Introdução
Este artigo, de caráter teórico, circunscrito à Filosofia da Educação, trata do conceito de experiência desenvolvido por Jorge Larrosa no livro Tremores. Debate que inclui a perspectiva de Benjamin (2012) e de Heidegger (2003). A discussão oferecida por Larrosa reúne diversas reflexões em torno da relação imprescindível que há entre linguagem, educação e filosofia, mas, longe de constituírem-se como pensamento sistemático, essas reflexões anunciam uma perspectiva original acerca da experiência e da linguagem, de forma lírica e despretensiosa. Pensar a experiência como acontecimento, como objetiva este escrito, é a primeira etapa para a compreensão de uma nova linguagem educacional. Assim, o problema que se pretende discutir diz respeito à pergunta: O conceito de experiência como acontecimento fundamenta a necessidade de uma nova língua educacional?
Paradoxalmente, com Larrosa (2015), de forma profunda e cuidadosa, avança-se na percepção da linguagem que expressa as relações que apontam para a possível transição da compreensão de si. O que nos une nessa transição é a língua de ninguém (LARROSA, 2015) e o que nos divide é que o nós perdeu sua individualidade. Falar, tocar, escutar, ampliar perdeu espaço. Reduziu-se tudo ao incompreensível. Deseja-se pensar, então, com Larrosa (2015), na possibilidade do acontecimento da experiência, tendo como base um presente em que as relações se dão cada vez mais por esgotadas. De forma complementar, examinam-se os conceitos de acontecimento apropriador em Heidegger (2003) e de experiência em Benjamin (2012), mas, considerando os limites do artigo, houve opção por um aprofundamento a partir do escrito de Larrosa (2015), que retoma o pensamento de Benjamin.
1 Experiência como acontecimento
É preciso definir, de pronto, os termos experiência e acontecimento, a fim de refletir sobre a possibilidade de construção de uma nova linguagem educacional. É preciso definir, igualmente, a compreensão que se tem de linguagem educacional, diferenciando-a da prática pedagógica, embora se possa concebê-la como uma nova prática pedagógica. Por experiência devese pensar, com Larrosa (2015), a possibilidade de vivências singulares, de situações novas e raras, capazes de interferir na concepção de cada um do que se vive. Por acontecimento, de forma complementar, tem-se a raridade, a exceção, a singularidade que tem o seu nascedouro, justamente, na experiência. É nesse sentido que a experiência como acontecimento diz respeito à potência de raridade de construção de nova linguagem educacional.
O pressuposto da experiência como acontecimento é aquele segundo o qual há a possibilidade de realização a partir do que pode ser admitido como não acontecimento, portanto, a partir de um espaço fechado, que existe enquanto limitado, exaurido, impossibilitado. Tendo esse conceito como possibilidade de realização, por meio do acontecimento, torna possível, a começar pela limitação, a construção de espaços abertos e livres que deem legitimidade ao acontecimento enquanto raridade. Para se pensar a educação a partir da experiência, torna-se necessário partir de algum ponto no que diz respeito à ação do homem para si mesmo e, nesse sentido, vale dizer que o conceito de experiência a ser apresentado neste trabalho se aproxima mais da arte do que da técnica ou da prática.
Entende-se por nova linguagem educacional a necessidade de estabelecimento de novos parâmetros para se pensar a educação a partir, justamente, de balizas que ofereçam aos interlocutores envolvidos, quais sejam, a experiência, que compreende a educação enquanto ação, e, ao mesmo tempo, o acontecimento, que explora a excepcionalidade. Assim, com vistas a responder à pergunta do artigo, qual seja, o conceito de experiência como acontecimento justifica a construção de uma nova linguagem educacional em Jorge Larrosa?, observa-se a necessidade de compreender conceitos sobre outras balizas. Não está preocupado Larrosa (2015) com as práticas pedagógicas conforme se desenvolvem de forma mecânica no ambiente escolar. O autor argumenta sobre a necessidade de formulações outras que possam contemplar a vida dinâmica dos sujeitos envolvidos em processos educacionais sem que sejam instados a reproduzir os sentidos já consolidados e hegemônicos da escola.
Para tanto, pensar o conceito de experiência por um viés artístico significa também pensá-lo como um conceito vazio, portanto livre e capaz de surpresas. Em outras palavras, a educação, assim como a experiência, deseja estar em torno de uma categoria livre, e não de algo que já existe como sistema, operatividade e funcionalidade. A educação que contém em si o ato e o processo de educar-se transita pelos caminhos da liberdade, da emancipação, da diferença, que serão desenvolvidos ao longo do artigo. Dada essa perspectiva, tanto nas artes como na educação, há algo em comum que se destaca e que necessita de força para construir novos caminhos, que é o falar, que fundamenta a vida e pode fazer com que a experiência, ainda desconhecida, inspire-se por outras falas e deseje também dizer o que há de ser dito.
As notas sobre a experiência e o saber da experiência, tidas como conferência realizada no I Seminário Internacional de Educação de Campinas e publicada em 2001, apresentam importante investigação sobre uma perspectiva política e crítica inclusa no par teoria/prática. É possível evidenciar a fundamentalidade da crítica que anunciou a possibilidade da educação ser pensada dentro da filosofia. Nota-se pela palavra tremores, título do livro que norteia este trabalho, que é necessário um incômodo, um estremecimento que seja capaz de tirar o leitor de sua zona estabelecida e levá-lo a lugares outros, distintos, capazes de dar lugar a novas palavras que possam produzir sentidos, pensar novas realidades e funcionar como “[...] potentes mecanismos de subjetivação” (LARROSA, 2015, p. 16).
Larrosa propõe saltos, recortes insólitos quando deseja iniciar a discussão diretamente com a questão do sentido e, para tanto, inicia-a com o par experiência/sentido, a fim de conduzir o modo como conhecemos as palavras, como as tratamos e o que fazemos com o que recebemos delas. Isso quer dizer que sem as palavras não há possibilidade nem a noção de troca fundamental na linguagem. Se a palavra possibilita abertura e disponibilidade, é também o acordo principal para o vínculo, o receber e o doar, algo semelhante ao que ocorre no contexto daquilo que Aristóteles se referiu como zôon lógon échon, traduzido como o homem é um vivente dotado de palavra, logo, o homem é enquanto palavra (ARISTÓTELES apudLARROSA, 2015, p. 17).
Em A caminho da linguagem (2003),1 Heidegger tece considerações importantes no que se pode pensar a linguagem nela mesma, isto é, a linguagem sendo pertencente ao homem, que se realiza enquanto palavra, encontra o seu modo de ser nesse mesmo homem que a determina pelo que, a partir dela, se manifesta e se mostra. “Fazer uma colocação sobre a linguagem não significa tanto conduzir a linguagem mas conduzir a nós mesmos para o lugar de seu modo de ser, de sua essência: recolher-se no acontecimento apropriador” (HEIDEGGER, 2003, p. 8).
O aspecto a ser considerado em Heidegger e que influenciou Larrosa a pensar o conceito de experiência parece ser justamente o do modo de ser da linguagem, “[...] a linguagem e nada além dela” (HEIDEGGER, 2003, p. 8). Sendo a linguagem ela mesma, não pode ser conduzida ou fundamentada a partir de outra coisa, mas apenas nela mesma, pensada no que há de morada nela mesma, para que então se revele o seu modo de ser. A morada para Heidegger (2003, p. 10) consiste em uma “morada para a essência do homem”, um lugar em que o homem se sinta em casa e no qual possa “alcançar de tal modo a fala da linguagem” que a linguagem ela mesma possa confiar o seu modo de ser “para o modo de ser dos mortais”. Está implícita a ideia de vigor na acepção de morada desenvolvida por Heidegger (2003).
Desse modo, falar “vigora” (HEIDEGGER, 2003, p. 202) em linguagem, isto é, vigorar significa estar presente, vir à presença, de modo que a fala está presente na linguagem. Nesse sentido, o que existe de apropriador, o tornar próprio da linguagem, é justamente deixar que o que é vigente tenha morada e não tenha ausência. Assim:
Tornar próprio trazendo cada um, apropriar, é mais propiciador do que qualquer efetivar, fazer e fundamentar. O que se apropria é o acontecimento apropriador ele mesmo – e nada além disso. O acontecimento apropriador, entrevisto no mostrar da saga do dizer, não se deixa representar nem como processo e nem como um evento, podendo somente ser experienciado no mostrar do dizer como propiciação. Ele não concede nada a que o acontecimento apropriador pudesse ser reconduzido e a partir do qual pudesse ser explicado. O tornar próprio não é resultado de outra coisa, mas a con-cessão, cujo alcance de doação propicia algo como um “isso se dá”, de que o “ser” ainda necessita para alcançar o vigor do seu próprio
(HEIDEGGER, 2003, p. 207).
O acontecimento apropriador é o que mais pode se aproximar dos homens, dos mortais, porque são eles que “[...] podem fazer a experiência da morte como morte” (HEIDEGGER, 2003, p. 170). Nisso reside que a relação entre linguagem e morte está presente porque é no homem que o modo de ser da essência da linguagem se mostra como o que sustenta a própria vida do homem. Assim, o acontecimento apropriador se revela como “[...] a mais simples e suave de todas as leis” (HEIDEGGER, 2003, p. 208), mas não se mostra como a lei no sentido ordenador, e sim como a lei que não necessita de nenhum ordenamento. O acontecimento apropriador é, sobretudo, “o modo mais próprio de tornar próprio” (HEIDEGGER, 2003, p. 214).
Em Curso sobre contribuições à filosofia (o acontecimento-apropriador) de Martin Heidegger, Hebeche (2014) esclarece a diferença entre o seer2 em si e a manifestação do seer:2
A Filosofia, entretanto, tematiza a essência historial do seer enquanto “acontecimento-apropriador”, isto é, enquanto manifestação da verdade do seer. Ora, enquanto “acontecimento-apropriador” ele não é o seer mesmo, mas a sua manifestação. E quando isso acontece, isto é, quando no “acontecimento apropriador” se apanhar algo da verdade do seer isso terá um caráter de “estremecimento”. Assim as “contribuições” estão perpassadas pelo estremecimento que indica o desprendimento do antigo e delinear-se do outro começo
(HEBECHE, 2014, p. 33).
Assim, pode-se dizer que fazer experiência com a linguagem pelo acontecimento apropriador não significa conhecer a linguagem, porque, se é a “própria linguagem que vem à linguagem” (HEIDEGGER, 2003, p. 123), significa que fazer uma experiência propriamente com a linguagem, com a palavra, é deixar que alguma coisa apareça e vigore como coisa que ela é.
Nesse ínterim, vale mencionar a necessidade do homem de conservar as palavras. Parece que o que precisa ser dito é que, se as palavras existem, é porque se atribuem sentidos a elas. Assim, torna-se necessário que não apenas se use delas como aparecem, mas também que se pense e dê a elas sentidos que possibilitem o bom uso, a significação positiva. Entretanto, os significados comuns dados às palavras podem facilmente se perder, situação essa diferente de quando se perde o significado que já lhe é consolidado. Quando isso acontece, ocorre também que se reinventam os modos de olhar o mundo, visto que descobrir um novo mundo implica que se descubram novos sentidos, já que o domínio que possuímos das palavras denota o domínio do nosso próprio mundo.
Por conseguinte, há de ser conduzida a questão da opinião, esta que, ao ser constituída de palavras, converte-se muitas vezes em imperativos. É notório o quanto o excesso de informação contribuiu para que o sujeito moderno se tornasse um sujeito pseudorreflexivo, que, desejando ter para si o papel de agente em todas as situações – como se não lhe pudesse fugir nada e como se lhe fosse prescrito o posicionamento imediato –, acabou por se transformar em um inimigo do conhecimento e optou pela via fácil da opinião infundada e irrefletida, tornando a experiência “[...] cada vez mais rara por excesso de opinião” (LARROSA, 2015, p. 20).
[...] a experiência é cada vez mais rara por falta de tempo [...] Ao sujeito do estímulo, da vivência pontual, tudo o atravessa, tudo o excita, tudo o agita, tudo o choca, mas nada lhe acontece. Por isso, a velocidade e o que ela provoca, a falta de silêncio e da memória, são também inimigas mortais da experiência
(LARROSA, 2015, p. 22).
Cabe argumentar que o imediatismo ou a preocupação demasiada com o futuro e o excesso de ocupações que o sujeito moderno trouxe para si não resultam sempre em reflexão. Essa crença do sujeito moderno de que pode fazer tudo o que deseja fazer contribuiu decisivamente para que o tempo desse mesmo sujeito fosse dividido em tarefas incapazes de levá-lo à experiência. Ainda porque o tempo, principalmente a partir da Idade Moderna, aparece com frequência como mercadoria, convertendo-se em valor, troca e trabalho. Dessa forma, se comumente o tempo foi pensado como trabalho, a experiência também foi vista como trabalho e continua sendo nos tempos hodiernos.
De modo geral, é evidente no modelo capitalista a questão do trabalho como inimigo do homem, pois este vive em função de um modelo econômico que lhe é condicionado e, portanto, que coloca a experiência no mesmo nível de mercadoria. Se as possibilidades de realização da experiência têm se exaurido cada vez mais nesse modelo, se o trabalho tem tomado grande parte da vida do homem e se se dá ao homem a noção de que pode fazer qualquer coisa em virtude dele, quer dizer que este mesmo homem tem acreditado, por muito tempo, no dever de agir e produzir, esquecendo-se da atividade do pensamento.
2 A experiência como possibilidade de abertura
Para se chegar à experiência, é preciso que primeiro se dê abertura para o ainda não vivido com um olhar crítico para as situações cotidianas e, por meio dele, buscar sentidos mais altos para que a experiência se mostre de uma determinada forma para cada indivíduo. Assim, muito vale para essa discussão a suspensão de juízos, o que Larrosa (2015) chamou “o cultivo da atenção”, contextualizando que a experiência muito tem a ver com isso. É recorrente ainda a questão do tempo, dado que, em um determinado contexto em que se diz não ter tempo, é também evidente a falta de cultivo de ideias, do cuidado com o simplismo irrefletido. Nisso, dá-se que, com a desculpa da “falta” de tempo e “espaço”, esqueceu-se que o tempo e o espaço são o “Eu” e, a rigor, esqueceu-se também que é no “Eu” que se escuta, que é nele que se aprende a escutar o outro e é nele que se vê e lê o que deve ser visto e lido. Esse gesto a que Larrosa chama de interrupção se revela da seguinte forma:
A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, olhar mais devagar, escutar mais devagar, parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço
(LARROSA, 2015, p. 25).
O termo utilizado no grego que tem como intuito protelar os juízos é epokhé (ἐπoχἡ), que significa colocar entre parênteses e em questionamento e, com isso, não aceitar nem negar uma proposição. Dessa forma, esse termo se opõe ao dogmatismo, que por sua vez significa aceitar algo posto e estabelecê-lo como verdade. A epokhé também caracterizava a atitude dos céticos gregos, que buscavam a imperturbabilidade; portanto, não aceitar nem negar algo tornaria o indivíduo imperturbável e faria com que ele tivesse o próprio tempo para pensar a si mesmo e aos outros.
Ademais, se o sujeito da experiência está disposto a receber conhecimento, significa que ele não é só o sujeito ativo, que busca, mas também o sujeito passivo, que recebe, que está disposto a arriscar-se. “O sujeito da experiência é um sujeito ‘ex-posto’” (LARROSA, 2015, p. 26).
Coincide que na “ex-posição” a paixão está constituída, pois, estando o seu objeto fora do indivíduo, a paixão faz com que ele se aproxime do que está por fora, como algo pelo qual este indivíduo sinta que vale a pena viver. Em virtude disso, é necessário que se estabeleça uma aceitação não de si mesmo, e sim de algo que está fora de si mas que é de si, implicando passividade ao desconhecido que se deseja conhecer. Assim, pode-se entender que a paixão não possui uma verdade em si, mas um sentido atribuído a ela momentaneamente, ou um sem-sentido atribuído após o acontecimento. Seria, dessa forma, um equívoco tentar compreender a experiência coletivamente, dado que a experiência acontece a cada um de uma forma e é sempre individual, embora seja construída a partir das relações sociais. “O saber da experiência é um saber particular, subjetivo, relativo, contingente, pessoal” (LARROSA, 2015, p. 32). Isso posto, urge que se esclareçam as noções de experimento e experiência, conceitos usados comumente como sinônimos. As observações trazidas por Larrosa (2015) tratam, sobretudo, de dizer aquilo que não é a experiência. Para tanto, é preciso que não se confunda experiência com experimento nem se associe um conceito ao outro, dado que existe uma diferença categórica entre eles. A diferença fundamental é que o experimento pressupõe uma certeza, trabalha com a natureza dos fatos, enquanto a experiência preza pela incerteza, não lhe interessa o habitual, a rotina, o conhecido. Do experimento se pode antecipar o resultado, da experiência não, posto que não é previsível, nem objetivada, nem conhecida. A experiência carrega consigo, nas palavras do autor, “uma abertura para o desconhecido” (LARROSA, 2015, p. 34).
É incontestável que os discursos dos positivistas e críticos monopolizaram as últimas décadas. Nesse contexto, usar do conceito de experiência para atuar no campo pedagógico significa também abandonar esses discursos para que possa haver possibilidades de ampliar a visão sobre a educação e seu papel na viabilização da experiência. Pensar sobre as linguagens da experiência no campo pedagógico exige esse abandono de visões ultrapassadas que abordam a educação apenas como ciência aplicada ou práxis reflexiva. Abandonar aqui não significa ridicularizar, mas significa que essas abordagens já disseram o que tinha de ser dito. Larrosa (2015) assevera que
[...] tanto os positivistas quanto os críticos já pensaram o que tinham de pensar e disseram o que tinham de dizer sobre a educação. O que não significa que não continuem tendo um lugar no campo pedagógico. Os experts porque podem nos ajudar a melhorar as práticas. Os críticos porque continua sendo necessário que a educação lute contra a miséria, contra a desigualdade, contra a violência, contra a competitividade, contra o autoritarismo, porque é preciso manter alguns ideais para que nossa vida continue tendo sentido mais além de nossa própria vida. E a educação sempre tem a ver com uma vida que está mais além de nossa própria vida
(LARROSA, 2015, p. 36).
Não há, nesse sentido, parâmetros para as próximas gerações, mas tornou-se necessária uma transformação positiva nos saberes e nas técnicas que possam fazer da crítica um instrumento importante para a afirmação da realidade, para a concretização do que antes foi chamado de educação digna e que até agora não se viu. Entender que até o presente não houve mudanças realmente duradouras é a única alternativa capaz de “[...] produzir outros efeitos de verdade e outros efeitos de sentido” (LARROSA, 2015, p. 38).
A experiência, não possuindo valor, foi menosprezada, tornada um obstáculo para o conhecimento na história da filosofia, sendo insuficiente, impura, corporal, passional, desconfiável. “A experiência seria o modo de habitar o mundo de um ser que existe, de um ser que não tem outro ser, outra essência, além da sua própria existência corporal, finita, encarnada, no tempo e no espaço, com outros” (LARROSA, 2015, p. 43). É nesse sentido que se torna necessário fazer da palavra experiência uma palavra difícil de ser usada. Sendo ela individual, não pode ser aplicada a tudo, dado que “tudo” não constitui experiência, nem linguagem.
Assim, mencionar a palavra experiência é tão costumeiro e fácil porque se trata de algo que se deu por inexistente. Larrosa (2015) argumenta:
A palavra experiência tem o ex de exterior, de estrangeiro, de exílio, de estranho e também o ex de existência. A experiência é a passagem da existência, a passagem de um ser que não tem essência ou razão ou fundamento, mas que simplesmente “ex-iste” de uma forma sempre singular, finita, imanente, contingente
(LARROSA, 2015, p. 27).
Essa observação diz respeito à dimensão assumida pela palavra experiência, designando travessia e perigo do sujeito disposto e ex-posto, como corpo sensível e receptivo.
Quando se diz “sujeito da experiência”, a noção que logo se tem é a de um sujeito poderoso, seguro do seu poder, estagnado de si mesmo, como aquele que, já tendo conquistado algo, decidiu assumir para si o posto de “inatingível”. Contudo, se essa concepção de experiência fosse válida, todas as possibilidades de transformação se dariam por esgotadas, pois o sujeito erguido e autodeterminado não precisaria de mais nada para si além do seu posto de forte. O que se deseja dizer, em objeção a esse posicionamento, é que o sujeito que assim se vê a si mesmo é incapaz da experiência porque foge de sua humanidade e do seu sofrimento, bloqueia de si mesmo o território de passagem. Assim, “não se pode captar a experiência a partir de uma lógica da ação, a partir de uma reflexão do sujeito sobre si mesmo enquanto sujeito agente [...] mas a partir de uma lógica da paixão, uma reflexão do sujeito sobre si mesmo enquanto um sujeito passional” (LARROSA, 2015, p. 28).
Em Infância e história: destruição da experiência e origem da história, Agamben (2005) recorre à questão da experiência para dizer que na atualidade os discursos sobre experiência partiram da constatação de que não é algo realizável, pois o homem contemporâneo foi expropriado de sua experiência e hoje sabe que para efetuar a destruição da experiência não necessita de uma catástrofe. Agamben assevera, na esteira do pensamento benjaminiano que,
[...] nós hoje sabemos que, para a destruição da experiência, uma catástrofe não é de modo algum necessária, que a pacífica existência cotidiana em uma cidade grande é, para esse fim, perfeitamente suficiente. Pois o dia a dia do homem contemporâneo não contém quase nada que seja ainda traduzível em experiência: [...] O homem moderno volta para casa a noitinha extenuado por uma mixórdia de eventos – divertidos ou maçantes, banais ou insólitos, agradáveis ou atrozes – entretanto, nenhum desses se tornou experiência
(AGAMBEN, 2005, p. 22).
A experiência, tão rara, não pode efetuar sua existência apenas na linguagem ou pela palavra, pois estas perderam a expressividade, reduzindose à repetição do cotidiano. Assim, para Larrosa (2015), o saber da experiência só pode ser construído na relação entre sujeitos e acontecimentos, indicando uma subjetividade daquilo que toca ao sujeito sensível.
O que deseja colocar em questão é a possível interlocução entre Benjamin e Larrosa sublinhando o que foi questionado por Benjamin em Experiência e pobreza (2012): “Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração?” (BENJAMIN, 2012, p. 123). Entende-se aqui o contexto da geração pós-guerra, que presenciou uma das mais difíceis experiências da história universal, que era quase impossível de ser relatada e incapaz de transmissão da palavra. Assim, o autor mostra de forma evidente que “nossa pobreza de experiências é apenas uma parte da grande pobreza que recebeu novamente um rosto [...] qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a nós?” (BENJAMIN, 2012, p. 124). É a partir disso que se faz necessário apresentar que a pobreza a que Benjamin se refere não diz respeito só às experiências privadas, mas também às experiências do coletivo, da humanidade em si.
Gagnebin (2012) retoma os textos de Benjamin para mostrar que o autor retrata a questão da experiência dentro de uma nova problemática, distinguindo a Erfahrung (experiência) da Erlebnis (vivência). O que interessa extrair desses dois conceitos é a forma como abordam a experiência de forma coletiva e individual. Parte desta análise a necessidade de reconstruir, garantir a memória e palavras comuns. Para Gagnebin (2012), ainda que Benjamin não diga de forma explícita, o autor parece querer reconstruir a Erfahrung em busca de uma nova forma de narratividade espontânea. A autora retoma esta dimensão que considera ser fundamental na obra benjaminiana, que é a dimensão da abertura, semelhante ao que Larrosa entende. A Erfahrung, para Benjamin (apudGAGNEBIN, 2012), mostra-se pela narrativa tradicional como “plenitude do sentido – e, portanto, em sua profusão ilimitada [...]” (GAGNEBIN, 2012, p. 12), o que sugere o não acabamento, que é essencial para a realização da experiência.
Nesse sentido, pensar a abertura é pensar também o real como acontecimento, colocando em evidência o sujeito da experiência que se deixa afetar pelos acontecimentos. “O real não é um tema ou um problema, mas sim uma questão sempre aberta [...] o sujeito da experiência não é aquele que tematiza ou problematiza, e sim o que pergunta e sobretudo o que se pergunta” (LARROSA, 2015, p. 111). Pensar o real é pensar na presença, assim como ser sujeito da experiência é estar presente a relação que estabelece com aquilo que se lhe apresenta pelo que é, de forma a fazer justiça à realidade e à vida, uma vez que a experiência está ferida de vida. Para Larrosa (2015, p. 112), “[...] nossa forma de nos situarmos na relação ou no interstício entre o real e a linguagem é, literalmente, vital”.
A questão do sentido da abertura benjaminiana apresentada por Gagnebin (2012) está em dizer que a vivência [Erlebnis], sendo particular e privada, não tem nada a ver com a experiência coletiva Erfahrung; porém, esse caráter único que possui a Erlebnis pode se transformar dialeticamente em uma busca universal: “[...] o aprofundamento abissal na lembrança despoja-o de seu caráter contingente e limitado que, em um primeiro momento, tornara-o possível” (GAGNEBIN, 2012, p. 15). Para tanto, o autor privilegia a obra de Kafka para reafirmar o fim da identidade do sujeito, não deixando por isso de abrir possibilidade para novos sentidos:
[...] a obra de Kafka, o maior “narrador” moderno, segundo Benjamin, representa uma “experiência” única: a da perda da experiência, da desagregação da tradição e do desaparecimento do sentido primordial. Kafka conta-nos com uma minúcia extrema [...] que não existe mais uma mensagem definitiva para transmitir, que não existe mais uma totalidade de sentidos, mas somente trechos de histórias e de sonhos. Fragmentos esparsos que falam do fim da identidade do sujeito [...] uma ameaça de destruição mas também – e ao mesmo tempo – esperança e possibilidade de novas significações
(GAGNEBIN, 2012, p. 18).
O que Benjamin (2012) dirá sobre essa barbárie que se apresentou é que ela impele o bárbaro a começar de novo a partir de uma tábula rasa, como construtor e, ao mesmo tempo que possui em si a desilusão radical com a sua época, resguarda também fidelidade a ela. Com isso, essa construção se empreende justamente pelo reconhecimento da não possibilidade da Erfahrung na sociedade moderna e também pelo descontentamento com a experiência apenas individual (Erlebnis).3 Dessa forma, “a arte de contar torna-se cada vez mais rara porque ela parte, fundamentalmente, da transmissão de uma experiência no sentido pleno, cujas condições de realização já não existem na sociedade capitalista moderna” (GAGNEBIN, 2012, p. 11).
Larrosa (2015) sublinha que, por mais que a educação evidencie a realidade, a linguagem da realidade ainda parece vazia e o nosso vocabulário está cada vez mais vazio de palavras e de sentidos. Portanto, se a pedagogia deve transformar o que é existente e as palavras se dão como inexistentes, é preciso reinventá-las, já que tanto a educação quanto a linguagem já disseram o que tinham de dizer. No que diz respeito à realidade, é adequado dizer que não há realidade, dado que ela se perdeu e, ao perder as palavras, o sentido de realidade passou a ser abstrato, enquanto deveria ser uma língua da experiência, que permitisse que os indivíduos realmente pudessem se entregar ao mundo, viver no mundo, que lhes permitisse encontrar o sentido ou a falta de sentido do que lhes acontece. Posto isso, pode-se dizer que, se a linguagem denota o mundo de cada um, ela é algo que deve vir de si, de dentro, nascida na individualidade, na subjetividade, uma marca que revele o “eu” no mundo, com os outros. Agambem (apudLARROSA, 2015) argumenta que
[...] nunca se viu, no entanto, um espetáculo mais repugnante de uma geração de adultos, que depois de haver destruído até a última possibilidade de uma experiência autêntica, acusa sua miséria a uma juventude que já não é capaz de experiência. Em um momento em que se quisesse impor a uma humanidade à qual de fato foi expropriada a experiência, uma experiência manipulada e guiada como um labirinto para ratos, quando a única experiência possível é o horror ou mentira, o repúdio à experiência pode então constituir – provisoriamente – uma defesa legítima
(AGAMBEN apudLARROSA, 2015, p. 54).
É a partir das considerações teóricas de Agamben que Larrosa (2015) faz duas questões: Não será que o discurso da experiência e a reivindicação da experiência podem funcionar hoje com certa facilidade precisamente porque tratam de algo que já não existe? Não será preciso rechaçar também a experiência?
Se a experiência de nossa língua é a de não termos língua, se essa experiência é falsa, então, por falta de palavras ou por excesso de palavras insignificantes, não há uma linguagem possível para a elaboração da experiência. “O texto de Agamben, entre nostálgico e desesperado, tenta abrir um espaço para pensar a experiência de outro modo [...] como algo que talvez aconteça agora de outra maneira, de uma maneira para a qual, talvez, ainda não temos palavras” (LARROSA, 2015, p. 56). É importante reforçar, então, que, se o sentido que se tem de experiência é que esta faz com que nos situemos, significa também que nela se cria um lugar autêntico, um lugar em que o indivíduo da experiência começa a compreender o que ele mesmo é, o que está deixando de lado e o que é preciso transformar.
A língua é “[...] um dispositivo de acolhida e pertinência [...] um dispositivo de repúdio e exclusão” (LARROSA, 2015, p. 60). Da fusão que se fez de diversas linguagens, o indivíduo se viu perdido, impossibilitado de aderir a determinadas linguagens, de pronunciá-las, mas isso nunca o impediu de criar, mesmo quando sabe que usa as mesmas velhas palavras:
Dado que o solo é horizontal, e que a moral do trabalho imperante nos obriga a adotar, muito mais do que gostaríamos, posições verticais, entender-se-á que a situação do ser humano no mundo não é demasiado cômoda. Por isso precisamos dos muros, para que nos ajudem a nos mantermos erguidos [...] São muros a metafísica, a ciência, a moral, a política, a religião, a arte e as formas consensuais de linguagem. Em geral, nos impedem de ver o outro lado, transpassar o âmbito do conhecido e aprender outras formas de viver, de pensar e de nos relacionarmos. E, o que é pior, nos fazem esquecer que alguma vez os construímos
(LARROSA, 2015, p. 108).
Nesse sentido, o que se intenciona afirmar ao que anteriormente foi dito sobre o bárbaro retratado por Benjamin e sua desilusão radical é que é possível, a partir do texto de Larrosa, fazer uma ponte no que diz respeito à “fidelidade” que o bárbaro resguarda à sua época. É possível usar os muros como uma divisão entre a realidade que se tem e a realidade que se almeja, que ainda não se sabe bem qual é, mas que faz com que a busca por ela mantenha os homens erguidos.
O conceito de experiência tanto benjaminiano como larrosiano parece residir, dentro de seus respectivos contextos, não no conhecimento, mas na autoridade. Ambos parecem questionar a autoridade e o modo como essa autoridade anula a possibilidade de experiência, a possibilidade de “reencontrar além das palavras e das representações a potência pela qual as palavras se põem em movimento e se tornam atos” (RANCIÈRE apud.LARROSA, 2015, p. 128). Isso também significa dizer que o conflito que existe entre o falar e o colocar em ato ocorre em razão de pensar no que significa falar e nos limites da fala. E o mesmo acontece com o “filosofar”, em que seu uso público se tornou “inútil, gratuito, improdutivo” (LARROSA, 2015, p. 146).
No que diz respeito à redefinição da linguagem pedagógica, até o ponto em que se deu o esgotamento dos discursos já ditos – considerando as infinitas possibilidades de linguagem –, é de se questionar então: “em que língua [...] pode ser essa língua a nossa língua?” (LARROSA, 2015, p. 58). Ao pensar em diferentes linguagens, pode-se dizer que cada uma carrega consigo uma substância, diferentes formas de determinar um espaço, o mundo, ou diferentes formas de um indivíduo se identificar, de pensar e de dizer as palavras que são ditas. Nesse sentido da linguagem, o mundo de cada um se converte em significados que as palavras exprimem.
Para Larrosa (2015), as linguagens muitas vezes podem gerar conformismo, submissão, arrogância, superioridade. Esta última pode ser considerada destrutiva, por colocar um dos indivíduos como impessoal ou abstrato, inexistente, além de impossibilitar a troca. Destarte, faz-se necessária uma língua que coloque os indivíduos na mesma direção, do mesmo tamanho, e essa língua só se faz possível na medida em que se esgota a posição de superioridade e autoridade, bem como os outros aspectos já citados.
A questão da autoridade retoma a chamada “língua de ninguém” para dizer que não existe “nós” quando se fala de individualidade. Todos têm para si uma individualidade, uma singularidade que não se pode identificar ou compreender, que é capaz de despertar incertezas, não podendo ser determinante ou classificável. Bataille (apud LARROSA, 1992) assevera:
Não podendo ter princípio nem um dogma (atitude moral), nem na ciência (o saber não pode ser a finalidade nem a origem), nem na busca de estados enriquecedores (atitude estética experimental), a experiência interior não pode ter outra preocupação nem outro fim que ela mesma
(BATAILLE apudLARROSA, 1992, p. 14).
A experiência possui a tarefa de dar ao homem sua singularidade. Esse mesmo homem não pode ser identificado com os demais, portanto, não pode também ser comparado, menosprezado, exaltado. A experiência possui em si o atributo de incompreensão, somente o sujeito da experiência é capaz de compreender a si mesmo e o que lhe ocorre. Essa linguagem se mostra como transpassada, pois, a partir do momento que incorpora a incerteza, torna-se necessário que com ela se abandone as linguagens dominantes que até agora estiveram presentes, da pedagogia, da técnica, do saber, do poder, da crítica, da vontade e da ação. “Essas linguagens não captam a vida [...] teremos que procurar uma língua que esteja entre nós [...] que nunca poderá ser a própria de nenhum de nós, mas qual, talvez, trataremos de nos falar, você e eu, em nome próprio” (LARROSA, 2015, p. 70).
3 Experiência como possibilidade de uma nova linguagem educacional
Neste item objetivou-se pensar em uma nova linguagem a partir de Larrosa (2015) em interlocução com Kohan (2009) e Cerletti (2009), dado que são autores que desenvolvem o pensamento filosófico não de forma enciclopédica, mas, justamente, como acontecimento e abertura.
Kohan (2009) sustenta sua argumentação com relação à nova linguagem educacional tendo como referência a tarefa socrática de descolonização do pensamento, ou melhor, a tarefa urgente para qualquer sujeito que esteja envolvido com a educação, de modo a dar a ela sentido e novidade. Isso significa dizer que é impossível pensar em uma nova linguagem que traga experiência e singularidade aos sujeitos sem pensar em um pensamento aberto e disposto a aprender. Descolonizar o pensamento é uma tarefa necessária, porque exige uma transformação em todos os campos do saber. Por esse motivo é que é preciso pensar se há ou não sentido voltar a se perguntar pela escrita e pela conversação num momento de demasiada impotência e, também, se somos capazes de começar tudo de novo, escrever tudo de novo, ler tudo de novo, conversar tudo de novo, pensar tudo de novo, construir outro mundo, transformar o conhecimento.
Perguntar-se pelo novo, por essa transformação dos saberes, diz respeito a querer pensar na possibilidade de uma linguagem educacional transpassada, que seja capaz de sustentar a igualdade e a liberdade entre os sujeitos singulares e dispostos em tempos singulares. E, para que isso ocorra, é indispensável a anulação de toda forma de dominância e de submissão.
O problema da dominação no modo de ensinar não consiste necessariamente na ignorância de quem ensina, mas na relação que se tem com ela. Kohan (2009) enfatiza que essa relação deve ser afirmativa e não disfarçada, o que significa dizer que o problema principal da falta de diálogo entre os sujeitos que se encontram no ambiente educacional é a determinação de fazer da ignorância algo escondido, impotente. Por isso, é crucial entender que a ignorância de que trata Kohan só tem sentido quando é afirmada como potência, quando se permite ser virada do avesso e que se inverta o seu valor e sentido, e inverter esse valor e sentido é buscar por novidade, é se fazer aberto, é estar disposto para a experiência. Assim, a ignorância precisa ser potente e afirmativa, justamente porque a prática docente, em algum nível, consiste nisto: em condicionamentos e referências que estão inseridos no pensar e no agir, que só podem estar no mesmo caminho quando são mantidos em coerência.
A função da educação não pode se restringir a dar aos jovens algumas ferramentas para que se adaptem ao mundo, mas sim dar bases para que eles pensem o mundo e tentem transformá-lo. Nesse sentido, os três autores principais nos quais este artigo se baseou, Larrosa (2015), Kohan (2009) e Cerletti (2009), propõem o ensino de filosofia como o mais capacitado a dar subsídios necessários para as novas formas de ser aluno, novas formas de ser professor, bem como para a elaboração de novos conteúdos de ensino, suas funções e seus procedimentos. A filosofia é potente na afirmação da singularidade do pensamento, pois não parte do princípio de que todas as pessoas tenham uma mesma base para entender o mundo, mas carrega a abertura necessária para dar a cada indivíduo uma compreensão singular, capaz de levar o leitor ao mais alto de si mesmo. Cerletti (2009), em O ensino de filosofia como problema filosófico, salienta:
[...] há os que já escolheram habitar a filosofia. Filósofos, professores de filosofia, pesquisadores em filosofia encarnam tal desafio porque ele é seu, é o que eles escolheram. Mas o que acontece com quem não o fez, pelo menos até o momento? Que ocorre com aqueles para os quais a filosofia é algo alheio e que mal acabam de entrar em contato com ela? Pode-se ensinar, pode-se transmitir ou “contagiar” esse interesse por problematizar, surgido de uma incerteza inicial? Em última instância, pode-se ensinar o desejo de filosofar?
(CERLETTI, 2009, p. 27).
Essa situação alheia da filosofia tem relação com o que pensa Larrosa (2015) sobre a possibilidade de algo como a filosofia pode entrar nas instituições universitárias por meio da formação dos professores. O foco tanto de Cerletti (2009) como de Larrosa (2015) reside na questão do desejo de filosofar para a afirmação da singularidade do pensamento. Desse modo, o que o autor considera é que sobretudo os jovens têm extrema importância. Os jovens, por serem ainda jovens, são responsáveis por mudanças, por ir contra o curso ordinário das coisas. São os que possuem tempo para iniciar a luta contra a própria estupidez, são os que podem ensinar aos outros na medida em que também se instruírem. Contudo, falta aos estudantes a voz, pois não falam e consequentemente não são ouvidos.
A atividade do pensamento deve vir de si e é esse aspecto que deve ser despertado. O pensamento é por si só uma capacidade do ser humano; treiná-lo, incentivá-lo é, então, tarefa do próprio homem como condutor de si mesmo. Larrosa (2015) propõe que a luta contra o emburrecimento aconteça de forma a desescolarizar as palavras e desalunizar os alunos, para que, de modo insolúvel, também se desprofessorizem os professores. Essa é uma das formas possíveis para que todos se vejam no mesmo nível de escuta e de fala, de ensinar e de deixar-se aprender. Assim, recorre-se à tarefa descolonizadora do pensamento que, para Kohan (2009), é infinita e se faz urgente não só para ensinar filosofia, mas também para uma educação filosófica.
Dessa forma, deseja-se fazer com que filosofia e educação se encontrem para que haja transformação e descolonização do pensamento. Se a filosofia só é realizada na medida em que se pensa, se é uma atividade pensante, então, como fazer filosofia em um pensamento colonizado? Como pensar uma nova linguagem educacional baseada na reflexão crítica filosófica, sendo que no pensamento colonizado há vários muros, várias certezas? É preciso, antes, derrubar esses muros e as certezas. Instruir-se, reconhecer a própria ignorância como potência do saber, e não como um não saber, é um caminho importante para despertar também no outro o desejo de aprender, é uma construção que exige trabalhar em conjunto, que exige que se evidencie o que é o outro. Entretanto, para Larrosa (2015) ainda não é evidente que façamos as coisas para aprender. Sempre queremos ensinar tudo, tudo o que achamos que sabemos. É por esse motivo que, para se pensar em uma nova linguagem, não é possível que se mantenha a dominação do saber, pois esta não possibilita abertura para o processo de subjetivação.
Talvez a aprendizagem que considere as potencialidades humanas em desenvolvimento possa se dar em um espaço livre, capaz de proporcionar ao indivíduo o desejo de conhecer e afirmar sua ignorância. Essa aprendizagem na não dominação será possível quando todos os que estão envolvidos com a tarefa educacional, os que buscam uma linguagem transpassada do conhecimento, deixarem de se considerar os detentores do saber e se colocarem em posição de aprendizes.
Cerletti (2009) reitera que o ensino de um modo geral e principalmente o de filosofia requer uma construção subjetiva e não há uma maneira exclusiva de defini-lo, já que essa característica é a grande riqueza de seus desafios, qualquer tentativa séria de tratar desses desafios nos conduz inexoravelmente a ter que filosofar.
É importante dizer que os que estão inseridos na educação ocupam um lugar de transmissão e provocação e lidam ao longo desse processo com muitas dificuldades em diferentes níveis, pois a prática docente consiste em condicionamentos e influências que se constituem de um horizonte de pensamento e ação que se mantém em coerência enquanto estão incorporados na consciência dos sujeitos.
Assim, conclui-se, ainda que de forma aberta, que os pensamentos não estão determinados e acabados e que, qualquer que seja a proposta didática, ela terá como condição de possibilidade um conjunto de decisões reflexivas acerca dos problemas fundamentais que envolvam as linguagens educacionais em exercício. Dessa forma, torna-se possível pensar em novas linguagens a partir do que já é velho, a fim de construir o que foi apresentado como acontecimento, abertura e conhecimento.
Considerações finais
A resposta para o problema do artigo – que consistiu na pergunta: o conceito de experiência como acontecimento fundamenta a necessidade de uma nova língua educacional? – é sim. Ao longo das reflexões, buscouse argumentar, justamente, sobre a importância de se assumir a experiência como acontecimento e abertura para propiciar a construção de uma nova linguagem na educação.
Como resultados, a leitura do livro Tremores, que trata a experiência como raridade, mostra que esse conceito deve ser pensado como acontecimento capaz de trazer novos sentidos. A aposta diz respeito à necessidade de se repensar as linguagens, das quais emerge o mundo de cada indivíduo e, além disso, de pensar a pedagogia como transformadora do que já existe por meio da linguagem.
Portanto, empenhar-se filosoficamente é mais do que compreender o homem no mundo, mais do que viver a experiência, é, sobretudo, mesmo que de forma implícita, pensar na educação desse homem que vive em relação com o que o cerca, haja vista que, como foi dito no desenvolver deste trabalho, a educação é, dentre todas as coisas, uma determinada arte de fazer perguntas.
O espaço de aprendizagem, como elemento da nova linguagem educacional, requer desidentificação, desposicionamento, que estejam os alunos separados enquanto sujeitos singulares, mas unidos enquanto procuradores de possibilidades. Essa nova linguagem reivindica que os sujeitos se desconectem das finalidades e, sobretudo, construam uma travessia. E, se há necessidade que se faça travessia, é sabido que esse espaço ainda não existe e precisa ser aberto, de forma inconsistente e sem garantia de que possa acontecer, ainda que na urgência de que algo aconteça.
Assim, é ainda distante e difícil a experiência como acontecimento, pois, não podendo ser objetivada ou conceituada, não carrega consigo um percurso. Contudo, é possível, a partir de uma ordem que coloque os sujeitos como iguais em escuta e fala – sujeitos que coexistem – encontrar a experiência com base no que não se tem, reinventando as palavras e os espaços com as ferramentas que já existem – quais sejam, a atividade do pensamento, a escrita e a palavra – para a afirmação de uma nova linguagem educacional.