1 A EDUCAÇÃO NO QUADRO DA GLOBALIZAÇÃO E DA ECONOMIA DO CONHECIMENTO: QUESTÕES INICIAIS
A dinâmica socio histórica designada pelo conceito de globalização, enquanto processo e projeto políticos envolvendo dimensões económicas, culturais, políticas, tecnológicas, foi frequentemente traduzida em formulações de um ideário ou imaginário da economia do conhecimento (JESSOP, 2008, 2016), na União Europeia e outras latitudes. Como argumenta Jessop (2016, p. 12), “De fato, a EBC [economia baseada no conhecimento] é uma narrativa mestre que molda estratégias económicas, projetos de estado e perspetivas societais das cidades e regiões passando por estados nacionais e supranacionais a agências internacionais e regimes globais”. Aquele projeto representou um impulso notável no reposicionamento da educação face à política à economia e à cultura.
São conhecidos os marcos da adoção da Estratégia de Lisboa (2000-2010), enquanto programa global de reformas, cujo objetivo ficou conhecido pela fórmula
A União atribuiu-se hoje um novo objectivo estratégico para a próxima década: tornar-se no espaço económico mais dinâmico e competitivo do mundo baseado no conhecimento e capaz de garantir um crescimento económico sustentável, com mais e melhores empregos, e com maior coesão social. (CONSELHO EUROPEU, 2000, grifo do autor).
Neste quadro, a educação foi alcandorada ao topo das prioridades políticas e colocada no centro da economia, enquanto projeto de aprendizagem ao longo da vida, sendo reorientada para valorizar as suas dimensões economicamente rentáveis: como fonte de criação e valorização do capital humano ou do talento e de produção de valor para a economia, por meio da inovação e do conhecimento; como meio para as pessoas progredirem, se afirmarem e sobreviverem no contexto da economia do conhecimento.
No domínio da educação, expressamente integrando ou não abordagens científico-sociais multidisciplinares dos processos políticos de construção da União Europeia e de globalização, diversos trabalhos evidenciaram a arquitetura (e o elenco) multiníveis da ação em educação, quer se trate de: o processo de elaboração (decisão) e desenvolvimento das políticas educativas; as dinâmicas e movimentos sociais em torno da educação (o Fórum Social Mundial ou a Marcha Global pela Educação); a governação da educação (as modalidades de coordenação de atividades − o financiamento, fornecimento, regulação e propriedade − e atores) (DALE, 1997; LAVAL; WEBER, 2002). Qualquer destas problemáticas está fortemente vinculada a transformações políticas, designadamente na forma do Estado, em debate sob o tema da reforma e do papel do Estado face às políticas sociais, incluindo aquelas veiculadas por meio de propostas de Nova Gestão Pública (por exemplo, SANTOS, 2005; HARTLEY, 2003).
De acordo com Shiroma e Evangelista (2014, p. 30),
A crescente presença de OM [Organizações Multilaterais] em mudanças políticas nacionais modifica a configuração do Estado, enquanto a participação de organizações da Sociedade Civil nos processos de definição e execução de políticas públicas tem impacto sobre a construção da hegemonia necessária para governar que se utiliza de redes sociais internacionais, regionais e nacionais.
Nesse sentido, tornou-se pertinente interrogar e discutir os processos, as lógicas, os atores, os sentidos dos desenvolvimentos em curso, sublinhando, por meio da epígrafe de uma nova ordem educacional, a atenção colocada nas tendências e configurações da mudança (FIELD, 2000; LAVAL; WEBER, 2002). Com aquela expressão podem ser evocados os aspetos mais glamourosos ou dissimulados da poderosa influência de organizações supranacionais: o Espaço Europeu de Educação (e a governação pluriescalar da educação) (DALE, 2005); o Acordo Geral de Comércio de Serviços no âmbito da Organização Mundial do Comércio (a política de educação ou os processos e estruturas que constituem a agenda globalmente estruturada para a educação) (DALE, 2000); as políticas, os relatórios e estudos disseminados pela OCDE ou Banco Mundial (os novos modelos educativos mundiais ou a agenda global para a educação); os processos políticos desencadeados pela UE e pelas plataformas intergovernamentais como as Conferências Ministeriais que protagonizam os Processos de Bolonha e Copenhaga (o espaço europeu de políticas públicas de educação). O argumento de uma re-ordenação da educação evidencia ainda tendências como: a refundação do pacto Estado-sociedade civil; a reorientação de biografias, instituições e territórios dinamizada por via da Aprendizagem ao Longo da Vida (ALV); a refundação da educação em torno de, entre outras, categorias educacionais como competências e resultados de aprendizagem (LAVAL; WEBER, 2002; LAWN, 2003; HAKE, 2006; ANTUNES, 2008).
A educação tem vindo a ser constituída como um conjunto de atividades em direção a um horizonte que o discurso oficial define como aprendizagem ao longo da vida. Esse paradigma é promovido em nome da competitividade e da coesão social, parece inscrever-se em mutações do capitalismo e transformações da modernidade que configuram uma sociedade e economia do conhecimento e do risco (BECK, 1992; COMISSÃO DAS COMUNIDADES EUROPEIAS, 1995).
Que implicações se perfilam nesta refundação da educação como ALV? A tendencial constituição da ALV como um processo e um projeto biográfico individuais, inscreve aquele programa político no cerne de uma economia que se tornou volátil (potenciando uma sociedade de riscos sociais e vitais exponenciais) e envolve fortemente o conhecimento em sentidos díspares (enquanto fonte imediata de valorização do capital por meio da geração de novos produtos, por exemplo pela investigação aplicada; na formação dos trabalhadores, para valorizar o processo produtivo).
O individualismo possessivo (e competitivo) e a pedagogização dos problemas sociais2 como marcas de água do projeto oficial de ALV colocam este último no âmago das mudanças sócio-económicas. Quais mudanças? Entre outras, a financeirização e desregulação da economia inscrevendo o risco, a aceleração e encurtamento do tempo e a volatilidade (de condições, relações e expectativas) como traços estruturais das sociedades. Mas, também a dualização das sociedades (HAKE, 2006) como correlato da reestruturação da lógica da acumulação que instaura a maximização da concentração dos lucros do capital e o esmagamento da fração alocada ao rendimento do trabalho e à distribuição da riqueza produzida. A recomposição das hierarquias e dos processos de reprodução das desigualdades sociais, que inclui formas de “hiper-meritocracia” no contexto da globalização da economia (HOGAN, 2008; BROWN; TANNOCK, 2009), fomenta o reposicionamento da educação, enquanto ALV, na regulação social, integrando um quadro distinto face à mobilidade e às estruturas sociais. Por outro lado ainda, experimentamos a intensificação do ritmo da mudança social, que questiona modos de vida e identidades em ciclos temporais tendencialmente diminutos, com o seu cortejo de complexificação e diversificação dos quotidianos, dos quadros de ação e exigências a eles associados.
Neste contexto, conhecimento, aprendizagem e reflexividade constituem-se como exigências incontornáveis (para os indivíduos, instituições e sociedades) e, simultânea e frequentemente, impossibilidades fabricadas (não raro pelas mesmas condições, ou outras associadas àquelas que as impõem).3 Sugere-se, então, que as novas formas de organização da economia − que suscitam uma competitividade em torno da inovação, por um lado, do capital humano, por outro produzem regularmente riscos, ruturas e fraturas económico-sociais − convocam ainda a coesão social como resposta e construção baseada na responsabilidade e na mobilização dos recursos individuais e locais. De igual modo, aquelas e outras dinâmicas políticas e culturais, que alimentam a complexidade dos quadros de vida e de ação social, inscrevem a participação na construção de condições, individuais e coletivas, de reflexividade no âmago de projetos político-pedagógicos comprometidos com a criação de sujeitos e comunidades solidários e democráticos. Na medida em que as dinâmicas e os processos de educação e aprendizagem ao longo da vida podem contribuir para capacitar a apropriação e construção dos sentidos da ação no mundo, pelos sujeitos, coletivos e comunidades, a ambivalência apresenta-se como possibilidade muito real da refundação da educação como ALV.
Não deixam, no entanto, de se colocar questões a encarar quanto ao posicionamento da ALV: o desapossamento dos trabalhadores, quer do reconhecimento e remuneração dos seus investimentos no desenvolvimento profissional, quer dos ganhos de produtividade, pode apresentar-se articulado e em tensão com o envolvimento crescente em processos educativos animado por motivações em torno do desenvolvimento pessoal. Que implicações destes desenvolvimentos podem ser discernidas? A ambivalência de que falamos, como luta política em torno de possíveis realistas, é alimentada e respondida por processos estruturais que diversos estudos sinalizam.4
Recoloca-se, assim, a sugestão de Cox, agora enunciada tendo em vista a educação: por um lado, a economia global não precisa de todas as pessoas no mundo e, em certas vertentes, a ALV, com a sua inscrição a nível local, constitui uma resposta tentada pelo poder político atual para esses excedentários da economia, mais ou menos momentâneos ou de longa duração. Por outro lado, certas dinâmicas ou processos socioeducativos locais com uma existência em certa medida marginal, podem articular-se em dados momentos como “a terceira força”, a “força de baixo para cima das ONG” que corresponde à auto-organização das pessoas para formular as suas visões do mundo e expressar as suas vontades e que Cox vê como um movimento de natureza sociopolítica hoje frágil, mas potencial promotor de mudanças políticas de largo alcance no longo prazo (COX, 2003, p. 21).
Neste quadro, a ALV − enquanto “necessidade estrutural” (FIELD, 2000), fundada na pressão para a competitividade, na preocupação da coesão social e no impulso criado em torno da adaptação/apropriação da mudança social e da ação quotidiana − configura-se como projeto forjado nas lutas políticas em curso pela sua definição.
2 A EUROPEIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO, DA REVOLUÇÃO SILENCIOSA A REPENSAR A EDUCAÇÃO
A problemática da europeização da educação apresenta diversas facetas, configuradas pela aparente sintonia de entendimento do conceito que, por vezes, aparece como não necessitando de definição explícita, e ainda pelas múltiplas aceções com que frequentemente é delimitada (RADAELLI, 2000; LAWN; LINGARD, 2002; DALE; ROBERTSON, 2009). Entendemos que, em educação, como em outras esferas, é importante analisar as implicações quer da imbricação entre prioridades, opções, orientações e instituições políticas europeias e nacionais (ANDERSEN; ELIASSEN, 1993), quer da constituição de um setor e de uma política europeia de educação (DALE, 2009). O conceito de europeização tem sido convocado na literatura para dar conta de um e outro conjunto de processos. No entanto, quer do ponto de vista analítico, quer do ponto de vista empírico, estamos perante fenómenos e relações sociopolíticas distintos, mas relacionados. Hoje, estes dois conjuntos de processos são inseparáveis, sugerindo uma abordagem relacional e multidimensional, que permita compreender as políticas da educação como realidades dinâmicas que articulam múltiplas escalas e dimensões, considerando os espaços europeus e nacionais como processos, relações e dimensões interdependentes que se constituem mutuamente. Ainda assim, do ponto de vista cronológico, é possível apreender percursos e metamorfoses de relações sociopolíticas de europeização da educação; é possível, ainda, mobilizando um olhar bidirecional, compreender os contornos e as dinâmicas de construção de um setor e de uma política europeia de educação, bem como analisar as opções e prioridades das políticas educativas nacionais nesse quadro (ANTUNES, 2006).
No campo da educação é consensual entre os estudiosos que: os anos 70 do século passado testemunharam os primeiros afloramentos da intervenção da então Comunidade Económica Européia (CEE); desde meados dos anos 80, o Ato Único Europeu e o processo de preparação do Mercado Único Europeu fomentaram a intensificação dessa intervenção, designadamente por meio dos Programas de Ação Comunitários; em 1992, o Tratado de Maastricht da União Europeia, com a integração do Artigo 126, constitui o marco da formalização de uma competência própria da União Europeia na educação, que não tem cessado de se alargar e aprofundar. Nessa segunda etapa do processo de europeização da educação (desde 1992), teve lugar “o desenvolvimento de uma agenda e uma política comunitárias (isto é, definida e desenvolvida sob a égide de instituições comunitárias) para a educação e a formação”, desde 1999/2000, assente nos Processos de Bolonha e de Copenhaga e nos Programas Educação e Formação 2010 (E&F 2010) e Educação e Formação 2020 (E&F 2020), com o Método Aberto de Coordenação (MAC) (ANTUNES, 2006; DALE, 2008; RASMUSSEN, 2014). Este impulso de articulação de políticas em educação, de âmbito europeu foi descrito por Vivianne Reding, a Comissária Europeia da Educação e da Cultura na época como uma revolução silenciosa no campo da educação (REDING, 2001).
Tem sido argumentado que o processo de europeização da educação, visível como antes se apontou há mais de duas décadas, tem verificado duas tendências vêm crescendo. Por um lado, tem lugar o reforço da centralidade político-económica da educação, formação e aprendizagem (isto é, o reposicionamento da educação face à economia, à política, à cultura), de que são expressões: a adoção da aprendizagem ao longo da vida (ALV) como bandeira-projeto; o desenvolvimento dos Programas E&F 2010 e E&F 2020, no âmbito da Estratégia de Lisboa (2010) e da Estratégia UE2020. Em paralelo e com forte contribuição dos Processos de Bolonha e Copenhaga vai sendo constituído o Espaço Europeu da Educação, dotado com processos e instrumentos (europeus) de regulação compatíveis com um mercado: um sistema de graus; sistemas de créditos; o quadro europeu de qualificações; sistemas de garantia da qualidade (ANTUNES, 2016).
Entre 2010 e 2012, a política europeia de educação conheceu desenvolvimentos como a integração na Estratégia UE2020 de uma meta prioritária em educação, acompanhada pela recentralização da elaboração da decisão política na Comissão Europeia e no Conselho Europeu. Desse modo, a monitorização do desenvolvimento das políticas, no âmbito do Programa Educação e Formação 2020, foi associada ao Semestre Europeu de coordenação das políticas económicas, com a publicação do relatório anual Monitor da Educação e Formação (em novembro, desde 2012), e significativa ocorrência de Recomendações Específicas por País (REP) envolvendo a educação; o método aberto de coordenação integrou Grupos de Trabalho Temáticos, formados por Estados-membros e funcionando no âmbito da Comissão Europeia. A Comunicação da Comissão Europeia Repensar a educação - Investir nas competências para melhores resultados socioeconómicos (COMISSÃO EUROPEIA, 2012) foi perspetivada como assinalando este momento de viragem, no sentido de que consagra uma conceção programática unidimensional da educação, estritamente entendida em termos da sua funcionalidade económica. Nesse quadro, a educação é encarada, por um lado, como infraestrutura e instrumento para a economia, a gestão do desemprego e a reparação da coesão social e, por outro lado, como um bem, cuja provisão e financiamento ocorrem indiferenciadamente nos domínios público, privado ou por meio de parcerias e nos termos da distribuição de um serviço, envolvendo privatização e comercialização.
Desse modo, a centralidade acrescida da educação (formulada sobretudo como aprendizagem ao longo da vida e como formação de qualificações e competências para a economia) traduz-se na elevada prioridade ao aumento da participação e em uma senda de democratização (quantitativa) da educação, desde muito perseguidas pelos mais convictos aspirantes à realização do direito à educação como bem público ancorado em um setor público.
Nesse sentido, essas décadas de europeização constituem um processo e um projeto de desenvolvimento das tendências acima enunciadas, mas também de disputa e de tensões pela afirmação da educação, contraditoriamente, como direito social e humano fundamental e como bem de mercado, como política económica e de emprego e como política de criação da Europa (NÓVOA, 2005; ANTUNES, 2006, 2016; DALE, 2008).
3 NOVA ORDEM EDUCACIONAL, EUROPEIZAÇÃO E NOVOS NEXOS GLOBAL-LOCAL: METAMORFOSES?
A elaboração e desenvolvimento de políticas constitui um processo em que são indissociáveis, por um lado, o protagonismo dos centros de poder (as autoridades políticas públicas, entre outras, a União Europeia, os Estados Nacionais, e outros atores) e, por outro, a mediação como ação política plural em cada momento do ciclo político (em que se jogam valores e interesses, poderes, confrontos, alianças, compromisso, conflitos, derrota e dominação).5 Neste seguimento, a investigação vem sustentando o argumento de que a heterogeneidade dos países da União Europeia se traduz pela diversidade de apropriações das políticas, sublinhando a recontextualização e reinterpretação destas no espaço nacional (ALVES, 2010; LIMA; GUIMARÃES, 2012; HOLFORD; MILANA, 2014; CAVACO, LAFONT; PARIAT, 2014; MIKULEC; KRAŠOVEC, 2016). Fica, assim, consolidado o ponto de vista de que esta escala se constitui como mediação e mediadora incontornável corporizando atualizações particulares das agendas globais e/ou das políticas europeias (SHIROMA; EVANGELISTA, 2011, p. 12). No entanto, como argumenta Shiroma (2014, p. 324): “Embora as recomendações das OI (Organizações Internacionais) refiram diferentes prioridades nas reformas educacionais em diferentes regiões do mundo, tem havido pouca preocupação em estudar o nível regional e articular políticas globais com políticas locais”. Neste contexto, certas questões se destacam: em que consiste o processo de mediação no espaço nacional? Como se conjuga aí a dupla condição de veículo e filtro dessas políticas? Que relações estruturais potenciam e coagem essa apropriação? Que recursos institucionais, que comunidades interpretativas são convocados nesses processos? Em suma, qual o significado das especificidades nacionais, quais as suas fontes e em que bases se tornam relevantes?
Por outro lado, a emergência de dinâmicas políticas em educação que mobilizam o nexo global-local suscita diversas questões: que recursos, poderes e atores as ativam e nelas são ativados? Como são produzidas, nesses processos, as relações sociais que constituem os próprios espaços local e global? A chamada de atenção acerca da necessidade de uma conceção da constituição da “espacialidade como um processo” ( ROBERTSON; DALE, 2008, p. 204) sublinha a perspetiva de que dinâmicas e atividades educacionais globais e locais são feixes de relações sociais cujas propriedades constituem uma construção indissociável dessas escalas que se codefinem, interagem e intersectam.
Há algum tempo, é observável no domínio da educação a intensificação de trabalho conjunto de organizações supranacionais, mais visível entre a União Europeia, a Unesco e a OCDE; é conhecida a participação destas agências com estatutos diversos em desenvolvimentos como o Processo de Bolonha ou a convergência de esforços de harmonização de âmbito estatístico e de regulação pela monitorização e comparação, com base em indicadores e parâmetros de referência instituindo o reconhecido comparativismo globalizador (CUSSÓ; D'AMICO, 2005).
Mais recentemente são discerníveis certos cursos de ação, envolvendo a União Europeia e a OCDE, que parecem procurar a conjugação operacional em agendas comuns.6 A investigação vem ainda identificando a “intensificação e sofisticação” e o “alargamento da intervenção da OCDE no campo educativo”, designadamente no âmbito do PISA (Programme for International Student Assessment), quer no “plano das ideias”, quer organizando “relações de interdependência entre os atores que intervêm nos processos de regulação da educação” (CARVALHO, 2016, p. 669-680).
Desde 2013 a OCDE desenvolve uma intervenção em educação em Portugal, com o objetivo de elaborar uma Estratégia Nacional de Competências, com particular incidência no campo da educação de adultos e, posteriormente (2017), no contexto de uma política nacional para o ensino básico e secundário, Projeto Autonomia e Flexibilidade Curricular.
Em um e outro casos, trata-se de políticas enquadradas pelo Programa Educação e Formação 2020, no âmbito das políticas europeias de educação, e de dinâmicas que mobilizam o trabalho direto dos técnicos da OCDE com os atores no terreno das escolas e outros contextos educativos.
De seguida, alinharei algumas breves observações sobre estes desenvolvimentos, tão só com o intuito de anotar certas metamorfoses em curso entre nós.
3.1 METAMORFOSES: UM NOVO NEXO GLOBAL-LOCAL? A OMNIPRESENTE OCDE E O EXEMPLO PORTUGUÊS
De acordo com notícias da imprensa e documentos oficiais da OCDE e do governo português, tornou-se vulgar a presença de responsáveis e técnicos da Direção Geral de Educação e Competências (DGEC) da OCDE em diversos momentos por ano em Portugal. Assim aconteceu em maior ou menor grau entre 2014 e 2018. Dois processos são responsáveis por esta assiduidade, com destaque para o Diretor de Educação e Competências daquela organização, Andreas Schleicher: a elaboração da Estratégia Nacional de Competências (ENC) desde 2013 e o projeto Autonomia e Flexibilidade Curricular (PAFC) desde 2017.7
E, se observamos que nesses processos os responsáveis e técnicos da DGEC da OCDE atuam de forma não muito diferente do que ocorreu no passado ― recolhendo e disponibilizando informação junto dos chamados peritos, dos académicos, dos responsáveis e decisores políticos, dos atores do terreno ―, a análise da informação disponível sugere que, desde 2014, com a ENC, os modos de atuação também aparecem distintos: por um lado, como se referiu, é mais frequente aquela presença no país e a sua concomitante visibilidade nos media, por exemplo; por outro lado, a diferença é acentuada porque esses responsáveis e técnicos trabalham em reuniões e seminários com dezenas de atores do terreno em Portugal, para operacionalizar uma metodologia de construção e desenvolvimento de políticas (no caso da ENC) e para desenvolver, acompanhar e monitorizar outra política, no caso do PAFC.
Esses processos participam da conceção, elaboração e desenvolvimento de políticas; envolvem, de forma crucial, interlocuções com responsáveis e decisores políticos ao mais alto nível, o que configura a interação e influência direta de atores com inscrição supranacional em contextos, processos e fóruns de ação e decisões políticas nacionais, mas também um envolvimento significativo de atores que intervêm ao nível local no terreno das práticas socioeducativas. Nesse sentido, a OCDE, sem capacidade/autoridade formal para operacionalizar a formulação e desenvolvimento de políticas educativas, parece dar passos para abrir esse caminho, por meio da articulação em projetos comuns com a União Europeia e com governos nacionais de estados-membros, como Portugal. Como se refere no documento oficial que apresenta o Projeto OCDE Educação 2030: o futuro da educação e das competências (OECD's Education 2030: The Future of Education and Skills project):
A OCDE Educação 2030 trabalha com países, líderes de pensamento, especialistas, redes escolares, líderes escolares, professores, estudantes e parceiros sociais, e tem como objetivo ajudar as partes interessadas dentro do sistema educacional a implementar efetivamente a reforma curricular. (ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO, 2018a).
Portugal aparece assim associado a políticas desenhadas, desenvolvidas, monitorizadas e disseminadas sob os auspícios da dupla OCDE e UE. Tal acontece com a ENC, em que o caso português é apresentado na página oficial da OCDE em uma fase mais avançada (Guia de implementação da estratégia de competências) do que em quase todos os outros países (ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÓMICO, 2015b) e, sobretudo, com o Projeto AFC, cujo relatório de monitorização pela OCDE é caso único na página oficial do projeto OCDE Educação 2030: o futuro da educação e das competências (OECD's Education 2030: The Future of Education and Skills project).8
Dessa forma, as políticas, os atores e as práticas educativas portuguesas parecem estar a ser “globalizadas” (JAKOBI, 2009) em um sentido, porventura desconhecido até ao momento, como se um novo nexo global-local estivesse em construção, com esta assídua atuação e interação diretas de atores supranacionais em políticas, contextos, cursos de ação e com atores nacionais e locais. Desponta a hipótese de, nesses processos, as dimensões supranacional/global, nacional e local das políticas, contextos, atores e práticas educativos não apenas se constituírem mutuamente, mas tal ocorrer agora de modos e com implicações distintos.
O trabalho conjunto que vem sendo desenvolvido pelos responsáveis da administração educativa portuguesa e pela OCDE não pareceria à primeira vista distanciar-se de outros momentos e processos em que a organização atuou no domínio da educação em Portugal (TEODORO, 2001; LEMOS, 2014), não fosse a omnipresença mediática e politicamente influente da OCDE no país. Ainda que seja plausível tratar-se da consecução de uma estratégia de comunicação, também se admite que a presença e a visibilidade da OCDE em Portugal podem aportar benefícios mútuos diversos: por um lado, contribui para a legitimação de opções políticas do governo português enquanto, por outro lado, a Direção Geral da Educação e Competências da OCDE se mostra empenhada em afirmar protagonismo na ação em educação e capacidade de concretizar no terreno agendas e prioridades políticas. Nesse sentido, técnicos e responsáveis da DGEC da OCDE parecem tão determinados quanto o governo português em visibilizar a tradução de agendas políticas globais em políticas públicas e práticas profissionais e em convocar resultados no terreno para mediática e publicamente persuadir audiências e legitimar umas e outras. O relatório de monitorização do Projeto Autonomia e Flexibilidade Curricular pela OCDE refere:
Ao determinar “o desenho de um currículo do século XXI”, o Ministério da Educação não apenas consultou especialistas nacionais e internacionais, mas também participou no projeto da OCDE O Futuro da Educação e das Competências: Educação 2030, e da iniciativa A Voz dos Alunos (Gabinete do Secretário de Estado para a Educação, 2017) […] Por exemplo, escolas visitadas pela OCDE reportaram que estavam a encontrar modos de combinar disciplinas como biologia, química e filosofia para produzir projetos científicos para feiras de ciência. Outras aproveitaram a oportunidade para levar estudantes a parques naturais próximos para estudar o meio ambiente; essas viagens de campo permitiram que os professores combinassem aulas de ciências e matemática com a prática de competências de comunicação. Algumas escolas usaram a oportunidade para dar aos alunos a oportunidade de encontrar mentores. Alguns mentores da comunidade científica ajudaram os alunos em projetos específicos. Mentores de outras áreas formaram os alunos e ajudaram-nos a adquirir competências para a vida que não seriam tradicionalmente aprendidas numa área disciplinar académica (ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÓMICO, 2018b, p. 26 e 30).
Essa afigura-se uma hipótese de trabalho e uma interpretação inicial plausível (e incompleta) dos factos da omnipresença da OCDE em Portugal, bem como do protagonismo do país em certos projetos da OCDE no campo da educação.
O levantamento e análise de documentos oficiais e outros associáveis as duas ações em foco sugere que:
a ação da OCDE na elaboração da Estratégia Nacional de Competências terá envolvido mais os atores do terreno, eventualmente suscitando metamorfoses e novos nexos global-local (ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÓMICO, 2014, 2015b, 2018a, 2018b);
o registo de notícias sobre a construção da ENC (desde 2013) é bem mais modesto do que no caso do Projeto Autonomia e Flexibilidade Curricular (desde 2017);
a produção de documentos oficiais, da autoria de equipas de técnicos da OCDE, é maior no processo da ENC;9
na atual legislatura (desde novembro de 2015) a ação conjunta do governo português com a (dupla) OCDE(/UE) assume maior visibilidade e amplitude10.
Um breve quadro cronológico pode ajudar a compreender essa omnipresença e protagonismo recentes da OCDE no terreno da educação no país, as articulações entre UE/OCDE quanto às agendas educativas e ilustrar estas e outras pistas de interpretação.
Fonte: elaborado pelo autor com base na Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (2014; 2018a).
Notas: 1 OECD, 2012 2AGÊNCIA NACIONAL PARA A QUALIFICAÇÃO E O ENSINO PROFISSIONAL, 20143 (ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÓMICO, 2015a)
Ano | Mês | Ação |
2016 | abril, 30 | Andreas Schleicher, orador convidado da Conferência “Currículo para o Século XXI: competências, conhecimentos e valores em uma escolaridade de 12 anos” (promovida pelo Ministério da Educação português) |
agosto, 9 | Secretário de Estado da Educação João Costa integra grupo de consultores do Projeto “Educação 2030” da OCDE | |
2017 | Maio, 2 | Apresentação em Portugal do projeto-piloto AFC pelo Secretário de Estado da Educação João Costa1. |
Maio, 16-18 | Lisboa: 5º Encontro do Projeto “Educação 2030” da OCDE (apresentação do projeto português "A Voz dos Alunos") | |
Julho, 5 | Apresentação do normativo PAFC (João Costa)2. | |
2018 | Janeiro, 15-19 | Visita de equipa técnica da OCDE a escolas-piloto (em experiência pedagógica há pouco mais de 3 meses, desde setembro 2017) |
Fevereiro 9 | Andreas Schleicher: Apresentação OECD preliminary views on the “Project for Autonomy and Flexibility” 3. | |
Abril, 5 | Anunciada generalização a todas as escolas, “de forma não impositiva”, do Projeto Autonomia e Flexibilidade Curricular | |
Maio, 7 | Divulgado Relatório Curriculum Flexibility and Autonomy in Portugal - an OECD review | |
Maio, 17 | Paris: VII Encontro Internacional do Projeto “Educação 2030” da OCDE (presente delegação do projeto português "A Voz dos Alunos") |
Fonte: o autor.
Notas: 1REPÚBLICA PORTUGUESA, 2017b; 2REPÚBLICA PORTUGUESA, 2017a; 3REPÚBLICA PORTUGUESA, 2018a
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Uma das expressões da nova ordem educacional mundial, tematizada e reconhecível desde final dos anos 90 do século XX, é o comparativismo globalizador edificado sob a égide da ação conjunta de vastas organizações internacionais como a OCDE, a UE e a Unesco. Este trabalho técnico-político e cognitivo de medição, quantificação e padronização de visões, práticas e categorias educativas tem lugar em graus e sob formas diversas. Tal vem ocorrendo, por exemplo, no âmbito de processos de europeização das políticas educativas, de desenvolvimento de uma agenda globalmente estruturada para a educação (a economização da educação) e de proposição/imposição de novos modelos educacionais de ambição mundial (como a aprendizagem ao longo da vida, as categorias educacionais competências ou resultados de aprendizagem, as reformas gerencialistas).
Mais recentemente parecem aflorar desenvolvimentos de conjugação operacional em agendas comuns, sobretudo da UE e OCDE; especificamente podem observar-se relações sociopolíticas e educativas entre atores, contextos, dispositivos e instrumentos técnico políticos globais e locais, sugerindo metamorfoses na constituição de dinâmicas educacionais. Essas metamorfoses podem passar, por exemplo, por articulações antes desconhecidas na constituição dos espaços global e local, com novos papéis e protagonismos para as autoridades nacionais, bem como para as organizações internacionais e outros perfis para atores e contextos locais. Os casos observados, de forma muito breve e inicial, no contexto português, sugerem algumas hipóteses de trabalho, tendo em vista duas medidas de política educativa em desenvolvimento ― desde 2013, a construção da Estratégia nacional de competências (com foco particular na educação de adultos) e, desde 2017, a Autonomia e Flexibilidade Curricular, para os ensinos básico e secundário (1º a 12º anos curriculares):
a UE e a OCDE estão desenvolvendo processos de conjugação operacional em agendas comuns (por exemplo, Estratégias de Competências, da OCDE, e metas e parâmetros de referência de políticas europeias, como a Estratégia UE2020 ou o Programa EF 2020), procurando potenciar a sinergia entre o poder normativo/persuasivo de uma e a capacidade política, legal (e financeira) para desenvolver políticas e práticas profissionais da outra;
essa conjugação operacional em agendas comuns, nos casos observados, ativa e é ativada por meio da construção de nexos global-local, isto é, em que os espaços global e local mutuamente se constroem articulando atores, contextos, prioridades e temas globais e locais;
a conexão OCDE-governos portugueses apresenta-se mutuamente favorável - de um lado, o protagonismo da OCDE em Portugal legitimaria opções políticas nacionais, enquanto o protagonismo do país em encontros e projetos da OCDE afirmaria o sucesso, em termos de resultados, e a capacidade operacional/eficácia de políticas e projetos em promoção à escala global (políticas baseadas em evidências);
nos casos observados, a mediação e recontextualização nacionais de políticas globais podem apresentar contornos que incluem, mas não se limitam à reprodução destas agendas, integrando dimensões conflituais, divergentes ou em tensão.