Introdução
Na virada para os anos 1950, período Pós-Segunda Guerra Mundial, quando o comércio internacional se reordenava e demandava mais produção, a população de Curitiba, capital do Paraná, sofreu os reflexos do aumento das atividades comerciais e fabris, o que resultou na expansão do mercado de trabalho local com a concomitante exigência de formação mais especializada dos trabalhadores, inclusive das mulheres (Boschilia, 1996; Oliveira, 2000).
Como escreveu Hobsbawm (1995, p. 51), nas primeiras décadas do século XX aconteceu no Ocidente uma “revolução no emprego de mulheres fora do lar”, com a diversificação da atuação profissional de jovens e senhoras, notadamente em países pressionados pelas necessidades das guerras de 1914-1918 e de 1939-1945, durante as quais a mão de obra feminina substituiu a masculina em muitas atividades. O fim de cada um desses conflitos, com o retorno dos soldados para suas casas, foi acompanhado por campanhas para que as mulheres voltassem a exercer de forma integral as ações de esposa, mãe e dona de casa. Muitas não voltaram e, por opção, necessidade pessoal ou demanda familiar, continuaram suas atividades profissionais pelo menos em tempo parcial.
Assim, acompanhando as mudanças socioeconômicas propelidas pelas máquinas e pelas grandes concentrações urbanas, as possibilidades de trabalho para as mulheres cresceram. Mas esse crescimento – em países europeus, nos Estados Unidos e também no Brasil – aconteceu principalmente em ocupações abandonadas pelos homens, porque pouco lucrativas (Lagrave, 1993; Pinsky, 2014). Talvez a mais emblemática dessas ocupações tenha sido o magistério primário.
A percepção do magistério primário como vocação feminina foi construída pouco a pouco no século XIX, período no qual, segundo Perrot (2005a, p. 171), a racionalidade levou a divisão sexual do trabalho “aos mais extremos limites”. Associado à função primordial da mulher de educar e cuidar dos filhos, a atuação na escola primária possibilitaria inclusive uma compensação às mulheres que não fossem mães (Almeida, 2011). No entanto, supostas características femininas, como a paciência e a atenção com os detalhes, também concorreriam para o crescente emprego de mulheres em outras atividades, tais como as do ramo têxtil e, notadamente no século XX, aquelas vinculadas aos escritórios comerciais e atendimento ao público – em geral, com cargos e salários inferiores aos dos colegas homens.
Em vários países europeus, a partir do século XIX a perspectiva de uma “feminização ponderada” de alguns setores produtivos, fez do trabalho de escritório o protótipo da chamada “profissão feminina”: uma “construção social [...], uma armadilha da diferença, inocentada pela natureza” (Perrot, 2005b, p. 258). Esse movimento foi acompanhado pela paulatina diversificação da formação escolar das mulheres, do ensino médio ao superior, e também pelas lutas das trabalhadoras por melhor remuneração salarial e por ascensão profissional (Lagrave, 1995; Mayeur, 1993; Perrot, 2007).
No Brasil, assustando os que enxergavam as alterações do cotidiano como um perigo para a moral feminina e para o bem-estar da família, a presença da mulher no mundo do trabalho na primeira metade do século XX motivou diferentes considerações – dos médicos aos militantes operários – e pautou ações de autoridades educacionais e de membros de grupos religiosos, preocupados com a formação dessas trabalhadoras que primordialmente deveriam ser mães de família (Bertucci, 2015; Cintra, 2005; Rago, 2001). Entre esses grupos estava o dos espíritas ou kardecistas3.
Doutrina que surgiu na França em meados do século XIX, o espiritismo de Allan Kardec foi elaborado com princípios religiosos cristãos4 que se entrelaçavam às tendências filosóficas e científico-racionais dos Oitocentos (Damazio, 1994; Lewgoy, 2006; Stoll, 2004). Assim, com base no tripé ciência, filosofia e religião, o kardecismo advogava que a evolução do espírito humano, criado por Deus, apenas aconteceria através do trabalho, para si e para o outro (Kardec, 2002). Conforme Isaia (2004, p. 105), para Kardec, “[...] o progresso humano só tinha razão de ser, [só] era compreendido em função do trabalho”. Entretanto, como está escrito no O livro dos espíritos, Questão 822: “Ocupe-se do exterior o homem e do interior a mulher, cada um de acordo com sua aptidão” (Kardec, 2002, p. 381). Nessa perspectiva, ao escrever sobre o “progresso moral da humanidade” como objetivo do espiritismo, Kardec mencionou a “mãe de família”:
Um dia compreenderão que este ramo da educação [educação moral - espírita] tem seus princípios, suas regras, como a educação intelectual, numa palavra, que é uma verdadeira ciência; talvez um dia, também, haverão de impor a toda mãe de família a obrigação de possuir esses conhecimentos [...] (Revue Spirite, 1864).
No Paraná, há indicações de que a difusão da doutrina espírita teve início por volta de 1870, através de comerciantes de Curitiba que tiveram contato com a obra de Allan Kardec durante estadas no Rio de Janeiro. Na virada para o século XX, já existiam na capital paranaense pelo menos quatro grupos que se autodenominavam kardecistas e na cidade circulavam o jornal A Luz, do Centro Espírita de Curitiba, e a Revista Spirita, cujos redatores se proclamavam “espíritas esforçados desta capital” (Araújo, 2017, p. 43-44). Nesse período, foi organizada a Federação Espírita do Paraná (FEP), para reunir os adeptos do kardecismo e difundir o espiritismo.
Este artigo aborda duas ações relacionadas à educação da mulher para o trabalho que estiveram intimamente relacionadas ao Lar Infantil Icléa da FEP: as aulas avulsas de artesanato e prendas domésticas que, a partir de 1954, ocorreram nas dependências do Lar de maneira paralela ao curso primário, que já existia na instituição; e, no ano seguinte, os cursos do Centro de Iniciação Profissional Lar Icléa, criado na Federação pelo governo do Paraná, a partir de diretriz educacional federal. O Centro funcionou pelo menos até 1958, traduzindo o ideal de profissionalização da mulher, entretanto os cursos que ofertou em caráter de “iniciação” reforçavam competências consideradas femininas, concorrendo, assim como as aulas avulsas, para a formação de mulheres que, mesmo atuando fora do lar, realizassem atividades idealizadas à boa esposa, mãe e dona de casa.
Para realizarmos nossas reflexões, utilizamos, de forma privilegiada, além dos relatos sobre a Federação escritos por memorialistas, o jornal Mundo Espírita – que, a partir da década de 1950, foi editado em Curitiba como órgão da FEP – e os jornais curitibanos não espíritas Diário da Tarde e O Dia, de significativa circulação no período.
Atividades educativas de iniciação para o trabalho nos primeiros anos do Lar Infantil Icléa
Nos primeiros anos dos Novecentos, os debates e iniciativas para a criação no Paraná de uma entidade que congregasse, legitimasse e estabelecesse diretivas para os kardecistas resultaram na fundação, no dia 24 de agosto de 1902, da Federação Espírita do Paraná (FEP), entidade filiada à Federação Espírita Brasileira (criada em 1884).
Desde os primeiros anos de sua existência, a FEP contou com a participação de mulheres, várias delas médiuns, ou seja, intermediárias entre os espíritos e o ser humano. Mas, ecoando as palavras grafadas na Questão 822 do O livro dos espíritos (Kardec, 2002), a cisão entre atividade masculina e feminina determinava que às mulheres fossem delegadas ações sociais relacionadas ao amparo e cuidado dos necessitados e à educação escolar primária – “[...] para espíritas kardecistas, alfabetizar as pessoas das classes menos favorecidas era uma ação de caridade” (Araújo, 2017, p. 141)5.
Mas em 1950, quando o município de Curitiba contava com 180.575 habitantes (IBGE, 2010)6, as demandas por mão de obra feminina cresciam. Considerando a “ocupação principal” de mulheres maiores de 10 anos, a partir dos censos de 1940 (eram 54.866) e de 1950 (eram 73.097), os dados organizados por Boschilia (1996, p. 164) indicam que no município as “atividades domésticas e escolares” empregavam mais de 70% das jovens e senhoras. Entretanto, em uma década essa porcentagem sinalizou declínio: de 78% em 1940 (43.054) caiu para 74% em 1950 (54.442). Paralelamente aumentou o número de mulheres em algumas outras atividades, entre elas: “indústria de transformação”, de 1.301 (0,04) para 3.057 (4,20); “comércio mercantil”, de 638 (1,20) para 1.381 (1,90), e “serviços e atividades sociais”, de 2.672 (4,80) para 9.495 (12,90). No setor industrial, o maior contingente de operárias estava nas fábricas de produtos alimentícios Leão Júnior, Todeschini, Glória, Moinho Paranaense, Fontana e Fábrica de Chocolates Basgal, bem como na fábrica do ramo têxtil Venske (Boschilia, 1996).
Dessa forma, na Curitiba dos anos 1940-1950, apesar de o magistério primário ainda continuar como a primeira opção feminina de formação escolar para o exercício de uma atividade fora de casa e de os ateliês de costura, hotéis e lojas de aviamentos permanecerem como significativos empregadores de mão de obra feminina (Trindade, 1996), o crescente número de fábricas e, principalmente, a expansão do comércio e de atividades afins ampliavam a demanda por trabalhadoras. Como escreveu Cintra (2005, p. 246) “os espaços públicos se tornaram possibilidades de ação da jovem mulher no cenário do trabalho e de sua própria profissionalização”.
Foi nesse contexto de mudanças e também de preocupação com a moral feminina e o futuro da família que, no dia 24 de abril de 1949, o Lar Infantil Icléa7 foi inaugurado em Curitiba sob a responsabilidade da Associação Protetora do Recém-Nascido, entidade criada na FEP em 1939. O Lar Infantil Icléa também contava com apoio financeiro dos governos municipal e estadual e era “destinado a amparar meninas desamparadas” (Mundo Espírita, 1949).
Kuhlmann Jr. (2004) alerta que as entidades assistencialistas no Brasil da primeira metade do século XX tinham como função primordial disciplinar para o trabalho. Nesse contexto, a criação do Lar Infantil Icléa na FEP sinalizou uma opção por educar meninas pobres para que se tornassem jovens mulheres honradas e trabalhadoras, em casa e até fora dela.
O Lar Infantil Icléa foi instalado em um prédio de dois andares, ao lado da sede da Federação, na rua Saldanha Marinho, n. 570 (Figura 1). Tinha capacidade para abrigar 25 meninas. Em janeiro de 1951, depois de quase dois anos de funcionamento, o Lar atendia, segundo o jornal Diário da Tarde, a “[...] 24 crianças, sendo que a maioria se trata[va] de pequenas de 12 anos para baixo, predominando aquelas de 4 a 8 anos”.
Existem indicativos sobre o funcionamento do curso primário no Lar Infantil Icléa (O Dia, 1954), mas não foram encontradas informações detalhadas. Entretanto, é possível que na instituição fosse instalada uma modalidade primária abreviada, de três anos, comum em áreas rurais brasileiras e adotada por algumas instituições asilares curitibanas pelo menos até o início dos anos 1940 (Silva, 2010; Souza, 2008).
A educação primária era prevista para pessoas de 7 a 12 anos (Brasil, 1946), o que concorreria para delimitar a idade máxima de permanência no Lar Infantil Icléa – instituição que traduzia no nome, infantil, o grupo que deveria ser atendido preferencialmente: crianças. Uma delimitação reforçada pelo Decreto n. 1.439, de 18 de junho de 1932, do governo paranaense, que determinava a fiscalização pela Diretoria de Instrução Pública de abrigos de menores e instituições similares, associando, mesmo indiretamente, a idade dos asilados com a oferta de escolarização (Paraná, 1932).
Algumas internas, porém, permaneceram no Lar Infantil Icléa além dos 12 anos – segundo o mencionado artigo do Diário da Tarde (1951), “a maioria” das asiladas (não todas) contava 12 anos ou menos. Em 1955, artigo do Mundo Espírita afirmava que no Lar eram ofertadas aulas “de habilitação para o ginásio” a jovens asiladas (Mundo Espírita, 1955b) e, também pelas páginas desse mesmo periódico e do jornal O Dia, os leitores souberam que algumas internas estavam cursando o ginásio e o científico em escolas curitibanas (Mundo Espírita, 1955a; O Dia, 1955).
Essa permanência no Lar de jovens maiores de 12 anos poderia ser respaldada no Código de Menores em vigor (Brasil, 1927) e em determinações federais do Serviço de Assistência a Menores, instituído pelo Decreto-Lei n. 3.799, de 5 de novembro de 1941, que determinava, em seu artigo 2º, a atenção física e psíquica “de menores” até seu desligamento com idade máxima de 18 anos.
Entretanto, organizado prioritariamente para acolher crianças do sexo feminino, no Lar Infantil Icléa existia uma “sala de costura” que, segundo o Diário da Tarde (1951), estava “de acordo com o tamanho e idade das pequenas abrigadas”; um local que poderia ser utilizado pelas meninas para a realização de atividades relacionadas à disciplina Desenho e Trabalhos Manuais do Curso Primário Elementar, instituído pelo governo federal em 2 de janeiro de 1946 (Brasil, 1946)8.
É possível que essa sala de costura, apesar de suas adaptações para as meninas, também fosse utilizada pelas “damas da caridade” (repetidamente mencionadas nos jornais curitibanos), que colaboravam com o Lar e outras instituições assistenciais de Curitiba (Conceição, 2012). Em abril de 1952, o Diário da Tarde mencionou que, “[...] em sala próxima da creche e dos dormitórios do Lar [Infantil] Icléa, senhoras de nossa sociedade confeccionam enxovais para os recém-nascidos”. Não é exagero supor que essas senhoras com seus trabalhos voluntários ensinavam, mesmo que esporadicamente, bordado e costura às asiladas que as observavam. A creche mencionada no jornal é a Creche Adolfo Bezerra de Menezes da FEP, que foi anexada ao Lar em 1951 (Escola, 1990)9, o que certamente contribuiu para aumentar a demanda pelo trabalho voluntário das chamadas “damas da caridade”.
Mas, em 1954, as internas do Lar Infantil Icléa passaram a receber aulas avulsas ministradas por Maria Ruth Junqueira, professora que “dirigia uma Escola de Artesanato mantida pelo governo do estado” (Escola, 1990 p. 22). Segundo o jornal O Dia (1956b) daquela época, a espírita Maria Ruth teria dedicado várias “horas de lazer” às meninas abrigadas, ensinando artesanato e também “prendas domésticas”.
Em maio de 1955, meses depois do início das aulas avulsas, texto do jornal Mundo Espírita afirmava que, para o “bom êxito do Lar”,
[...] [concorrem] as professoras Francisca Ghignone e Olga Jorge no curso primário; a professora Maria Ellisa no Jardim de Infância [Creche]; a professora Maria da Luz Cordeiro no curso de música e canto; as professoras Paula Rieckes, Carmela Meneghini, Nancy Westefalen Correia, Alexandrina Pereti ministram aulas de trabalhos manuais. [...] Todas as crianças têm, ali, amparo e proteção. [Aprendem] trabalhos manuais, sabem bordar, confeccionar flores, cortar e costurar; cursam aulas de música e canto; conduzem-se com absoluta confiança no futuro (Mundo Espírita, 1955b).
Foi nesse cenário, no qual meninas e algumas jovens recebiam ensinamentos no Curso Primário e em atividades avulsas relacionadas a trabalhos manuais, que, em 1955, começou a funcionar um Centro de Iniciação Profissional no Lar Infantil Icléa.
Centro de Iniciação Profissional Lar Icléa: projeto do governo federal em parceria com o governo do Paraná
Os Centros de Iniciação Profissional foram criados pelo governo federal em 1951 como parte da estrutura da Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos (CEAA), inaugurada em 1947. A Campanha tinha o propósito de levar a “educação de base” a todos os brasileiros iletrados nas áreas urbanas e rurais e mobilizou recursos estruturais, financeiros, administrativos e pedagógicos de vários estados da federação (Costa, 2016; Paiva, 2003).
Esses Centros foram organizados no contexto educacional balizado pela Lei Orgânica do Ensino Industrial (1942) e pela Lei Orgânica do Ensino Comercial (1943), que reestruturaram e atrelaram o ensino técnico-profissional ao ensino médio. Em 1942, também foram criados o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) e o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), para a formação de “jovens aprendizes”, instituições que tinham como objetivos a rápida reciclagem profissional e os programas de aperfeiçoamento de trabalhadores para funções específicas (Cunha, 2005; Weinstein, 2000).
Inseridos em um programa criado para alfabetizar jovens e adultos, os Centros de Iniciação Profissional deveriam, como indicava o próprio nome, ofertar uma formação inicial para homens e mulheres que permitisse a inserção desses indivíduos no mundo do trabalho a partir de ocupações que poderiam ser classificadas como “artesanais” – da arte em couro à modelagem (O Dia, 1956a).
A solicitação da FEP para a instalação de um Centro de Iniciação Profissional na Federação foi em grande parte motivada pelo empenho de Maria de Lourdes Souto Pinto, diretora da Associação Protetora do Recém-Nascido e, portanto, responsável pelo Lar Infantil Icléa e pela Creche Adolfo Bezerra de Menezes (Escola, 1990), e também contou com a intervenção de Maria Ruth Junqueira junto ao governo paranaense. Professora atuante, com diversificado número de ações sociais, Maria Ruth mantinha importantes contatos políticos desde pelo menos sua candidatura, sem sucesso, a deputada federal em 1947 (O Dia, 1947)10.
O acordo entre a FEP e o governo do estado foi celebrado no segundo semestre de 1954, o que resultou na criação do Centro de Iniciação Profissional Lar Icléa (a palavra infantil foi excluída), que funcionaria nas dependências do Lar Infantil Icléa.
O Centro começou suas atividades em 1955, ofertando cursos que poderiam ter como alunas algumas moradoras do Lar, ex-asiladas, mães de crianças atendidas pela Associação Protetora do Recém-Nascido e mulheres cujos filhos frequentavam a Creche Adolfo Bezerra de Menezes. Muitas das alunas certamente já trabalhavam fora de casa, e os cursos do Centro significavam uma formação melhor e, assim, a possibilidade de salários maiores.
Nesse período, existiam no Paraná quatro Centros de Iniciação Profissional sob o controle da Divisão de Ensino Supletivo do Estado e com auxílio financeiro governamental: um no Lar Infantil Icléa, da FEP; um na Paróquia Cristo Rei, no bairro Cristo Rei (Curitiba), e dois no Sanatório São Roque (Piraquara) (O Dia, 1956a). Segundo dados governamentais, em 1956 estudaram nesses Centros 529 discentes de ambos os sexos, jovens que contavam no mínimo com 14 anos (Paraná, 1957).
Conforme artigo publicado no jornal O Dia (1956a), os Centros de Iniciação Profissional:
[...] são constituídos, invariavelmente, de 4 cursos cada um, contando entre as [disciplinas] técnicas ministradas: artes em vime, arte em couro, alfaiataria, cerâmica, arte gráfica, encadernação, fundição, indústria de fibras, latoaria, decoração, modelagem, etc. Os professores que neles militam são especializados e, contudo, sejam pessoas devotadas, em sua maioria, a lida assistencial desinteressada, não deixam de perceber pró-labore, a que fazem jus. Por ocasião do encerramento das aulas desses cursos, são realizadas exposições de trabalhos executados pelos alunos, e vendidos os produtos, destinando-se 50% da renda obtida à aquisição de instrumentos que serão doados aos educadores [educandos?] que terminarem o curso com pleno proveito, e os 50% restantes à formação de um fundo de reserva para a aquisição de material a ser utilizado nos anos seguintes.
No Centro de Iniciação Profissional Lar Icléa, os cursos eram gratuitos e o local funcionava das 13h às 17h, às segundas e sextas-feiras. As aulas eram ministradas por professoras remuneradas pela Secretaria da Educação do Paraná (Escola, 1990). Em dezembro de 1955, o Mundo Espírita assim apresentou os cursos e suas respectivas professoras:
Artes Caseiras: Valtelina Schleder Vecchione; Arte Culinária: Beatriz da Motta Chautard; Manicure-Pedicure: Lilia F. Carvalhares; Croche-Tricot: Aurora Laffite; Corte-Costura: Alexandrina Peretti, bem como a D. Maria de Lourdes Pinto, operosa diretora do referido Centro (Mundo Espírita, 1955c, grifos do original).
Este artigo do jornal também anunciava a formatura de 68 alunas da primeira turma do Centro, as quais expuseram seus trabalhos manuais na sede da Associação Protetora do Recém-Nascido, na Alameda Cabral, n. 340 (Mundo Espírita, 1955c).
Parte de um projeto de ensino federal implantado a partir de planejamento do governo estadual, o Centro de Iniciação Profissional Lar Icléa proporcionava uma formação “pré-profissional” que vinha ao encontro de anseios sobre a formação feminina para o trabalho que pontuavam discussões e objetivos da FEP. As atividades do Centro voltadas à mulher pobre seriam uma forma não só de proporcionar uma melhor inserção no mundo do trabalho, mas uma maneira de colaborar com suas atividades domésticas. Repetindo palavras de Pinsky (2014, p. 197), “[...] o velho argumento de que a educação feminina favorece o melhor desempenho das funções domésticas aparece aqui com um véu de modernidade”.
Durante o ano de 1956, outro curso foi oferecido pelo Centro, o de Bordado, que ficou sob a responsabilidade de Maria Amélia de Souza e Silva – mais uma opção para a formação em trabalhos “de agulha”. Nesse ano, os cursos oferecidos, o total de alunas e as professoras foram: Corte e Costura, com 23 alunas, professora Alexandrina Peretti; Artes Aplicadas e “Caseiras” (flores de pano, arranjos de mesa, etc.), com 18 alunas, professora Valtelina Scheler Vecchione; Tricô e Crochê, com 13 alunas, professora Aurora Laffite; Arte Culinária, com 13 alunas, professora Beatriz da Matta Chautard; Bordado, com 10 alunas, professora Maria Amélia de Souza e Silva; Manicure-Pedicure, com 10 alunas, professora Lilia Ferreira Carvalhães (Mundo Espírita, 1956c).
Dois anos depois, o Centro de Iniciação Profissional Lar Icléa continuava a atender a jovens e senhoras “carentes”, e a edição de dezembro de 1958 do Mundo Espírita noticiava na primeira página a cerimônia de formatura das alunas da instituição, com votos de congratulações às professoras:
MUNDO ESPÍRITA cumprimenta as distintas senhoras e senhoritas que constituem a direção e corpo docente do Centro de Iniciação Profissional do ‘LAR ICLÉA’, e formula votos para que continuem nesse trabalho redentor em prol da educação (Mundo Espírita, 1958, grifos do original).
Nesta cerimônia, foram entregues certificados de conclusão para “cerca de 100 alunas” (Mundo Espírita, 1958), um indício da permanência da procura pelos cursos ofertados pelo Centro11, que continuava sob a direção de Maria de Lourdes Souto Pinto (Figura 2).
A imagem da cerimônia de formatura publicada no jornal reproduz duas fotografias: a primeira retrata o ato principal, ou seja, a entrega do diploma, símbolo de um saber adquirido, possibilidade de novas atividades para as mulheres – mas a mesa diretiva da solenidade foi composta apenas por homens, que representavam a FEP e o governo estadual12. A foto inferior flagra um grupo de formandas; uma delas, sentada, está com uma menina, provavelmente sua filha. A mulher teria optado por levar a criança a um evento “de mulheres” ou não teria com quem deixá-la? Talvez o mais importante e que também não sabemos é o grau do impacto causado nessa menina pela cerimônia que celebrava a formação feminina para o trabalho.
Entretanto, os cursos ofertados pelo Centro instalado no Lar Infantil Icléa pareciam em descompasso com as demandas impulsionadas pelas transformações sociais dos anos 1950, reforçando atividades estreitamente ligadas à boa esposa, dona de casa e mãe.
Considerações finais
A partir de 1959, as notícias sobre o Centro de Iniciação Profissional Lar Icléa desapareceram e não foi possível saber se o Centro foi transferido para outro espaço ou desativado. Todavia, informações sobre a organização de outra instituição escolar na FEP pareciam indicar a criação de uma escola para mulheres na Federação.
Efetivamente, em 1960, foi inaugurada uma instituição escolar gratuita (com “assistência técnica” de professoras paga pelo governo paranaense) que, conforme a “memória construída” (Pollak, 1989) da Federação, teria recebido na sua criação a designação de escola profissional: a Escola Profissional Maria Ruth Junqueira, cujo nome homenageava a professora morta em 1956. Entretanto, os cursos dessa escola eram “[...] artesanato, tricô, costura, pintura e confeitaria” (Escola, 1990, p. 22-23; Pimentel, 2000, p. 2), repetindo, com pequenas alterações, os cursos do Centro de Iniciação Profissional Lar Icléa e também as aulas avulsas ministradas no Lar em meados da década de 1950.
É possível perguntar: em um período no qual a educação profissional era vinculada ao ensino médio, inserir a palavra “profissional” como definidora da instituição indicaria a pretensão de ampliar e diversificar os seus cursos? Ou essa foi uma estratégia (Certeau, 2011) para valorizar socialmente a escola feminina da FEP criada no ano 1960?13
Mas, considerando que, para os kardecistas, a mulher espírita era educada para ser um “[...] agente de moralidade e do equilíbrio mental da família e, por extensão, da sociedade” (Jurkevics, 1998, p. 21), a educação feminina para o trabalho ministrada na Federação, até pelo menos o final dos anos 1950, formou meninas, jovens e senhoras para que realizassem na sociedade atividades que reeditavam e reforçavam o espaço apropriado à “mãe de família”, ou seja, o doméstico – mesmo que para algumas mulheres essas atividades representassem o começo de uma vida produtiva diversificada e fora do lar.