INTRODUÇÃO
Este artigo faz parte de uma pesquisa que emergiu de reflexões sobre a docência dos professores de escolinha esportiva e os saberes que são construídos a partir das experiências vividas no contexto escolar. Ao iniciar as aproximações sobre a referida temática, a dificuldade de encontrar estudos nessa área, nos permitiu constatar que as produções de estudos e artigos acadêmicos sobre esse tema específico são ínfimas, fato possivelmente justificado pelas características inerentes do trabalho nas escolinhas esportivas quanto à sua legitimidade no processo educativo dos estudantes.
A expressão “professores de escolinhas esportivas” refere-se à posição funcional dos professores de Educação Física que ensinam esporte nas diversas modalidades vinculadas ao centro esportivo da escola que foi campo deste estudo. Nos últimos anos observamos o aumento no número de escolas brasileiras da rede privada que oferecem modalidades esportivas como atividades opcionais no contra turno, as quais também podem ser denominadas de “práticas esportivas escolares” (PEEs), “esporte escolar” ou “turmas de treinamento” (BASSANI; TORRI, 2003; LETTNIN, 2005; SANTOS; SIMÕES, 2007; LUGUETTI, 2010).
Atividades Esportivas Opcionais foi a expressão escolhida para este estudo, a partir das narrativas dos professores colaboradores, pois consideramos de maior aproximação com o contexto escolar. Essas atividades têm uma proximidade com todas as atividades realizadas fora do horário letivo na escola, e, sendo assim, podem ser entendidas como aquelas que são realizadas sem características obrigatórias (FIOR; MERCURI, 2003), ofertadas de forma opcional para complementar a formação dos alunos com aprendizagens esportivas vinculadas ao projeto pedagógico. Na condição de prática inserida no contexto da escola, ela não envolve apenas professores e estudantes, mas também espaços sociais que abrangem o sistema educacional e eventos esportivos institucionalizados, organizados por conselhos municipais de esporte, secretarias de educação, federações e clubes esportivos (SAWITZKI, 2008).
Essas atividades, por serem opcionais, vão ao encontro das prioridades formativas definidas pelos estudantes e suas famílias, também das suas preferências pessoais, que ganham uma importante participação nesse processo de formação.
Partimos do entendimento de que a experiência docente, nas atividades esportivas opcionais, compreende a trajetória e a história que o professor produz no trabalho como um “acumulado histórico pessoal” (MOLINA NETO, 2003), levando em consideração que professores são pessoas com histórias, trajetórias, memórias e saberes das experiências singulares ao longo de sua formação. E na esteira desses elementos, nos referimos ao trabalho docente como todas as atividades para além das aulas que os professores ministram, também sua participação em reuniões pedagógicas, de planejamento, atendimento aos responsáveis pelos alunos e famílias, organização de materiais, participação em eventos dentro e fora da escola, avaliação, reflexão sobre sua prática pedagógica e formação continuada. Isso tudo dentro de uma compreensão de que o trabalho docente se constrói concomitantemente às mudanças sociais e culturais, modificando a compreensão funcional da escola e as características peculiares do ambiente e do próprio professor (WITTIZORECKI; MOLINA NETO, 2005).
Diante do exposto, apresentamos, aqui, um estudo que teve como objetivo compreender como se constroem as experiências do trabalho docente dos professores de Educação Física que ensinam o esporte como atividade opcional dentro de uma escola da rede privada de educação.
DECISÕES METODOLÓGICAS
A pesquisa é de cunho narrativo, na perspectiva dos professores a respeito de suas reflexões, percepções, relações e compreensões relativas à prática, produzindo efeitos formativos. Assim, foram percorridos caminhos a partir do narrado e experienciado por quatro colaboradores deste estudo, os quais são professores de Educação Física, contratados somente para ministrar aulas nas atividades esportivas opcionais no contraturno. Para maior compreensão da realidade foi necessária a utilização de diversos instrumentos para obtenção das informações: diários de campo para a observação participante, realizada durante os meses de outubro a dezembro de 2019 (TRIVINÕS, 1987); um gravador para registrar as narrativas orais dos colaboradores ao longo das observações; entrevistas semiestruturadas (NEGRINE, 2010) com os quatro colaboradores; os planejamentos dos professores e o Projeto Político Pedagógico da escola para análise documental.
Durante a observação participante, foram analisados e registrados os acontecimentos no momento em que ocorriam, com a intenção de conhecermos o modo com que os professores se relacionavam entre si e organizavam seu cotidiano na escola. No diário de campo foram feitas anotações sobre as percepções e sentimentos que surgiam durante as observações a fim de sistematizarmos as informações observadas no contexto com os participantes. Através das observações pudemos perceber as peculiaridades que perpassavam o cotidiano do trabalho docente dos colaboradores, as vivências do dia a dia, as relações pessoais com a equipe de trabalho, estudantes e seus familiares e a organização de tempo e espaço para desenvolver suas atividades.
As entrevistas, agendadas durante as conversas no período de observação, aconteceram na própria escola, com duração de 60 minutos foram gravadas e transcritas. O roteiro de perguntas feitas aos entrevistados continha as principais características do ensino do esporte na escola dentro das atividades esportivas opcionais; a escolha profissional; a história de vida com o esporte; e a inserção do trabalho das atividades esportivas opcionais de acordo com a proposta pedagógica da escola. Durante a entrevista asseguramos aos entrevistados a liberdade de falar sobre aspectos que consideravam relevantes nesse tema.
No intuito de atender às questões éticas da pesquisa, os professores assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O nome dos colaboradores foi substituído por nomes fictícios: Ana Laura; Alberto; Ana Flor e Léo. Após a coleta das informações, realizamos a transcrição das narrativas e entrevistas, que foram submetidas aos colaboradores para que pudessem confirmar as informações ali contidas e realizar as correções caso fosse necessário.
O tratamento das informações passou pela análise descritiva e interpretativa. As informações produzidas foram reunidas e organizadas para que a primeira leitura do material organizado (instrumentos de pesquisa) pudesse ser clara e eficiente. A segunda leitura do material foi mais minuciosa, visando identificar as unidades de significado, que são os elementos mais relevantes e significativos presentes nas diferentes falas dos colaboradores (MOLINA NETO, 1999). Dessa forma surgiram as três categorias de análise: a) o reconhecimento do professor do componente curricular Educação Física; b) a nova proposta pedagógica da escola; c) a experiência de vida como alicerce para a carreira profissional.
ANÁLISE E DISCUSSÃO
1. Professor de escolinha esportiva e seus simbolismos na escola
Os professores Leo, Alberto, Ana Laura e Ana Flor trabalham com o ensino do esporte; são profissionais de Educação Física das escolinhas esportivas. O trabalho docente desses professores faz parte de uma organização escolar, sendo desenvolvido a partir das condições de suas especificidades e com características bastante singulares. Ana Laura, sentada no sofá da sala dos professores do Centro Esportivo, ao falar sobre a sua experiência com o ensino do esporte, disse: “trabalhar em clube é bem diferente do que trabalhar em escola!”. E na continuidade, ao caracterizar o trabalho na escola, segue dizendo:
o horário da maioria das escolinhas esportivas é no final do turno, encontramos as crianças já cansadas querendo ver pai e mãe. Essa acolhida pós-aula é a mais difícil, e esse é nosso papel. Somos um pouco pai e mãe também. Eles chegam carentes e a gente precisa proporcionar um ambiente em que eles se sintam bem (Ana Laura, nota de Campo).
Essa narrativa nos faz compreender o modo com que “os professores costumam agir por idiossincrasias próprias, construídas por anos de docência” (MOLINA NETO; MOLINA, 2002, p. 59). Ana Laura caracteriza seu trabalho, hoje, com o seu envolvimento no contexto escolar, os horários de suas aulas e as relações que estabelece com seus alunos. O ensino nas Atividades Esportivas Opcionais ora é voltado para o cuidado, ora para a representação que o esporte tem na história dela como professora:
embora a gente não seja tratada com importância, porque somos olhados como o professor que fica uma hora a mais com a criança, acho que a escola nos dá um respaldo, porque se conduzirmos mal as crianças podemos fazer um estrago, né? Falta ainda o entendimento de que a gente faz um trabalho. O esporte ensina valores e quero ensinar tudo que aprendi em toda minha vida. Ver a cara dos pais te agradecendo, dizendo obrigado, ver as crianças com dificuldades e tu conseguir ajudar elas a vencer essas dificuldades, esse é o nosso valor (Ana Laura, entrevista).
Desse modo, é possível dizer que há um tom de desvalorização na fala da professora Ana Laura quando se refere à importância do trabalho desenvolvido nas Atividades Esportivas Opcionais; de profissionais que se sentem em condições de desigualdade dentro da escola, à medida que enfrentam o estigma de trabalho de pouca exigência intelectual, no contexto de sua atividade específica.
Alguns autores consideram que sempre há um componente educacional (seja positivo ou negativo) nas práticas esportivas, pois, o relacionamento interpessoal e a troca de informação estão sempre presentes, “constituindo espaço de constantes processos de educação e coeducação formal, não formal ou informal” (MACHADO; GALATTI; PAES, 2015, p.2). Na compreensão de Reverdito, Scaglia e Paes (2009, p.17), somente o esporte não contribui para o propósito educacional, mas sim o significado atribuído a ele, sendo abordadas as seguintes questões: “Que praticantes se formarão por meio da prática esportiva?”, e: “Para que tipo de sociedade se formarão?”. Compreendemos essas questões como avanços na inserção dos significados culturais do esporte no que diz respeito à prática pedagógica.
Nesse sentido, Kunz (2016) compreende que o esporte sempre tem um caráter educacional; a questão é descobrir que compromisso educacional ele deve assumir na presença de um professor no espaço escolar, local onde as questões pedagógicas são penetradas por intenções políticas. Nesse cenário, Machado et al. (2017, p.34) corroboram essa discussão dizendo que o potencial educativo do esporte somente ocorrerá se a prática pedagógica do professor “for intencional e voltada não somente para o desenvolvimento de aspectos motores, mas se firmada no desenvolvimento integral do aluno”.
Diante do exposto, podemos afirmar que o componente educativo das Atividades Esportivas Opcionais faz parte de uma cultura escolar, pois, a escola é, por excelência, o lugar social onde ocorre a organização formal de um projeto educativo. E nessa compreensão o esporte assume uma dimensão objetiva que faz parte da realidade e uma dimensão subjetiva provida de interesses (KUNZ, 2014), e esse campo de ação pode tornar-se aberto ou fechado para as experiências esportivas dos estudantes. Percebemos, portanto, que o contexto tem interferência na representação e no sentido que os professores dão ao trabalho; e entendemos que “o que os docentes pensam e creem está fortemente influenciado pelo que fazem nas escolas” (MOLINA NETO, 2003, p. 147).
Assim, é possível notar que as representações que Léo, Ana Flor, Alberto e Ana Laura constroem acerca de suas experiências de trabalho estão interligadas com as transformações e vivências do cotidiano da escola, e na condição de professores desejam reconhecimento profissional sentido no vínculo com os estudantes, nas trocas de afeto e nas conquistas individuais. Apesar de o esporte passar por um processo de valorização social desde o século XX (GALATTI et al., 2014), percebemos o quanto a valorização profissional dos professores que ensinam o esporte na escola ainda necessita ser escutada e debatida. O que nos parece é que esses professores criaram outra classe de trabalhadores, aqueles que não trabalham com a “obrigatoriedade” de ensino, portanto tornam-se mais vulneráveis, dentro da escola, no que diz respeito à valorização.
Não queremos, porém, por meio dessa reflexão, nos deter apenas no âmbito teórico. Queremos trazer a reflexão a partir de um estudo construído junto aos professores sobre o trabalho docente de quem tem a responsabilidade em relação ao que faz: ensinar o esporte na escola. Por isso, para compreender as características do ofício de ensinar o esporte como atividade opcional, consideramos importante problematizar o esporte com quem o ensina. Esta é uma reflexão sobre as finalidades das propostas educativas reconhecidamente necessárias para o bom desempenho do trabalho dos docentes, mas, em muitos momentos, não são compreendidas por eles, pois não se sentem escutados em suas necessidades, capacidades e valores.
2. A nova proposta pedagógica de fora para dentro no debate educacional
Compreendemos que “o que os professores pensam e a forma como agem tem importância fundamental para as melhorias, mudanças e inovações dos processos educativos e formativos” (STADNIK; CUNHA; PEREIRA, 2009, p.16). Por isso, a importância de pesquisar no chão da escola e compreender a cultura em que estão inseridos esses professores. No campo de estudo onde foi realizada esta pesquisa existe uma cultura do esporte voltada para a participação em jogos escolares, para as escolinhas esportivas e para equipes de treinamentos compostas por estudantes que desejam representar a escola em eventos esportivos. Em sua narrativa, a professora Ana Laura diz:
antigamente, o Centro esportivo era uma escola de esportes dentro do Colégio, era como se fôssemos excluídos de todo o processo de formação, sendo que temos um papel bem importante na vida dos mesmos alunos que são do Colégio (Ana Laura, entrevista).
A partir dessa narrativa fazemos a reflexão sobre o olhar que a comunidade educativa lança sobre esse trabalho, pois, percebemos uma lacuna no espaço escolar que legitime esses professores como sujeitos que detêm um saber e produzem conhecimentos. Partindo do entendimento de que o esporte por si só não contribui para o propósito educacional (REVERDITO; SCAGLIA; PAES, 2009), e que o professor tem um papel importante no processo educativo (KUNZ, 2016), consideramos relevante trazer essa reflexão para a discussão da Educação Física, contextualizando-a e confirmando-a como prática pedagógica nos espaços das aulas das Atividades Esportivas Opcionais. Essa compreensão parte de um argumento em defesa de práticas pedagógicas conduzidas por pensamentos crítico-reflexivos do que pode ser a prática educativa do esporte.
Os docentes apontam para uma lacuna existente que trata da concretização da prática educativa do esporte, sem espaço para refletir sobre se as suas práticas pedagógicas são mesmo educativas ou se a estrutura reducionista e celetista acaba prevalecendo (REVERDITO; SCAGLIA; PAES, 2009). Essa reflexão parte do entendimento de que as práticas pedagógicas são carregadas de particularidades dos docentes, como suas experiências, condições de trabalho e formação, entre outros. Nesse sentido, eles enfrentam um dilema essencial: “sua representatividade e seu valor advêm de pactos sociais, de negociações e deliberações com um coletivo” (FRANCO, 2016, p.541). O professor Alberto também pondera que
as tarefas administrativas na escola aumentaram bastante, temos pouco tempo para planejar e organizar os jogos. Antes não tinha nada disso a gente ia lá e fazia e deu...agora tem que elaborar planejamento, o que toma mais tempo do nosso trabalho (Alberto, entrevista).
Durante o contato com os professores colaboradores observamos que, ao relatarem suas experiências de trabalho anteriores e atuais, a implementação da proposta pedagógica foi atribuída muito mais às questões administrativas (estrutura e organização de planejamento, prazo de entrega, preenchimento de diário de classe e carga horária disponível para reuniões) do que à reflexão sobre as práticas pedagógicas propostas para as aulas (Nota de campo). As novas demandas vieram acompanhadas de discursos em torno das dificuldades de apropriação de novos saberes, gerando nos professores o desejo de garantias de espaço para planejamentos individuais e em pequenos grupos, além de espaços coletivos para discussão e reflexão de suas práticas.
O trabalho docente nas atividades esportivas opcionais passou por uma implementação de propostas pedagógicas para o ensino do esporte. O início dessa caminhada começou por uma avaliação institucional baseada em uma pesquisa com a comunidade educativa, em que foi constatado que essas atividades precisavam estar vinculadas ao Projeto Político-Pedagógico da rede de ensino. A proposta pedagógica para essas atividades faz parte da construção de um currículo integrado ao projeto educativo da escola, que tem como premissa uma educação integral.
Os professores passaram a redefinir o seu papel e o sentido do seu trabalho dentro da escola. Assim, obtiveram uma ampliação das atribuições, por exemplo: planejar, avaliar o processo de ensino e aprendizagem, participar de reuniões pedagógicas e de formação permanente. Para o professor Léo, um fato que marcou o trabalho com as Atividades Esportivas Opcionais a partir dessa mudança foi a presença de uma nova coordenação, alguém que começou a nos escutar, tentar entender o que era nosso trabalho e nos ajudar durante esse processo. (Léo, entrevista, grifo nosso).
Com base nesses relatos compreendemos que grande parte do trabalho realizado pelos professores das Atividades Esportivas Opcionais é mediado por suas interações com o contexto, o qual vem passando por um processo de transformação na organização e estruturação de espaços para inserir esse coletivo docente nos debates educativos. No entanto, o que nos parece é que “essa transformação requer o elemento reflexivo no trabalho pedagógico” (KUNZ, 2014, p.124), e a partir disso devemos buscar compreender e descobrir os significados centrais das experiências das aprendizagens das modalidades esportivas que ajudaram a constituir esses professores.
O projeto educativo da escola está orientado para a construção de valores como um conjunto de atitudes que expressam respeito, empatia, solidariedade, entre outros, passando a refletir sobre as intencionalidades educativas no ensino do esporte. De acordo com o que afirmam Ginciene e Matthiesen (2018), para se alcançar a educação dos valores são necessárias estratégias específicas, pois, a prática esportiva, por si só, nem sempre garante o alcance desses objetivos. Os mesmos autores ressaltam que os conteúdos da dimensão atitudinal (aquela relacionada aos valores e às atitudes) têm importância na formação do cidadão, mas nem sempre estão presentes nas aulas e isso leva a entender que “as estratégias das aulas não são condizentes com o objetivo da escola” (GINCIENE; MATTHIESEN, 2018, p.157).
No campo de estudo parece ainda existir uma lacuna no debate educativo no ensino do esporte que consiga dar conta da seguinte questão: que conhecimentos os professores e estudantes precisam construir em relação ao ensino do esporte e seus valores sociais e culturais? No debate educacional é importante enfatizar que os recursos oferecidos pela escola para o professor desenvolver o seu trabalho dentro das Atividades Esportivas Opcionais ainda não existem em consonância e também em relação à necessidade de disporem de mais tempo para planejar seu fazer e refletir sobre o acesso a experiências qualificadas de formação continuada específicas da área. Para os professores, isso dificulta a sua ação de planejar ações específicas, contextualizá-las e significá-las no trabalho docente (Nota de campo).
Com isso, o ensino das modalidades esportivas torna-se ainda significativo a partir de modelos e paradigmas construídos no espaço não escolar; assim, ao não ter espaço para a reflexão sobre as práticas esportivas nesse contexto, podemos estar representando uma parcela da sociedade que deseja que o esporte dentro da escola recupere “valores perdidos” a partir de uma “cidadania obediente e acrítica” (MOLINA; MOLINA NETO; LOPES, 2011, p. 17).
Então, compreendemos que a possibilidade de incluir e significar as Atividades Esportivas Opcionais no projeto educativo depende, sobretudo, dos professores de Educação Física contratados como professores de escolinhas esportivas, e do valor educativo e da pertinência dessas atividades nesse ambiente, refletindo-se, assim, sobre o slogan do esporte como prática com valor educativo para justificar sua presença na escola (TAVARES et al., 2020).
3. Experiência vivida - alicerce para a carreira profissional
O esporte é um elemento fundamental na vida dos professores colaboradores deste estudo. Durante a pesquisa foi possível perceber que esses docentes não apresentaram narrativas da profissão docente como um dom ou vocação, mas como as diferentes experiências vividas com o esporte produziram o desejo de ser professor de Educação Física. Para Larrosa (2002, p.21), a experiência é o que nos passa, o que nos acontece ou o que nos toca. Passamos por transformações, mudanças e aprendizagens proporcionadas pela experiência, segundo nossas subjetividades, nossos conhecimentos, valores, crenças, e as diversas manifestações do cruzamento de culturas que fazem parte do nosso processo de formação contínua e inacabada.
O campo nos permitiu aprender que as experiências com o esporte conduzem o modo com que os professores colaboradores se relacionam com os conhecimentos e saberes do conteúdo esportivo na escola. As narrativas se apresentam a partir das histórias de vida.
A professora Ana Laura, emocionada, relata:
é como se...falar do desejo de ensinar esportes é falar de toda minha vida...Era o meu sonho...Eu era criancinha e a única menininha da casa...e já sabe qual era a expectativa da minha mãe, né? Ela vai para dança, ballet. Meu irmão fazia esporte, e eu fui matriculada em ‘atividades de menina’. Só que eu comecei a despertar o desejo pelo esporte, eu tinha uns sete anos. Quanto fiquei maiorzinha, com uns nove anos, eu podia ficar sozinha já no clube e então, eu fugia da minha aula de ballet para assistir meu irmão e as outras crianças praticando esporte. Claro que quando eu chegava em casa tinha bronca! A mãe ia me buscar e eu não estava na minha aula, ela já ia direto lá na outra aula, porque sabia que eu estava naquele esporte considerado de menino. Ela não deixava, porque dizia ser esporte de menino! E por muitos anos eu tive um bloqueio. Eu cresci com isso, sempre com esse sonho que só tive coragem de realizar depois de adulta. Mas enfim, a vida foi passando, e eu só comecei com vinte e oito anos. Na escola eu me realizava, porque eu tinha muita habilidade com todos os esportes, os professores sempre me escolhiam para as equipes de competição (Ana Laura, entrevista).
É possível tecer, a partir dessa narrativa, uma compreensão de que as escolhas profissionais dos professores que ensinam esportes sofreram ressonâncias e foram constituídas pelas “relações construídas entre os sujeitos e os diferentes saberes, por meio das experiências vividas no cenário sociocultural” (TAVARES et al., 2020, p.5). As relações de gênero nas escolhas das práticas corporais, os destaques na Educação Física Escolar, as habilidades físicas e as competições foram algumas das marcas deixadas na constituição de quem ensina o esporte, o que permite entender que os contextos sociais nos auxiliam na compreensão dos sujeitos individuais (FLORES, et al., 2012), e o quanto esses professores recorreram, de modo consciente ou inconscientemente, “aos modelos de professores que tiveram ao longo de sua formação” (MOLINA; MOLINA NETO; LOPES, 2011, p.20).
A professora Ana Flor relata:
entre os cinco e os 15 anos de idade, tive uma grande oportunidade de morar em frente a uma pracinha, numa rua com muitas crianças da minha idade. Correr na rua, brincar na praça e praticar atividades esportivas foi crucial para o meu desenvolvimento neste período, e foi o que despertou meu interesse pelas práticas corporais. Quando eu estava no final do ensino fundamental, em escola pública, minha professora de Educação Física, que também era de esporte escolar, me passou valores humanos através do esporte, e assim pude ter a certeza de que queria também ser professora de Educação Física. Na pré-adolescência, comecei a praticar esportes em locais públicos, e em seguida minha família me matriculou em escolas privadas de práticas esportivas. Quando saí do Ensino Médio continuava não tendo dúvida: eu queria muito ser professora de Educação Física (Ana Flor, entrevista).
Apontamos, a partir dessa narrativa, que as experiências socioculturais vividas em casa, na rua, na praça e na escola constituíram representações e crenças acerca da função social do esporte, o que pode ter contribuído para a escolha profissional pela Educação Física. Percebemos que esses colegas, nas suas histórias de vida, foram construindo relações com os saberes da prática esportiva e compreendendo e justificando a presença desta na escola. Destacamos, aqui, a compreensão de Moreira e Candau (2008) sobre as vivências ao longo da vida e suas influências na construção das identidades dos sujeitos, e também as formas de compreender o mundo e as diferentes situações com que esses professores se deparam.
Portanto, destacamos o entendimento de que as experiências com os esportes impulsionaram a escolha pelo curso de Educação Física dos participantes deste estudo, sendo esse curso, muitas vezes, colocado na posição de sinônimo de esporte. Essa afirmação reforça o pensamento de Ilha (2015, p.73), de que a “Educação Física é esporte”, pois o esporte, assegura o autor, é o conteúdo hegemônico das aulas de Educação Física, e ganha destaque no contexto. É possível perceber, a partir dessas narrativas, que as relações que os sujeitos constroem com os saberes da Educação Física estão muito ligadas às capacidades físicas, à competitividade e às aptidões motoras (TAVARES et al., 2020). Foi possível constatarmos, ao longo das observações e entrevistas com os professores colaboradores, que o processo de reflexão sobre suas histórias de vida com o esporte tensionou os objetivos das Atividades Esportivas Opcionais no projeto educativo da escola, deixando dúvidas sobre o que ensinar e como ensinar o esporte dentro de uma cultura altamente competitiva e excludente.
O percurso e as experiências de vida com esporte dos professores colaboradores desse estudo foram marcados a partir de um contexto de relações afetivas/educativas. Como amparo esclarecedor, recorremos a Spinoza (2007, p.163) que compreende por afeto “as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções”. Suas expectativas sobre o ensino, as lembranças de seus professores, suas vivências corporais e os desafios superados na trajetória de suas formações, nos permitem refletir sobre o quanto essas experiências construíram relações entre os lugares do trabalho docente e do afeto. O que parece é que, historicamente, o trabalho docente guarda sua essência na afetividade, sendo o cuidado e o afeto sua marca estrutural, transformada pela profissionalização da docência para o ato de educar e ensinar (SANTOS et al., 2016).
Na fala da professora Ana Laura aparece a influência do professor:
minha professora de Educação Física me enturmava, me dava carinho, me acolhia, eu era aquela que ficava no cantinho escondidinha. Eu não abria a boca, e todos os professores que me ajudaram foram professores de esportes, eles foram fundamentais na minha vida e essas coisas a gente não aprende nos livros e na graduação. Eu era extremamente tímida, e minha mãe me fazia ir à psicóloga, mas quem me pegou pela mão e me ajudou foi uma professora de Educação Física (Ana Laura, entrevista).
Constatamos, a partir das falas, que os afetos podem estar relacionados ao que é identificado como valores vinculados ao esporte, em que a vida escolar ocupou significativo espaço para essas relações afetivas e o professor foi um entremeio essencial desse processo. O ato de cuidar, escutar, ajudar e investir no sujeito talvez seja a forma com que eles aprenderam a ensinar a empatia e o respeito, valores considerados importantes para os profissionais das Atividades Esportivas Opcionais.
A professora Ana Flor também lembra de seus professores:
eu tive uma professora que me marcou muito, que foi minha professora que me apresentou meu esporte quando eu tinha doze anos, ela era minha professora de Educação Física do sexto ano. Eu estudava em uma escola estadual e ela acolhia a mim e minhas colegas no seu horário livre além das aulas de Educação Física. Ela gostava muito de esporte, tinha sido atleta, tinha jogado por muitos anos na vida dela, ela dedica o tempo ‘livre’ para os alunos para a gente treinar e participar de competições e montou um grupo e como fui escolhida me despertou muito mais o interesse pelo esporte e depois disso ela me indicou clubes e outros lugares para eu seguir jogando já que na escola não era possível desenvolver mais por causa das condições dos espaços e materiais (Entrevista, Ana Flor).
Declarações como essa nos levam a refletir sobre o fato de que a intencionalidade afetiva nas práticas pedagógicas ocorre, sobretudo por meio de estímulos. Para João Batista Freire (1997), a afetividade é o território das emoções, sentimentos e paixões, por onde também transitam medo, interesse, sofrimento e alegria. Trajetórias que foram marcadas a partir de um contexto de relações afetivas/educativas, das lembranças carinhosas de seus professores, dos estímulos, do apoio em momentos difíceis e da ajuda com questões pessoais, marcas significativas que, de um modo ou outro, incentivaram a escolha profissional.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É possível compreender que a construção das experiências docentes desses professores perpassa suas histórias de vida com o esporte e estão fortemente ligadas à cultura escolar na qual estão inseridos. Os colaboradores deste estudo ensinam esporte em uma escola específica, com o reflexo da cultura social dessa determinada comunidade, vinculada a um contexto particular que marca seus processos formativos. Por isso, salientamos que existem representações únicas que esses professores de Educação Física constroem acerca de suas experiências de trabalho: ensinar esporte não tem a mesma característica em todos os lugares.
Além disso, consideramos válido ressaltar que outro fator contribuinte para os sentidos que estão vinculados ao ensino do esporte dentro das Atividades Esportivas Opcionais é a relação que o professor estabelece com sua turma, com o coletivo docente da escola, coordenadores e comunidade escolar em geral. Como seres sociais, culturais e históricos dentro do contexto no qual estão inseridos, eles constroem saberes e sentidos únicos no trabalho docente. Cada professor, ao viver sua experiência, constrói uma subjetividade, intransferível e própria. As narrativas nos levam a compreender que o ensino do esporte promoveu espaços afetuosos no processo de formação desses profissionais e na composição de sentidos da experiência vivida com o esporte; o afeto e o processo reflexivo dos professores estiveram presentes entre o contar, o reviver e o reler as suas histórias