MAPEANDO O TERRITÓRIO
A palavra currículo provém do latim curriculum, sendo definida como corrida, lugar onde se corre (HOUAISS, 2009). As definições apresentadas para o termo “currículo” e para seus derivados - “corrida”, “correr”, “caminho” “curso” - permitem diversas significações para o conceito de currículo.
Acerca do conceito de currículo, Macedo (2006) explica que se tem utilizado uma noção bipartida, em que numa extremidade estariam localizados os currículos “macro”, currículos escritos, propostos e elaborados pelo governo (GARCIA; LOBO, 2002; SACRISTÁN, 2000; APPLE, 2006). Em outra extremidade estariam os currículos do dia a dia, feitos e refeitos cotidianamente pela ação dos docentes, dos gestores escolares e dos estudantes, no interior da escola (APPLE, 2006; SACRISTÁN, 2000).
Entendemos que tais formulações produzem uma compreensão dicotômica entre esses diferentes âmbitos da construção de um currículo, e que o fato de existirem tais nomenclaturas e divisões pode reforçar uma segregação entre produção e implementação de um currículo, assim como sinaliza Macedo (2006). Na produção científica a referida autora aponta que esta dicotomia acaba se expressando na valorização ou hierarquização destes “diferentes currículos”. Assim, em alguns estudos seria mais valorizado e exaltado o currículo oficial (documentado), e em outros tais documentos seriam desconsiderados, sendo valorizado apenas o que ocorre nas aulas, na cultura cotidiana da escola.
Propomo-nos a desnaturalizar um entendimento prevalente de currículo como determinante ou impositivo de um caminho a ser seguido e, por conta disso, como algo a que se deva, necessariamente, combater ou resistir. Desnaturalizar um entendimento de currículo apenas como instrumento/estratégia para moldar, doutrinar ou disciplinar as vidas das pessoas, pois, como pondera Macedo (2006), essa forma como temos compreendido o currículo não nos permite vê-lo para além de uma prescrição.
Aqui, consideramos o currículo como um caminho. Um caminho que não se configura apenas como uma prescrição, como uma rota que tenha que ser seguida, mas como um caminho que “é feito na ação do caminhar” (VEIGA NETO, 1996, p.10). Por entendermos, então, que o currículo não se trata necessariamente de um caminho que deva ser seguido, ou que já tenha sido percorrido, mas como um caminho que está sendo feito, adotamos neste estudo o termo construção curricular, na tentativa de abranger a dinâmica do processo de escolarização (NUNES; RÚBIO, 2008; NERY, 2009).
Cabe situar que o estudo que fundamenta a presente escrita se encontra localizado na linha de pesquisa de Formação de Professores e Prática Pedagógica no campo da Educação Física e, nesse sentido, buscou compreender como a Educação Física vem se configurando e que lugares ocupa na construção curricular dos anos finais do ensino fundamental em uma escola estadual do Rio Grande do Sul em Viamão, região metropolitana de Porto Alegre. Compreender os lugares da Educação Física na construção curricular da escola em questão demandou um movimento mais amplo, ou seja, compreender a construção curricular desta escola. Assim, este artigo tem como foco comunicar os achados da pesquisa referentes ao seguinte objetivo: identificar as tensões e problemáticas envolvidas no processo de construção curricular dos anos finais do ensino fundamental em uma escola estadual do Rio Grande do Sul (RS).
CAMINHOS METODOLÓGICOS
A pesquisa foi realizada em uma escola estadual do Rio Grande do Sul, localizada em Viamão, por meio de um estudo de caso etnográfico, que busca retratar e compreender uma realidade em sua singularidade (LÜDKE; ANDRÉ,1986) e que favorece a compreensão sobre a cultura escolar (SCHMIDT; GARCIA, 2001), elemento este que percebemos com uma relação direta com a construção curricular nas escolas.
A escola Múltipla (como foi nomeada pelos participantes e colaboradores da pesquisa) está situada em um bairro pertencente à cidade de Viamão, um dos primeiros núcleos de povoamento do Estado (formado por catarinenses, paulistas, escravos e portugueses), município que integra a região metropolitana de Porto Alegre (REHBEIN; FUJIMOTO, 2007).
Em razão do tipo de estudo e da problemática que o orienta, a pesquisa contou com a observação participante, tendo seu registro em diário de campo (TRIVIÑOS, 1987; MINAYO, 2010) como principal estratégia para recolha das informações. As observações foram realizadas durante o ano de 2016 e tiveram duração de dez meses, iniciando no mês de março e finalizando no mês de dezembro.
A pesquisa também contou com análise de documentos, os quais foram disponibilizados pelos participantes da pesquisa, como o Regimento Escolar (construído ao final de 2016); o Projeto Político Pedagógico da escola; o documento de Reestruturação Curricular Ensino Fundamental e Médio (produzido e enviado para a escola pela Secretaria de Educação do Estado do Rio Grande do Sul); o Calendário Escolar. A análise documental foi utilizada como apoio às observações, como propõe Woods (1995).
Foram realizadas entrevistas semiestruturadas (NEGRINE, 2010) com a diretora da escola (Madalena), a supervisora dos anos finais (Pequena), e a professora de Educação Física (Janaína). As participantes e o restante dos colaboradores do estudo (professores, funcionários, estudantes) tiveram seus nomes substituídos por nomes fictícios, escolhidos por eles próprios.
A escolha destes diferentes instrumentos de coleta das informações está pautada primeiramente pela natureza do estudo. Ademais, entendemos que a variedade destes instrumentos pode oferecer informações significativas e vastas acerca do tema e do campo de investigação.
SOBRE A CONSTRUÇÃO CURRICULAR DA ESCOLA “MÚLTIPLA”
Este estudo nos permitiu compreender que diversos e diferentes elementos estão presentes, integram e interagem na construção curricular de uma escola. Elegemos, então, para este texto, apresentar os elementos que mais se destacaram e que se agrupam por se tratarem de aspectos macropolíticos, que ressoam de forma extrínseca na construção curricular da escola, sendo, assim, pontos chave de tensão e problemática da construção curricular, como a oferta (ou não) de cursos e condições para formação continuada, as frequentes reformas e mudanças pedagógicas e curriculares, as decisões financeiras (relacionadas ao pagamento do recurso humano e também ao material e manutenção da instituição) e as relações com tempo e espaço dentro da escola.
A seguir trataremos dessas questões por considerarmos que, embora sejam abordadas de modo separado, são pontos não lineares, portanto, virão a compor a tessitura do descaso, da desorientação e da (desin) formação continuada, que afetam e integram a construção curricular, principalmente no quesito da autonomia. Nomeamos de descaso as ações ou a falta de ações que auxiliem no processo de educação, como questões relacionadas às condições de trabalho, como os espaços e os tempos disponíveis para que a escola materialize e concretize as propostas educacionais. A desorientação resulta das frequentes mudanças e reformas educacionais, ou seja, diante das constantes e distintas orientações educacionais e pedagógicas que os professores e a escola recebem, estes acabam por se desorientar quanto às finalidades do seu trabalho e os meios pelos quais desenvolvê-lo. Já o processo de (desin)formação continuada aglutina um pouco das duas questões anteriores. Por conta da falta de oferta (ou da pouca oferta) de formação continuada/permanente que permita aos professores se apropriarem de novos conceitos e renovarem suas práticas, o coletivo docente acaba por se encontrar desamparado, o que também dificulta que este coletivo acompanhe as constantes mudanças curriculares, pois desconhece alguns conceitos e propostas apresentadas nessas reformas e, ao buscar informações e suporte para solucionar dúvidas e dificuldades não recebe retorno/subsídio da gestão.
Reformas educacionais e mudanças pedagógicas
Em meio ao descaso com o funcionalismo público e aos ataques constantes à educação e a outros setores por meio das atuais reformas e projetos de lei que incidem sobre o investimento nestes setores e sobre a autonomia dos mesmos, a gestão do estado do Rio Grande do Sul ainda inicia, de forma não dialogada, uma reestruturação curricular para as escolas do estado. Cabe pensar, nesse sentido, quais as intenções de uma política curricular criada e implantada de forma impositiva diante desse contexto.
“Madalena crítica ‘uma gestão que se diz democrática, mas que impõe uma base curricular fechada’ [...] sobre a grade ela conta que alguns diretores pediram a possibilidade de dialogar com o coletivo de suas escolas e não foi lhes dado este direito, pois deveriam sair de lá com a base pronta” (Diário de campo, reunião sobre a Reestruturação Curricular, 24.11.2016).
Dentre várias mudanças, sublinhamos a retirada do Ensino Médio Politécnico - vigente entre 2011 e 2016 -, juntamente com a retirada do Seminário Integrado (elemento significativo da proposta politécnica, no qual os estudantes tinham foco na pesquisa e na construção de conhecimento de forma autônoma) e a inclusão do Ensino Religioso como uma área de conhecimento. Acerca dessas mudanças, os professores e as equipes diretivas não tiveram a possibilidade de opinar e não foram consultados.
“Madalena comunica que, a partir da nova reestruturação, a partir de 2017 não existirá mais o Politécnico e nem o Seminário Integrado [...] o Ensino Religioso foi colocado como área de conhecimento [...] todas as escolas estaduais do município deveriam ter a mesma grade de disciplinas e a mesma forma de avaliação” (Diário de campo, reunião sobre a Reestruturação Curricular, 24.11.2016).
“e aí a autonomia da escola onde é que fica? não, não tem autonomia [...] eu fiquei me sentindo um fantoche (Madalena) Eles insistem em dizer que as escolas tem autonomia (Joaquina) Sim, nós estamos vivendo uma verdadeira ditadura, manda quem pode e obedece quem precisa (Elisa)” (Diário de campo, reunião sobre a Reestruturação Curricular, 24.11.2016).
Tal situação se aproxima do que foi nomeado por Molina e Molina Neto (2009) de “arrastão pedagógico” (p.15), pois se configura em uma mudança no âmbito educacional que desconsidera os sujeitos envolvidos diretamente nesse processo, bem como o processo histórico construído pelos contextos que serão afetados. Ademais, esse arrastão parece estar fundamentado na descrença e na desconfiança no conhecimento profissional dos sujeitos-trabalhadores da educação, conforme sugere Schön (1992).
No contexto da escola estudada, essa imposição se apresenta como algo bastante impactante, uma vez que a proposta do Ensino Médio Politécnico, após algumas resistências iniciais, debates e reflexões, foi incorporada pela escola. Essa incorporação se deu em função de uma identificação da escola para com os seus princípios, pois pareceu dialogar positivamente com seu perfil e suas intencionalidades, de maneira que a escola criou possibilidade para incluir algumas de suas premissas e práticas já no ensino fundamental.
“Como a escola já tinha esse percurso com pesquisa, quando entrou o Politécnico, o pedagógico fez uma tratativa com a coordenadoria pra gente colocar o Seminário também no Ensino Fundamental. Bom, e aí por que saiu? Porque eles cortaram, a gente não podia mais ter” (Madalena, entrevista).
Nesse sentido, é difícil compreender qual seria o propósito dessa mudança, pois, conforme apontam os participantes da pesquisa, ainda não havia sido possível colher os frutos da proposta politécnica, não sendo possível, assim, avaliar seu efeito na formação dos estudantes. Conforme aponta Madalena, ocorre que
“Cada governo que entra quer mudar e a gente fica nadando, nadando, nadando sem ter uma linha de aonde a gente quer chegar” (Madalena, entrevista).
“daí esse ano que a gente tava começando a colher os frutos aí muda tudo de novo, porque uma proposta não pode ser de 5 anos, tem que ser de 10 pra mais pra gente sentir o efeito” (Pequena, entrevista).
Esse entendimento se aproxima das colocações apresentadas por Hargreaves (1995) ao tratar do tempo necessário para a implementação curricular. Segundo o autor, o tempo dos gestores se difere do tempo dos professores e do cotidiano da escola, pois o tempo dos gestores é pensado na sua dimensão objetiva, cronológica, numa perspectiva técnica-racional, enquanto o tempo para os professores considera uma dimensão mais subjetiva, numa dimensão fenomenológica do tempo, em que ganha força o sentido atribuído por cada pessoa ao tempo vivido. Para Hargreaves (1995),
[...] no contexto de inovação os professores sentem pressão e ansiedade em função das excessivas exigências temporais, além da culpabilização e da frustração por implementarem um novo programa com maior lentidão e menor eficácia do que as requeridas pelos cronogramas administrativos [...] Neste caso, parece que o administrador se mostra insensível diante da perspectiva temporal subjetiva do professor e das condições de trabalho nas quais se funda (p. 126).
A atual Reestruturação Curricular, por exemplo, parece estar desconectada com o restante das políticas curriculares, pois está atrelada ao Plano Estadual de Educação de 2015, e não aos documentos elaborados ao longo de 2016, como a Base Nacional Comum Curricular.
“Vocês sabem essa propaganda que a gente está vendo na TV sobre o novo Ensino Médio? Pois não é sobre essa proposta que nós vamos discutir hoje pra pensar o nosso Regimento, o que está orientando essa nossa reescrita do Regimento agora é a Reestruturação do Estado do Rio Grande do Sul que está pautada no Plano Estadual de Educação do estado de 2015” (Madalena, Diário de campo, 24.11.2016).
Cabe sublinhar, ainda, o tempo destinado para as escolas discutirem sobre esta mudança, pois tal “proposta” foi apresentada às equipes diretivas das escolas em outubro de 2016 para ser assimilada e incorporada ao Regimento Escolar até 30 de novembro do mesmo ano, visando ser implementada em março de 2017 “a gente tá fazendo aqui uma única reunião pra discutir e entregar o regimento dia 30, eu acho que não é assim que a gente deve fazer as coisas [...]” (Madalena, Diário de campo, 24.11.2016).
Esses pontos remetem a algumas colocações de Veiga-Neto (2004) acerca das características da sociedade na atualidade. Conforme aponta o autor, as sociedades contemporâneas estão sendo regidas pela velocidade, pela necessidade de realizar tudo o mais rápido possível. As transformações, nesse sentido, são constantes. Essa aceleração, esse imediatismo, para Veiga-Neto (2004), produz um sentimento de insegurança, de incerteza e de perplexidade. Tal estado de coisas atinge níveis alarmantes para aqueles que, como nós, trabalham na Educação, pois se espera que as escolas e os professores estejam sempre preparados para ensinar o novo, para atualizar o ensino.
A partir disso, compreendemos que as recorrentes mudanças e propostas curriculares e legislativas ocasiona uma desorientação no trabalho docente. A desorientação pode ser entendida como efeito de uma sobrecarga de estímulos, pensamentos ou informações conflitantes (DAVIS, 2004), no caso dos professores entendemos que essa desorientação se trata de um transbordamento de demandas. Isso provoca ressonâncias na construção curricular da escola, pois, como sinalizado anteriormente, os professores recebem excessivas e constantes demandas pedagógicas pautadas em diferentes premissas e com finalidades que nem sempre dialogam, o que os coloca diante de um dilema, pois não sabem quais orientações e caminhos seguir.
“Madalena também critica o fato de haver uma reformulação tão seguida da outra, pois os professores recém estariam se adaptando ao Politécnico e já teria essa mudança para 2017 e outra em 2018 e, assim, os estudantes nunca se formariam dentro de uma proposta. Além do fato de os professores não terem tempo para se apropriarem das propostas” (Diário de campo em 20.10.2016).
“Esse primeiro ano de agora, do Médio, passou pelo Politécnico, vai passar por essa reforma do estado e depois vai pegar a reforma nacional. No decorrer dos três anos eles vão passar por 3 modalidades de ensino” (Madalena, entrevista).
A construção curricular vai se dando, então, num entrelaçamento entre algumas demandas políticas/institucionais e demandas da própria escola. Implementar uma reestruturação curricular na época de final de ano, com pouco tempo de diálogo e após um ano de trabalho bastante difícil para os servidores, pode ser uma forma bastante interessante de minimizar possíveis resistências, uma vez que o coletivo docente se encontra desgastado e bastante atarefado. Essa falta de força para empregar uma resistência significativa frente à reestruturação foi identificada por Madalena ao falar do coletivo de diretores e vices que estavam presentes na reunião com a 28ª CRE.
“Carlos Augusto pergunta para Madalena se os diretores aceitaram tranquilamente essa imposição. Madalena responde que alguns diretores se posicionaram a favor da reestruturação, mas que a maioria do grupo não quis criar resistência [...] Carlos Augusto conclui que essa ação da coordenadoria está, então, protegida e validada por uma reunião de diretores, pois estes não se opuseram, não se negaram a participar” (Diário de campo, Reunião sobre a Reestruturação para o Ensino Médio, 25.10.2016).
Além de todas essas questões, a materialização destas propostas curriculares, bem como das intencionalidades e projetos pensados pela própria escola também se apresenta como um desafio. Tal materialização sofre ressonâncias de aspectos de maior magnitude e também provoca outras ressonâncias no interior da escola. Apesar dessa desorientação no trabalho dos docentes, entendemos que estas políticas/propostas/reformas também provocaram outros tipos de ressonância na construção curricular da escola, pois, mesmo que ainda estivessem em tramitação, criou-se uma possibilidade de debate, de diálogo, de reflexão, de formação política coletiva na escola, a fim de analisá-las a escola se desacomodou, e além de permitir esse movimento entre os professores, permitiu que esse debate permeasse a construção curricular da escola, uma vez que algumas palestras e seminários acerca destas temáticas foram realizadas com os estudantes. Como forma de resistência aos parcelamentos e às políticas das quais discordavam os professores passaram a utilizar uma camiseta com a seguinte frase: “escola que luta, escola que educa” (Diário de campo, foto disponibilizada pela colaboradora Júlia”
Aproximando-se então do que propõem Ivo e Hypolito (2014) ao considerarem que as políticas educacionais, o currículo e o trabalho docente são elementos que se entrelaçam e que por conta disso precisam ser observados de forma articulada.
Desinformação e Formação Continuada
Questões como a infraestrutura, os recursos humanos e a formação continuada parecem ressoar de forma expressiva na construção curricular. Desta forma, tanto os projetos e intencionalidades da escola como da gestão parecem sofrer dificuldades na sua concretização em razão da complexidade dos aspectos e das demandas envolvidas nesses projetos. Madalena fala sobre a dificuldade de materialização das propostas e projetos construídos pela escola, como a questão da inovação e da pesquisa, que parecem ser uma característica bastante significativa para a escola e que é dificultada por diversos fatores, o mesmo também se apresenta em trechos do PPP da escola.
“poderiam ser muito melhores se a gente tivesse profissionais melhor qualificados, pessoas com dedicação total na escola” (Madalena, entrevista).
“Em muitos momentos é inovadora, porém isso se dá de forma segmentada, e não continuada, ou seja, um professor ou grupo de professores implanta um projeto e se responsabiliza por todas as fases do mesmo, o que é desgastante” (PPP, p.06).
Nessa mesma lógica, acerca da materialidade e da implantação dos projetos demandados de forma extrínseca para a escola, a diretora critica a falta de suporte, inclusive formativo. Nessa mesma esteira uma das professoras comenta sobre o desafio de se trabalhar dentro da Área das Linguagens que é uma lógica/organização/perspectiva que permeia documentos como a Proposta Pedagógica para o Ensino Médio Politécnico, a Base Nacional Comum Curricular, bem como a Reestruturação Curricular para Ensino Fundamental e Médio do RS.
“a falta de suporte para a realização das mudanças apresentadas pelo governo. Segundo ela as mudanças são feitas sem mudança no quadro de pessoal e sem formação e capacitação para os professores” (Diário de campo, 20.10.2016).
“Eu me sinto despreparada, porque eu não fui preparada para trabalhar com uma área inteira. Muitas vezes acaba que o aluno que tem problema em alguma das outras disciplinas da área é o meu melhor aluno [...]”(Janaína, professora de Educação Física).
A partir disso, uma questão que se destacou bastante ao longo do ano foi a necessidade de a escola trabalhar com a inclusão, que é uma demanda apresentada pela LDB (1996), bem como pelas DCN’s (2013). Conforme expressa Pequena, há uma falta de suporte e informação para que a escola possa compreender, apreender e materializar tal proposta no interior da escola.
“olha, tem vezes que a gente vai pedir um suporte, uma orientação, como quando a gente foi pedir ajuda sobre como trabalhar com os alunos especiais e até agora nada, não deram nenhum retorno” (Pequena, entrevista).
“por que aqui na escola a gente não tem pessoal e nem suporte para fazer todo o trabalho necessário com esse aluno, então grande parte deste trabalho precisa ser buscado fora da escola” (Madalena, Diário de campo, 19.03.2016).
Quanto a esta questão da inclusão, ainda cabe destacar que os gestores e docentes da escola consideram que a palestra oferecida pela 28ª CRE no dia de formação da escola em 2016 não foi suficiente para que eles se sentissem capacitados para realizar um trabalho de qualidade com os estudantes com necessidades especiais.
“Madalena comenta o quanto alguns professores da escola já estão formados há bastante tempo e necessitariam de uma melhor formação continuada para poderem propor mudanças no currículo” (Diário de campo, 20.10.2016).
Assim, pudemos identificar que a formação continuada, ou sua restrição, também é um aspecto que ressoa na construção curricular, pois esta tem por objetivo contribuir com o desenvolvimento do coletivo docente, de forma que os docentes possam transformar seu trabalho a partir da construção de novos saberes e da reflexão crítica sobre a prática (FREIRE, 1996; ALVARADO-PRADA et al, 2010). No momento em que ela não é ofertada ou que sua oferta não é qualificada, a formação permanente do corpo docente e as decorrentes transformações em sua prática pedagógica são dificultadas. Nos trechos a seguir é possível identificar, de forma sutil, ilustrações da presença de práticas e rotinas pedagógicas realizadas na escola que não parecem se conectar com os estudantes e que parecem estar ligadas às formas de docência aprendidas por muitos professores nas suas formações inicias. Para dar conta dessas mudanças e necessidades mais atuais, da juventude atual, para inovar pedagogicamente é necessário que os docentes tenham chances e oportunidades de se desacomodarem, mas com subsídio formativo para tal.
“Ela explica que entende que é preciso mudar alguns modelos tradicionais de ensino, que ali na escola tem professores que são mais tradicionais” (Diário de campo, 20.07.2016).
“Ah sora, aqui só tem aula, aula, aula [...] assim, de copiar do quadro, de escrever, não tem muita coisa diferente (Júlia) [...] até tem o Café com leitura (Alisson)[...] mas é uma vez por trimestre (Romerito)” (Diário de campo, pré-conselho 8ºs e 9ºs anos).
Da mesma forma, quanto ao processo avaliativo, a maioria dos docentes, em reunião, defende que a escola mantenha o uso do conceito ao invés de número/nota, por entenderem que o conceito captura mais o processo de cada aluno, por ser mais qualitativo e subjetivo. Todavia, é possível que a falta de formação continuada ofertada para estes docentes inviabilize, ou no mínimo dificulte, a realização de uma avaliação verdadeiramente qualitativa e formativa, uma vez que os mesmos expressam que apesar de defenderem o conceito se mantêm avaliando por meio da nota.
“a gente trabalha com nota e expressa em conceito, não vamos ser hipócritas [...]” (Madalena, Diário de Campo, Reunião sobre o Regimento a partir da Reestruturação Curricular, 24.11.2016).
Nesse sentido, Alvarado-Prada et al (2010) sinalizam que para a efetivação dessa construção de conhecimento algumas condições são necessárias, como “a organização da gestão institucional na qual seja previsto o tempo e diversos recursos para sua realização” e que esta formação continuada “depende de relações com outras instâncias, como o próprio Estado em seus diferentes níveis, a família e todas as organizações instituídas socioculturalmente para que ela se desenvolva” (p. 371). De encontro ao que sugerem e propõem os autores quanto à formação de professores, parece não haver uma efetiva e significativa formação continuada e, ao invés disso, há um processo apressado e muito mais informativo que formativo, implicando em escasso suporte e subsídio às demandas cotidianas da prática pedagógica.
Tempos e Espaços
Além do financeiro, das reformas e da limitada formação continuada, aspectos como disponibilidade de tempo e espaço também refletem na organização da escola e consequentemente na construção curricular. Assim, a organização do tempo e do espaço na escola vão possibilitar algumas coisas e dificultar outras. Janaína, por vezes, teve seu planejamento alterado em função de dias chuvosos ou muito frios, tendo que realizar outra atividade em sala de aula.
Ademais, o fato de a escola possuir todo o Ensino Fundamental e o Ensino Médio, apesar de apresentar alguns elementos positivos, acarreta certos prejuízos dentro de sua organização espaço-temporal. A escola opta por realizar separadamente o recreio dos anos iniciais e dos anos finais, visando que os “pequenos” tenham espaço para correr e brincar e não tenham que disputar espaço com os grandes. Por conta disso, no 3º período uma das quadras é disponibilizada para o recreio dos anos iniciais. Janaína sinaliza isso como um aspecto que acaba intervindo nas suas aulas de Educação Física.
Ainda nesta linha, citamos a questão do planejamento, que, segundo consideram os gestores da escola e os docentes, precisaria ser coletivo, mas por questões organizacionais e de recursos humanos, que não competem à escola resolver, acaba ocorrendo da forma que é possível.
“Madalena relatou que normalmente buscam realizar as reuniões nos dias em que mais professores estão na escola, mas que às vezes é necessário que alguém faça algum ajuste, que se disponha a vir fora do seu horário” (Diário de campo, 15.03.2016).
“o que teria que acontecer pra gente poder ter reunião de planejamento seria ter um dia em que todos os professores estejam na escola e que nesse dia a gente não tivesse aula, pra que se pudesse organizar um trabalho conjunto, interdisciplinar [...] precisaria de disponibilidade de tempo né. Porque tem professores que trabalham aqui e mais em outras escolas” (Pequena, entrevista).
À vista disso, o planejamento idealizado pelos docentes e gestores da escola parece não se concretizar em razão da forma como a carga horária e o trabalho de docentes e gestores são organizados pelos setores competentes. Desta maneira, o planejamento sofre ressonâncias do quadro organizacional do sistema educativo e também produz ressonâncias na construção curricular, pois influencia na possibilidade de realização do trabalho coletivo. Para Madalena e Júlia, o ideal seria que os professores tivessem toda a sua carga horária na mesma escola, pois permitiria que estes se envolvessem em todo o processo e no dia a dia da escola.
Tais aspectos se aproximam dos achados da pesquisa de Muñoz Palafox (2004) e de Amaral (2004), em que sinalizam algumas necessidades e demandas para a viabilização do planejamento coletivo, como a disponibilidade de tempo e espaço para este planejamento, reconfiguração de horários e dias de aula a fim de propiciar aos professores um momento comum disponibilizado para reuniões, assessoramento e orientação constante, por exemplo. Desta forma, sem que se atendam essas demandas, o planejamento coletivo fica, no mínimo, dificultado.
Cabe ainda sinalizar, acerca do quadro de pessoal, que a escola parece não contar com um quadro de professores que possa atender as turmas e os objetivos estabelecidos diante das adversidades que permeiam esse contexto. Quando um professor adoece ou é convocado em outra escola, por exemplo, não existe um trabalhador que esteja disponível para cobrir esta lacuna, como um professor volante ou substituto.
“nem tem o professor titular quanto mais um substituto, diz Renata [...] eles acabam assumindo tarefas de cuidar das turmas de um professor que não vem; acabam reorganizando diversas vezes os horários” (Diário de campo, 24.06.2016).
“No primeiro período Janaína fica com duas turmas em função da falta de uma prof. [...] um aluno da 71 pergunta para Janaína se eles terão avaliação e ela diz que não em função de estar com mais uma turma [...] Nos outros períodos Madalena reveza os prof’s que ficarão com duas turmas, para não sobrecarregar apenas um” (Diário de campo, em 28.11.2016).
Assim, o que acontece, nesses casos, é que alguém da equipe diretiva acaba atendendo as turmas ou outro docente assume duas turmas ao mesmo tempo, pois a escola busca, sempre que possível, não liberar os estudantes mais cedo. Ocorre, então, que os trabalhadores acabam por assumir para si a responsabilidade por suprir essas lacunas, por solucionar esses problemas e, quando isso não é possível, sentem-se culpados. Essa autoculpabilização, para Hargreaves (1995), apresenta, em alguma medida, um caráter motivador, impulsionador, que permite que os docentes revejam e reparem alguns pontos do seu trabalho. Todavia, ao se tornar constante e excessiva, essa autoculpabilização pode afetar o trabalho docente de forma a torná-lo improdutivo. A partir disso, o autor considera dois tipos de culpabilização, uma que leva os professores a automatizarem seu trabalho, preocupando-se apenas com as metas, em cumprir o calendário escolar, e outra relacionada a um sentimento de frustração, de incapacidade, em que os docentes se sentem ineficientes e passam a desacreditar do seu trabalho. É possível observar traços dessa culpabilização persecutória (aquela que está associada às cobranças externas e que leva à automatização e à rotinização do trabalho).
“Durante toda a reunião uma professora a meu lado arrancava páginas de um livro, creio que para alguma atividade. Uma colega comenta ‘já ta fazendo as aulas até do ano que vem?!’ e ela responde ‘o tempo é valioso, não podemos perder tempo’. Em nenhum momento parece envolvida com a reunião” (Diário de campo, Reunião sobre o Regimento Escolar, em 25.11.2016).
Este trecho do diário de campo ilustra como a preocupação de uma professora em cumprir com o calendário e as atividades programadas se sobrepõem à necessidade ou à preocupação quanto às discussões que estavam sendo realizadas na reunião. Sendo assim, as demandas e a preocupação em realizar o trabalho previsto acabam afastando-a das reflexões e debates acerca do projeto e das propostas de ensino da escola, aproximando-se do que coloca Hargreaves (1995) quando sinaliza que a culpabilização pode levar os professores a automatizarem seu trabalho e focarem em atender às demandas e exigências burocráticas, inibindo a inovação pedagógica e, neste caso, também a reflexão sobre as funções e perspectivas da escola, que são também elementos da construção curricular.
Consideramos, ao longo da análise e da reflexão acerca dessa questão, que muitos desses casos são formas de negligência da gestão, da mantenedora. Por exemplo, comumente, o espaço destinado para as aulas de Educação Física nas escolas é a quadra. A partir disso, no momento em que não se oferece a estrutura de uma quadra coberta ou outro espaço alternativo, a falta de um espaço para a Educação Física em dia de chuva não se configura como uma contingência, mas como uma negligência, pois não é algo imprevisível; sabe-se que ao longo de um ano letivo pode haver dias chuvosos. Da mesma forma, não parece estar na ordem do imprevisível que professores adoeçam ou sejam convocados em outras escolas nas quais trabalham. Assim, a não oferta de substitutos ou de um quadro que possa suprir a falta de um professor sem abalar o andar das aulas se configura mais como um descaso, uma negligência, do que como uma contingência.
No entanto, ainda é possível perceber que os professores buscam realizar o que lhes é possível. A fala de Madalena expressa este entendimento de forma precisa e acentua o peso dessas ressonâncias na construção curricular
“a gente vai fazendo o que pode com o que tem” (Madalena, Diário de campo, 18.05.2016).
Entendemos que estes fatores implicam na autonomia da escola na sua construção curricular. Assim, estas ressonâncias pesam principalmente sobre a autonomia da escola, pois criam e estabelecem as condições às quais a escola estará sujeita. Contreras (2012) considera que os professores e a escola serão autônomos na medida em que idealizarem seus projetos de ensino, o que acontece apenas em parte nesse contexto. A partir disso, pode-se considerar que talvez a escola exerça uma espécie de autonomia circunscrita, ou seja, delimitada por algumas possibilidades burocráticas, estruturais, de pessoal e de espaço-tempo.
Neste sentido, assim como sugere Medeiros (2016), a autonomia dos docentes e da escola não é uma autonomia completa/plena, pois está relacionada ao fazer pedagógico e este sofre reflexos das decisões e ações políticas em nível macro. Contreras (2002) entende que essa falta de controle sobre o seu trabalho, em que concepção e execução estejam dissociadas, pode se traduzir numa “desorientação ideológica”. Para Contreras (2002) a desorientação ideológica está associada a perda de controle e autonomia do trabalho dos professores, em que os mesmos se tornam apenas executores do trabalho, sendo submissos às diretrizes e demandas extrínsecas. Neste contexto, a autonomia da escola e dos professores parece sofrer afrontas quase que de forma declarada.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir do exposto entendemos que as decisões políticas e organizacionais são pontos chave de tensão e problemática na construção curricular. Estas decisões implicam na oferta de formação continuada de professores, na organização temporal e espacial da escola (que tem como plano de fundo um aspecto financeiro), bem como na formulação de recorrentes e contrastantes orientações educacionais e curriculares, e por sua vez ressoam nas condições e possibilidades de autonomia da escola no sentido de sua construção curricular.
Algumas destas ressonâncias agem diretamente sobre o trabalho e as ações no interior da instituição e são controladas por alguns mecanismos que dificultam que se faça algo diferente do previsto. Outras, agem de forma mais sutil, mas implicam também nas condições e possibilidades da escola. Com determinadas condições de pessoal, de tempo e de estrutura, a autonomia fica restrita às possibilidades colocadas por essas condições. Além disso, a falta ou a pouca formação oferecida aos professores também limita a autonomia destes aos conhecimentos que estes já possuem, dificultando inovações.
A falta de investimento na escola, tanto para infraestrutura quanto para recursos humanos, demanda que a escola se reorganize e por vezes abra mão de seu planejamento e de suas intencionalidades para cumprir seu trabalho de forma básica. O descaso dos gestores para com os trabalhadores da educação afeta significativamente a sustentação do desejo dos professores para com o seu trabalho. O descaso se manifesta, dentre outros elementos, na postura dos gestores, que desconsideram os conhecimentos e perspectivas dos professores ao elaborarem e implantarem uma mudança curricular de modo apressado e pouco ou nada dialogado.
Por fim, entendemos que é importante enfatizar que as análises e considerações aqui traçadas são aquelas que foram possíveis e tangíveis para um estudo que se propôs a observar o currículo na sua dimensão micro, no chão da escola, no seu fazer cotidiano, mas buscando atentar para as implicações ali advindas do cenário macro social.