Introdução
Este artigo traz discussões da pesquisa desenvolvida no âmbito do “Grupo de Estudo e Pesquisa: Formação, Currículo, Tecnologias e Inovação - GEPFCTI”, da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília e busca analisar os dilemas e as contradições das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) e da Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação) e as suas implicações curriculares.
As políticas públicas nacionais orientadoras e determinantes das normatizações sobre a educação brasileira enfrentam, desde a redemocratização do País, na década de 1980, até os dias atuais, o movimento de constantes transformações na legislação e implementação educacional (Frigotto; Ciavatta, 2003). A partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 e dos desdobramentos constitucionais de estruturação política e social, articulados aos interesses do capital, configuraram-se “[...] forças que protagonizaram o chamado ajuste estrutural na década de 1990 [...]” (Frigotto, 2011, p. 239), provocando reformas de caráter neoliberal no campo da Educação, na América Latina, a datar das últimas décadas do século 20.
Nesse sentido, ocorreram mudanças nas políticas educacionais e na organização documental advinda da necessidade de contemplar o desenvolvimento do Brasil em sintonia com os estímulos do capital que cerceiam e determinam o regramento em todas as áreas, principalmente na Educação (Freitas, 2018).
Assim, legislam pela Educação vários normativos embasados na Lei nº 9.394/1996, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), documento de alicerce que trata da gestão da educação no Brasil (Brasil, 1996). Na delimitação dos artigos e nas especificações em cada um dos seus parágrafos, são estabelecidas as direções gerais, visando regulamentar os documentos e procedimentos educativos nacionais, uma vez que, no artigo 26 da LDB, revogado, “[...] já constava que os currículos desenvolvidos para a educação infantil, ensino fundamental e ensino médio deveriam ser organizados pela Base Comum Nacional [...]” (Zank; Malanchen, 2020, p. 133).
Processualmente, as inclinações econômicas mundiais que atravessaram sistematicamente os cenários políticos das esferas governamentais nacionais, no final do século 20 e nas décadas iniciais do século 21, culminaram nas reformas das ações, dos programas e das estratégias articuladas pelo governo federal para o desenvolvimento da educação em todos os níveis organizacionais do País. Nessa dinâmica, foi imprescindível a criação de DCNs com o intuito de planejar e apontar princípios para a formação inicial e continuada dos professores, de acordo com as deliberações, as lideranças e os interesses da conjuntura política contemporânea.
O viés pedagógico e estruturante em cada DCN, desde a publicação da LDB em 1996, perpassa por decisões e entendimentos, ora mais progressistas, ora de caráter mais tecnocrático, textualizados e descritos em tais documentos. A última delas, indicada pela Resolução CNE/CP nº 2/2019, além de definir as DCNs para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica, também instituiu a BNC-Formação, a qual estabelece uma política de formação inicial de professores primando pelo controle do trabalho pedagógico guiado pelas competências da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), implantada em 2017 para a educação infantil e o ensino fundamental (Brasil. CNE. CP, 2017) e em 2018 para o ensino médio (Brasil. CNE. CP, 2018), o que impacta a formação docente e a autonomia profissional, limitando a ação pedagógica com base na relação teoria e prática, conforme determina a própria Resolução CNE/CP nº 2/2019.
As reformas curriculares em curso no sistema de educação brasileiro têm provocado tensões sobre o currículo de formação docente. Desse modo, faz-se necessário analisar tais reformas e questionar: quais as implicações curriculares das Diretrizes Curriculares Nacionais e da Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica?
Assim, este estudo se pauta pelos esforços no campo educacional, contextualizando as repercussões nos processos formativos iniciais da docência marcados pela transitoriedade dos discursos (Machado, 2009), e pelos interesses políticos transformadores dos regulamentos que determinam os encaminhamentos da educação básica.
Para tanto, desenvolveu-se uma pesquisa de natureza qualitativa, que é, de acordo com Creswell (2010), fundamentalmente interpretativa; dessa maneira, realizou-se uma análise da Resolução CNE/CP nº 2/2019, com o intuito de identificar categorias, executar e elucidar o seu significado, em um momento sociopolítico e histórico específico.
Para o desenvolvimento deste estudo, efetuou-se uma pesquisa documental na Resolução CNE/CP nº 2/2019 e em outros normativos a ela relacionados, por meio da análise de conteúdo, e uma revisão de literatura, que possibilitou empreender a comparação e o contraste das contribuições teóricas com os resultados da pesquisa documental (Creswell, 2010).
A técnica empregada para examinar o texto da Resolução CNE/CP nº 2/2019 foi a análise de conteúdo, que, conforme Bardin (2016, p. 48), busca “[...] obter por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens indicadores que permitam inferências de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção destas mensagens”.
Portanto, embasados em tais procedimentos enfatizados pela leitura e pelo alinhamento da análise de conteúdo ao intento deste trabalho, executou-se a categorização, na qual se classificaram os elementos constitutivos da Resolução CNE/CP nº 2/2019, mediante critérios definidos. Posto isso, o texto foi investigado considerando as seguintes categorias: influência internacional, vinculação com a BNCC, competências, atrofia curricular, padronização, responsabilização, desprofissionalização docente e relação teoria-prática.
Diante de tais categorias, foi possível realizar recortes de excertos que indicassem relevância para a análise e verificar a frequência de determinadas expressões dentro do mesmo campo de significação. Para conduzir a interpretação dos trechos, utilizou-se a inferência, pois “[...] inferir é deduzir de maneira lógica conhecimentos sobre o emissor da mensagem ou sobre o seu meio” (Bardin, 2016, p. 45).
Perante o exposto, faz-se necessária a contextualização social, histórica e normativa da Resolução CNE/CP nº 2/2019 no atendimento à regulamentação dos processos formativos e seus condicionantes, tratados na próxima seção.
Contextualização social, histórica e normativa
Para a formação dos professores que atuam nos variados níveis, etapas e modalidades da educação brasileira, é imprescindível o alcance da oferta de uma formação de qualidade, que garanta um processo de transformação da sociedade e do sujeito. A formação dos professores, inicial ou continuada, deve estar em consonância com as transformações sociais e o movimento histórico objetivado (Duarte; Saviani, 2012).
A norma vigente que aborda a formação inicial de professores é a Resolução CNE/CP nº 2/2019, que define as DCNs para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e institui a BNC-Formação. Antes de uma análise detalhada da legislação supracitada, é pertinente discorrer sobre o normativo anterior que estabelecia as DCNs: a Resolução CNE/CP nº 2/2015.
Essa norma surgiu como resultado de um processo colaborativo que envolveu diversas organizações, inclusive os profissionais da educação. Um dos destaques desse normativo eram os princípios norteadores: sólida formação teórica e interdisciplinar, unidade teoria-prática, trabalho coletivo e interdisciplinar, compromisso social e valorização do profissional da educação, gestão democrática, avaliação e regulação dos cursos de formação, além de adoção de uma concepção formativa da docência dentro de uma perspectiva sócio-histórica, inclusiva e emancipadora.
A Resolução CNE/CP nº 2/2015 foi concebida mediante um processo colaborativo, que contou com a participação, a representação e a validação de diversos setores da sociedade. Peixoto (2020) afirma que houve forte aceitação do conteúdo da referida Resolução no meio educacional, no entanto, a sua implantação efetiva não aconteceu. Alguns cursos, inclusive, se adequaram à Resolução, porém, segundo Bazzo e Scheibe (2019), ocorreu a tentativa, por setores governamentais, de adiar a implantação da norma. Em contrapartida, as entidades representativas dos professores, como a Associação pela Formação dos Profissionais da Educação (Anfope) e a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped), tinham clareza de que não se deveria aceitar novos adiamentos de prazo para a sua implementação. Era necessário que ela entrasse em vigor antes que outra normativa mais conveniente ao momento político regressivo no País fosse apresentada.
O momento político regressivo mencionado culminou no afastamento da presidenta eleita democraticamente, Dilma Rousseff, sobre o qual Saviani (2016, p. 390) alertou: “na atual conjuntura, marcada pelo golpe jurídico-midiático-parlamentar, a perspectiva que se delineia é de um grande retrocesso que deverá marcar tanto a LDB como a legislação complementar da Educação”. Esse prenúncio de Saviani se concretizou com a extinção da Resolução CNE/CP nº 2/2015, além de outros retrocessos no campo educacional, a exemplo das implicações advindas da BNCC.
Com o argumento de que a Resolução CNE/CP nº 2/2015 precisaria de uma reestruturação para integrar a BNCC como referência norteadora para os cursos de formação de professores, instaurou-se, no Conselho Nacional de Educação (CNE), o debate acerca dessas reformulações, processo que se transformou na elaboração de um novo parecer e, consequentemente, na resolução sobre as DCNs e a BNC-Formação (Peixoto, 2020).
Esse cenário mobilizou fortemente as entidades representativas dos professores, que, prontamente, empreenderam várias manifestações contrárias a essa iniciativa. Apesar da reação da comunidade educacional contra a proposta, a Resolução CNE/CP nº 2/2019 sobre as DCNs e a BNC-Formação foi aprovada por unanimidade no Conselho Pleno do CNE (Bazzo; Scheibe, 2019).
Com a aprovação da BNC-Formação, foi revogada a Resolução CNE/CP nº 2/2015, fixando-se o prazo de dois anos para a implementação da BNC-Formação nas instituições que ainda não haviam implementado a Resolução anterior e um prazo de três anos para aquelas que já haviam iniciado esse processo. Segundo Guedes (2018, p. 95), nesse espaço temporal de “[...] dois anos da sua instituição, não houve tempo suficiente para implementá-los, tampouco para se realizar uma avaliação criteriosa, necessária à validação ou não, ou para indicar novos caminhos”.
Notadamente, as demandas impostas pela Resolução CNE/CP nº 2/2019 tornaram-se um desafio para sua implementação no que tange à regulamentação das ações formativas a serem desenvolvidas pelas instituições de ensino superior (IES) na definição dos currículos dos cursos de licenciatura. Na expectativa de adequar os procedimentos previstos nessa Resolução, em 6 de julho de 2022, foi expedida a Nota Técnica de Esclarecimento sobre a Resolução CNE/CP nº 2, de 20 de dezembro de 2019, alterando o artigo 27 do referido documento e fixando o prazo limite de até quatro anos para a sua implementação e a adequação das IES (Brasil. CNE. CP, 2022).
Portanto, a educação revela-se como um território contínuo de disputas, em que os interesses estruturantes das políticas públicas corroboram a definição das proposições formativas determinadas pela BNC-Formação, em destaque a seguir.
Educação, palco de disputas
A política de formação de professores implementada pela Resolução CNE/CP nº 2/2019 desconsidera o contexto histórico e social da realidade brasileira ao alicerçar-se mormente em experiências internacionais, como evidenciam alguns excertos do Parecer CNE/CP nº 22/2019, que trata das supramencionadas Diretrizes: “[...] apresentamos brevemente o resultado de experiências internacionais que podem nos inspirar na construção de diretrizes curriculares para a formação de professores no Brasil” (Brasil. CNE. CP, 2019, p. 9) e “[...] a experiência internacional também mostra que, para formação inicial de professores, os referenciais podem estar alinhados aos mecanismos de avaliação e acreditação dos cursos de formação inicial e avaliações dos estudantes ou recém-graduados” (Brasil. CNE. CP, 2019, p. 10). Assim:
Tudo indica, então, que adoção, em todo o país, da tal da BNCC - totalmente desnecessária à vista da vigência das Diretrizes Curriculares Nacionais - só se justificam [sic] enquanto mecanismo de padronização dos currículos como base para a elaboração das provas padronizadas aplicadas em âmbito nacional. (Saviani, 2020, p. 24).
Os organismos multilaterais têm envidado esforços em suas proposições para reformas na área da formação de professores, justificando-se na necessidade de atendimento às demandas contemporâneas sociais e de reestruturação produtiva para a proposição de ajustes com base em competências, o que se relaciona diretamente com o perfil de sociedade e de indivíduo voltados para os interesses do capital (Freitas, 2018).
A leitura e análise da BNC-Formação provoca a pensar na educação brasileira e nas rotineiras interferências decorrentes de mecanismos de controles mediados por interesses mercadológicos mundiais que transformam a educação em um território em constantes disputas.
Na realidade, conceber a educação como política pública no capitalismo, implica necessariamente compreendermos a gestão dessa sociedade por um Estado que possui relativa autonomia. Ou, ainda, implica o reconhecimento de que há em tal sociedade espaços hegemônicos do capital e, por sua vez, a possibilidade de contra-hegemonia e, assim, a educação seria um espaço em constante disputa. (Oliveira, 2003, p. 17).
Na direção do que nos aponta Oliveira (2003), concorre para a implementação de políticas públicas nacionais a influência de ideologias hegemônicas mundiais que buscam padronizar a profissão e a formação docente. Nesse patamar de controvérsias, de dilemas, está a resistência por parte de grupos contra-hegemônicos que lutam pela qualidade da formação inicial e continuada no esforço permanente de barrar a precarização e o sucateamento de todos os níveis educacionais no País, promovidos por inclinações políticas e econômicas neoliberais. Trata-se de um normativo que exprime o projeto de formação docente fundamentado em uma perspectiva neoliberal e neoconservadora, em curso em escala mundial.
A Resolução CNE/CP nº 2/2019 e a política de formação de professores dela decorrente têm por referência a BNCC. Em vista disso, a BNC-Formação preocupa-se com a formação de professores para a implantação da BNCC. A adoção do conteúdo da BNCC como eixo para a formação de professores é um reducionismo da atividade docente.
A vinculação estrita da formação de professores com a BNCC, proposta pelas atuais Diretrizes e pela BNC-Formação, carrega um paradoxo: a necessidade de ajustes da Base que orienta a formação de professores sempre que houver a revisão da BNCC. O descompasso dessa suposta articulação se dá no âmago das próprias resoluções que instituem a BNCC nas etapas escolares, as quais obrigam a revisão da BNCC após cinco anos do prazo de efetivação previsto para a educação infantil e o ensino fundamental e após três anos do prazo da completa implantação, no caso do ensino médio. Com a revisitação da BNCC, a BNC-Formação também precisará ser revisitada, sem ao menos ser avaliada a sua implantação e as reverberações na formação dos futuros professores (Brasil. CNE. CP, 2017, 2018).
Nesse sentido, a BNC- Formação tem um caráter prescritivo e padronizador, sob a forma de objetivos instrucionais numerados, o que facilita a avaliação homogeneizada e, pretensamente, visa ao controle da qualidade da formação. Nessa lógica, a política de formação de professores é caracterizada como “[...] novos controles da formação atrelada à definição de Bases Nacionais Comuns do que ensinar, do que aprender a ensinar, e à prática de Estado de avaliações nacionais comuns” (Arroyo, 2015, p. 13).
Apple (2006, p. 81) assevera que “[...] é simplesmente uma fantasia supor que sistemas de avaliação mais padronizados e diretrizes para currículos unificados sejam a solução”. A BNC-Formação, equivocadamente, apresenta-se como um referencial para a qualidade do ensino, normatizando, minuciosamente, a organização dos currículos dos cursos de formação de professores. Tal Base Nacional Comum possui elementos de uma abordagem eficientista de currículo.
Ao estabelecer a formação docente consubstanciada à BNCC e balizada por competências, defendida tenazmente nesse marco regulatório, esboça uma visão reduzida e utilitarista da docência e revela seu caráter tecnicista (Saviani, 2012), em detrimento de uma formação com a articulação indissociável entre a teoria e a prática, ou seja, a construção de uma práxis (Sánchez Vázquez, 2007) que carrega em si a possibilidade da formação do sujeito em uma perspectiva sócio-histórica, inclusiva, crítica e emancipatória.
Reside uma polissemia na expressão “competências”, contudo, no documento em curso, há uma centralidade na racionalidade técnica que coaduna com a perspectiva de organismos internacionais para a formação do sujeito, visando atender às demandas do mercado por meio de mão de obra, sob a égide do desenvolvimento econômico nacional, pois:
No Brasil muitas têm sido as influências dos organismos internacionais no sentido de implementação de políticas voltadas para o setor mercadológico e da formação para a mão de obra, em detrimento à formação para o exercício pleno do direito e da cidadania. (Lucena; Silva; Jesus, 2014, p. 137).
Destarte, a noção de competência imprime a obtenção do sucesso e da eficiência em uma perspectiva de princípios neoliberais de empregabilidade, da concorrência, da exclusão, do individualismo e da autorresponsabilização do sujeito por sua formação. Assim, nesse cenário, as contradições no campo curricular tendem a algumas implicações às novas DCNs como marco regulatório, que acabam por fragilizar, reduzir e atrofiar o currículo da formação docente e, por conseguinte, os currículos da educação básica, uma vez que estes se alinham fortemente à formação dos estudantes para as demandas do mercado, visto que:
Os documentos oficiais apresentam propostas de formação condizentes com os interesses neoliberais e esses, na maioria das vezes, não são coerentes com o contexto socioeconômico, político e cultural dos educadores, e nem com as reais necessidades impostas pela contemporaneidade para a formação do educador. (Machado, 2016, p. 307).
Portanto, os conhecimentos validados para uma formação plena do sujeito, no sentido de pensar e intervir criticamente na sociedade, esvaziam-se e dão lugar aos conhecimentos fragmentados e utilitaristas, com foco na eficácia do fazer, formando sujeitos empregáveis para as demandas de mercado.
As reformas curriculares em tendência nas agendas governamentais internacionais com objetivos de formação de mão de obra, com fundamentos pragmatistas e utilitaristas, acabam por negar o direito a todos ao acesso aos conhecimentos históricos, filosóficos, políticos, metodológicos, estéticos e culturais, a uma formação plena, que produza saberes para o trabalho, para além da referência mercadológica e da aprendizagem por competências, pois todos os sujeitos têm direito à formação, aos conhecimentos, aos saberes para o domínio de seu trabalho e à autonomia em suas dimensões crítica, política, estética e social.
Desse modo, em uma diretriz curricular de formação docente marcada por uma concepção instrumental, utilitarista, pragmatista do conhecimento, habita a valoração das faces perversas de uma moeda. A face que determina a organização dos sistemas de ensino da formação dos estudantes como mão de obra e a adequação destes no sentido de resolverem os problemas enfrentados em seu posto de trabalho, reduzindo os estudantes a sujeitos empregáveis, e a outra face da formação de professores como executores desse currículo e estéreis de reflexões críticas de sua ação docente.
Nessa direção, atentos ao movimento de atrofia do currículo para a formação de docentes declarado nas novas DCNs, é sensata a reivindicação de um currículo para a formação docente que tenha o conhecimento como cerne fundante e o direito ao conhecimento como ponto de partida e de chegada para o enfrentamento de políticas educacionais que subjugam os conhecimentos para fins mercadológicos.
Com a proposição do marco regulatório, pretende-se a sistematização do currículo de formação docente como garantia de resultados materiais; sendo assim, o princípio da padronização está explícito na proposta de uma base nacional e comum, que se veicula como uma única solução para a formação de professores da educação básica dos sistemas de ensino federal, dos 26 estados, do Distrito Federal e dos 5.568 municípios brasileiros. Portanto,
[...] os fundamentos da BNCC visam ao controle total do sistema por meio da articulação entre o currículo da educação básica, a formação de professores e avaliação em larga escala. Os objetivos são claros: moldar a formação dos indivíduos, controlar a ação dos professores e ainda criar nichos de exploração do sistema público pela iniciativa privada por meio de assessorias pedagógicas, sistema de apostilamento e kits pedagógicos. (Zank; Malanchen, 2020, p. 157).
Esse conjunto de padronizações objetiva o atendimento mercadológico, posto que a formação de professores proposta pela Resolução CNE/CP nº 2/2019 é diretamente associada à avaliação do desempenho do professor e à aprendizagem do estudante. É uma formação neoliberal, gerencialista e tem como um dos seus princípios o accountability, a responsabilização profissional dos docentes, desconsiderando as condições materiais e sociais do professor e de seus educandos. A meritocracia associa-se à responsabilização, tendo em conta que estudantes e professores deverão ser reconhecidos em seus esforços e valorizados com fundamento no desempenho evidenciado (Freitas, 2018).
A era da gestão pública neoliberal normalmente é associada à introdução de práticas administrativas como padronização, mensuração, responsabilização [accountability]. Incentivos, privatização, competição de mercado e outras similares que tornam a oferta tradicional de serviços públicos mais parecida com uma organização privada. (Mintrop, 2019, p. 249).
Diante do que aponta Mintrop (2019), depreende-se que a BNC-Formação, no bojo das concepções organizativas preconizadas por interesses do livre mercado, representa a centralidade das suas ações deliberativas na parceria público-privada entre as instituições, visando ao lucro e ao controle. É fundamental assegurar ao discente uma formação para pautar suas ações pedagógicas na criticidade atribuída à associação da unidade do par dialético teoria-prática como modo de interação e transformação da realidade que o cerca.
A política de formação de professores para a educação básica em tela é controversa ao destacar o princípio da valorização da profissão docente e, concomitantemente, apontar indícios de desprofissionalização. De acordo com a Resolução CNE/CP nº 2/2019, as competências específicas docentes se referem a três dimensões: conhecimento profissional, prática profissional e engajamento profissional. Entretanto, pautar a formação de professores exclusivamente nelas pode rebaixar e/ou esvaziar a formação política e pedagógica dos futuros docentes.
Um exemplo dessa fragilização é a proposição do engajamento profissional como dimensão fundamental das competências específicas docentes, discriminado em práticas de compromisso profissional com o autodesenvolvimento e com a aprendizagem dos estudantes, participação no projeto pedagógico da escola e envolvimento com as famílias e comunidades. O engajamento profissional, nessa perspectiva, está relacionado ao subjetivismo, ao perfil ideal e às atitudes de um “bom” professor, vocacionado, empreendedor, flexível e incentivador dos estudantes, em detrimento do sentido político e coletivo da competência profissional, da identidade profissional e da profissionalidade docente, componentes basilares para a construção de uma verdadeira autonomia curricular (Morgado, 2011).
A Resolução CNE/CP nº 2/2019 também é omissa em relação a condições dignas de trabalho, políticas de remuneração, mecanismos de atratividade da carreira e papel dos entes federados no fomento da formação docente, atribuindo a responsabilidade aos professores, em conformidade com o seu engajamento profissional. Outra evidência da desprofissionalização docente é a redução da carga horária prevista para a formação pedagógica de graduados não licenciados. A Resolução CNE/CP nº 2/2015 previa a carga horária mínima entre 1.000 e 1.400 horas, ao passo que a Resolução CNE/CP nº 2/2019 preconiza uma redução de quase 50%, ao propor a carga horária básica de 760 horas; eis aí mais um dilema formativo.
A Resolução CNE/CP nº 2/2019 indica a descaracterização da formação do professor como intelectual e a desloca para o paradigma do professor como técnico, mero tradutor de um currículo prescrito, mais uma contradição. Gimeno Sacristán (2013, p. 26) afirma que “[...] o currículo deixa de ser um plano proposto quando é interpretado e adotado pelos professores [...] autênticos tradutores do currículo como projeto e texto expresso por práticas concretas”.
As DCNs para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e a BNC-Formação desconsideram a natureza teórico-prática da função docente ao enfatizarem a prática.
Art. 11. A referida carga horária dos cursos de licenciatura deve ter a seguinte distribuição: I - Grupo I: 800 (oitocentas) horas, para a base comum que compreende os conhecimentos científicos, educacionais e pedagógicos e fundamentam a educação e suas articulações com os sistemas, as escolas e as práticas educacionais. II - Grupo II: 1.600 (mil e seiscentas) horas, para a aprendizagem dos conteúdos específicos das áreas, componentes, unidades temáticas e objetos de conhecimento da BNCC, e para o domínio pedagógico desses conteúdos. III - Grupo III: 800 (oitocentas) horas, prática pedagógica, assim distribuídas: a) 400 (quatrocentas) horas para o estágio supervisionado, em situação real de trabalho em escola, segundo o Projeto Pedagógico do Curso (PPC) da instituição formadora; e b) 400 (quatrocentas) horas para a prática dos componentes curriculares dos Grupos I e II, distribuídas ao longo do curso, desde o seu início, segundo o PPC da instituição formadora. (Brasil. CNE. CP, 2020).
A centralidade na prática é evidenciada pelo percentual destinado da carga horária: 50% (1.600h) para aprendizagem e domínio pedagógico dos conteúdos específicos da BNCC e 25% (800h) para a prática pedagógica, inclusive desde o início do curso. Silva e Cruz (2021) advertem que a prática desde o início do percurso de formação é preocupante, pois indica que nessa prática o professor conhecerá a sua área de atuação, numa visão utilitarista e esvaziada, sem o aporte suficiente de conhecimentos teóricos e políticos. Apenas 25% do curso são destinados para conhecimentos científicos, educacionais e pedagógicos. Uma formação empobrecida de teoria, reflexão, pesquisa e crítica, atributos necessários para uma educação emancipadora.
Nesse sentido, é fundamental compreender e assumir a prática não como atividade útil e imediata, mas como atividade que tem elementos de utilidade e é mediatizada, ou seja, não se configura como mero fazer resultante do desenvolvimento de habilidades cognitivas, manuais ou psicofísicas; ao contrário, deve se aproximar do conceito de práxis, posto que depende de conhecimentos teóricos e intencionalidades. Há, portanto, que diferenciar e articular esses que se constituem nos dois momentos que, dialeticamente, se relacionam no conceito de práxis: a teoria e ação. (Silva, 2022, p. 34).
A Resolução CNE/CP nº 2/2019 reforça a existência de uma separação entre teoria e prática ao tratar essas categorias na perspectiva da associação e da integração, em excertos como “[...] associação entre as teorias e as práticas pedagógicas” (Brasil. CNE. CP, 2020, art. 5º, inc. II) e “integração entre a teoria e a prática [...]” (Brasil. CNE. CP, 2020, art. 7º, inc. VII). Ademais, não reconhece a unidade do par dialético teoria-prática, associando a teoria à instituição formadora e a prática, ao professor experiente da escola onde o estudante realiza a prática pedagógica: “A prática pedagógica deve, obrigatoriamente, ser acompanhada por docente da instituição formadora e por 1 (um) professor experiente da escola onde o estudante a realiza, com vistas à união entre a teoria e a prática” (Brasil. CNE. CP, 2020, art. 15, § 2º).
Por conseguinte, a teoria e a prática juntas fazem sentido quando respondem às necessidades enfrentadas, e é na dinâmica da ação educativa que se renovam e que ressignificam a ação docente, a formação inicial e continuada de professores, dando sentido à profissão (Almeida, 2020).
Na direção em que aponta Silva (2021, p. 52), as proposições curriculares devem contemplar as necessidades e realidades educativas brasileiras, uma vez que:
É preciso romper com ideias estritamente teóricas, ou demasiadamente práticas, como se fossem opostas. As análises curriculares no Brasil carecem de aproximação com a realidade das diferentes instituições educativas deste País, saltar a letra impressa, ou mesmo oralizada, que insistem em publicizar pesquisas que pouco interferem na realidade concreta das políticas curriculares e, consequentemente, na organização do trabalho pedagógico.
As DCNs também orientam a separação temporal dos conhecimentos científicos, educacionais e pedagógicos, com início previsto para o primeiro ano de curso, enquanto os conteúdos específicos da BNCC devem ser efetivados do segundo ao quarto ano. Tal prescrição apresenta características para a elaboração de um currículo do tipo coleção, o qual, de acordo com Bernstein (1988), possui uma forte classificação, é rígido e tem uma relação fechada entre seus conhecimentos, que são delimitados e isolados, em oposição ao desejável currículo de tipo integrado, que não possui distintos limites entre os conhecimentos, dispondo de uma relação aberta e flexível entre eles.
Formar professores conforme os princípios curriculares previstos na ordenação da BNCC compactua com a proposta de padronização, definida pelas políticas de governo configuradas em uma direção ideológica com fundamentos nos interesses neoliberais hegemônicos (Silva, 2022).
Nessa perspectiva, é preciso fazer resistências a BNC-Formação pelo seu caráter acrítico de não transformação da realidade social, o que reitera o status quo, e apontar, assim, possibilidades curriculares emancipatórias.
Machado (2016) nos auxilia a desenvolver a linguagem da possibilidade nesse contexto de compreender as políticas educacionais em curso, ao sinalizar que a construção de currículos não deve atender apenas às exigências legais, mas, também, às demandas por uma formação que contemple todas as classes sociais. Nessa lógica, a autora destaca a importância da crítica à elaboração de currículos sintonizados apenas com as demandas do mercado, pois:
Entendemos que é urgente formar uma concepção de formação pautada na perspectiva da emancipação e, para que isso aconteça [sic] são necessários estudos que explicitem os seus fundamentos. Para a concretização destes precisamos considerar a pertinência da articulação dos estudos desenvolvidos nos campos da formação do professor, do currículo e dos saberes docente [sic], dada a complexidade de que se reveste a realidade educacional atual. Essa articulação se compreendida explicitada [sic] garantirá a construção de novas propostas curriculares de formação de professores. (Machado, 2016, p. 307).
Diante disso, fica o chamado para a resistência à atrofia do currículo de formação docente e a luta por um currículo emancipador, uma vez que, segundo Grundy (1991, p. 39, tradução nossa),
um currículo emancipador tenderá à liberdade em uma série de níveis. Antes de tudo, no nível da consciência, os sujeitos que participam na experiência educacional chegarão, a saber, teoricamente e ao final de sua própria existência, quando as proposições representam perspectivas deformadas do mundo (perspectivas que servem de interesse da dominação) e quando representam regularidades invariantes da existência. No nível da prática, o currículo emancipador envolverá os participantes do encontro educacional, tanto professor quanto aluno em uma ação que trate de mudar as estruturas nas quais é produzida a aprendizagem e que limitam a liberdade de maneiras frequentemente desconhecidas. Um currículo emancipador supõe uma relação recíproca entre autorreflexão e ação.
Assim, um currículo pautado por uma perspectiva emancipadora requer de todos os sujeitos envolvidos em sua construção, representantes de uma escola pública, democrática e de qualidade, uma postura ética, com a finalidade de garantir o direito ao acesso aos conhecimentos que ampliem a experiência humana em sentido amplo da educação, e não a um conhecimento restrito ao mercado. Um currículo que seja capaz de “[...] promover uma educação que garanta a apropriação de conhecimentos, habilidades e visões de mundo que se mostrem indispensáveis para poder viver, conviver, lutar e sobreviver no mundo contemporâneo” (Moreira, 2013, p. 547). Um currículo que tenha, em sua função precípua da educação, a humanização de todos os sujeitos.
Considerações finais
Tendo em conta os dilemas e as contradições que residem nas políticas educacionais em curso para a formação docente, é preciso questionar, denunciar, repensar e tornar públicas as políticas excludentes que se inserem e se impõem no processo de formação docente por meio de bases curriculares engessadas e regulatórias, que atendem ao setor mercadológico, em detrimento de uma plena formação do sujeito no sentido da emancipação, de uma formação que percorra a contramão de valores como a padronização, o individualismo e a exclusão.
Ao considerar tais atravessamentos delineados pelas experiências internacionais vinculadoras, em nível nacional, da formação de professores à BNCC, contribui-se para a atrofia curricular como princípio da padronização dos processos educacionais, os quais podem acarretar a desprofissionalização docente por meio de discursos embasados em fundamentos desarticuladores da teoria e da prática, que priorizem a técnica em detrimento da unidade e da interação entre elas, conforme as ações necessárias para o ensino e a aprendizagem.
Em vista disso, conclui-se que a BNC-Formação, movimento de produção hegemônica que invade os espaços educacionais, rebaixa a qualificação profissional e, no encadeamento dos fatos, cada vez mais produzirá uma força de trabalho mais dócil aos padrões de controle e ao atendimento do mercado, com menos conhecimento científico e submissa às determinações, ao contrário do que se espera de uma educação pública transformadora.
Desse modo, o que é básico na BNC-Formação passa por medidas que interferem na organização da estrutura curricular da educação superior com a premissa de sistematizar e estruturar as dimensões pedagógicas das licenciaturas, alinhando-as aos interesses que subscrevem aos fundamentos da BNC-Formação. Evidencia-se, nesse processo, a fragmentação da formação docente, enfatizando a formação por competências específicas, profissionais e de engajamento conduzidas pelas deliberações vigentes, em função de contemplar as prescrições da BNCC.
Nessa perspectiva, merecem ênfase os aspectos que envolvem a corresponsabilização formativa, a capacidade de administrar a aprendizagem dos estudantes, de gerir a heterogeneidade em sala, a utilização de novas tecnologias em benefício das aprendizagens, na condução das relações pessoais e interpessoais e nos múltiplos enfrentamentos cotidianos em sala de aula.
Contudo, tais investidas intensificam a abordagem instrucional no exercício da profissão, desrespeitando e rompendo com a autonomia docente e a historicidade dos sujeitos, contingenciando a diversidade regional, os contextos de inserção social, a pluralidade cultural que abrange os processos de ensino-aprendizagem no País, interferindo direta e indiretamente nos processos identitários pessoais e profissionais que reverberam na ação e formação docente em todos os níveis educacionais.