1 INTRODUÇÃO
As relações entre sociedade e educação marcam as produções do campo pedagógico durante o século XX. Entre as diferentes tradições teóricas, assume relevo o campo denominado Educação Popular, fundamentalmente construído a partir de tensões, contradições e processos de desigualdade social presentes no contexto latino-americano. Uma das matrizes desse campo constitui-se a partir do aporte teórico-metodológico de Paulo Freire.
Nessa perspectiva, assume-se a politicidade da educação como pressuposto analítico e elemento orientador de processos de transformação social. Freire realiza uma pedagogia de síntese associando perspectivas teóricas de base fenomenológica, existencialista, marxista e cristã. Assim, seu legado epistemológico abre inúmeras (re)leituras, apresentando-se como referencial fecundo para novas possibilidades de interpretação na atualidade.
Assim, uma temática emergente do campo democrático popular latino-americano é encontrada em diversas formas de insurgências anticolonialistas, desde os movimentos de descolonização da África e Ásia, à ampliação do escopo de fontes de análise das ciências humanas até a construção de novas pautas a partir de perspectivas dos subalternizados(as)/colonizados(as)/oprimidos(as).3 Nos últimos anos o debate decolonial vem sendo posto na agenda de pesquisas na América Latina. Estudos como aqueles desenvolvidos e publicados por Mignolo (1998, 2003, 2007, 2008), Catherine Walsh (2013), Grosfoguel (2008), Quijano (2007), Maldonado-Torres (2007), Lander (2005), entre outros(as), têm proposto processos de "desobediência epistêmica" que sinalizam para a construção de novos arranjos na produção e valorização do conhecimento.
Utilizando o método de pesquisa bibliográfica (PIZZANI et al., 2012), investigaremos a teoria crítica pós-colonial e os estudos subalternos para estabelecer um breve panorama das produções nesses nichos acadêmicos, além de apresentar as epistemologias decoloniais na América Latina que buscam superar as prescrições do “Norte” enquanto categoria geopolítica e cultural. Assim, o artigo reflete possíveis propostas de insubordinação epistemológica a partir das noções freireanas de “Cultura do silêncio” e “Dizer a sua palavra”, as entendendo em relação processual e dialética como parte de uma ação decolonial.
Nesse sentido, debatemos no presente artigo os estudos pós-coloniais e subalternos em suas bases fundantes, refletindo acerca de suas influências na opção decolonial. Além disso, problematizamos a teoria pedagógica de Paulo Freire, investigando elementos que potencializariam esse "giro epistemológico" na promoção de sujeitos conscientes e capazes de produzir cenários emancipatórios.
2 COMO PENSAR FORA DA COLONIALIDADE? BREVE PANORAMA DOS ESTUDOS PÓS-COLONIAIS E DECOLONIAIS
O debate sobre as definições do campo dos estudos pós-coloniais ainda não é consenso entre os autores e as autoras da literatura da área. Em busca de historicizar as diversas vertentes de pensamento dos estudos pós-coloniais, Lima e Germano (2012), que referenciam Scott (2010), interpretam que os estudos pós-coloniais surgem a partir da análise da história indiana pelo Centro de Estudos Subalternos. Já Santos (2008) argumenta que os estudos pós-coloniais emergem logo após as reflexões de Fanon em Os condenados da terra (1961) e Pele negra, máscaras brancas (1971), bem como em O colonizador e o colonizado, de Memmi (1965). Para Piletti e Praxedes (2010), os estudos pós-coloniais são desenvolvidos a partir da construção do Centro de Estudos Culturais Contemporâneos, da Universidade de Birmingham, fundamentalmente a partir da obra de Said, Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente (1990).
De qualquer forma, a primeira metade do século XX é marcada por trabalhos de grande repercussão mundial acerca das diversas formas de opressões infringidas às civilizações colonizadas, buscando evidenciar o antagonismo colonizador-colonizado. Em essência, essa é uma forma de pensar comprometida com a superação das relações de colonialismo. Segundo Luciana Ballestrim (2013), o pós-colonialismo está associado ao tempo histórico logo após as lutas de libertação e processos de descolonização da América, Ásia e África. O termo carrega consigo um conjunto de contribuições teóricas dos estudos literários e culturais que, a partir dos anos 1980, ganham importância em universidades dos Estados Unidos e Inglaterra.
Destarte podemos compreender a teoria crítica pós-colonial enquanto movimento intelectual, político e interdisciplinar. Suas principais referências partem da seguinte tríade de pensadores: Albert Memmi, com a obra Retrato do colonizado precedido de retrato do colonizador (1947),4 Aimé Cesáire, com o livro Discursos sobre o colonialismo (1950) e Frantz Fanon, com Os condenados da terra (1962), com prefácio de Jean Paul Sartre na segunda edição. Em outro importante texto, Racismo e Cultura, publicado na coletânea Em Defesa da Revolução Africana, Fanon (1980) denuncia a guerra colonial enquanto um negócio comercial, daí a necessidade de todas as análises de intelectuais que se proponham a pensar a questão colonial a partir desse pressuposto. Para o autor, a colonização prevê: (a) a escravização da civilização autóctone; (b) a destruição dos seus sistemas de referência; (c) a ridicularização dos seus valores morais; e (d) a desestruturação de suas concepções sociais. No entanto, o regime colonial não promove a morte da cultura colonizada, mas, sim, a assimilação da cultura dominante, a ponto de naturalizar a própria dominação:
A verdade é que o rigor do sistema torna supérflua a afirmação quotidiana de uma superioridade. A necessidade de apelar em graus diferentes a adesão, à colaboração do autóctone, modifica as relações num sentido menos brutal, mais cambiado, mais cultivado. Aliás, não é raro ver surgir neste estágio uma ideologia democrática e humana. (FANON, 1980, p. 41).
Para Costa (2006), o “colonial” do termo faz referência aos diversos tipos de opressão, delimitadas pelas fronteiras de gênero, étnicas ou raciais. Em suma, para o autor o pós-colonialismo busca o “descentramento das narrativas e dos sujeitos contemporâneos.” (COSTA, 2006, p. 83-84 apud BALLESTRIM, 2013, p. 2). Foi com Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente, de Said (1990), que foram ampliados os debates sobre as formas de construção - desvendando suas faces políticas e ideológicas - do pensamento ocidental sobre o Oriente. A principal tese do autor é de que o Oriente e o Ocidente, enquanto entidades político-geográficas, interferem um no outro, geralmente embebidos em doutrinas de superioridade europeia.
Assim, o autor entende que o Oriente seria quase uma invenção europeia, que comporta um passado romântico, de seres exóticos, de memórias e paisagens obsessivas. Já o “orientalismo seria a própria produção deste estilo de pensamento baseado em uma distinção ontológica e epistemológica feita entre ‘o Oriente’ e ‘o Ocidente’.” (SAID, 1990, p. 14, grifo do autor).
Nas décadas de 1970 e 1980, a partir da direção de Guha, em aliança com pensadores do Sul asiático, como Prakash, Bhabha e Gayatri Spivak, firmou-se o Grupo de Estudos Subalternos (Subaltern Studies). Tal grupo de intelectuais, interessado na revisão da historiografia da Índia e do Paquistão, sob influência gramisciniana, procurou pensar a história a partir da perspectiva pós-colonial dos grupos subalternizados5 por meio das relações de poder e dominação desenvolvidas na colonialidade.
Na obra Pode o subalterno falar?, Gayatri Spivak (2010) provoca uma autocrítica ao pensar o fazer do(a) pesquisador(a) pós-colonial, questionando até que ponto o subalterno6 teria capacidade e permissão para falar e ser ouvido. Sua crítica se dirige, principalmente, aos intelectuais que pretendem falar pelos(as) subalternizados(as). A autora afirma que os atos de resistência não podem ser feitos em nome dos(as) subalternizados(as) sem que haja uma manutenção do status quo e do discurso hegemônico.
Seguindo o seu argumento, Spivak (2010) introduz, ainda, a mulher colonizada como um exemplo limite da subalternidade, com duas pautas centrais para a reflexão: primeiramente, a mulher sofre opressões diferentes das vivenciadas pelos homens. E, em segundo lugar, os intelectuais pós-coloniais, em sua maioria homens, não teriam condições de falar em nome da mulher, não somente por uma condição biológica, mas também por uma incapacidade de experienciar e perceber profundamente o que constrói a subalternização das mulheres colonizadas.
Para Prakash (1991), Spivak ressalta que o crítico pós-colonial traz consigo uma carga teórica carregada de silêncio feminino. Para Anne McClintock7 (2010), por sua vez, homens e mulheres colonizados(as) e colonizadores(as) experienciaram a colonização de formas distintas. A autora coloca que a construção do Oriente, enquanto categoria simbólica e geográfica, é constituída como um corpo feminino a ser invadido, penetrado e desvendado
Dessa forma, é importante destacarmos que o colonialismo é um fenômeno político, econômico e cultural, que possui dimensão epistêmica de criação de um imaginário sobre o mundo social do outro (subalterno(a), colonizado(a), negro(a), civilização autóctone, oriental, índio(a), camponês(esa), entre outros). Nesse sentido, podemos afirmar que a percepção construída pelas ciências sociais e humanas europeias não somente legitimou a dominação imperialista no plano econômico, político e físico, como contribuiu para criar epistemologicamente e ontologicamente as identidades (pessoais e coletivas) de colonizadores e colonizados (CASTRO-GÓMEZ, 2005, p. 20). Em busca de alternativa, o grupo Modernidade/Colonialidade (M/C) propõe a construção de uma nova forma de percepção intelectual advinda dos grupos subalternizados(as)/colonizados(as) da América Latina.
3 É POSSÍVEL PENSAR A PARTIR DO “SUL”?
Até aqui defendemos que a teoria pós-colonial e os Estudos Subalternos enunciam perspectivas provindas de lugares marcados pela colonialidade. Pautados principalmente por uma nova historiografia, tais discursos baseiam-se na luta pela autonomia dos sujeitos subalternizados na emissão dos seus conhecimentos de mundo. Ou seja, a crítica pós-colonial revisa os cânones das formas de produção, por meio de abordagens que alargaram as percepções e possibilidades de análise científica.
Sob influência da teoria crítica pós-colonial, a América Latina não fica de fora dos discursos de questionamento às ordens hegemônicas europeias. Com uma breve experiência de produção dos Estudos Subalternos Latino-americanos (CASTRO-GÓMEZ; MENDIETA, 1998), alguns e algumas intelectuais situados(das) na América Latina compreenderam que, no viés da pós-modernidade, a teoria pós-colonial, mesmo com a busca de desenvolver novas formas de pensar a produção científica, ainda se vale de paradigmas europeus, ou seja, uma crítica eurocêntrica ao próprio eurocentrismo. Para Grosfoguel (2008), o grupo dos Estudos Subalternos Latino-americanos, sob influência pós-colonial, via-se incapaz de romper com a episteme produzida e pensada a partir do Norte global, dos estudos estadunidenses e dos estudos subalternos do Sul da Índia (GROSFOGUEL, 2008).
Para tanto, demarcam uma quebra e distanciamento com os estudos pós-coloniais; Mignolo (1998) chega a denunciar a manutenção do discurso imperial nos estudos culturais, pós-coloniais e subalternos, pois estes não realizam uma ruptura com autores eurocentrados. Nesse sentido, o pensamento decolonial não se baseia no pós-estruturalismo francês, mas se torna uma consequência da formação e instauração da matriz colonial de poder. Para Mignolo (2007), o giro decolonial emerge primeiramente do pensamento indígena e afro-caribeño e em seguida na África e Ásia.
Nesse contexto emerge o grupo Modernidade/Colonialidade (M/C), ou autodenominado decolonial,8 promovendo uma reflexão crítica sobre a realidade cultural, política e intelectual da América Latina, uma vez que a perspectiva decolonial não entende o continente apenas como objeto de estudo, mas como dimensão geo-histórica em uma genealogia crítica do pensamento. Esse grupo utiliza amplo arcabouço teórico, que vai desde as teorias críticas europeias e norte-americanas até a teoria feminista mexicana. Ainda que existam diferenças internas substanciais, o M/C pode ser percebido como herdeiro da tradição de pensamento crítico produtor da teoria da dependência, da teologia da libertação e da investigação participativa (ESCOBAR, 2003). Assim, o programa de investigação latino-americano compartilha raciocínios, conceitos e léxico próprios, promovendo uma renovação analítica.9
A rede M/C tem como expoentes Mignolo, Grosfoguel, Escobar, Walerstein, Quijano, Walsh, entre outros(as). Em essência, esse grupo defende a percepção decolonial, em âmbito epistêmico, teórico e político, como uma forma de compreender e agir no mundo com a superação da colonialidade. Outrossim, é no M/C que são suscitados os debates acerca da introjeção de mecanismos de sujeição, representados pelo conceito de colonialidade. Quijano propõe que o colonialismo diz respeito aos processos históricos de invasão e subjugação física implicados no espaço territorial da América Latina, do séc. XVI, e aos movimentos de insurreição da elite criolla branca, no séc. XIX.
Já a colonialidade dá as diretrizes de como o trabalho, o conhecimento, a autoridade e todas as relações intersubjetivas vão ser organizadas no espaço colonial. Historicamente o colonialismo é mais antigo que a colonialidade; contudo, esta última tem se mostrado mais incrustada nas formas de viver, ser e sentir do mundo latino-americano (QUIJANO, 2007). Ou seja, a colonialidade sobrevive ao colonialismo, no qual relações de continuidades históricas de relações coloniais podem ser encontradas nos campos do poder, ser e saber (LANDER, 2005; QUIJANO, 2007). Portanto, a colonialidade não é um ponto de chegada, mas o ponto de partida da análise decolonial (MIGNOLO, 2003).
Assim, a teoria decolonial desprende-se da tirania do tempo linear como marco da modernidade, admitindo e buscando evidenciar a existência do discurso decolonial, dentro do período colonial. Para Mignolo (2007), seria possível, ainda que com ressalvas, considerar Wama Pomam de Ayala (indígena do vice-reinado peruano que escreveu a obra Nueva crónica y buen gobierno, encaminhado e enviou ao rei Felipe III em 1616) e Otabbah Cugoano (ex-escravo ganês, escravizado nas ilhas caribenhas pelo império inglês, que publicou em Londres a belíssima obra Thoughts and sentiments on the evil of slavery em 1787) como os primeiros autores de tratados políticos que buscam pensar a “humanidade” enquanto categoria universal em uma perspectiva decolonial.
Porém, tais autores acabaram silenciados e invisibilizados, em favor de pensadores que também buscavam pensar a “humanidade”, mas a partir de uma visão europeia, como Hobbes, Locke ou Rousseau. Como defende Mignolo (2003), não se trata da substituição de um paradigma eurocentrado, por outro latino-americocentrado, mas do surgimento de “paradigmas outros”:
El argumento básico (casi un silogismo) es el siguiente: si la colonialidad es constitutiva de la modernidad, puesto que la retórica salvacionista de la modernidad presupone ya la lógica opresiva y condenatoria de la colonialidad (de ahí los damnés de Fanon), esa lógica opresiva produce una energía de descontento, de desconfianza, de desprendimiento entre quienes reaccionan ante la violencia imperial. Esa energía se traduce en proyectos decoloniales que, en última instancia, también son constitutivos de la modernidad. La modernidad es una hidra de tres cabezas, aunque sólo muestra una: la retórica de salvación y progreso. La colonialidad, una de cuyas facetas es la pobreza y la propagación del SIDA en África, no aparece en la retórica de la modernidad como su necesaria contraparte, sino como algo desprendido de ella. (MIGNOLO, 2007, p. 26).
Dessa forma, ao investigar as formas de dominação colonial e a construção da colonialidade o Grupo M/C, representado por Mignolo (2003), propõe que a colonialidade se reproduz em três dimensões principais, (a) colonialidade do poder; (b) colonialidade do ser; e (c) colonialidade do saber. Elenquemos, ainda que de forma breve, cada uma dessas categorias: 1) A primeira dimensão diz respeito a uma grande rede complexa e entrelaçada, de continuidade de formas diversas de dominação colonial, mesmo após o fim das administrações coloniais. Conforme Quijano (2007) a colonialidade do poder prevê algumas estruturas de controle, como da economia, da autoridade, da natureza e dos recursos naturais, do gênero e da sexualidade, da subjetividade e do conhecimento. A colonialidade do ser é um conceito desenvolvido por Maldonado-Torres (2007) acerca da própria de viver e existir no espaço colonial. Na colonialidade do ser, os sujeitos subalternizados(as)/racializados(as)/oprimidos(as) veem os seus corpos e vidas violados pelo projeto moderno. Retiradas da capacidade de “ser”, as pessoas subalternizadas têm sua humanidade negada na colonilidade do ser: “Lo que es invisible sobre la persona de color es su propia humanidad. [...] La invisibilidad y la deshumanización son las expresiones primarias de la colonialidad del ser.” (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 150).
Acreditamos ser oportuno enfocar a terceira dimensão da colonialidade, a colonialidade do saber. A partir da noção de diferença colonial e geopolítica do conhecimento, Mignolo (2008) argumenta que, para além dos anos de expropriação e subjugação exploratória que a América-Latina vivenciou, em média, até os séculos XVIII e XIX, também, experienciou estratégias de dominação do pensamento e das formas de representação social pautadas por referências europeias e norte-americanas.
Nesse viés, o eurocentrismo não se refere apenas ao espaço geográfico da Europa, mas à forma de pensar baseada na Modernidade/Colonialidade (MIGNOLO, 2007). Assim, a colonialidade do saber revela um legado epistemológico que proíbe pensar a partir de formas de saber e conhecer próprias do seu local de enunciação.
Portanto, a colonialidade do saber se dá na própria concepção da compreensão de saber constituída a partir de categorias científicas eurocentradas. A autora indiana Shiva (2003, p. 21) problematiza que a construção do saber dominante é, essencialmente, ocidental e ocidentalizante: “[...] sistemas modernos de saber são, eles próprios, colonizadores.” A autora constrói a analogia entre as monoculturas do agronegócio e a falta de aceitação da diversidade de formas de construção do conhecimento em diferentes locais do mundo, desenvolvendo o conceito de monoculturas da mente. Tal conceito se presta para investigar a violência epistêmica infringida contra as formas outras de conhecimento, considerados pelo cientificismo dominante como “saberes menos” ou ainda “não saberes”. Nas palavras da autora:
O primeiro plano da violência desencadeada contra os sistemas locais de saber é não considerá-los um saber. A invisibilidade é a primeira razão pela qual os sistemas locais entram em colapso, antes de serem testados e comprovados pelo confronto com o saber dominante do Ocidente. A própria distância elimina os sistemas locais da percepção. Quando o saber local aparece de fato no campo da visão globalizadora, fazem com que desapareça negando-lhe o status de um saber sistemático e atribuindo-lhe os adjetivos de primitivo e anticientífico. (SHIVA, 2003, p. 22-23).
A partir da perspectiva de Shiva (2003) e do M/C, podemos observar outros(as) pensadores(as) que colocam o desenvolvimento do respeito e da valorização de paradigmas outros para uma produção de conhecimento comprometida não somente com o sul geográfico, mas com o sul epistêmico. Procurando fazer esse esforço, apresentamos dois conceitos produzidos pelo educador popular Paulo Freire: o conceito de “Cultura do silêncio” e “Dizer a sua palavra.”
4 A “CULTURA DO SILÊNCIO” E “DIZER A SUA PALAVRA”: CONCEPÇÕES DECOLONIAIS?
A partir de Pedagogia do Oprimido, Freire (1970) situa sua obra em perspectiva marxista, buscando a denúncia da opressão e a busca de possíveis enfrentamentos a esse quadro. Sua análise enfoca a realidade latino-americana e fundamenta-se na crítica ao capitalismo como macromodelo e aos seus desdobramentos em nível político e cultural. Nesse sentido, Freire reconhece que a dominação tem raízes que são produzidas pela dimensão infraestrutural, mas vão além, em direção à esfera superestrutural.
A cultura, entendida como processo amplo em nível simbólico e intersubjetivo, é aspecto decisivo para a tomada de consciência necessária à transformação social. Em certo sentido, como afirma Ernani Maria Fiori (2005) no prefácio de Pedagogia do Oprimido, temos uma pedagogia que se faz antropologia. Ou seja, a concepção de ser humano que sustenta a pedagogia freireana sinaliza para um processo de humanização que é oposto ao verificado na colonialidade moderna.
Freire, ao posicionar-se politicamente, assume pressupostos epistemológicos e metodológicos que valorizam a palavra, entendida como parte essencial do processo de humanização. Sua aposta no diálogo marca a coerência de seus aportes antropológicos, pois é pela constituição da palavra que nos reconhecemos como seres políticos. A ação antidialógica é parte, assim, da “educação bancária”, que é um produto das assimetrias sociais que conformam práticas pedagógicas autoritárias. Dessa forma: “[...] consideramos que a crítica de Freire à educação bancária possui afinidades com algumas das reflexões pós-coloniais pelo fato de trazer, de igual modo, uma crítica à produção monocultural da mente, à violência epistêmica e à produção simbólica da inferioridade.” (LIMA; GERMANO, 2012, p. 214).
Ao não “Dizer a sua palavra”, os sujeitos não se afirmam como humanos e humanas. No prefácio que escreveu em Os Condenados da Terra, de Fanon (2015), Sartre (1979, p. 3) diz: “não faz muito tempo a terra tinha dois bilhões de habitantes, isto é, quinhentos milhões de homens e um bilhão e quinhentos milhões de indígenas. Os primeiros dispunham do Verbo, os outros pediam-no emprestado.” Por isso, os processos educacionais emancipatórios não prescindem da conscientização e da assunção de uma posição política e epistêmica por parte dos sujeitos em situação de opressão. A libertação passa por uma nova práxis que vem condicionando práticas de produção do conhecimento na América Latina. Assim,
a emergência de um pensamento latino-americano, significando um novo paradigma científico, representa, a meu ver, uma diferença radical com relação ao colonialismo histórico da nossa cultura. O “Verbo” está sendo proferido, escrito e transformado em práxis histórica na “periferia”, e a libertação pode estar acontecendo. (ANDREOLA, 2007, p. 63).
Considerar Freire um autor que pode contribuir para o debate decolonial parece relevante aos buscarmos as origens da própria teoria crítica latino-americana. Nos últimos anos é crescente o número de pesquisas que procuram associar a Educação Popular à perspectiva de libertação decolonial. Por exemplo, encontramos em Mota Neto (2017) o estudo das obras de Freire e do colombiano Orlando Fals Borda na gênese de uma pedagogia decolonial latino-americana.
Assim, pensar Freire com as lentes da perspectiva decolonial sugere uma aproximação entre sua base conceitual e os estudos decoloniais, a partir da construção de um conceito que abarque as pessoas em situação de sujeição. Subalternizados(as), colonizados(as) e oprimidos(as) são categorias que comportam os indivíduos que não se reconhecem como sujeitos do processo histórico, que são impedidos (mesmo que existam resistências) de ação contrária aos padrões hegemônicos aos quais são submetidos.
Na busca de pensar as diferentes formas de opressão imbricadas nos grupos subjugados, Freire constrói o conceito de “Cultura do silêncio”, que resume a impossibilidade de homens e mulheres de ação na práxis de ser cidadãos políticos, consequentemente, incapazes de interferência nas realidades colonizantes em que estão inseridos(das). A “Cultura do silêncio” acaba sendo reflexo das ações de dominação do poder, do ser e do saber da sociedade autóctone pelos(as) colonizadores(as), construindo sujeitos silenciados e barrados do direito de expressar suas formas de percepção/ação no/com o mundo; em outras palavras, a colonialidade nega a capacidade das pessoas de agir e ser autênticas. Contudo, a “Cultura do silêncio” não implica o “não saber”, mas, sim, a submissão de homens e mulheres a uma acomodação manipuladora. Freire aponta que, para a construção da “Cultura do silêncio”, é preciso um esfacelamento do saber crítico:
Enquanto, na ação antidialógica, a manipulação, anestesiando as massas populares, facilita sua dominação, na ação dialógica, a manipulação cede seu lugar à verdadeira organização. Assim como, na ação antidialógica, a manipulação serve à conquista, na dialógica, o testemunho, ousado e amoroso, serve à organização. Esta, por sua vez, não apenas está ligada à união das massas populares como é um desdobramento natural desta união. (FREIRE, 1970, p. 102).
Assim, a “Cultura do silêncio” está inserida em estruturas opressoras, em que é retirada dos sujeitos a sua capacidade de “ser mais”. Freire aponta a objetificação dos(as) oprimidos(as) como um processo no qual as pessoas passam a ser menos, a comparar-se à “quase-coisas”, como árvores, pedras ou animais: “A ‘Cultura do silêncio’, que se gera na estrutura opressora, dentro da qual e sob cuja força condicionante vem realizando sua experiência de ‘quase-coisas’, necessariamente os constitui desta forma.” (FREIRE, 1970, p. 101).
Nesse sentido, traçamos um paralelo com a desumanização dos(as) subalternizados (as)/colonizados(as)/oprimidos(as) que transforma os corpos e suas mentes em subjugáveis, violáveis, matáveis. Fanon (1980) complexifica a questão da coisificação dos(as) colonizados(as):
O grupo social, subjugado militar e economicamente, é desumanizado segundo um método polidimensional. Exploração, torturas, razias, racismo, liquidações coletivas, opressão racional, revezam-se a níveis diferentes para fazerem, literalmente, do autóctone um objeto nas mãos da nação ocupante. (FANON, 1980, p. 39).
Da família ao trabalho e aos longos anos de disciplinamento escolar, as classes dominadas vão desde a infância sendo submetidas a não “Dizer a sua palavra”, a se silenciar diante das suas indignações. Acreditamos ser pertinente compreender a “Cultura do silêncio”, em última instância, como expressão própria da colonialidade, que carrega consigo a necessidade de opressão/colonização de sujeitos descaracterizados de sua humanidade, coercitivamente silenciado(a) e impedido(a) de construção de saberes críticos que levem em consideração a sua própria realidade e concepção de mundo.
Ao mesmo tempo que Freire denuncia a “Cultura do Silêncio”, ele também anuncia movimentos possíveis para a quebra com as colonialidades por meio do conceito de “Dizer a sua Palavra”. Em Pedagogia do oprimido (1970) e em Educação como prática para a liberdade (1976), Freire problematiza a palavra verdadeira10 como revelação existencial do diálogo. Para tanto, a palavra verdadeira é constituída de duas dimensões, a ação e a reflexão, ou seja, tendo em vista a sua característica de práxis, a própria palavra “verdadeira” implica a transformação do mundo. Aos grupos subalternizados(as)/colonizados(as)/oprimidos(as) é negado o direito de dizer a sua palavra.
Se na “Cultura do silêncio” viver é apenas existir, o não pronunciar a sua palavra significa ouvir e reproduzir a palavra de outros. Portanto, o “Dizer a sua palavra”, carregado de crítica decolonial, é relevante, uma vez que não somente questiona a invisibilização das produções e formas de conhecimento produzidas em espaços coloniais, mas convida para a superação desta pelo ato revolucionário de pensar/agir por/sobre si. Nesse sentido, pensar epistemologias divergentes do pensamento hegemônico já é um ato de grande resistência e transgressão, mas se expressar, expor os pensamentos e “Dizer a sua palavra” (e não a palavra dos outros) é algo ainda mais difícil, de autoafirmação e ruptura intelectual.
O método Paulo Freire não ensina a repetir palavras, não se restringe a desenvolver a capacidade de pensá-las segundo as exigências lógicas do discurso abstrato; simplesmente coloca o alfabetizando em condições de poder re-existenciar criticamente as palavras de seu mundo, para, na oportunidade devida, saber e poder dizer a sua palavra. (FREIRE, 1970, p. 7).
Por fim, “Dizer a sua palavra” não é apenas um ato retórico/fonético, mas da viabilidade de ser agente do processo histórico e por ele ser feito e refeito constantemente. Nessa perspectiva, “Dizer a sua palavra” não é repetir palavra qualquer ou, principalmente, reproduzir a palavra colonial hegemônica, mas construir a consciência crítica de ser, saber e poder de insurgência ao silenciamento provocado pela colonialidade. Assim, Mignolo (2008) argumenta que toda busca decolonial por transformação deve suscitar uma desobediência política e epistêmica:
La crítica del paradigma europeo de la racionalidad/ modernidad es indispensable. Más aún, urgente. Pero es dudoso que el camino consista en la negación simple de todas sus categorias; en la disolución de la realidad en el discurso; en la pura negación de la idea y de la perspectiva de totalidad en el conocimiento. Lejos de esto, es necesario desprenderse de las vinculaciones de la racionalidad-modernidad con la colonialidad, en primer término, y en definitiva con todo poder no constituido en la decision libre de gentes libres. Es la instrumentalización de la razón por el poder colonial, en primer lugar, lo que produjo paradigmas distorsionados de conocimiento y malogró las promesas liberadoras de la modernidad. La alternativa en consecuencia es clara: la destrucción de la colonialidad del poder mundial. (QUIJANO, 1992, p. 447 apud MIGNOLO, 2008, p. 288).
Assim, partindo do que Freire entende acerca de que as classes dominadas precisam tomar a história em suas mãos, podemos ver, no movimento decolonial, um caminho viável de ação para uma construção epistemológica que respeita e valoriza diferentes formas de saber, viver, conhecer, saber e existir. Por fim, é na práxis revolucionária, crítica e decolonial que as camadas subjugadas aprendem a pensar e pronunciar o seu mundo. No escopo da busca por transformação social, “Dizer a sua palavra” implica agir contra-hegemonicamente e romper com a imposta “Cultura do silêncio”, e, além disso, é uma forma de ação decolonial, que toma os sujeitos como agentes que se reconhecem no processo histórico.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo do artigo, buscamos promover o desenvolvimento de um panorama das diferentes linhas de pensamento que, em certa medida, complementam-se e dialogam, a fim de evidenciar as diferentes formas de dominação da colonialidade. A delimitação teórica dos estudos decoloniais é fundamental para perceber que o grupo não quer o fim do modelo europeu, nem a substituição por padrões america-latinocentrados, mas, sim, a construção de paradigmas “outros”, com percepções inovadoras e distantes das já conhecidas.
Ficou evidente que a colonialidade do poder, do ser e saber - apesar de algumas readaptações - é um fenômeno ainda em curso, no qual os Estados-nação periféricos e não europeus vivem, sob uma nova forma de colonialidade global. Nesse sentido, é possível apresentarmos o espraiamento da cultura e política dos Estados Unidos como uma reestruturação de agentes da colonialidade, por exemplo, em razão do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial e do Pentágono. Afinal, “as zonas periféricas mantêm-se numa situação colonial, ainda que já não estejam sujeitas a uma administração colonial.” (GROSFOGUEL, 2008, p. 126).
Verificamos que os conceitos de “Cultura do Silêncio” e “Dizer a sua palavra”, do educador brasileiro Paulo Freire, podem ser entendidos como uma denúncia dos abusos imobilizantes da colonialidade e, em seguida, um anúncio das possibilidades de ação perante o cenário posto. A “Cultura do silêncio” representa a expressão própria da colonialidade, uma vez que oprime/coloniza os sujeitos desumanizados e desprovidos do seu direito de pronunciamento do (seu) mundo.
Em seguida, observamos uma possível forma de quebra decolonial, sobre a “Cultura do silêncio”, com a busca de “Dizer a sua palavra” (e não a de outro), na qual essa concepção traz consigo uma práxis contra-hegemônica, de consciente desobediência política e epistêmica. Ainda que estejamos em forte processo de (re)definições teóricas, este texto trouxe elementos para suscitar diversas formas outras de produção de saberes e questionamentos possíveis.
Tendo em vista que não pretendemos um fazer científico que corrobore a perspectiva moderna de busca pela “verdade”, acreditamos ser relevante evidenciarmos as possíveis incoerências ou incompletudes no esforço realizado nesta análise. Em outras palavras, em que medida o pensamento de Paulo Freire, de fato, está inserido nos debates pós-coloniais, subalternos e decoloniais? É interessante observarmos a significativa influência marxista nos escritos de Paulo Freire. Outra questão curiosa diz respeito aos princípios cristãos (principalmente pela Teologia da Libertação): eles seriam pontos de distanciamento da epistemologia freireana com os estudos decoloniais? Tais características, em boa parte influenciadas por paradigmas eurocêntricos, anulariam a análise de Paulo Freire na chave decolonial? Entre outras questões, as indagações aqui elencadas servem para abrirmos o debate, e não o findar, percebendo seus potenciais e limites.