-B, 2016, p. 3).
As entrevistas com os professores 1, 2, 3 e 6 abordaram o contexto histórico precedente à criação do curso de bacharelado - devido a aproximação deles com esse curso. É ressaltado desde o questionamento da Universidade e a sobrevivência do CEFD, até as condições de possibilidades advindas do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI) como elemento sine qua non para contratação de novos professores.
Destacamos um ponto do REUNI que está relacionado com a articulação da graduação com a pós-graduação, em que a expansão quali-quantitativa da pós-graduação deverá ser orientada para a renovação pedagógica da educação superior (BRASIL, 2007). No âmbito da UFES, a resolução nº 38/2007 que aprova o Plano de Reestruturação e Expansão dessa instituição inclui como meta a criação do curso de bacharelado e do mestrado em EF no CEFD. Essas ações estão em acordo com a proposta de articulação da graduação com a pós-graduação a partir da expansão da pós-graduação orientada para a renovação pedagógica da educação superior.
Percebe-se que o REUNI influenciou diretamente na criação do curso de bacharelado do CEFD/UFES. Também é possível notar que tal programa fomentou modificações no âmbito da formação a partir da reestruturação curricular, da relação entre a graduação e a pós-graduação e da própria contratação de professores12. Entendemos que o REUNI afetou decisivamente a construção das condições de possibilidades sobre as configurações que o tema da saúde veio a receber no decorrer das reformulações/ajustes curriculares e a influência que a pós-graduação veio a incidir nesse processo13.
Internamente, as falas dos professores ressaltam outro elemento que motivou a criação desse curso. Trata-se de uma espécie de “descontentamento/estranhamento” de alguns professores diante das reformas curriculares ocorridas, principalmente a partir do PPC-L de 2006 que orientou uma formação estritamente para o âmbito da educação básica.
De certo modo, vemos que isso se deve, em grande medida, pela orientação político-epistemológica (CUNHA, 2005) dos professores menos ligados às questões afetas aos conhecimentos pedagógicos e de formação de professores. Ou seja, vemos que esses fenômenos não se desligam de movimentos estruturantes que, inclusive, são sustentados mediante a reflexividade institucional (GIDDENS, 2009) de programas como, por exemplo, o REUNI que afetam a forma da Universidade influenciar na construção do currículo do bacharelado. Podemos inferir, também, que a consciência prática de tais professores não se ligava ao que fora proposto nas reformas curriculares do curso de licenciatura os levando a agir para a mudança do cenário institucional com a criação de um novo curso no CEFD/UFES. É possível pensarmos nisso, uma vez que o professor 7 comenta que:
[...] o curso de licenciatura na época apresentou uma matriz, [...] assim, que está mais para ser um pedagogo do que um professor de EF. Aí, um determinado grupo de professores falou: ah não! Agora por vez a gente tem que criar o bacharelado. Porque não tem como. Aonde que eu vou me encaixar dentro disso daqui? Não têm condições (PROFESSOR 7, entrevista).
A “realização enquanto professor” pode ser compreendida como a intenção de manter uma rotina constituída no seio das subjetividades de um grupo de professores. E, segundo Giddens (2009), a rotina faz parte da continuidade da personalidade do agente, ou seja, ela é baseada na consciência prática. Logo, criar o curso de bacharelado parece ter sido uma forma desse grupo de professores dar continuidade à rotina e à produção de uma consciência prática calcada naquilo que eles consideram o correto a se fazer quando se trata da formação em EF. Parece-nos que a ação de levar o currículo da licenciatura unicamente para as questões escolares afetou a rotina de um grupo de professores, tanto quanto, a sua consciência prática vinculada à tradição da formação nos currículos anteriores para outros espaços de atuação como o lazer e o esporte. Logo, a saída para tal impasse e a “restauração” da rotina se deu mediante a possibilidade da ação de criar o curso de bacharelado.
Destarte, nota-se que a criação do curso de bacharelado em EF do CEFD/UFES é atravessada por fatores macro e micropolíticos, indo desde às pressões institucionais da Universidade às políticas governamentais de fomento à Educação Superior (como, por exemplo, o REUNI) às disputas internas no Centro pela orientação político-epistemológica dos cursos de formação, etc. Além das novas demandas sociais com relação à diferenciação interna da área as quais o PPC-B de 2016 vem a expressar. Sobre a questão da diferenciação, Bracht (2003) assinala que ela surge quando novas funções são solicitadas a uma instituição social ou sistema. E uma das novas funções que o PPC-B de 2016 apresenta é a demanda da EF no setor da saúde (público e privado).
O PPC-B de 2016 demonstra como, na legislação, é pertinente a discussão que amplia o sentido da EF para além do campo da saúde e da perspectiva biológica, sem, contudo, eliminá-las. Não obstante, o documento reconhece como um dos núcleos da formação do bacharelado em EF aquele que liga as práticas corporais à saúde.
O núcleo de práticas corporais relacionadas à saúde mobiliza um conjunto de conhecimentos e práticas relacionadas à manutenção e melhoria da integridade biopsicossocial da vida humana, uma expressão particular do processo saúde/doença (BREILH & GRANDA, 1989). Entende o conceito de saúde em sentido amplo, que além de componente da vida é um direito social, no qual os indivíduos, e toda a população, possam ter assegurados o exercício e direito à saúde, a partir do acesso aos bens e serviços de saúde, aos conhecimentos e tecnologias disponíveis e desenvolvidos na sociedade, adequados às suas necessidades fisiológicas historicamente determinadas. Este conceito abrange a promoção e proteção da saúde, prevenção, diagnóstico, tratamento e reabilitação de doenças. Em outras palavras, considera-se esse direito como componente das condições de vida, de classe social e de cidadania (PPC-B, 2016, p. 10).
O PPC-B propõe se basear a partir de um conceito ampliado de saúde que se aproxima das discussões realizadas pela VIII Conferência Nacional de Saúde (BRASIL, 1987). A partir do espectro ampliado, é direcionada a correlação do exercício físico e saúde nas mais variadas gamas de saberes que vão desde os conhecimentos biofisiológicos até os socioculturais, pedagógicos e políticos. Nesse sentido, consideramos que o currículo prescrito apresenta um salto qualitativo por referendar conhecimentos advindos das Ciências Sociais e Humanas que pode elaborar “[...] outra lógica para a formação em EF no campo da saúde” (NASCIMENTO; OLIVEIRA, 2016, p. 210). Essa lógica, segundo o documento curricular, e em afinidade com Nascimento e Oliveira (2016), estende-se como ações: a) política, no sentido de expressar para além da compreensão de ser humano historicamente situado, também o conceito de saúde ampliado (ou seja, para além da esfera biológica que reduz o sujeito a fenômenos fisiológicos descontextualizados); b) prática, ao mencionar o caráter metodológico do processo de aproximação com os contextos de prática; c) pedagógica, no tocante ao direcionamento de questões para a abordagem de conteúdos/conhecimentos pertinentes ao contexto complexo e multidimensional da vida humana.
Contudo, tais informações obtidas no PPC-B de 2016 se chocam com as falas de alguns professores entrevistados:
Já na discussão do bacharelado, ela também tem nas disciplinas, nas ementas essa visão mais ampla. Só que a gente percebe que no vivido há uma tentativa de biologização também. Então, a gente percebe, assim, nas nossas reuniões de Departamento todo mundo que pesquisa na área biológica, eles se intitulam professores da área da saúde. Como se bastava estar envolvido com a área biológica já ser uma pessoa envolvida com a área da saúde. Então, há um certo reducionismo na fala em relação ao tema saúde quando se fala em vivido (PROFESSORA 5, entrevista).
A fala da professora 5 nos permite identificar as tensões desenvolvidas entre o currículo prescrito e aquele vivido na instituição em seu cotidiano. E ela complementa: “[...] no bacharelado, uma percepção de que, embora se tenham disciplinas com a discussão mais amplas ali, no vivido, nas falas, nas entrelinhas, ali a gente percebe uma generalização de que a saúde é biológica. Eu vejo muito isso” (PROFESSORA 5, entrevista).
Não obstante, essas duas falas convergem para a questão de um trato biológico da saúde na formação inicial em EF, questão também muito presente no próprio campo acadêmico e profissional (BRACHT, 1999). O estudo de Pizani e Barbosa-Rinaldi (2014) nos dá indícios, ao investigar IES no Estado do Paraná, sobre a questão voltada ao tema da saúde que observamos em nossa pesquisa. Trata-se da crescente ênfase na dimensão “técnico-instrumental” seguida da dimensão “biológica do corpo humano”. Assim como as autoras observam em sua realidade investigada, também podemos analisar que, em nosso contexto pesquisado, há uma aproximação com uma concepção tradicional e hegemônica de saúde, qual seja, aquela ligada a princípios restritos fundamentados unicamente em ditames das Ciências Naturais e Biológicas.
Além dessas tensões entre o currículo prescrito e o vivido, retomemos o prescrito para observarmos as disciplinas e ementas apresentadas no PPC-B de 2016 e, também, algumas de suas contradições e ambiguidades. A partir de seu objetivo de formar um profissional no campo das práticas corporais relacionadas à saúde e nos campos do esporte e do lazer, observamos, especificamente, como o tema da saúde se encontra nas disciplinas14 e em suas respectivas ementas.
Observamos duas disciplinas obrigatórias, 14 optativas e um estágio supervisionado15. Das disciplinas, uma obrigatória e duas optativas apresentam ementas com uma perspectiva ampliada de saúde. Já as demais apresentam ementas que não são claras (n=5) quanto à perspectiva de saúde, ou que se vinculassem a uma concepção restrita (biofisiológica) de saúde (n=5), ou não apresentaram ementa (n=4). Essa observação das ementas nos permite declarar que há um paradoxo entre a narrativa curricular que expressa o trabalho com uma concepção ampliada de saúde e o número de disciplinas que se vinculam a esse tipo de discussão. Ou seja, dentre 17 componentes curriculares, apenas três apresentam claramente uma perspectiva ampliada de saúde.
Pode-se somar a essas pistas das configurações prescritas, aos indícios que se ligam às orientações político-epistemológicas dos professores direcionam o seu modo de atuação didático-pedagógica no desenvolvimento das disciplinas curriculares. Ou seja, apesar de haver um documento orientador (mesmo que paradoxal em suas proposições), em Cunha (2005) vemos que a ação docente16 acaba por perpetrar no cotidiano das práticas universitárias outras formas de se abordar as temáticas de disciplinas que, primeiramente, não estavam prescritas no documento.
Sob essa perspectiva, Giddens (2009) tem sido um colaborador quando nos traz as questões afetas à reflexividade institucional no sentido de perceber que os mesmos agentes que produzem o currículo prescrito também reproduzem o vivido mediante o estabelecimento de uma consciência prática monitorada reflexivamente. Os elementos empíricos que corroboram a construção desse episódio indicam que a consciência prática perpetrada nos currículos de formação do curso de bacharelado vincula-se a uma orientação político-epistemológica calcada nas Ciências Naturais e Biológicas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No presente texto observamos a caracterização episódica do tema da saúde nos currículos de formação em EF do CEFD/UFES. Os episódios analisados destacam a constituição dos projetos curriculares desse Centro que são perpassados por distintas ações sociais contextualizadas e localizáveis no espaço e no tempo. Tais ações são desenvolvidas por agentes capazes, identificados em nossos dados empíricos como os professores que exercem atividades de ensino, pesquisa, extensão e administração.
Observamos como o tema da saúde percorre trajetos distintos desde uma presença exógena em moldes biológicos até uma reforma que reclama para si que tal tema seja abordado por professores com formação em EF. Esse processo é perpassado pela crítica alçada a uma saúde biológica que deságua na constituição de um espaço-tempo em uma disciplina que se achega aos preceitos da Saúde Coletiva no curso de licenciatura. Contudo, consequências não premeditadas e coerções institucionais criam condições de possibilidades para a criação do curso de bacharelado onde o tema da saúde é tratado em meio ao paradoxo de uma narrativa ampliada frente a ação de professores e a constituição de disciplinas mais vinculadas aos preceitos das Ciências Biológicas e Naturais.
Essa caracterização episódica nos possibilita problematizar como o tema da saúde vem sendo abordado nos currículos de formação em EF. Um primeiro ponto se dá que a saúde para a EF necessita de ser tematizada a partir da especificidade da área (e não como um aspecto exógeno a ela). Outro ponto se vincula à presença do tema da saúde nos cursos de licenciatura como elemento imprescindível, devido à própria constituição histórica da EF com a saúde e, também, pela necessidade de problematizar as práticas corporais e sua relação com uma educação para a saúde no espaço escolar em aspectos ampliados (ou seja, para além da mera exercitação corporal). Por último, é necessário repensar as configurações que o tema da saúde vem assumindo no bacharelado, no sentido de não sobrepor a dimensão biofisiológica em detrimento das outras dimensões da vida (social, histórica, cultural, econômica, etc.). Nesse sentido, observamos como a aproximação com a Saúde Coletiva é uma ação necessária no sentido de equilibrar tais configurações curriculares.
Por fim, é possível considerar que as condições de possibilidades para o trato do tema da saúde na formação inicial em EF estão atreladas aos aparatos da reflexividade institucional que possibilita a produção e reprodução do sistema curricular no CEFD/UFES. Assim, observar as ações sociais, os processos de estruturação nos recursos armazenados e a reflexividade institucional, projetam-nos pistas de como o tema da saúde acompanha as reproduções e diferenciações curriculares estando integrada a elas em distintas configurações no decorrer do tempo e do espaço.