Introdução
Os avanços tecnológicos têm proporcionado não só intensas experiências de copresença e de interação dos indivíduos (GALVÃO, 2006), mas novas formas de acesso às informações e novos estilos de raciocínio e de conhecimento, que se potencializam, cada vez mais, nessa sociedade contemporânea, que se caracteriza por ser comunicacional e digital. As novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) ao ter promovido novas, interativas e flexíveis formas de organizar o mundo, consequentemente, exigem uma nova abordagem teórico-conceitual, que seja capaz de compreender e organizar o aparente caos promovido pelas descontinuidades e pluralidades do mundo contemporâneo. O ciberespaço tem exigido um redesenho dos processos formativos em sociedade, em particular da educação, e a produção de conhecimento, hodiernamente, tende a obedecer a processos de coordenação, em que atores potenciais podem interagir ou cooperar uns com os outros por meio de interconexões entre diferentes comunidades. Essa realidade acaba gerando um enorme desafio à educação no sentido de encontrar razões que justifiquem, não só metodologias, mas seu sentido de ser no mundo conectado.
O artigo, ora em tela, pretende apresentar a racionalidade hermenêutica como uma epistemologia totalmente viável para promover a compreensão teórico-conceitual da utilização das novas TICs no âmbito dos processos educativos contemporâneos. Para tanto, se ancora nas noções de compreensão (Heidegger) e de linguagem (Gadamer), bem como nas noções de ciberespaço e hipertexto (Levy). Resultado de uma pesquisa bibliográfica nos autores mencionados, bem como em seus comentadores, o artigo está estruturado em duas partes: na primeira parte, procura apresentar a hermenêutica como alternativa epistemológica em face da crise da razão metafísica e científica, e, na segunda, busca-se apresentar a relação entre as novas TICs e a racionalidade hermenêutica.
A alternativa hermenêutica diante das racionalidades totalizantes
A investigação da realidade e a consequente produção de conhecimento apontam à necessidade humana de construir explicações sobre o real, apoiadas na força natural do questionamento da razão. Aristóteles afirmava na obra Metafísica (A 980a22) que o desejo de adquirir conhecimento no ser humano não decorre de uma razão acidental ou de contingência histórica, mas de uma inclinação da própria natureza humana. Partindo dessa inclinação natural, verificam-se, na história do pensamento, diversos paradigmas de racionalidade que, diferentemente, apreendem a totalidade da experiência humana.
A primeira abordagem consiste naquilo que Rocha (2007, p. 22) denominou de “processo de sublevação da metafísica”. Ancorado numa interpretação do mundo que vislumbre uma unidade essencial presente em toda existência, a metafísica sempre buscou a compreensão e a explicação da realidade a partir de um princípio a-histórico (o Ser), que abarque toda a multiplicidade, princípio, esse, fundamento último da existência. Assim, o discurso metafísico demarcou a compreensão da verdade num aspecto absoluto dada sua identificação com o Ser (fundamento último da existência). Ou seja, se ser e verdade são idênticos, a metafísica como ciência do Ser é, por consequência, a ciência da verdade. Assim, o discurso metafisico pretende representar o mundo dizendo a multiplicidade não por ela mesma, mas a partir de uma essência que a antecede. Para Hermann um exemplo dessa essência totalizante, na tradição metafísica, é a noção de Ideia em Platão:
Ater-se a isso que Platão chamou de ideia, ao manifesto, ao ente, é o movimento típico da metafísica. Aquilo que para os pré-socráticos era permanência e devir [...] passa agora a constituir duas realidades: o visível e o invisível [...]; a partir disso, criam-se as condições para a posterior forma de pensar, que resulta na objetivação do mundo e, por consequência, na instauração da estrutura técnico-científica, que prevalece na modernidade
(HERMANN, 2002, p. 33).
Com a modernidade, outra racionalidade totalizante para compreender e dizer o real foi a ciência moderna. Rompendo com as concepções antiga e medieval de ciência qualitativa, o conhecimento científico assentou-se nos paradigmas da racionalidade dos procedimentos empírico-formais e da explicação causal, alijando desses procedimentos os pressupostos subjetivos e históricos. A ciência experimental moderna inaugurou um novo paradigma de racionalidade alicerçada sobre procedimentos que resultassem em análises e conclusões sobre dados objetivos. Assim, por meio de sua visão mecânica do mundo e da natureza, afirmou que para uma compreensão ser cientificamente válida, ela precisa dispor de teorias científicas baseados num método rigoroso e na razão matemática.
A nova compreensão científica do mundo e da natureza, inaugurada pela modernidade, baseada na mensuração/quantificação e no método, deu origem a outra concepção de indivíduo (sujeito) no processo de produção do conhecimento e, consequentemente, no processo educativo. Os procedimentos metodológicos de compreensão do mundo e da natureza conferiram ao sujeito um lugar privilegiado na produção do conhecimento. A capacidade cognitiva do homem, para compreender as leis universais da natureza, conferia-lhe certo poder sobre o conhecimento, permitindo sua interferência na natureza e a possibilidade de exercer sobre ela domínio e controle. Uma vez que a representação do mundo e da natureza, na ciência moderna, consiste em que “o seu modo de representação encara a natureza como um sistema operativo e calculável de forças” (HEIDEGGER, 2001, p. 24-25), inaugurou-se, na história do pensamento, a disposição de assumir o sujeito e o mundo/natureza como realidades objetivas e separadas, mediadas pela relação sujeito-objeto. A consequência na educação do paradigma de racionalidade moderno, calcado nos procedimentos empírico-formais foi a valorização de uma perspectiva objetivadora do conhecimento. Essa concepção técnico-científica do mundo e da natureza só começou a ser questionada a partir do século XX, quando as metanarrativas tanto filosóficas como científicas sofreram críticas radicais. Tais críticas referiam-se à compreensão do homem, originárias desde o século XVI e consolidadas no século XVIII, à noção de verdade alcançável somente pela razão científica e à crença na linearidade histórica rumo ao progresso. Uma modalidade dessa crítica radical ao conhecimento técnico-científico é a hermenêutica filosófica, que trouxe, para o âmbito da filosofia, a reflexão sobre o problema fundamental da compreensão em sua essência e estruturas.
Apesar de não haver consenso entre os estudiosos, a palavra hermenêutica (gr. hermeneurin) ao derivar de Hermes, cuja função consistia em promover a comunicação dos deuses entre si e, desses, com os mortais, traz a noção de declarar, anunciar, esclarecer, traduzir e interpretar. Essa compreensão da hermenêutica vinculada à imagem do deus alado como a arte de interpretar, de trazer mensagens, de promover a compreensão acerca das mensagens divinas superando determinadas distâncias, faz com que ela assuma o sentido do dizer. Hermann concluiu que a origem da palavra hermenêutica aponta para duas acepções:
Enquanto “explicar”, a palavra “hermenêutica” enfatiza o aspecto discursivo da compreensão, daquilo que explica, que se torna claro, mais do que aquilo que se expressa. Explicar é uma forma de interpretar [...], além disso, na acepção “traduzir”, a hermenêutica traz à tona uma forma especial de tornar compreensão do mundo. Aquilo que estranho, estrangeiro, torna-se compreensível superando a distância. O tradutor tem um papel semelhante ao do deus Hermes, de mediar mundos diferentes.
(HERMANN, 2002, p. 23-24, grifo nosso).
Posto isso, estabelece-se o vínculo da hermenêutica com a linguagem. A realidade é dada na linguagem, ou seja, a realidade e o seu conhecimento se constituem a partir das diversas possibilidades de “sentidos verdadeiros”. A hermenêutica teria condições de superar a histórica tensão entre explicação (ciências da natureza) e compreensão (ciências humanas), pois “a rigidez da oposição que se estabelece entre explicar e compreender é ultrapassada porque toda explicação já supõe uma compreensão, e toda compreensão pressupõe explicação” (HERMANN, 2002, p. 24-25). Embora desde o Renascimento exista a coexistência de diversos tipos de hermenêutica (bíblica, jurídica, histórica, textos profanos, etc.), não havia uma sistematização de princípios e procedimentos. Era necessário um trabalho teórico-conceitual que fornecesse um estatuto epistemológico à hermenêutica. Esse trabalho só começou no século XIX com Friedrich Schleiermacher que, considerando questões filosóficas, teológicas e conceituais próprias da hermenêutica, procurou constituí-la numa metodologia hermenêutica universal (OLIVEIRA, 2013, p. 83-84). Embora a reflexão de Schleiermacher sobre a hermenêutica tenha ressaltado seu aspecto mais prático do que teórico, é a partir dele – na busca pela boa técnica de interpretação – que se coloca o problema da compreensão como questão fundamental da reflexão hermenêutica. É, nesse sentido, que a hermenêutica busca distanciar-se do proceder objetivador da ciência moderna, para inserir o problema fundamental da compreensão vinculado-o aos aspectos históricos e culturais que constituem e predeterminam a compreensão dos indivíduos e, nesse particular, são notáveis as contribuições de Martin Heidegger e Hans Gadamer.
As contribuições de Heidegger para a formulação do estatuto epistemológico da hermenêutica, iniciam pela denúncia de que a ciência moderna, por meio da racionalidade dos procedimentos empírico-formais, encerrou a compreensão do ser no domínio da técnica (CRITELLI, 2002, p. 84). Para repensar a questão do ser, Heidegger partiu da facticidade, da temporalidade e historicidade do ser-aí (Dasein). Ele situa a questão do ser não no primado da consciência, mas a partir do modo histórico de ser do homem no mundo.
A tradição filosófica no Ocidente degenerou o problema do ser quando postulou a dicotomia entre pensamento e realidade (Platão), daí surgindo um modelo de racionalidade caracterizado pela objetivação do mundo que, na modernidade, alcançou seu clímax na racionalidade técnico-científica. Esse tipo de racionalidade não dá conta da problemática do ser, porque seus conceitos sobre o Ser não dão conta da facticidade, historicidade e temporalidade do homem no mundo: o Dasein. Essa deficiência é tanto da metafisica como da técnica que, segundo Hermann, Heidegger denuncia (HERMANN, 2002, p. 33). Dessa forma, a fim de superar essa compreensão degenerada do ser, Heidegger, através de sua hermenêutica fenomenológica, repensou o problema fundamental da compreensão na dimensão das historicidade e temporalidade do ser (Dasein). Para o filósofo de Marburgo, a compreensão do ser não é mediada conceitualmente, mas na totalidade das relações em que o homem está inserido. A partir das reflexões hermenêuticas de Heidegger, a compreensão do homem e do mundo, nesse modelo epistemológico, não mais pretende ancorar-se nas categorias da autoconsciência e autorrepresentação da modernidade.
Hans Gadamer se insere na tradição hermenêutica, refletindo acerca das condições sob as quais se realiza a compreensão, isto é, sua reflexão versa sobre a historicidade e a linguagem como fatores estruturantes da compreensão. Descartando a possibilidade de o conhecimento ser produto de uma subjetividade transcendental, Gadamer apresenta-o como um processo que ocorre na história e na linguagem. Sua análise da consciência estética serve como exemplo dessa compreensão, pois ali “Gadamer quer mostrar que o contato com a obra de arte abre o mundo, amplia horizontes. A arte surge como um campo que permite compreender aquilo que ‘não é dito’, mas que expõe uma verdade” (HERMANN, 2002, p. 42). Para Gadamer a compreensão é precedida de uma pré-compreensão. Essa, ao elaborar um projeto prévio de sentido, aponta às determinações históricas do pensamento. A pré-compreensão constitui-se no horizonte epistêmico do ato interpretativo, de modo que toda compreensão só alcança sua realização quando mediada por uma antecipação prévia de sentido que o sujeito lança sobre o objeto (texto ou situação). O ato interpretativo já se encontra impregnado de sentidos prévios – construídos e reconstruídos na história – acerca do objeto. Todo ato interpretativo é dado em esquemas prévios de compreensão que se constitui no horizonte epistêmico do indivíduo em sua experiência de mundo. Com Gadamer, os pré-conceitos são reconduzidos ao processo de compreensão. São esses preconceitos que vinculam, previamente, nossa experiência de mundo:
A tradição é essencialmente conservadora, mas também pressupõe um ato da razão que integra o novo em uma forma de vida válida nos momentos mais revolucionários. Ao reabilitar os preconceitos e a autoridade, Gadamer contrapõe-se à consciência soberana, dona de si, que pretendia desconsiderar a historicidade. Nossa busca de verdade só [se] dá no horizonte de uma tradição, à qual pertencemos, à qual estamos sujeitos, de modo que nossa historicidade é condição de nossa compreensão
(HERMANN, 2002, p. 46).
Outro elemento fundamental, no pensamento hermenêutico de Gadamer, é sua noção sobre a linguagem, que ocupa um espaço fundamental na reflexão filosófica do pensamento hermenêutico, em virtude do fato de ser, através dela, que toda ação humana, para conferir sentido ao mundo, está baseada. O sentido se realiza por meio de acordos entre interlocutores que deixam antever os condicionamentos históricos aos quais estão atrelados e que realizam seu modo de ser-no-mundo. A linguagem nada mais é que a realização da consciência histórica dos indivíduos, o modo de ser do homem no mundo, num determinado momento histórico-cultural condicionando sua compreensão da realidade (HERMANN, 2002, p. 64).
A compreensão do mundo se realiza pela apropriação dos conteúdos da linguagem adquiridos na história, por isso ela não deve ser reduzida à mera condição de instrumentalidade servindo apenas para a designação de coisas, seja por convenção, seja pela relação de semelhança entre sonoridade-coisas (Platão). Essa instrumentalidade da linguagem adquiriu, na tradição metafísica, a noção de ser a linguagem apenas um signo capaz de dizer o real a partir da sua adequação ao conhecimento das coisas, proporcionado pela razão. Para Gadamer, a linguagem não precede à experiência, mas se constitui na dimensão temporal e histórica do ser humano. Ou seja, despida da condição de instrumento ou função de designação do pensamento, a linguagem revela o mundo, por meio do acesso e constituição do mundo para o indivíduo. A linguagem é a própria condição estruturante do indivíduo para se apropriar ou experienciar o mundo. Dessa forma, Gadamer compreende a linguagem, em seu sentido mais amplo, como um modo de comportamento diante do mundo: o homem desenvolveu diferentes comportamentos diante do mundo (ciência, artes, religião, filosofia, tecnologia, etc.), cada um desses foi mediado pela linguagem, por isso não há um modo mais legítimo do que outro.
As tecnologias na educação e hermenêutica
O ciberespaço tem exigido um redesenho dos processos formativos em sociedade, em particular da educação. Sob o conceito de “ecologia cognitiva”, Levy refere-se ao desenvolvimento de diversos tipos de relação com o conhecimento, no transcurso da história humana, por meio daquilo que ele denomina de “atores”, constituindo-se em elementos centrais nos processos de acumulação e exploração do saber: 1) o velho, nas sociedades primitivas, era ele quem transmitia os saberes mítico, prático e ritual; 2) o intérprete, que acessava o conhecimento transcendental posto no livro, nas sociedades que desenvolveram a escrita; 3) o sábio ou cientista, que encarnava os processos de memória e sistematização do saber, a fim de condensar a inflação dos conhecimentos; e 4) o ciberespaço, onde os objetos do conhecimento eram construídos e desconstruídos por meio da atuação das coletividades inteligentes (LEVY, 2010, p. 166). Na atualidade, a produção do conhecimento obedece a um processo de coordenação, em que atores potenciais podem interagir ou cooperar uns com os outros por meio de interconexões com comunidades científicas.
Apesar de as TICs terem promovido novas, interativas e flexíveis formas de organizar o mundo – a exemplo da simulação, que através de suportes digitais exteriorizam faculdades como a memória, o cálculo, o raciocínio inteligente, a fim de reforçarem os processos de inteligência coletiva (LEVY, 2010, p. 167) – determinados conceitos e paradigmas que constituem e organizam a educação não dão conta das descontinuidades e pluralidades do mundo contemporâneo, sendo necessário estabelecer um estatuto epistemológico que aceite a descontinuidade, a alteridade e a diferença (ADAMS, 2016, p. 171).
A inauguração de uma estreita relação entre ciência e técnica, desde o início da modernidade, tem possibilitado uma série de transformações em diversos setores da sociedade. É necessário ter a compreensão de que os instrumentos e os processos tecnológicos têm exercido forte e imprescindível influência tanto na dinâmica das economias capitalistas como nos aspectos socioculturais das sociedades atuais. A tecnologia se impõe não só ao desenvolvimento econômico, mas também exerce forte influência e condicionamento aos modelos de representação de uma cultura. Nesse sentido, para Pierre Levy
as técnicas determinam a sociedade ou a cultura? Se aceitarmos a ficção de uma relação, ela é muito mais complexa do que uma relação de determinação. A emergência do ciberespaço acompanha, traduz e favorece uma evolução geral da civilização. Uma técnica é produzida dentro de uma cultura, e uma sociedade encontra-se condicionada por suas técnicas. E digo condicionada, não determinada. [...] Dizer que a técnica condiciona significa dizer que abre algumas possibilidades, que algumas opções culturais ou sociais não poderiam ser pensadas a sério sem sua presença
(2010, p. 25-26).
Dessa forma, é necessário adquirir novas formas de pensar na realidade tecnológica, isto é, é preciso desenvolver novos pensamentos a partir de um paradigma de racionalidade que dê conta do contexto atual sobre a tecnologia e que não se reduza a um discurso dos “prós e contras” do fenômeno tecnológico. É preciso adotar uma postura e, consequentemente, uma análise e um discurso, que vão além da mera aceitação ou reprovação dogmática da utilização da tecnologia. Como afirma Galvão,
crer que as inovações tecnológicas condicionam-se a um comprometimento inseparável dos interesses de grandes conglomerados transnacionais e promovem exclusivamente a pasteurização cultural, atingindo o status de elemento alienante e destrutivo, no que tange aos aspectos socioculturais dos indivíduos e para a sociedade como um todo, é tão descabido e improdutivo quanto adotar – como ocorre comumente nas exposições eufóricas da mídia (eletrônica, impressa ou digital) – posturas salvacionistas relativas às inovações tecnológicas, classificando-as como elemento causador de uma revolução que, na realidade, apresenta efeitos difusos e é menos abrangente do que aparenta ser
(2006, p. 3).
A tecnologia têm imposto novos desafios aos processos educativos que vão desde os teórico-metodológicos relativos ao modo de se apropriar de um saber que se caracteriza destotalizado e em constante mudança, até os de natureza econômica acerca dos custos do ensino capaz de atender à demanda por formação, principalmente em países pobres. As mudanças qualitativas, nos processos de aprendizagem, promovidas pela tecnologia, faz Levy se perguntar e sugerir,
como manter as práticas pedagógicas atualizadas com esses novos processos de transação de conhecimento? Não se trata aqui de usar as tecnologias a qualquer custo, mas sim de acompanhar consciente e deliberadamente uma mudança de civilização que questiona profundamente as formas institucionais, as mentalidades e a cultura dos sistemas educacionais e, sobretudo os papéis de professor e aluno
(LEVY, 2010, p. 174, grifo do autor).
É a esse “acompanhar consciente” que a racionalidade hermenêutica pode oferecer contribuições significativas que promovam uma ressignificação dos processos de ensino e aprendizagem em face dos desafios do atual cenário tecnológico. Como as TICs no âmbito da educação podem ser refletidas a partir do paradigma da racionalidade hermenêutica? Que elementos comuns às TICs e à educação podem ser considerados como objetos de reflexão da epistemologia hermenêutica? Por que a racionalidade hermenêutica se justifica como epistemologia apropriada para refletir sobre os processos, as transformações e as implicações das TICs nos processos formativos?
A hermenêutica se justifica como referencial epistemológico, para se pensar na e dizer a realidade a partir da utilização das TICs na educação, porque ela consegue operacionalizar conceitos que esclarecem a dimensão plural da realidade, promovida pelos próprios avanços tecnológicos e pela difusão dos meios de comunicação de massa. Em uma sociedade que se caracteriza por ser comunicacional e interligada por redes digitais, não há mais espaço para uma compreensão unitária do mundo e muito menos da educação. Sobre o papel epistemológico da hermenêutica, na sociedade comunicacional-digital, Nering, citando o pensamento de Boaventura de Souza Santos afirma que aquela deve
criar uma forma de conhecimento, ou melhor, uma configuração de conhecimentos que, sendo prática, não deixe de ser esclarecida e, sendo sábia, não deixe de estar democraticamente distribuída. Isto, que seria utópico no tempo de Aristóteles, é possível hoje graças ao desenvolvimento tecnológico da comunicação que a ciência moderna produziu
(NERING, 2015, p. 59-60).
Nesse sentido, por meio da racionalidade hermenêutica aplicada às TICs na educação, é possível promover o desnivelamento do discurso (NERING, 2015) onde os diversos tipos de discurso que existem na sociedade não sejam concebidos hierarquicamente superiores uns aos outros, haja vista que nenhum discurso pode dizer a totalidade. Os hipertextos são exemplos desse processo de desnivelamento do discurso (NERING, 2015, p. 62). Outro importante elemento que a hermenêutica pode promover sua compreensão a partir das contribuições das TICs nos processos educativos é a superação da dicotomia contemplação/ação (NERING, 2015). Para uma compreensão do desenvolvimento tecnológico que a sociedade comunicacional e digital não é mais razoável e exequível uma separação entre teoria e prática como conceberam os gregos, ou pela redução da teoria (conhecimento) à prática (tecnologia) no domínio e na transformação da natureza como fizeram os modernos. A hermenêutica pode fornecer bases conceituais que permitam uma renovação na relação entre teoria, técnica e ação. Como sugere Nering,
se considerarmos a própria noção de tecnologia da ciência, é possível partir de um aparelho tecnológico com o qual um indivíduo tenha contato e fazê-lo alcançar por meio dele o conhecimento científico associado à teoria ou à técnica científica. Isso porque o saber prático é inerente ao “homem ordinário”, faz parte do seu cotidiano e, dessa forma, o saber científico poderia novamente ser dissolvido no senso comum
(2015, p. 64).
Um último elemento a ser compreendido pela racionalidade hermenêutica seria o equilíbrio entre adaptação e criatividade (NERING, 2015). Os avanços tecnológicos da sociedade digital têm, em certa medida, limitado a autonomia humana ante as possibilidades do mundo do consumo, o que acaba promovendo atitudes, quer individuais, quer de grupo, de aspectos mais de adaptação do que de criação. A tecnologia não pode tornar os indivíduos reféns de si mesma ao custo da preservação de suas identidades pessoais e sociais, é preciso encontrar um equilíbrio entre a adaptação e a criatividade, por meio de uma compreensão adequada sobre técnica (NERING, 2015, p. 71-72).
Com o avanço das técnicas, no início do período moderno, a produção de consumo leva o homem à comodidade de ações que impelem à adaptação, ao conformismo e à dependência. Para Santos (1990, p. 49) “constituíram-se ciências, desenvolveram-se tecnologias, criaram-se instituições para ensinar a exercitar o seu poder adaptativo”, as quais distanciam as ações humanas da criatividade, ao tempo que se privilegia a formação baseada em atividades de cunho adaptativo.
No panorama das TICs, a racionalidade hermenêutica compreende o equilíbrio entre adaptação e criatividade, a partir da ciência que privilegia as consequências. Em Santos (1990, p. 49), “uma prática assim entendida saberá dar à técnica o que é da técnica e à liberdade o que é da liberdade”.
No entendimento de Santos (1990), a racionalidade hermenêutica transita para uma epistemologia pragmática, que tem, em Dewey, uma concepção de verdade consequencialista apontada aos acontecimentos futuros. Desse modo, a verdade não está ligada a uma determinada ideia, mas à dinâmica do acontecer futuro, pois o conhecimento caminha para o conhecer como prática social.
Considerações finais
É fato incontestável que as novas TICs provocaram mudanças radicais e substanciais no desenvolvimento da história humana, na contemporaneidade, por meio da potencialização dos processos de globalização, quando a serviço dessa, interconectou o mundo através das redes globais de comunicação. Essas mudanças não tardaram a ser percebidas na educação. Nesse setor, as mudanças também vieram acompanhadas de dificuldades conceituais, pois os conceitos operacionalizados pela educação mostraram-se inexequíveis para uma compreensão teórico-metodológica adequada do fenômeno tecnológico na atualidade. Os processos dinâmicos de interação, no compartilhamento de informações e conhecimentos, que extrapolam os limites geográficos e culturais dos indivíduos dos mais longínquos rincões, requerem, no âmbito dos processos educativos, uma abordagem epistemológica que, prescindindo da racionalidade científica baseada em procedimentos empírico-formais, amplie a compreensão das novas tecnologias como instrumentos adequados e situados no fluxo da história, capazes de subsidiar o homem contemporâneo a pensar na e dizer a realidade que o circunda.
Nesse sentido, pretendeu-se apresentar a hermenêutica como alternativa epistemológica viável para a compreensão das novas tecnologias no âmbito da educação. Por não se limitar a uma visão maniqueísta de “prós e contras” da utilização de tais tecnologias na educação, a hermenêutica constitui-se uma racionalidade, cujas bases epistemológicas e metodológicas permitem uma compreensão mais apropriada das novas tecnologias dentro do ambiente descontínuo e plural do mundo contemporâneo.
Esse, na seara da educação, caracteriza-se por produzir e operacionalizar, com as competências e habilidades de um saber destotalizado, num ambiente comunicacional, cada vez mais se interliga por meio de redes digitais. Ao assentir que a capacidade de conhecer do ser humano é o modo-de-ser do homem no mundo, e que é através desse modo histórico de ser que ele projeta o sentido do mundo e de si mesmo, a hermenêutica afirma que o conhecimento da tecnologia implicará, também, o conhecimento do ser do sujeito nesse mundo tecnológico. Aplicada à educação, voltar-se para compreender as tecnologias da informação e comunicação é, em certa medida, voltar-se para compreender a natureza do homem atual, que se caracteriza pela técnica (Heidegger). Ou seja, a hermenêutica se coloca como instrumento capaz de clarificar os novos horizontes de significados trazidos pelas novas TICs ao mundo contemporâneo, buscando a compreensão do ser desse ser humano que emerge dos instrumentos e processos tecnológicos. Pela reflexão hermenêutica, ao interpretar o mundo, em sua dinâmica tecnológica, o homem nada mais pretende do que encontrar seu significado como parte desse mesmo mundo.