Partindo do texto de Jürgen Habermas, “A filosofia como guardador de lugar e intérprete”, visamos a mostrar a impossibilidade de manutenção de um fundamento absoluto em filosofia, mediante a substituição de um discurso filosófico como indicador de lugar e juiz, pelo de guardador de lugar e intérprete. Com esse texto, o propósito axial de Habermas, a nosso ver, é mostrar o limite do projeto fundacionista nas dimensões cognitivo- instrumental, moral-prático e estético-expressivo, enquanto, justamente, se configura como manutenção de um fundamento absoluto.
Posteriormente, mostraremos que há, em Habermas, um fundacionismo moderado em ética, já que, partindo dos atos de fala de Austin (1990) e da contradição performativa de Karl-Otto Apel (1994) consegue justificar uma pretensão de justiça análoga à pretensão de verdade a partir do conceito de validez, aplicado ao mundo objetivo das coisas, como verdade, ao mundo das normas, como justiça, ou correção normativa e, ao mundo da autorrepresentação como sinceridade, conferindo, com isso, sentido a proposições que enunciam aquilo que deve ser e, portanto, salvaguardando a razão no domínio do agir, mas sem, ao mesmo tempo, transformar a filosofia em indicador de lugar ou um juiz da cultura que restaure um fundacionismo absoluto. Em que pese ele introduzir o “princípio de universalização”, veremos que é apresentado como uma regra de argumentação, cujo papel consiste em assegurar a validação das normas enquanto produto consensual de um discurso prático.
Habermas, no texto A filosofia como guardador de lugar e intérprete, pretende questionar os papéis da filosofia como indicador de lugar e de juiz expresso nas teorias fundamentalistas e absolutistas. O procedimento do autor consiste, primeiramente, numa exposição dos pressupostos de ambas as teorias e, em um segundo momento, na colocação dessas sob as críticas de diversas correntes filosóficas, visando, com isso, a resgatar o papel adequado da filosofia, que passa a ser, na avaliação dele, o de guardador de lugar e de intérprete, possibilitando a intercomunicação das diversas áreas da cultura.
Com relação a Kant, diz: “Kant introduz um novo modo de fundamentação da filosofia” (HABERMAS, 1989, p. 17), considerando as possibilidades do conhecimento humano a partir da investigação das condições a priori da possibilidade de experiência, denominando isso de filosofia transcendental. Na base dessa fundamentação, está, agora, “a ideia de que podemos nos certificar do caráter insubstituível de determinadas operações intuitivamente executadas desde sempre segundo regras”. (HABERMAS, 1989, p. 17). Para Habermas, Kant tornou-se um “mestre-pensador” ao atribuir à filosofia a incumbência de ser juíza da cultura como um todo. Todavia, duvida das possibilidades dela de desempenhar esse papel. Ora, enquanto exerce a incumbência de indicador de lugar e de juiz - guardiã absoluta da racionalidade, a filosofia assegura a ideia do verdadeiro e do incondicional como condição necessária às formas de convivência humana. Nesse ponto, percebemos como Habermas procura mostrar a inviabilidade de um fundacionismo absoluto, já que tal exercício deve ser questionado por constituir uma pretensão de “totalidade” da própria filosofia. O autor de O discurso filosófico da modernidade (2002) tenta desmistificar essa atitude filosófica que sustenta um conhecimento fundamentalista, a- histórico e mesmo absolutista, fazendo com que a filosofia se constitua em “suprema instância jurídica” das ciências e da cultura em seu todo.
Habermas aponta para a insustentabilidade do procedimento totalizador da filosofia, haja vista que, por exemplo, Hegel substitui o modo de fundamentação transcendental pelo dialético. Para Hegel, Kant não demonstra a necessidade das formas a priori do entendimento, em vista disso, ele “descobre na reflexão transcendental [...] o mecanismo de uma conversão da consciência, que volta sempre a entrar em ação na História da gênese do espírito”. (HABERMAS, 1989, p. 20). O reconstruir da elaboração dessa experiência repetida no vir-a-ser-para-a-consciência do em-si constitui- se para Hegel, na dialética, que, de fato, demonstra o fundamento do saber absoluto que permite perceber as estruturas da consciência apresentadas por Kant. Contudo, Hegel expõe-se à mesma objeção que elevara contra Kant, ao fundamentar um absolutismo (que supera as exigências kantianas), atribuindo à filosofia “a tarefa de trazer ao conceito, de maneira enciclopédica, os conteúdos desdobrados nas ciências”. (HABERMAS, 1989, p. 21).
Recorrendo à autocrítica numa linha kantiana e numa linha hegeliana, Habermas traz, primeiramente, as posições de Petr Frederick Strawson, Paul Lorenzen e Popper, visando a acentuar as críticas à ideia de fundamentação última. A crítica ao transcendentalismo de Kant se caracteriza pelas posições analítica de Strawson, construtivista de Lorenzen e criticista de Popper. A recepção analítica não tem a pretensão de ser a fundamentação última e se limita “a alcançar os conceitos e regras que estão subjacentes a toda experiência que se possa expor em enunciados elementares” (HABERMAS, 1989, p. 22), mantendo uma pretensão universalista. A posição construtivista admite o sentido convencional de uma organização conceitual básica da experiência, valendo-se de uma crítica construtivista da linguagem para uma crítica do conhecimento. A posição criticista indica uma ruptura completa com o transcendentalismo, uma vez que renuncia aos fundamentos em geral, substituindo a própria ideia de fundamentação pela ideia de exame crítico.
Mediante a crítica do pragmatismo e da filosofia hermenêutica contra Kant e Hegel, Habermas revela a tentativa bem empreendida de abandonar a busca pelo universal. A filosofia pragmatista e a filosofia hermenêutica terminam por abandonar o horizonte da filosofa da consciência, apresentando, na visão de Habermas, outro modelo de conhecimento, que tem por base a percepção e a representação de objetos. Charles S. Pierce duvida que seja possível uma “dúvida radical”, enquanto Wilhlm Dilthey questiona a neutralidade da compreensão como possível de ser atingida. São concomitantes, no pragmatismo e na filosofia hermenêutica, a noção de conhecimento, enquanto linguisticamente mediatizado e relacionado com o agir, e o elo entre prática e comunicação quotidianas. Tais filosofias fazem com que a solução de problemas e a interpretação de uma rede de pressupostos, dependam da análise que não pode visar ao universal. Com isso, ocorre o abandono das operações da consciência e há o surgimento das objetivações do agir e do falar.
Por fim, Habermas traz à tona a pretensão de razão sustentada pela filosofia e, ao mesmo tempo, os discursos filosóficos que sustentam sua superação, realizada nas formas terapêutica , heroica e salvífica . Terapeuticamente, Ludwig Wittgenstein coloca a filosofia contra ela mesma, uma vez que, para ele, os filósofos são os responsáveis pela “confusão” com os jogos de linguagem que funcionam no quotidiano. Na superação heroica, empreendida por Georges Bataille e Martin Heidegger busca-se, na verdade, salvaguardar a filosofia mediante outro modo de filosofar dirigido a um regresso não discursivo em que se situaria a soberania do ser. A forma salvífica deriva de um aristotelismo hermenêutico visando à salvação e à conservação de “antigas verdades”, tratando os textos como “fontes da iluminação e do despertar”. Todas elas tratam de uma superação “da filosofia” e, por isso, aproximam-se das concepções objetivistas da ciência, abandonando as pretensões de validez universal, bem como “o universo de concepções fundamentadas”, salvaguardando, contudo, “a autoridade de uma compreensão superior das coisas”. (HABERMAS, 1989, p. 28).
Ora, Habermas, de fato, não comparte o papel do que denomina “mestres-pensadores” como Kant, Hegel e Marx. Todavia, é tributário do conceito moderno de razão que subjaz a todos os seus textos com as adequações, que a posição temporal dele requereu com referência aos “mestres-pensadores”. Ao defender o papel da filosofia de ser guardador de lugar e de intérprete, o filósofo propõe que a filosofia abandone o procedimento fundamentalista e absolutista e busque uma abordagem que possibilite um tratamento empírico e universalista das outras ciências, afirmando que: “não é inteiramente errado perguntar se a filosofia não poderia, relativamente a algumas ciências, trocar o papel insustentável de indicador de lugar pelo papel de um guardador de lugar” (HABERMAS, 1989, p. 30) para teorias empíricas com pretensões universalistas, mostrando que é preciso considerar se a filosofia, ao abandonar a pretensão de exclusividade, não renunciaria ao papel de “guardiã da racionalidade”. Nesse sentido, faz- se necessário a ele revelar como a ciência moderna, o direito positivo, as éticas profanas e a arte cristalizaram três dimensões da razão sem a intervenção da filosofia: a verdade, a justiça, e o gosto.
Com o advento da modernidade, a tradição cultural passa a desenvolver cada um desses aspectos sem apelo a um fundamentalismo filosófico. A modernidade, com as “grandiosas unilateralizações”, faz surgir problemas de mediação entre a conservação da unidade da razão no domínio cultural - quando essa está dividida em seus elementos - e a possibilidade de comunicação com o quotidiano das culturas especialistas. Em vista disso, para Habermas a unidade que se sobreporia à diversidade das ciências “só pode ser reconquistada aquém das culturas de especialistas, por conseguinte no quotidiano, e não além, nos fundamentos e profundezas da filosofia da razão”. (HABERMAS, 1989, p. 33).
Tais considerações fazem com que o autor de O discurso filosófico da modernidade reveja o sentido da filosofia, passando a incumbi-la, como afirma, de “atualizar sua relação com a totalidade em seu papel de intérprete voltado para o mundo da vida”, pois que se faz necessária a intercomunicação entre os fatores cognitivo-instrumental, moral-prático e estético-expressivo. (HABERMAS, 1989, p. 35).1 No limite e na perspectiva de salvaguadar o lugar da razão, o filósofo enuncia que o acordo que se alcança através dessa intercomunicação é o que justifica a possibilidade de fundamentação e orienta a pretensão de validade, autorizando a filosofia a exercer seu papel de mediadora entre o mundo cotidiano e a modernidade, ficando, dessa forma, salvaguardado o papel dela, não mais como indicador de lugar, mas como guardador de lugar e intérprete. Assim, efetivamente, Habermas rejeita a noção de uma fundamentação última, mas continua em busca de uma fundamentação moderada que oriente a pretensão de validade da filosofia com seu justo papel de mediadora do cotidiano e da modernidade. Veremos, na sequência, como esse fundacionismo moderado, no sentido justamente de defender a possibilidade de uma fundamentação que não se pretenda absoluta e a histórica, manifesta-se na proposição de uma ética do agir comunicativo.
Partamos das controvérsias marcantes que separam, diametralmente, as perspectivas que recusam qualquer tipo de justificação racional para as normas morais, de uma construção explicativa que se proponha a fundamentar questões práticas, isto é, a reivindicar para as normas morais um estatuto similar ao das proposições descritivas, afirmando que são passíveis de validação. É, de fato, um embate acirrado acerca do agir orientado para fins em termos de uma posição cognitivista ou não cognitivista que o explique. Não se trata de buscar máximas que vigorem incondicionalmente, mas de pensar em uma conciliação viável entre a postulação de máximas e a sua correspondente justificação.
Ora, as questões referentes, por exemplo, ao que é bom ou ao que é justo são, indiscutivelmente, prementes à existência humana. Uma escolha nesse nível tem reflexos marcantes na comunidade em que se realiza, haja vista a extensão aplicativa das normas/imperativos que visam a regulamentar as relações entre os homens em determinada sociedade. É preciso, entretanto, separar o domínio concreto do reflexivo, pois ainda que no cotidiano as pessoas ajam de acordo com uma compreensão do que é bom ou do que é justo, a problemática reside em explicar essa compreensão e, nesse sentido, tem-se de admitir que as proposições: “O livro é pesado” e “Paulo é bom” são diferentes, há um significado e uma função diversos que, em princípio, permitem verificar, empiricamente, a primeira proposição e não o permitem com relação à segunda, inviabilizando a justificação. As proposições normativas não podem ser verificadas empiricamente, pois a alusão é feita, via de regra, ou àquilo que deve ser - não há fato ou situação possível que sirva de referencial para a demonstração delas - ou a juízos de valor acerca do que é bom ou justo, o que requer uma prévia determinação de tais juízos. Há, assim, a impossibilidade de atribuir a essas proposições um valor-de-verdade, requerendo, em uma perspectiva lógico-semântica, destituí-las de significado.
Conquanto tal destituição seja possível seguindo um dado modelo explicativo, não o é se a pressuposição for outra, haja vista as tentativas recorrentes de sustentar, com base em razões, as normas morais. Nesse sentido, encontra-se a tentativa de elaborar uma ética cognitivista, formalista e universalista empreendida por Habermas, que tem, necessariamente, de se situar em outro patamar, implicando em compreender a linguagem de modo diverso; isso pode ser observado quando o autor diferencia “dizer algo acerca do mundo” de “dizer algo para alguém”, tentando apresentar duas atitudes, quais sejam: a objetivante, “quem observa ou opina que ‘p’ ou quem tem a intenção de ‘p’”, e a performativa “quem participa dos processos de comunicação ao dizer algo e ao compreender o que é dito”. (HABERMAS, 1989, p. 42). Mas a cisão radical entre uma e outra atitude aparece, para o filósofo, mais por parte da primeira, visto que a atitude performativa possibilita a passagem entre as três pessoas do processo comunicativo em vista de situar-se nesse processo. Em Consciência moral e agir comunicativo, escreveu:
[...] quem participa do processo de comunicação ao dizer algo e ao compreender o que é dito - quer se trate de uma opinião que é relatada, uma constatação que é feita, de uma promessa ou de uma ordem que é dada; quer se trate de intenções, desejos, sentimentos ou estados de ânimo que são expressos -, tem sempre de assumir uma atitude performativa. (HABERMAS, 1989, p. 41)
Somente a atitude performativa permite, de um lado, a mudança entre uma e outra pessoa, objetivante, conforme as regras ou expressiva, e, de outro, possibilita a validação. Essa atitude encerraria uma pretensão de validez que se estende aos domínios daquilo que é dito acerca do mundo, assim como das normas postuladas e dos comportamentos manifestos. Ela possibilita, acrescenta o filósofo na sequência; “uma orientação mútua por pretensões de validade (verdade, correção normativa, sinceridade) que o falante ergue na expectativa de uma tomada de posição por sim/não da parte do ouvinte.” (HABERMAS, 1989, p. 42).
Ora, Habermas, a nosso ver, desde as primeiras distinções estabelecidas entre a atitude objetivante e a performativa visa mostrar, por um lado, a impossibilidade de um fundamento último nesse sentido absoluto, e, por outro, a necessidade de um fundacionismo moderado em ética que possa apresentar razões para o domínio do agir sem, contudo, recorrer a um fundamento absoluto que transcenda o plano consensual do discurso prático enquanto remete à função da linguagem a de ser integradora social.
O que nos parece decisivo, nesse recurso habermasiano à atitude performativa, é que, mediante tal procedimento, se torna possível ao autor resgatar a função da linguagem de coordenar e integrar os projetos de diferentes atores. A linguagem desempenharia, assim, a função de integração social, que será, justamente, o pano de fundo de sua teoria do agir comunicativo. Além disso, Habermas precisou distanciar-se de uma fundamentação lógico-semântica e se filiar a uma fundamentação pragmático- linguística, já que, no domínio da argumentação discursiva, busca encontrar elementos que lhe possibilitem validar as normas morais e, com isso, conferir ao agir o estatuto de empreendimento racional. Procura, desse modo, rejeitar a tese de que as ações orientadas para fins são produto de uma decisão cega; recusa a afirmação de que “questões moral-práticas do tipo: ‘O que devo fazer?’ são afastadas da discussão racional na medida em que não podem ser respondidas do ponto de vista da racionalidade meio-fim”. (HABERMAS, 1989, p. 63). No limite, o autor rejeita definir a razão como eminentemente calculadora, restringindo sua avaliação a verdades de fato ou a relações matemáticas.
Na visão de Habermas, é possível à ética filosófica assumir a figura de uma teoria especial da argumentação, refutando as pressuposições dos não cognitivistas, através de dois procedimentos, quais sejam, introduzir um princípio que permita um consenso em argumentos morais e recusar a tese de que somente no âmbito da compreensão de verdade proposicional poderiam ser validadas (ou não) as proposições normativas. Não se trata de reduzir as proposições normativas às descritivas, mas, visando a explicar o sentido da “correção normativa”, pensar em uma pretensão de validez análoga à verdade.
Os dilemas morais, na ótica habermasiana, surgem, primeiramente, no mundo da vida, o Lebenswelt é o lugar da moral para o filósofo, e é já nesse mundo que ele identifica pretensões de validade erguidas pelos atores em seus atos de fala. Ele denomina de comunicativas àquelas interações com relação às quais “as pessoas envolvidas se põem de acordo para coordenar seus planos de ação, o acordo alcançado em cada caso medindo-se pelo reconhecimento intersubjetivo das pretensões de validez”. (HABERMAS, 1989, p. 79). O agir comunicativo processa-se no mundo da vida, e, nele, deverão estar as pretensões que viabilizam situar a correção normativa no plano da argumentação. Os atores, ao realizarem um ato de fala, erguem sempre ou pretensões de verdade, quando se trata da referência a um estado de coisas, ou pretensões de correção, enquanto são dirigidas às relações interpessoais reguladas, ou, ainda, pretensões de sinceridade, quando pertencem ao mundo subjetivo de cada um. As pretensões de validade, reconhecidas intersubjetivamente, são o pano de fundo dos consensos atingidos, por isso têm de perpassar pelo mundo das coisas existentes, das relações sociais e das vivências.
No agir comunicativo, os falantes motivam-se racionalmente a um ato de adesão, que Habermas estabelece mediante um recurso ao efeito ilocucionário que os atos de fala teriam. Em Consciência moral e agir comunicativo, afirma: “enquanto no agir estratégico um atua sobre o outro para ensejar a continuação desejada de uma interação”, no agir comunicativo dá-se uma motivação diversa, pois “um é motivado racionalmente pelo outro por uma ação de adesão - e isso em virtude do efeito ilocucionário de comprometimento que a oferta de um ato de fala suscita”. (HABERMAS, 1989, p. 79), diz. Pressupõe, assim, a realização de algo ao dizer. Haveria um comprometimento exigido por esse dizer que é, ao mesmo tempo, uma ação. Em vista disso, as relações sociais têm a forma de ações comunicativas, cuja coordenação se efetiva devido à dupla estrutura da comunicação linguística.
A linguagem não contém apenas um conjunto de sentenças com determinado conteúdo, mas contém, também, os condicionantes para a sua aplicação, tendo em vista que a mesma sentença pode ter um sentido pragmático, alusivo ao contexto de enunciação, diferente conforme seja proferida como ordem, como promessa ou como afirmação. Tal sentença, inclusive, tem uma parte proposicional e uma parte performativa, já que, ao ser proferida, ao mesmo tempo, designa algo e realiza uma ação. O exemplo recorrente é: “Eu prometo que p”. A parte per formativa compreende a ação feita, e a parte proposicional, aquilo que está sendo designado pela proposição, no caso p. As ações linguísticas passam a ser ações comunicativas porque os atos linguísticos são, de fato, atos.
Os falantes erguem pretensões de validade que podem ser resgatadas, gerando, por conseguinte, uma motivação racional de aceitação do ouvinte. No caso da verdade e correção, ele a resgatará discursivamente e, no caso das pretensões de sinceridade, pela constância de determinado comportamento. Instaurando-se a confiança, vigoram, segundo Habermas, as obrigações fundamentais para a interação mediante o significado presente no que foi dito, prescrevendo a dimensão de validade em termos relacionais. A possibilidade latente de apresentar razões para as ações feitas permite a coordenação entre os atores, pois viabiliza recorrer a argumentos que justifiquem a pretensão. Isso permite a coordenação, mesmo existindo diferenças entre uma e outra forma de validação:
Assim, por exemplo, no caso das ordens e instruções, as obrigações de agir valem em primeira linha para o destinatário; no caso de promessas e declarações, para o falante; no caso de acordos e contratos, simetricamente para os dois lados; no caso das recomendações e advertências com teor normativo, assimetricamente para os dois lados. (HABERMAS, 1989, p. 79).
Há uma diferença importante no que tange à relação entre as normas e os atos de fala e entre esses e as proposições referentes ao “estado de coisas” que se torna fundamental para determinar as condições de validade. A validez normativa apresenta a seguinte peculiaridade consoante Habermas: “as pretensões normativas têm sua sede primeiramente em normas e só de maneira derivada em atos de fala” (HABERMAS, 1989, p. 81), uma vez que a norma reivindica, por si mesma, a validez. É o caso, citado pelo autor, da proposição: “Não se deve matar ninguém” que aparece enquanto expressão impessoal para a própria norma. Os atos de fala referem-se a ela de modo secundário, e isso não se processa com as proposições descritivas, já que, nesse caso, os atos de fala aparecem como sede das pretensões de verdade. Dizer algo acerca do mundo objetivo das coisas existentes, não implica uma validez independente do dizer referido a um estado de coisas; o que determina, na ótica habermasiana, uma assimetria entre condições de validade remetidas às pretensões de validez normativa ou de verdade.
A realidade social, à qual nos referimos com atos de fala regulativos, já está desde o início numa relação interna com pretensões de validade normativas. Ao contrário, as pretensões de verdade não são de modo algum inerentes às entidades elas próprias, mas apenas aos atos de fala com que nos referimos às entidades do discurso constatativo de fatos, a fim de representar estados de coisas. (HABERMAS, 1989, p. 82).
A diversidade subjacente às respectivas pretensões determina modos diferentes de aceder à justificação. Habermas remete a fundamentação ética ao âmbito dos discursos práticos, já que esses pressupõem um vínculo necessário entre a linguagem e o mundo social expresso pela peculiar relação existente entre as pretensões de validez presentes nas normas e as erguidas com atos de fala regulativos. Esse vínculo não é estabelecido entre a linguagem e o mundo objetivo, pois, nesse caso, não há ambiguidade entre os enunciados verdadeiros e os estados de coisas. Com relação às normas, “a existência ou validez social das normas não quer dizer nada ainda acerca da questão se estas também são válidas” afirma Habermas (1989, p. 82). Requer- se, por conseguinte, tanto a aceitação da validez social quanto a possibilidade de resgatar tal pretensão com razões, isso, inclusive, sustenta a aceitação social das normas. Mas, nesse caso, há, para o filósofo alemão, uma conexão entre “a existência de normas de ação” e “a esperada possibilidade de fundamentação das correspondentes proposições deônticas”. (HABERMAS, 1989, p. 83). No limite, é essa conexão que remete a justificação das normas morais à lógica dos discursos práticos.
A impossibilidade de elaborar condicionantes epistemológicos que, em um primeiro momento, assegurem a validade dos juízos morais, conduz a problematização deles à esfera argumentativa, exigindo que se estabeleça o que Habermas denomina de “princípio-ponte”, que asseguraria a passagem do particular ao universal no âmbito da argumentação prática. Os discursos teóricos têm um princípio similar que é, para o filósofo, a indução. O princípio de Universalização deveria desempenhar “um papel equivalente ao princípio da indução no Discurso da ciência empírica” (HABERMAS, 1989, p. 84), promovendo, nos discursos práticos, o assentimento irrestrito de todos os envolvidos e conferindo, às normas morais, o estatuto de impessoalidade ou universalidade. “O princípio-ponte possibilitador do consenso deve, portanto, assegurar que somente sejam aceitas como válidas normas que exprimem uma vontade universal; é preciso que elas se prestem, para usar uma fórmula que Kant repete sempre, a uma ‘lei universal’” (HABERMAS, 1989, p. 84), escreve em Consciência moral e agir comunicativo.
A filiação de Habermas aos pressupostos kantianos é manifestamente expressa, já que o autor situa seu discurso no horizonte de uma razão que justifique a ética. Não obstante, a busca de um consenso, que perpassa a elaboração de sua teoria, situa a fundamentação no plano dialogal, pois pressupõe que as decisões, com base em razões, são produto de uma argumentação. Nesse ponto, transparece o que denominamos de “fundacionismo moderado” em Habermas, já que o autor busca certa fundamentação, mas, ao mesmo tempo, rejeita que ela tenha caráter absoluto. O reconhecimento por parte de todos os concernidos permite recusar a perspectiva de uma esfera monológica de decisões e postular uma esfera dialogal enquanto seu plano legítimo; em vista disso, a universalização dos interesses universalizáveis. A afirmação pareceria redundante, todavia, ele pressupõe o assentimento de todos os envolvidos enquanto condicionante de uma universalização. Não se trata, nesse caso, de interesses particulares, mas de interesses universalizáveis que podem ser assegurados mediante a introdução de um princípio de Universalização:
(U) Toda norma válida deve tem de preencher a condição de que as consequências e efeitos colaterais que previsivelmente resultem de sua observância Universal, para a satisfação dos interesses de todo indivíduo possam ser aceitas sem coação por todos os concernidos. (HABERMAS, 1989, p. 147).
Trata-se para Habermas de um princípio que, enquanto é visto como regra de argumentação, assegura a validação das normas enquanto produto consensual de um discurso prático. As normas morais que, no mundo da vida se tornam problemáticas, podem ser validadas em discursos práticos, desde que se possa garantir o assentimento de todos os concernidos mediante a introdução de U, já que o próprio assentimento de todos é condição para que as normas possam ser validadas. Esse princípio funcionaria, em vista de não se ter efetivado na maior parte dos discursos práticos, como uma espécie de ideal regulador que garantiria o sucesso dos discursos práticos, apesar de não ser, para o autor, propriamente, um ideal, já que é uma condição real dos próprios discursos, sem a qual não haveria participação nos argumentos morais.
A fundamentação de tal princípio é a questão-chave da proposição de uma ética do discurso, visto que ela sustenta a validação das normas com base em razões. Nessa perspectiva, o princípio U é fundamentado a partir de conjecturas argumentativas, pois para Habermas existem pressupostos necessários da argumentação que não podem ser recusados. No domínio discursivo, não se pode negar os pressupostos de uma argumentação sem, ao mesmo tempo, inserir-se nela aceitando, em certa medida, tais pressupostos. Ora, a recusa aparece como um argumento a favor de sua necessidade, pois o falante, ao introduzir um argumento contrário à possibilidade de fundamentação, recorre aos mesmos pressupostos que tenta negar, terminando, assim, por demonstrá-los mediante a contradição performativa em que incorre.
Na fundamentação de ‘U’, trata-se especialmente da identificação de pressupostos pragmáticos sem os quais o jogo da argumentação não funciona qualquer um que participe de uma prática argumentativa já deve ter aceito essas condições de conteúdo normativo. Pelo simples fato de terem passado a argumentar, os participantes estão necessitados a reconhecer esse fato. (HABERMAS, 1989, p. 161).
Ao introduzir o princípio U, Habermas não tem a intenção de atingir uma fundamentação última, absoluta e a-histórica, pois, para ele, a ética do discurso está inserida no que denomina “círculo das ciências sociais reconstrutivas”, cujo interesse dirige-se aos fundamentos racionais do conhecer, do falar e do agir. No limite, situar-se em uma ética do discurso requer o retorno aos diferentes modos de uso da linguagem, privilegiando a instância compreensiva: “Ou bem a gente diz o que é o caso ou o que não é o caso ou bem a gente diz algo para outrem, de tal modo que ele compreenda o que é dito”. (HABERMAS, 1989, p. 40).
Convém mencionar que Habermas, em Notas pragmáticas para a fundamentação de uma ética do discurso, rejeita uma compreensão de verdade proposicional e pressupõe uma compreensão de verdade pragmática. Nesse ponto, acreditamos que ele se filia, notadamente, a Austin com relação à mudança de paradigma na filosofia analítica. Austin considera a linguagem como ação, recusando a tônica do significado e propondo o conceito de eficácia do ato linguístico. Esse ato será feliz ou infeliz conforme suas condições de sucesso na interação comunicativa. Com a proposição de que as condições de uso determinam o significado, a própria noção de significado perde sua carga semântica, pois a linguagem passa a envolver os elementos do contexto de enunciação, assim como as convenções e intenções do falante. Austin substitui a teoria do significado por uma teoria da ação, pois o dizer algo implica realizar alguma coisa mediante a linguagem. Daí a linguagem ser considerada uma ação, e a verdade ser situada em uma dimensão pragmática, contexto de enunciação, ao invés de uma dimensão semântica.
Em Quando dizer é fazer, Austin caracteriza o proferimento performativo como “aquela expressão linguística que não consiste, ou não consiste, apenas, em dizer algo, mas em fazer algo, não sendo um relato, verdadeiro ou falso sobre alguma coisa. (AUSTIN, 1990, p. 38). Austin trabalha com a força dos proferimentos, diferindo, em vista disso, o ato de dizer algo, ato de falar, que denomina de locucionário; o ato feito ao dizer, intenção da fala, que seria o ilocucionário, e o ato obtido porque se disse algo, sentido da fala, que corresponde ao perlocucionário. No mesmo texto, afirma: “Expliquei a realização de um ato nesse novo sentido como sendo a realização de um ato ilocucionário, isto é, a realização de um ato ao dizer algo em oposição à realização de um ato de dizer algo. Vou referir-me à doutrina dos diferentes tipos de funções da linguagem que aqui nos interessam como sendo a doutrina das forças ‘ilocucionárias’.” (1990, p. 89). O autor reconhece que toda proposição proferida, em uma dada situação linguística, deve ser analisada sob a ótica das forças pragmático-linguísticas que ela encerra. A teoria dos atos de fala de Austin suscita diversas questões atinentes à linguagem, contudo, interessa, aqui, resgatar os elementos presentes na ética do discurso proposta por Habermas. Sem dúvida, os performativos, assim como, de modo geral, as forças dos atos linguísticos propostas por Austin, estão presentes na construção teórica habermasiana e são, inclusive, condição de possibilidade para um agir comunicativo.
Ora, uma vez que se situa a justificação de proposições normativas em uma fundamentação pragmático-linguística e se introduz ‘U’ como uma regra de argumentação que visa a assegurar a participação de todos os concernidos em uma argumentação e, inclusive, suprime-se qualquer possibilidade de coação na aceitação de suas consequências, atinge-se uma posição privilegiada para discorrer sobre aquilo que ‘deve ser’ com base em razões. Nesse caso, ‘o dever ser’ não deriva de uma subjetividade isolada, mas de uma interação possível intersubjetivamente. Todos os envolvidos, com as mesmas condições de participar de argumentações, validam as normas e atingem um consenso. ‘U’, apesar de ser um princípio que visa a validar as normas em termos de justiça é, primordialmente, uma regra de argumentação fundamentada a partir de pressupostos necessários da argumentação em geral. Assim, Habermas introduz um fundamento em ética sem se transformar em um mestre-pensador, pois, ao recusar a razão monológica, introduzindo a razão dialogal, viabiliza a intersubjetividade e a noção de consenso em discursos práticos. Através do recurso à fundamentação pragmático-linguística, apresenta as pretensões de validez no mundo objetivo das coisas, no mundo normativo das regras que enunciam o que deve ser e no mundo subjetivo das vivências. Ao fazê-lo, consegue apresentar razões para as normas morais e salvaguardar à ética um fundamento que se sustenta em pressupostos necessários da argumentação em geral.