INTRODUÇÃO
Como parte da coleção Self-Study of Teaching and Teacher Education Practices1, editorada pela Editora Springer, a obra Being self-study researchers in a digital world: future orientad research and pedagogy in teacher education2( Garbett & Ovens, 2017) foi publicada em 2017 sob a organização dos professores Dawn Garbett e Alan Ovens, ambos professores do Departamento de Currículo e Pedagogia da Faculdade de Educação e Trabalho Social da University of Auckland. A intenção desta resenha, mais do que apresentar a obra ao público, é refletir sobre as potencialidades do autoestudo e suas relações com a formação de professores em Educação física e com a mídia e tecnologia Brasil.
A obra segue a tradição de pensamento de grupo Self-Study of Teacher Education Practices3 (S-Step) da Associação Americana de pesquisa educacional e dos participantes do Congresso Internacional sobre o Autoestudo de práticas na formação de professores (Castle Conference4). Composto por 3 partes em que se distribuem 13 capítulos, o livro congrega 25 autores de mais de 15 instituições distribuídas em 5 países (Estados Unidos, Canadá, Nova Zelândia, África do Sul e Austrália).
O investimento da coletânea de textos é explorar possibilidades de autoestudo em práticas de formação de professores a partir da emergência das tecnologias no ambiente de ensino-aprendizagem. Parte-se, de forma não explicita, da postura conceitual da coevolução entre educação e tecnologia (Eickelmann & Zaka, 2013) em que a formação de professores transforma e é transformada pela tecnologia e do pressuposto, este sim explícito, que este fenômeno expande as possibilidades de pesquisas relacionadas ao tema.
A primeira parte do livro coloca em questão o uso da autoestudo no contexto das tecnologias digitais. A segunda parte apresenta exercícios de pesquisa e análises de processos de ensino-aprendizagem no diálogo com tecnologias digitais à luz do autoestudo. Já a terceira e última parte cumpre o papel de alinhar algumas ideias e apontar implicações de desafios postos.
Como abordagem de pesquisa, o autoestudo não apresenta grande tradição no Brasil ao passo que se registra extenso uso nos Estados Unidos da América, na Inglaterra e na Austrália. O desenho metodológico do autoestudo tem seus fundamentos iniciais relacionados à pratica reflexiva, mas, avança “as meras reflexões pessoais sobre a prática, implicando o questionamento dos pressupostos teóricos que lhe estão subjacentes com rigor e sistematicidade” (SOUZA; FERNANDES, 2014), podendo ser utilizado em dimensão pessoal, como na feitura de reflexão sobre a prática que pode conduzir a outras compreensões de ensino-aprendizagem; colaborativa, a exemplo da visão crítica da prática de ensino potencializada por uma partilha de impressões ou conhecimentos de bases entre pares; ou institucionais, como na revisão de programas inteiros, tencionando compreensões e intenções individuais e institucionais.
Especificamente em Being self-study researchers in a digital world: future orientad research and pedagogy in teacher education as reflexões se ambientam num contexto de expectativa mútua entre alunos e professores. Os primeiros com determinada celeridade nos hábitos de ler o mundo e os professores com a percepção de que necessitam - mesmo que com algumas resistências- se preparar para este tempo de novas formas de circulação da informação e saberes que podem ser incorporadas às práticas pedagógicas. Segundo os organizadores da obra, ao passo em que desafia as gerações atuais de professores este novo ambiente amplia e problematiza as possibilidades de pesquisa, em escala local e global, sobre formação dos futuros de professores.
Para justificar essa abordagem centrada no que os autores chamam de mundo digital, entendido como um mundo saturado e não dependente, mas interdependente das tecnologias digitais, os organizadores, mesmo sem referenciar explicitamente, acionam ideias próximas as da tecnologia como textura da experiência (SILVERSTONE, 2005), bem como a noção de desterritorialização na relação mediada (LÉVY, 2006) e de cultura de participação (SHIRKY, 2011). Também é possível fazer aproximação dos argumentos com uma problematização de corpo encarnado no mundo (MERLEAU-PONTY, 1999) e, portanto, também vinculado a este mundo digital.
As elucubrações postas na obra iniciam a reflexão quanto as possibilidades apresentadas pelas novas tecnologias se realmente podem mudar a natureza da pesquisa de práticas de formação de professores - o que ocasionaria mudanças ontológicas e epistemológicas- ou se apenas permitem fazer a mesma coisa de maneira mais eficaz.
Sem respostas prontas, todos os autores da coletânea, de forma coletiva e colaborativa, exploram a cena problematizada com diferentes focos: o acesso e geração de dados, mídias sociais; as transformações pedagógicas, de ética e de identidade do professor. Utilizando, por exemplo, um amigo crítico que interpela a experiência pedagógica - buscando ampliar a reflexão e partilhando saberes complementares ao do docente que expõem a narrativa- ou mesmo em comunidades de aprendizagem com estratégias diversas de registrar as cenas de aprendizagem como dados de biografias coletivas e registro de conversas informais, os relatos instigam pela descrição e análise crítica.
Alguns capítulos desbravam a experiência de docentes que atuam na formação professores na integração com suportes e dispositivos tecnológicos, travando uma narrativa reflexiva sobre suas resistências pessoais e estratégias para superá-las. Outros destacam a relação professor-aluno em cursos on-line e suas repercussões na expressão da emoção e nos sentidos da comunicação mediada, buscando tencionar mais sobre a distinção entre as formas da relação nas diferentes modalidades de ensino de que uma postura que valorize uma modalidade em detrimento de outra. Existem ainda os que optam em discutir os produtos finais de aprendizado de um determinado momento da formação de professores, potencializados pela tecnologia.
Mesmo tendo as tecnologias digitais como porto de partida para o debate, substancial parte da obra não opera por um otimismo exacerbado a respeitos destes dispositivos, mas, antes depõe com honestidade acerca dos desafios que eles impõem ao fazer docente coerente, que implica em incorporar a lógica digital à formação de professores de forma orgânica e não buscando usar a tecnologia unicamente no viés instrumental.
O livro ainda abre espaço para reflexões sobre a identidade docente ao explorar a experiência de ser docente em um curso on-line ao mesmo tempo em que é aluno em outro curso de mesma modalidade, confrontando expetativas, frustrações e impressões dos diferentes papeis do processo educativo em ambiente virtual. Outras experiências pedagógicas e de pesquisa que se debruçam sobre a formação grupos e estudo on-line ou sobre o uso de tecnologias móveis em cursos presenciais também tem assento na obra que surpreende pela criatividade e rigor do processo de pesquisa e crítica sobre o exercício docente na formação de professores.
Considerando que um dos organizadores é do campo da Educação Física, é importante destacar que nem todos os cenários de reflexão que compõem o livro são centrados na formação de professores em Educação Física, o que julgamos que oxigena as reflexões e partilha demandas que são comuns à todas as áreas na formação e professores.
Contudo, não somente nesta obra, percebe-se investimentos de pesquisadores do campo da Educação Física relacionado ao autoestudo. Outras publicações têm dedicado espaço específico na área, como o livro Self-study in Physical Education: exploring the interplay between scholarship and practice5 (OVEN; FLETCHER, 2014) ou o número três do volume de 2015 da Asia-Pacific Journal of Health, Sport and Physical Education6 podem nos certificar da expansão deste tipo de estudo no campo da Educação Física. No editorial da publicação supracitada (FLETCHER; OVENS, 2015) é destacado que mesmo a pesquisa de autoestudo sendo uma nova vertente no campo da Educação física e Esporte fica claro que tem sido recebida com uma metodologia bem aceita.
Em nossa percepção, é exatamente no campo da metodologia que o livro que resenhamos tem sua principal contribuição aos estudos que articulam a formação de professores em Educação Física com mídia e tecnologia no Brasil. Em estudo recente, Souza Junior (2018), ao aproximar-se da relação formação de professores e os temas de mídia e tecnologia, encontrou publicações derivadas teses e dissertações no Brasil e/ou as próprias teses e dissertações que estabeleciam esse diálogo ora na formação inicial (QUARANTA, 2011; POFFO, 2014; BIANCHI, 2014; MENDES, 2016) ora na formação continuada (BIANCHI, 2009; MENDES, 2008) e percebeu uma certa recorrência metodológica entre os trabalhos.
Todos os estudos encontrados, a partir de uma perspectiva da mídia-educação, enquadram os tipos de estudo como pesquisas etnográficas, estudos de caso ou pesquisa-ação, com a coleta de dados declaradamente realizada por observação, entrevista ou questionários. Ainda segundo Souza Junior (2018), parte significativa das pesquisas se ancoram em uma postura diagnóstica, enquanto que uma menor parte se inclina para uma postura dialógica com os sujeitos da pesquisa. Estes dados levam ao pesquisador a refletir que talvez “pesquisas que partam da proposição de uma interação metodológica participativa, com docentes em atuação, acionando outras perspectivas teóricas sobre o diálogo com os estudos da mídia, nos parece carecer de espaços na literatura” (p. 25).
Corroborando com a percepção do autor supracitado, a sugestão de leitura e uso da obra em tela tem por intenção apontar outras possibilidades metodológicas que possam relacionar a formação de professores e a tecnologia. Afinal, o próprio estudo supracitado, baseado em Ertmer (1999), aponta que durante formação continuada de professores de Educação Física é possível identificar barreiras para o uso da tecnologia pelos professores, o que inclui crenças sobre o ensino e usos de computadores, vontades e experiências pessoais prévias.
Considerando que as atitudes e as crenças dos docentes em formação concorrem para potencializar ou restringir o acionamento das tecnologias digitais das praticas pedagógicas, identificamos a potência do autoestudo ao favorecer a compreensão de como se processam os embates interno na formação de forma mais apurada e refletida em cada docente, como no caso do estudo realizado na dissertação de mestrado de Burne (2017).
Igualmente aos organizadores da obra resenhada, acreditamos que os textos que compõe a coletânea são inspirações metodológicas pela honestidade refrescante dos relatos que encorajam os leitores a fazer mais ou outras questões sobre as implicações de estarmos conectados ao mundo digital.