INTRODUÇÃO
Esporte e Psicologia começaram a ter relação mais estreita no final do século XIX e início do século XX. Este diálogo culminou em uma área conhecida hoje como Psicologia do Esporte (SOUZA; SOUZA; FERREIRA, 2011). Segundo Weinberg e Gould (2017), os estudos nessa área têm dois objetivos: (1) entender como fatores psicológicos afetam o rendimento dos indivíduos e (2) entender como a participação em práticas esportivas influencia o desenvolvimento psicológico, a saúde e o bem-estar dos indivíduos.
Neste sentido, são estudados diversos fatores psicológicos, tanto positivos quanto negativos, buscando entender a interação destes com a prática esportiva. Jackson (1996) aponta que, tanto as experiências positivas, quanto as negativas são igualmente importantes de serem estudadas e entendidas, pois dependem de cada pessoa, de cada situação e de cada modalidade esportiva.
Dentre as variáveis psicológicas, o Estado de Fluxo é considerado como o estado positivo em que o indivíduo está totalmente conectado à atividade, sendo, portanto, um estado desejado por atletas, que pode ser desfrutado por qualquer praticante de atividade física (JACKSON, 1996). Segundo Zumeta e colaboradores (2016), o Estado de Fluxo é uma experiência ótima e profundamente gratificante, com foco intenso na atividade, sendo que a pessoa é totalmente absorvida por esta, eliminando todos os outros pensamentos e emoções.
Csikszentmihalyi (1999) desenvolveu a teoria sobre o Estado de Fluxo, a partir da investigação de atividades intrinsicamente motivadoras na década de 60. O autor estudou indivíduos que realizavam escalada, dança, xadrez, música e esportes, sempre visando identificar as características necessárias para atingir este estado ‘ótimo’ (NAKAMURA & CSIKSZENTMIHALYI, 2009).
Csikszentmihalyi e colaboradores, no estudo publicado em 2018, abordam o Estado de Fluxo como combustível motivacional em atividades criativas. Este estado psicologicamente ótimo é capaz de motivar o indivíduo na busca de metas criativas e também de dar soluções mais criativas para desafios percebidos (CSIKSZENTMIHALYI, MONTIJO, MOUNTON, 2018).
O Estado de Fluxo correlaciona-se positivamente com o rendimento esportivo (JACKSON & ROBERTS, 1992) e também com maior prazer e motivação para a prática (JACKSON, 1996). No esporte, atingir o Estado de Fluxo é de extrema importância, uma vez que representa o sentimento de profundo bem-estar, sem interferência de outras manifestações psicológicas negativas pertencentes, muitas vezes, à vida cotidiana ou ao estresse da própria prática a que está inserido.
Para acessar o Estado de Fluxo é necessário alguns elementos:
Percepção do desafio proposto;
Objetivo definido;
Consciência da qualidade das suas ações, ou seja, um feedback imediato;
Concentração e envolvimento profundo com a tarefa;
Sensação de controle sobre situações difíceis;
Foco apenas no momento presente;
Alteração na percepção da passagem do tempo, uma impressão de que o tempo passou mais devagar, ou mais rapidamente que o de costume;
Equilíbrio entre suas habilidades e o desafio proposto;
Fusão entre ação e consciência, de modo que não há energia extra sendo despendida em outra tarefa naquele momento.
Essas características foram moduladas pelos principais autores do tema, Csikszentmihalyi, Jackson e Nakamura, nos estudos que se estenderam de 1996 a 2002 nas quais algumas dessas características são fundamentais para caracterizar o Fluxo. Por exemplo, ser capaz de perceber o feedback e se adaptar de acordo com o desempenho na tarefa pode proporcionar a atenção necessária para um Estado de Fluxo mais profundo num processo cíclico (LAMBERT & CSIKSZENTMIHALYI, 2019)
Segundo esses autores há, ainda, um outro elemento que possibilita a ocorrência de todos os demais: a experiência autotélica (auto: por si mesmo/de si mesmo; e télico: finalidade). Neste sentido, a experiência deve ter um fim em si mesma, não tendo outra recompensa que o simples prazer de realizá-la (CSIKSZENTMIHALYI, 1990).
A Teoria do Fluxo mostra o ser-humano em uma perspectiva de constante aprendizado, resultando em um desenvolvimento contínuo de habilidades à medida que o desafio se torna mais fácil e suas habilidades mais apuradas. Essa relação estabelece mudanças para que o Fluxo se mantenha presente, provocando um processo de desenvolvimento humano que se dá por toda a vida (TSE, NAKAMURA, CSIKSZENTMIHALYI, 2019).
Assim, conhecer o Estado de Fluxo e a disposição que os praticantes têm para acessá-lo pode colaborar com o bom rendimento em diversas práticas, circunscritas tanto no meio esportivo quanto em outros âmbitos da vida. Buscar atividades de cunho autotélico passou a ser mais comum e o slackline é um exemplo disso.
O slackline é uma modalidade esportiva, na qual o objetivo é manter-se em equilíbrio em pé ou andando em cima de uma fita (KELLER et al., 2012). Dependendo do tamanho e da tensão da fita, as características da prática são alteradas e o nível de dificuldade ajustado (PFUSTERSCHMIED et al., 2013). Esta modalidade é considerada um esporte de aventura (PEREIRA, 2013) e vem ganhando mais adeptos nos últimos anos (XAVIER, 2012).
A literatura científica sobre a modalidade é recente, sendo que a maioria dos estudos foca nos efeitos posturais e no equilíbrio promovido pela prática (DONATH et al., 2013; GRANACHER et al., 2010; KELLER et al., 2012; PFUSTERSCHMIED et al., 2013; THOMAS & KALICINSKI, 2016). Até o presente momento, nenhum estudo investigou a relação do Estado de Fluxo em praticantes de slackline, tampouco relacionando à qualidade de vida (QV), que é definida pela Organização Mundial da Saúde (OMS, 1946) como a autopercepção do indivíduo sobre sua saúde, o contexto sociocultural em que está inserido levando em consideração seus objetivos, expectativas e padrões pessoais. Sendo assim, a qualidade de vida reflete a subjetividade do resultado e sua compreensão sobre sua própria vida (ROPKE et al, 2017) podendo ser avaliada utilizando o WHOQOL-bref (The WHOQOL Group, 1998), que mensura a qualidade de vida em quatro Domínios: o Físico; o Social; o Psicológico e o de Meio Ambiente.
Diante deste contexto, o objetivo deste estudo foi constatar a presença do Estado de Fluxo nesse público, a disposição que estes indivíduos têm em acessá-lo para, posteriormente, correlacionar os achados com o tempo de prática, a frequência na semana, a duração da sessão de treino e a qualidade de vida.
MÉTODOS
Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UNICAMP (CAAE: 24439313.7.0000.5404), respeitando os princípios da declaração de Helsinque (WORLD MEDICAL ASSOCIATION, 2001). Todos os participantes deixaram claro sua concordância com a pesquisa através da assinatura do Termo de Concentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
A pesquisa foi realizada em locais de prática de slackline das cidades de Campinas e Bragança Paulista, no interior do estado de São Paulo, Brasil.
Amostra
Participaram da pesquisa 30 praticantes de slackline, 24 homens e 6 mulheres, com média de idade de 22 ±3 anos. Como critério de inclusão, os sujeitos deveriam ser maiores de 18 anos e ter no mínimo 3 meses de prática, com frequência de pelo menos 1 vez por semana. Os sujeitos que possuíram algum déficit associado que impedisse a resposta aos questionários e/ou que não aceitassem participar da pesquisa por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foram excluídos do estudo.
Instrumentos
Foram utilizados quatro questionários:
1) Ficha de identificação para caracterização geral do praticante, com informações quanto à idade, sexo, participação em competição, tempo de prática, frequência de prática por semana e duração da sessão em horas.
2) Flow State Scale-2 (FSS-2) (JACKSON & EKLUND, 2002) que avalia o acesso à experiência de Fluxo em atividades físicas. É respondido logo após a prática justamente por mensurar o Estado de Fluxo especificamente em uma atividade. É composto por 9 questões, onde cada uma remete a uma dimensão do Estado de Fluxo.
3) Dispositional Flow Scale-2 (DFS-2) (JACKSON & EKLUND, 2002) que avalia a disposição/propensão de o sujeito acessar o Estado de Fluxo a partir da frequência com que o sujeito experimenta este estado em sua prática. Deve ser respondido antes da prática. Este instrumento é composto por 9 questões, onde cada uma remete a uma dimensão Estado de Fluxo. Cada questão do DFS-2 e do FSS-2 possui uma escala de 1 a 5. Para o cálculo final, somam-se os resultados de cada questão e divide-se por 9, isto é, uma média simples. Sendo assim, quanto mais perto de 5 a média, maior é o índice de Fluxo.
4) World Health Organization Quality of Life - Bref (WHOQOL-Bref) (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 1996) que contém questões para a qualidade de vida nos domínios: físico, psicológico, relações sociais e meio ambiente. Contém 26 questões, sendo duas questões gerais de qualidade de vida, e as demais representam cada uma das 24 facetas que compõem o instrumento original. Para esse estudo, foi considerada a pontuação entre 0 e 100 (PEDROSO et al., 2010).
Procedimentos
Foi apresentado o projeto e seus objetivos para os voluntários que aceitaram participar da pesquisa. Após assinarem o TCLE, responderam aos questionários individualmente. As condições de aplicação foram semelhantes para todos. Os participantes levaram aproximadamente 20 minutos para responder os instrumentos: Ficha de identificação, DFS-2 e WHOQOL-Bref, aplicados antes da prática do slackline, e 3 minutos para responder ao último, FFS-2, após a prática.
Análise estatística
Foi realizada a análise exploratória de dados através de medidas resumo (frequência, porcentagem, média, desvio padrão (±DP), mínimo, mediana e máximo). A correlação entre os instrumentos foi avaliada através do coeficiente de Spearman. O teste não paramétrico de Kruskal-Wallis foi usado para comparar os grupos de diferentes níveis em relação aos instrumentos.
RESULTADOS
O estudo teve o objetivo de avaliar o Estado de Fluxo nos praticantes de slackline e relacionar estes dados com a QV, tempo de prática, frequência na semana e duração da sessão de treino.
Participaram do estudo 30 sujeitos. Os praticantes tiveram tempo médio de 1 ano (±1,06), com frequência de 2 (±1,31) vezes na semana, com duração de 3 (±1,33) horas.
Estão presentes na Tabela 1, os valores dos instrumentos para o acesso ao Estado de Fluxo (FSS-2), a disposição/propensão para atingir Estado de Fluxo (DFS-2) e os índices do WHOQOL-bref.
Questionário (n=30) | Média | DP (±) | Mínimo | Mediana | Máximo |
FSS-2 | 3,97 | 0,48 | 3,00 | 4,00 | 5,00 |
DFS-2 | 3,92 | 0,49 | 2,80 | 4,00 | 4,70 |
Domínios da Qualidade de Vida (n=21) | |||||
Físico | 71,77 | 10,94 | 50,00 | 71,43 | 89,29 |
Psicológico | 73,02 | 12,95 | 41,67 | 79,17 | 91,67 |
Social | 75,79 | 12,61 | 50,00 | 75,00 | 100,00 |
Ambiente | 61,61 | 10,88 | 43,75 | 62,5 | 81,25 |
Qualidade de Vida Geral | 70,55 | 07,75 | 57,55 | 71,91 | 86,68 |
Legenda: n= Número total de respostas; DP=Desvio Padrão. FSS-2: Flow State Scale (escala de 1 a 5); DFS-2: Dispositional Flow Scale (escala de 1 a 5). Escala WHOQOL breve para escore entre 0 e 100.
A Tabela 2 apresenta a correlação entre os índices da qualidade de vida, Estado de Fluxo, disposição para acessar o Estado de Fluxo, tempo de prática do slackline, duração da sessão e quantidade por semana. O Estado de Fluxo correlacionou-se moderadamente com a duração da sessão (r=0,46).
No que concerne à disposição para se atingir o Estado de Fluxo (DFS-2) verificou-se uma correlação positiva moderada com a duração da sessão (r=0,50) e com o domínio psicológico da QV (r=0,51).
O domínio psicológico da QV também se correlacionou moderadamente com o tempo de prática (r=0,53) e a duração da sessão (r=0,58). O domínio meio ambiente da QV se correlacionou moderadamente com a duração da sessão (r=0,48).
FSS-2 | DFS-2 | TEMPO DE PRÁTICA | X/SEMANA | DURAÇÃO (h) | |
---|---|---|---|---|---|
WHOQOL FIS | 0,37 | 0,36 | -0,018 | 0,11 | 0,16 |
WHOQOL PSI | 0,36 | 0,51* | 0,53* | 0,41 | 0,58* |
WHOQOL SOC | 0,33 | 0,40 | 0,16 | 0,22 | 0,14 |
WHOQOL M.A. | 0,23 | 0,34 | 0,27 | 0,02 | 0,48* |
FSS-2 | - | 0,78* | 0,26 | -0,03 | 0,46* |
DFS-2 | 0,78* | - | 0,27 | 0,11 | 0,50* |
Legenda: DFS-2=Dispositional Flow Scale; FSS-2=Flow State Scale; WHOQOL FIS=Domínio Físico; WHOQOL PSI=Domínio Psicológico; WHOQOL SOC=Domínio Social; WHOQOL M.A=Domínio Meio Ambiente; Tempo Prática=Há quanto tempo pratica; X/Semana=Vezes na Semana; Duração (h)=Duração da sessão em horas.* Correlações Estatisticamente Significativas, p<0,05.
DISCUSSÃO
Na literatura estudada, é possível notar ausência de pesquisas que investigam aspectos psicológicos e de qualidade de vida em praticantes de slackline, o que torna esse estudo inovador. Foram encontradas correlações entre as variáveis estudadas, que permitem um maior conhecimento sobre a modalidade, porém a escassez de estudos na área tornou limitado o diálogo com a literatura existente.
Durante a atividade, o Estado de Fluxo relaciona-se ao bom desempenho, vivência positiva e maior prazer e motivação para a atividade (JACKSON, EKLUND, 2002; JACKSON, ROBERTS, 1992; WEINBERG, GOULD, 2017), podendo beneficiar tanto atletas de alto rendimento, quanto praticantes recreativos.
No que diz respeito a qualidade de vida, que de acordo com a Constituição Mundial da Saúde (1946) se faz de extrema importância e constitui um dos direitos fundamentais de todo ser humano, encontrou-se uma correlação positiva entre as respostas obtidas no DFS-2 e as respostas do WHOQOL no Domínio Psicológico, estes achados corroboram com Vieira et al (2011), em que os esportes de aventura produzem experiências gratificantes, sentimentos de prazer e de satisfação pessoal, pois há o equilíbrio entre a capacidade pessoal e dificuldade de execução dos movimentos, tornando uma tarefa intrinsecamente motivadora. Nesse mesmo sentido, Csikszentmihalyi (1999b) afirma que a motivação intrínseca está potencialmente relacionada com o Estado de Fluxo. Um cenário desse permite um diálogo com o que Sodré e colaboradores (2017) afirmam quando dizem que a prática do slackline auxilia na melhora da concentração e alívio do estresse.
A correlação entre o Domínio Psicológico, tempo de prática e a duração da sessão de treino corroboram com o estudo de Oliveira e Miranda (2015) e pode ser explicado por Neto e Kendrick (2014), pois o desafio de executar ações motoras em cima de uma linha exige o foco e concentração, motivando os atletas a persistirem na prática até atingir o sucesso, o que promove uma conversa entre o prazer da prática (Domínio Psicológico), buscar o êxito e, assim, ter um maior tempo de prática, com consequente aumento da duração da sessão.
O Domínio Meio Ambiente do WHOQOL também mostrou correlação positiva com a duração da prática. Os esportes de aventura propiciam a interação com o meio em que se pratica. O slackline, enquanto parte deste âmbito de atividades, promove esta interação, uma vez que muitos sujeitos procuram praças arborizadas, montanhas, lagos, rios entre outros locais (BARROS, 2015), portanto, quanto maior a duração da prática do slackline, maior contato com o meio em que se está inserido.
A prática de atividade física, por sua vez, pode influenciar no aumento da qualidade de vida das pessoas se comparado às sedentárias, o que indica uma associação positiva entre atividade física e qualidade de vida (FERREIRA, 2015), mostrando que os benefícios do slackline vão além do acesso ao Estado de Fluxo.
Além desta observação, destacamos a importância da duração da sessão de slackline, pois este fator correlacionou-se positivamente com o FSS-2, DFS-2 e o Domínio Psicológico da QV. As análises de correlação não permitem definir o processo de causa e efeito das variáveis analisadas, contudo, esse estudo sugere como hipótese para futuras investigações que o sujeito com maior disposição em acessar o Estado de Fluxo tem maior propensão em manter a duração da sessão, promover a relação com seu meio ambiente, e assim acessar o Estado de Fluxo, melhorando a qualidade de vida.
O Estado de Fluxo está associado a situações que envolvem novidade, variação de resultados e atividades de exploração, enquanto a experiência é descrita como agradável envolvendo até mesmo menor percepção de esforço e efeito energizante (SWANN, 2019), dessa forma, fica evidente associar a prática de slackline ao Estado de Fluxo.
CONCLUSÕES
O presente estudo, por ser pioneiro na área da Psicologia do Esporte, possibilitou a análise dos praticantes de slackline, trazendo luz para a compreensão dos níveis de Estado de Fluxo e suas correlações com a qualidade de vida.
Esta pesquisa revelou que praticantes de slackline possuem níveis elevados de Estado de Fluxo, assim como alta disposição para atingi-lo e níveis também elevados de qualidade de vida. Ressaltamos que a duração da sessão de treino/prática correlacionou-se com componente psicológico e meio ambiente da qualidade de vida, sugerindo que quanto mais tempo o sujeito passa praticando o slackline, maior é a sua satisfação psicológica e com o meio ambiente ao seu redor.
E por fim, nossa expectativa é possibilitar, à comunidade científica e aos interessados no tema, a reflexão dos conhecimentos acadêmicos sobre o slackline, ainda pouco explorado, enfatizando a importância do componente psicológico do Estado de Fluxo e os benefícios para a qualidade de vida nesta modalidade.