1 INTRODUÇÃO
A formação de professores se configura como um campo de estudos (ANDRÉ, 2010) que tem, nas pesquisas desenvolvidas no âmbito dos programas de pós-graduação stricto sensu, principalmente em Educação ou áreas vinculadas às licenciaturas, a principal fonte de compreensão acerca do seu desenvolvimento.
Nesse sentido, a investigação aqui relatada tem como problemática um questionamento em relação a como se configuram as pesquisas sobre a utilização de casos de ensino na formação de professores. Dele decorre o principal objetivo do estudo que se refere a sistematizar a utilização dos casos de ensino como elemento teórico-metodológico nas pesquisas acerca da formação de professores no âmbito da pós-graduação stricto sensu.
Quanto a esse lócus de investigação, André (2010) observa que, como a maior parte da pesquisa brasileira é produzida no âmbito dos programas de pós-graduação, pode-se tomar a produção acadêmica dos pós-graduandos da área da Educação como um recorte representativo da pesquisa nesse campo.
No que concerne aos rumos da pesquisa sobre formação de professores no Brasil, André (2010) esclarece que a noção de desenvolvimento profissional tem despontado como uma perspectiva de continuidade, sobrepondo-se à tradicional compreensão dicotômica entre formação inicial e continuada, embora a autora alerte para a abrangência do conceito e para possíveis riscos de diluição do objeto de estudo - a formação de professores.
No mesmo sentido, Hobold (2018) salienta que se pode pensar o desenvolvimento profissional docente como continuidade da formação inicial, levando em consideração as diversas experiências que os professores vivenciam na profissão, com seus alunos, colegas, cursos de formação e muitas outras situações pelas quais passam no percurso da vida, inclusive suas crenças e representações. Considera, portanto, que essas experiências e vivências contribuem efetivamente para que o professor se desenvolva profissionalmente.
Esta noção de desenvolvimento profissional adotada nas pesquisas sobre formação de professores no país ancora-se na literatura internacional. Marcelo (2009, p. 10), ao sintetizar definições desse conceito, configura-o “como um processo, que pode ser individual ou coletivo, mas que se deve contextualizar no local de trabalho do docente - a escola - e que contribui para o desenvolvimento das suas competências profissionais [...]” Na direção apontada por Marcelo (2009), acredita-se ser promissora a utilização dos casos de ensino como possibilidade investigativa e formativa voltada à formação de professores, haja vista as possibilidades que oferecem de desenvolvimento desse trabalho, seja individual ou coletivamente, no interior da escola ou em outros espaços/momentos de formação.
Os casos de ensino, que tomaram relevância no Brasil a partir dos estudos desenvolvidos por Mizukami (2000), têm sido utilizados em teses e dissertações da área da Educação e, em especial, no campo da formação de professores, o que suscitou a intenção de realizar um levantamento dessas produções acadêmicas a fim de compreender como eles são abordados e quais contribuições têm apresentado para a formação docente.
A investigação realizada, portanto, caminhou na direção de uma pesquisa do tipo Estado da Arte, uma vez que, segundo Romanowski e Ens (2006, p. 39):
Estados da arte podem significar uma contribuição importante na constituição do campo teórico de uma área de conhecimento, pois procuram identificar os aportes significativos da construção da teoria e prática pedagógica, apontar as restrições sobre o campo em que se move a pesquisa, as suas lacunas de disseminação, identificar experiências inovadoras investigadas que apontem alternativas de solução para os problemas da prática e reconhecer as contribuições da pesquisa na constituição de propostas na área focalizada.
É com essa perspectiva, de que o estudo contribua para o campo da formação de professores e para a elucidação do papel dos casos de ensino nesse contexto, que o presente texto traz, na sequência, o desenho metodológico adotado, os eixos de discussão do material coletado e as considerações possíveis mediante a pesquisa realizada.
2 DESENHO METODOLÓGICO
O estudo desenvolvido, de caráter exploratório e cunho documental, propôs um balanço das produções acadêmicas - teses e dissertações - publicadas a partir do ano de 2001 em duas bases de dados, a saber: a Biblioteca Digital de Teses e Dissertações (BDTD) e o Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES.
Investigações que se propõem a mapear campos de conhecimento mediante levantamentos de pesquisas e sua revisão sistemática têm recebido diferentes denominações (VOSGERAU; ROMANOWSKI, 2014). A partir das considerações tecidas pelas autoras sobre as implicações conceituais e metodológicas dessas investigações, compreende-se a definição deste estudo como um Estado da Arte, tendo em vista que se objetiva avançar da descrição para uma análise, identificando temáticas, apontando perspectivas e métodos.
O interesse por pesquisas que abordam “estado da arte” deriva da abrangência desses estudos para apontar caminhos que vêm sendo tomados e aspectos que são abordados em detrimento de outros. A realização destes balanços possibilita contribuir com a organização e análise na definição de um campo, uma área, além de indicar possíveis contribuições da pesquisa para com as rupturas sociais. A análise do campo investigativo é fundamental neste tempo de intensas mudanças associadas aos avanços crescentes da ciência e da tecnologia. (ROMANOWSKI; ENS, 2006, p. 38-39).
Diante dessa compreensão, cabe esclarecer como se deu o processo investigativo que teve três momentos distintos, porém, sequenciais e complementares.
O primeiro momento foi aquele no qual se realizou a busca nas duas bases de dados selecionadas. Os descritores utilizados foram “caso de ensino” e “casos de ensino”, mudando apenas a relação singular-plural. A questão terminológica é sempre relevante, por isso a opção por não ampliar a busca para outros descritores - método de casos ou estudo de caso - por exemplo, a fim de demarcar o interesse no conceito contido, especificamente, nos casos de ensino e na sua intencionalidade investigativo-formativa.
No que se refere ao recorte temporal - pesquisas entre os anos de 2001 e 2019 - a definição ocorreu a posteriori, uma vez que as buscas foram realizadas sem demarcador de ano e que os estudos encontrados se situaram nesse intervalo de tempo, o que pareceu adequado para o desenvolvimento da investigação. Sendo assim, o balanço inicial identificou 264 teses e dissertações.
No segundo momento da investigação, tais estudos passaram por uma análise prévia de seus títulos, resumos e palavras-chave, consolidando 36 pesquisas que formaram, efetivamente, o corpus de análise da investigação. O principal critério para essa seleção foi a presença dos casos de ensino em pesquisas voltadas para a formação de professores. A síntese quantitativa das pesquisas levantadas nesse segundo momento está descrita na Tabela 1.
Tipo de Trabalho | Ano | |||||||||||||||
2001 | 2003 | 2004 | 2005 | 2007 | 2008 | 2011 | 2012 | 2013 | 2014 | 2015 | 2016 | 2017 | 2018 | 2019 | Total | |
Teses | 0 | 0 | 0 | 1 | 2 | 1 | 3 | 1 | 2 | 1 | 2 | 1 | 2 | 4 | 0 | 20 |
Dissertações | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 0 | 1 | 1 | 0 | 2 | 1 | 0 | 3 | 1 | 2 | 16 |
Total de pesquisas que compuseram o corpus de análise | 36 |
Fonte: os autores.
Cabe ressaltar que, nesse momento, foi necessário desconsiderar as pesquisas encontradas em duplicidade, ou seja, as que estavam presentes tanto na BDTD quanto no Banco de Teses da CAPES. O Quadro 1 apresenta, portanto, os 36 estudos encontrados, apontando autoria, ano de publicação e título das pesquisas.
Autoria | Título |
---|---|
Cunha (2003) | Prática pedagógica de professores de educação física: um estudo de casos na rede pública estadual em Florianópolis - SC |
Migliorança (2004) | A atuação do professor de matemática na educação de jovens e adultos: conhecendo a problemática |
Braga (2005) | Os saberes de professoras que ensinam ciências nas séries iniciais - um estudo de caso |
Nono (2005) | Casos de ensino e professoras iniciantes |
Domingues (2007) | Os casos de ensino como “potenciais reflexivos” no desenvolvimento profissional dos professores da escola pública |
Mussi (2007) | Docência do ensino superior: conhecimentos profissionais e processos de desenvolvimento profissional |
Santos (2007) | Racismo, preconceito e discriminação: concepções de professores |
Iza (2008) | As concepções de corpo e movimento de professoras nas práticas educativas: significado e sentido de atividades de brincadeiras na educação infantil. |
Duek (2011) | Educação inclusiva e formação continuada: contribuições dos casos de ensino para os processos de aprendizagem e desenvolvimento profissional de professores |
Evangelista (2011) | Percursos formativos de formadores de professores de língua portuguesa que atuam no CEFAPRO de Cuiabá - MT |
Lacerda (2011) | A experiência no exercício da profissão e a relação com o saber ensinar: estudo com professores dos cursos de bacharelado no ensino superior |
Ortega (2011) | A construção dos saberes dos estudantes de pedagogia em relação à matemática e seu ensino no decorrer da formação inicial |
Sousa (2012) | Pensando a formação inicial em Educação Física: entendendo o papel do estágio em uma concepção de ação docente enquanto práxis. |
Yamamoto (2012) | Estudo de concepções e crenças de licenciandos sobre o ensino de matemática. |
Domingues (2013) | Desenvolvimento profissional de professoras alfabetizadoras em ambiente virtual de aprendizagem: contribuições de casos de ensino |
Rodrigues (2013) | Contribuições de um projeto de formação on-line para o desenvolvimento profissional de professoras do 1º ano do ensino fundamental |
Bezerra (2014) | Do giz ao byte: itinerários formativos docente para uso de tecnologias da informação e comunicação (TIC) em programas de gestão social |
Cardoso (2014) | Os processos formativos no programa de iniciação à docência da UFMT: a experiência de um grupo de licenciandas em pedagogia |
Poggetti (2014) | Professoras das séries iniciais do ensino fundamental e as orientações curriculares oficiais para o ensino de matemática: um estudo dessa relação |
Mendonça (2015) | Reflexões e ações de professores sobre modelagem matemática na educação estatística em um grupo colaborativo |
Pereira (2015) | Ensino de ciências na perspectiva da alfabetização científica: prática pedagógica no ciclo de alfabetização |
Uliana (2015) | Formação de professores de matemática, física e química na perspectiva da inclusão de estudantes com deficiência visual: análise de uma intervenção realizada em Rondônia |
Rabelo (2016) | Casos de ensino na formação continuada à distância de professores do Atendimento Educacional Especializado |
Almeida (2017) | Didática nos anos iniciais do ensino fundamental: um estudo sobre a docência de 11 professoras |
Anastácio (2017) | Formação e desenvolvimento profissional para prática pedagógica reflexiva na educação superior: casos de ensino na evidenciação de saberes do professor que atua na graduação em ciências contábeis. |
Batista (2017) | Atividades multimodais no processo de aprender a ensinar matemática sob a perspectiva inclusiva: uma experiência com licenciandos em pedagogia |
Dutra (2017) | A construção de saberes experienciais por egressas do PIBID, nos primeiros anos da docência |
Milanesi (2017) | Rede social virtual de professores especializados e a escolarização de estudantes com deficiência intelectual |
Paixão (2018) | Práticas docentes em classe comum de escolas regulares para alunos com deficiência intelectual |
Ramos (2018) | Professores bacharéis da saúde: trajetórias de profissionalidades docentes |
Salgado (2018) | Necessidades formativas de professores de educação básica especial, diversidade e inclusão: interlocuções e desafios |
Silva (2018a) | Uma ação de formação de professores na e para uma abordagem investigativa em aulas de matemática |
Silva (2018b) | Cenário de desenvolvimento profissional de professores: a escola como lócus de formação contínua? |
Zerbato (2018) | Desenho universal para aprendizagem na perspectiva da inclusão escolar: potencialidades e limites de uma formação colaborativa |
Moreira (2019) | Aprendizagem profissional da docência e base de conhecimento para o ensino de tutores que atuam no método problem-based learning (PLB) |
Pereira (2019) | Professores de Matemática em início de carreira: um olhar para a prática docente no ensino e aprendizagem de expressões algébricas |
Fonte: os autores.
Ao direcionar o olhar, no Quadro 1, para os títulos das pesquisas selecionadas, verifica-se que o termo ‘Casos de Ensino’ aparece em seis (16,6%) estudos (ANASTÁCIO, 2017; DOMINGUES, 2007, 2013; DUEK, 2011; NONO, 2005; RABELO, 2016). Além disso, cabe destacar que aparece a referência ao ‘Estudo de Caso’, no trabalho de Braga (2005), que diz respeito aos procedimentos metodológicos da pesquisa do autor, que ao desenvolver um estudo do tipo ‘Estudo de Caso’, utilizou ‘Casos de Ensino’ como instrumento metodológico.
Assim, de posse dos 36 estudos selecionados, deu-se início ao terceiro momento da pesquisa, que implicou na leitura integral dos trabalhos, a fim de identificar elementos que pudessem contribuir para alcançar os propósitos do estudo.
A leitura realizada nesse momento foi direcionada para os três eixos de discussão pré-estabelecidos - referentes teóricos, aspectos metodológicos e resultados. A síntese estabelecida será apresentada, na sequência, com a pretensão de identificar elementos que forneçam subsídios para a compreensão de como se deu o trabalho com os casos de ensino nessas pesquisas voltadas à formação de professores.
3 REFERENTES TEÓRICOS: PRINCIPAIS AUTORES E CONCEITOS NAS PESQUISAS COM CASOS DE ENSINO
No que tange aos autores mais citados para referenciar os casos de ensino nas pesquisas analisadas, as principais referências podem ser divididas em nacionais e internacionais.
Do exterior, a fonte essencial é, certamente, Lee S. Shulman, norte-americano que se configura como o principal responsável pela adoção de casos de ensino no campo da formação de professores. Em 14 pesquisas (38,8%), os autores fizeram alusão a esse protagonismo de Lee Shulman, apontando que “desde o final da década de 1980, sinaliza o benefício dos casos de ensino para tornar-se uma prática usual na formação de professores.” (DOMINGUES, 2013, p. 75).
Ainda no contexto norte-americano, ganham destaque: Katherine K. Merseth, que dentre outros conceitos aponta três diferentes propósitos para a utilização de casos de ensino - exemplo, tomada de decisão e resolução de problemas - (NONO, 2005); Selma Wassermann, quando apresenta estratégias que podem auxiliar os professores na elaboração de casos de ensino (DOMINGUES, 2013; NONO, 2005); e Judith H. Shulman, que traz significativa contribuição para a delimitação de critérios que caracterizam, ou não, uma história como caso de ensino (DUEK, 2011).
Do cenário internacional são significativas, também, as referências à pesquisadora portuguesa Isabel Alarcão, que vislumbra nos casos de ensino a possibilidade de uma prática reflexiva construída no coletivo (DUEK, 2011); e a Carlos Marcelo Garcia, autor espanhol que, em suas pesquisas voltadas ao desenvolvimento profissional docente, concebe os casos de ensino como oportunidade de acesso às crenças e aos conhecimentos dos professores (SILVA, 2018a).
Quanto às referências nacionais mais utilizadas nas pesquisas levantadas, certamente as contribuições de Maria da Graça Nicoletti Mizukami são as mais presentes (30 pesquisas - 83,3%). De acordo com Rabelo (2016, p. 96), ela “é uma das autoras brasileiras pioneiras no trabalho com casos de ensino em processo de aprendizagem profissional de professores e nos apresenta o arcabouço teórico e experiências de Shulman, L. e outros autores que discutem a temática.”
Orientada por Mizukami na Universidade Federal de São Carlos - UFSCar, Maévi Anabel Nono também figura como uma importante referência nacional no tocante aos casos de ensino na formação de professores. Foi expressiva a quantidade de vezes (25 - 69,4%) em que esta autora foi citada como referencial teórico, tanto em publicações individuais quanto com sua orientadora. Cabe ressaltar que a tese de Nono (2005) é um dos 36 trabalhos que compõem o material analisado nesta investigação.
Assim como Nono (2005), outras pesquisadoras que tiveram seus trabalhos elencados no presente levantamento, também passaram a ser utilizadas como referências teóricas nacionais para as pesquisas subsequentes às suas, como é o caso dos trabalhos de Viviane Preichardt Duek (DUEK, 2011) e de Isa Mara Colombo Scarlati Domingues (DOMINGUES 2007, 2013).
O principal centro de pesquisas com casos de ensino na formação de professoras no Brasil é a mencionada Universidade Federal de São Carlos - UFSCar, na qual foram realizados nove dos 36 estudos que compuseram esta investigação. Também ficou perceptível um engajamento teórico-metodológico com os casos de ensino na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP e na Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT, ambas com quatro pesquisas compondo o material aqui analisado.
Para além de pesquisadores e instituições referências na pesquisa sobre casos de ensino, o balanço realizado permitiu identificar aqueles elementos conceituais dos casos de ensino que mais foram apontados nas pesquisas. Esses elementos foram identificados e, a partir deles, foi possível definir seis princípios que se mostraram essenciais para a compreensão de como os casos de ensino foram compreendidos e descritos nas pesquisas.
1º princípio - Os casos de ensino são narrativas - em 20 (55,5%) dos estudos levantados foi evidenciada a condição de narrativa dos casos de ensino, ou seja, conforme defende Domingues (2013), as narrativas são a base para a sua construção mediante relatos de episódios escolares. Apesar disso, Duek (2011, p. 63), ancorada nas ideias de Lee Shulman, frisa que “nem toda descrição de um evento ocorrido em sala de aula, constitui-se em um caso de ensino”, pois há princípios que precisam ser considerados, como tempo, local, protagonistas, tensão a ser solucionada e adequação ao contexto sociocultural, entre outros.
2º princípio - Os casos de ensino são baseados na realidade - partindo do princípio de que os casos de ensino são narrativas de situações escolares, espera-se que eles se aproximem, ao máximo, da realidade com a qual os professores se deparam na realização de seu trabalho. Quando usados na formação de professores, os casos de ensino podem ser criados pelos formadores e entregues para discussão e análise dos docentes, ou mesmo elaborados pelos próprios professores com base em suas demandas. Contudo, baseada na obra de Katherine Merseth, Yamamoto (2012) defende que, em ambas as situações, é essencial que estejam vinculados com a realidade do contexto de ensino pesquisado.
3º princípio - Os casos de ensino apresentam uma situação problema - Para que os professores possam relacionar os casos de ensino com a sua prática pedagógica é importante que esses instrumentos reflitam situações problemáticas, tensões que levem os docentes ao engajamento de esforços em busca de possíveis soluções para elas, resgatando assim sua bagagem teórica e os saberes experienciais. Esta ideia de situação problema como princípio para a constituição dos casos de ensino faz alusão ao que Katherine Merseth indica como três de suas finalidades - (1) servir de exemplo, (2) oportunizar a tomada de decisão diante dos problemas da prática e o (3) estímulo à reflexão - e que foram abordadas em várias das pesquisas levantadas neste estudo (CARDOSO, 2014; DUTRA, 2017; MENDONÇA, 2015; MOREIRA, 2019; NONO, 2005; ORTEGA, 2011; PAIXÃO, 2018; PEREIRA, 2019).
4º princípio - Os casos de ensino são acompanhados de questões norteadoras - tendo em vista a intencionalidade formativa que precisa acompanhar o seu uso no trabalho voltado à formação de professores, é importante que os casos de ensino incluam questões ou comentários orientadores para a sua análise e discussão. “Essas questões ou comentários reflexivos, como diz J. Shulman (2003), permeiam todas as etapas do trabalho com casos de ensino e podem ser inseridas sempre que se perceba necessário focar atenção nos aspectos importantes ou gerar reflexões mais aprofundadas.” (DOMINGUES, 2013, p. 64).
5º princípio - Os casos de ensino permitem a discussão entre pares - embora os casos de ensino ofereçam possibilidades de realização de trabalho individualizado, no qual o docente interage sozinho com o documento, Katherine Merseth defende a premissa de que a discussão entre pares é fundamental para seu máximo aproveitamento. Pautada nessa concepção, Nono (2005, p. 67) alega, ao buscar a definição de casos de ensino a partir dessa autora, que “trata-se de uma representação multidimensional do contexto, participantes e realidade da situação. É criado explicitamente para discussão e procura incluir detalhes e informações suficientes para permitir que análises e interpretações sejam realizadas a partir de diferentes perspectivas.”
6º princípio - Os casos de ensino promovem a reflexão sobre a prática - finalmente, ao se configurarem como narrativas que projetam situações problema da realidade escolar, ao serem discutidas e analisadas com base nas questões norteadoras, os casos de ensino levam à reflexão dos professores sobre a sua prática. Esse, certamente, foi o elemento mais destacado nos estudos encontrados. Mais precisamente, em 30 (83,3%) das teses e dissertações os pesquisadores evidenciaram a relevância dos casos de ensino ao permitir que os professores pudessem refletir sobre a própria prática visando, certamente, aprimorá-la. Como especifica Rabelo (2016), no exercício reflexivo deflagrado pela prática de produção, análise e discussão dos casos de ensino, o professor entra em contato com temáticas que envolvem o seu trabalho pedagógico. Ocorre, nesse sentido, um estímulo para que o docente ponha em jogo o que sabe, identifique o que não sabe e o que necessita saber. Desenha-se, portanto, um cenário bastante favorável para a conquista de aprendizagens e desenvolvimento profissional dos professores.
Certamente, outros princípios também importantes poderiam ser elencados neste texto, dada a gama de conceitos e definições atribuídas aos casos de ensino nas 36 pesquisas que compuseram o levantamento das produções acadêmicas. Porém, com a clareza dos limites que a redação deste artigo impõe, entende-se que estes seis princípios representem as características essenciais apontadas e com maior prevalência nos trabalhos.
Diante desse cenário conceitual, a sequência do texto se volta para as nuances metodológicas explicitadas nas pesquisas e para o modo como os casos de ensino foram concebidos a partir dessa ótica.
4 APORTES METODOLÓGICOS EM DESTAQUE NAS PESQUISAS COM CASOS DE ENSINO
Ao levantar as implicações conceituais e metodológicas acerca de estudos de revisão, como pesquisas de estado da arte, Vosgerau e Romanowski (2014, p. 168) defendem que estas investigações, dentre outras possibilidades, permitem “indicar as tendências e procedimentos metodológicos utilizadas na área”, que aqui se refere ao campo da formação de professores.
Tendo esse propósito como horizonte, se faz possível indicar essas tendências com base em quatro pontos, a saber: (1) a classificação das pesquisas; (2) a relação dos casos de ensino com outros instrumentos de coleta de dados; (3) os participantes das pesquisas; e (4) as perspectivas de análise.
1. A classificação das pesquisas - embora compreenda-se que a dicotomia qualitativo-quantitativo nas pesquisas em Educação já possa ser superada (ANDRÉ, 2012), no sentido de que toda pesquisa em Educação se pressupõe como qualitativa, ficou evidente que boa parte dos pesquisadores dos estudos levantados ainda sentem a necessidade de demarcar essa posição em seus trabalhos. Especificamente, 22 estudos (61,1%) assumiram a abordagem qualitativa ao explicitar suas escolhas metodológicas. Esse parece ser, certamente, o elemento que mais aproximou todos os estudos.
Na classificação das pesquisas, despontaram metodologias que denotam tipos de pesquisa que se propõem a intervir na realidade, a fim de transformá-la. Do total de 36 estudos, cinco deles (13,8%) foram identificados como Pesquisa-Intervenção (DOMINGUES, 2007, 2013; DUEK, 2011; MILANESI, 2017; NONO, 2005); outros cinco (13,8%) como Pesquisa Colaborativa (DUEK, 2011 3; LACERDA, 2011; RABELO, 2016; RODRIGUES, 2013; ZERBATO, 2018); três (8,3%) como Pesquisa-Ação (MILANESI, 2017; PAIXÃO, 2018; ULIANA, 2015); e um (2,7%) como Pesquisa-Formação (MOREIRA, 2019). Nesse mesmo direcionamento, foi possível identificar em 10 trabalhos (27,7%) a elaboração de propostas de formação de professores (tanto continuada como inicial), pautadas na utilização de casos de ensino, ou seja, vários destes estudos utilizaram os casos de ensino como instrumento de pesquisa e ensino na formação de professores.
2. A relação dos casos de ensino com outros instrumentos de coleta de dados - na maioria dos trabalhos analisados, os casos de ensino foram utilizados como recurso metodológico, de investigação e formação, que foi associado a outros procedimentos de coleta de dados, sendo que o mais recorrente foi a entrevista.
Como destaque, desse aspecto, pode-se apontar os estudos que realizaram, paralelamente (mas não no mesmo momento), os casos de ensino e as entrevistas (CARDOSO, 2014; NONO, 2005), sem uma relação de ordem entre ambos. Já, outro grupo de pesquisadores trabalhou com a aplicação das entrevistas e dos casos de ensino no mesmo momento (DOMINGUES, 2007; RAMOS, 2018; SANTOS, 2007), ou seja, os casos de ensino serviram, nessas ocasiões, como propulsores ou motivadores dos aspectos/questionamentos a serem abordados nas entrevistas. Por fim, um terceiro grupo de estudos realizou as entrevistas previamente aos casos de ensino, com o propósito de que as respostas dos participantes às questões das entrevistas servissem de base para a seleção ou elaboração dos casos de ensino que seriam, posteriormente, entregues para análise/discussão dos sujeitos (BEZERRA, 2014; BRAGA, 2005; MIGLIORANÇA, 2004; ORTEGA, 2011; POGGETTI, 2014; SILVA, 2018b).
3. Os participantes das pesquisas - a análise voltada aos participantes dos estudos identificou três grupos de sujeitos. Foram duas pesquisas (5,5%) que tiveram gestores educacionais como participantes; sete (19,5%) nas quais foram os estudantes que participaram (em seis delas licenciandos e em uma, estudantes da Educação de Jovens e Adultos, juntamente com seus professores); e 27 ocasiões (75%) nas quais os participantes foram professores, com destaque para os da Educação Básica (18 vezes). Esse direcionamento das pesquisas da área para a figura do professor já foi identificado por André (2009), quando fez um estudo comparativo entre as pesquisas sobre formação docente realizadas nas décadas de 1990 e 2000. A autora concebeu como um aspecto muito promissor essa atenção dada ao professor, às suas opiniões, representações, identidade e saberes, pois conhecer de perto os docentes é fundamental para delinear estratégias efetivas para sua formação.
4. As perspectivas de análise de dados - a maior parte dos estudos não evidenciou a estratégia utilizada para a análise de dados das pesquisas. Contudo, foi possível verificar a presença da Teoria Fundamentada nos Dados (MILANESI, 2017); Análise Textual Discursiva (RAMOS, 2018); Análise de Prosa (SALGADO, 2018); e, a mais recorrente, indicada em cinco estudos (13,8%), a Análise de Conteúdo (ANASTÁCIO, 2017; MOREIRA, 2019; SANTOS, 2007; ULIANA, 2015; YAMAMOTO, 2012).
No que concerne às indicações metodológicas das pesquisas, embora André (2009) tenha verificado um avanço dos anos de 1990 para 2000, sugerindo maior consciência e preocupação com o rigor metodológico por parte dos pesquisadores nos resumos das teses e dissertações, no presente estudo ainda foi perceptível que, mesmo sendo analisada na íntegra, parte das pesquisas não apontam com clareza as suas opções metodológicas.
5 PRINCIPAIS RESULTADOS RELACIONADOS AOS CASOS DE ENSINO
Dada a diversidade de temáticas sobre as quais versaram os estudos aqui analisados, associados à formação de professores, optou-se por levantar apenas os resultados dos estudos que se relacionassem, diretamente, aos casos de ensino. Nesse sentido, é importante ressaltar que 11 estudos não fizeram menção direta a eles em suas considerações finais/conclusões, e por isso não tiveram seus resultados apontados nesse tópico do texto.
Dentre aquelas 25 pesquisas (69,4%) que pontuaram os casos de ensino em suas conclusões, foi possível elencar uma maioria de pontos positivos, porém, também algumas lacunas encontradas pelos pesquisadores.
Sobre os pontos positivos, destacam-se os seguintes tópicos, os respectivos números de pesquisas e percentuais nos quais cada um deles apareceu:
o trabalho desenvolvido com casos de ensino demonstrou potencial investigativo - 14 pesquisas (38,8%);
promoveu a reflexão dos professores sobre a sua prática - 13 pesquisas (36,1%);
contribuiu para as propostas de formação docente - 11 pesquisas (30,5%);
demonstrou potencial formativo - 10 pesquisas (27,7%);
contribuiu para o desenvolvimento profissional dos professores - 8 pesquisas (22,2%);
permitiu acessar e conhecer a construção dos saberes docentes - 7 pesquisas (19,5%);
contribuiu para os processos de aprendizagem da docência - 6 pesquisas (16,6%).
Quanto às possíveis lacunas, ou mesmo alertas emitidos pelos pesquisadores nas conclusões de seus estudos, os tópicos mais recorrentes foram os seguintes:
o trabalho com casos de ensino demanda um tempo que a escola não disponibiliza, o tempo da pesquisa é diferente do tempo da escola - 4 pesquisas (11,1%);
sem um roteiro para elaboração, os casos de ensino podem ficar inconsistentes - 2 pesquisas (5,5%);
o trabalho descontextualizado com casos de ensino não traz contribuições aos docentes - 1 pesquisa (2,7%);
os casos de ensino podem induzir as respostas dos professores sobre uma determinada temática - 1 pesquisa (2,7%);
as reflexões dos professores, a partir dos casos de ensino, não foram profundas - 1 pesquisa (2,7%);
há um limite de temáticas da docência que podem ser abordadas por meio dos casos de ensino - 1 pesquisa (2,7%).
Certamente, essas indicações fornecidas pelos pesquisadores em suas conclusões se configuram como um importante direcionamento para aqueles que pretendem desenvolver estudos a partir do uso de casos de ensino. Quanto a isso, destaca-se ainda que em cinco circunstâncias (13,8%) (ANASTÁCIO, 2017; DUTRA, 2017; MOREIRA, 2019; NONO, 2005; RABELO, 2016) foi sugerida a realização de novos estudos para que se amplie o conhecimento sobre os casos de ensino e a sua efetiva contribuição para a formação de professores.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao retomar a questão que deu início a esse estudo, e que versou sobre como se configuram as pesquisas sobre a utilização de casos de ensino na formação de professores, compreende-se que elas estão centradas nas possibilidades investigativa e formativa que a referida metodologia apresenta.
Do mesmo modo, ao retomar o objetivo de sistematizar a utilização dos casos de ensino como elemento teórico-metodológico nas pesquisas acerca da formação de professores no âmbito da pós-graduação stricto sensu, pode-se inferir que os pós-graduandos têm desempenhado um papel crucial na delimitação teórico-metodológica dos casos de ensino, caminhando para sua sustentação teórica e empírica no que diz respeito à utilização no campo da formação de professores.
É imprescindível, também, fazer um destaque para o modo como as pesquisas mais recentes vêm trazendo os pesquisadores pioneiros no Brasil como referenciais para seus estudos, apontando um movimento de construção de um referencial teórico nacional. Contudo, ficou evidente como muitos pesquisadores nacionais ainda não têm acesso às referências internacionais, embora acabem utilizando-as por citação de citação (apud). Esse fato foi bastante recorrente nessa investigação ao se tratar dos escritos de Lee Shulman, pioneiro no trabalho com casos de ensino direcionado à formação de professores.
Como alertas que podem contribuir para o aprimoramento dos estudos que caminham nessa direção, pode-se apontar aquelas pesquisas que utilizaram, mas não conceituaram os casos de ensino, o que configura certa lacuna. Entende-se que os casos de ensino, ou qualquer outro instrumento teórico-metodológico, ao ser utilizado e descrito em teses ou dissertações, demanda o acompanhamento de subsídios teóricos que referendem o seu uso na pesquisa, sendo essa uma premissa do campo científico-acadêmico.
Além disso, é muito importante que os pesquisadores, ao tecerem as considerações finais de seus estudos, façam uma síntese sobre os elementos metodológicos utilizados, nessa situação em específico, os casos de ensino. Para o leitor das teses e dissertações, é sempre importante encontrar, nas conclusões dos estudos, as considerações dos autores sobre os instrumentos metodológicos que utilizaram, bem como estes contribuíram para o alcance dos objetivos propostos e quais perspectivas podem ser consideradas para utilizações futuras.
Embora haja a clareza de que muitos são os elementos que precisam ser aprofundados no que tange ao estudo dos casos de ensino e à sua utilização na formação de professores, encerra-se momentaneamente essa discussão, com a esperança de que esse trabalho possa contribuir com pesquisadores, professores e demais profissionais vinculados à Educação que se propõem a conhecer e explorar os casos de ensino.