Introdução
Ao analisar particularmente a formação inicial de pedagogos, refletimos e problematizamos: A universidade vem se constituindo como um espaço estimulante de impulsos lúdicos dos estudantes? De que forma? Como ampliar o universo poético no meio universitário, particularmente, em um curso de Pedagogia? Quais são as fontes de produção de saberes no campo de conhecimento artístico, posto que o currículo do curso de Pedagogia não tem a pretensão única de aprofundar estudos em arte? Essas são questões que precisam ser refletidas pelos professores universitários em suas ações docentes cotidianas, visando à construção de caminhos criativos e estimulantes à aprendizagem dos discentes. Para essas reflexões, partimos das ideias de Schiller (2009, 2011) que traz a noção de impulsos lúdicos como um terceiro impulso do homem que é resultado do equilíbrio entre o impulso sensível (natural) e o formal (racional), instituindo-se, com isso, um processo de educação estética. Essa, por sua vez, é entendida, nos limites deste trabalho, com base no referencial schilleriano, como a busca contínua do aperfeiçoamento e da beleza nas diversas manifestações da vida. Uma busca que intenta transformar a relação entre os objetos dos dois impulsos humanos, o formal (manifestado na forma) e o sensível (manifestado na vida/natureza) em forma viva, gerando, com isso, este terceiro impulso: o lúdico (manifestado na liberdade criadora), que tem, pois, como objeto, a beleza. As ideias de Schiller sobre educação estética – cabe assinalar – constituem a base primordial para todas as proposições feitas posteriormente por outros autores.
Descobrimos a importância e a necessidade de educação estética com base nas próprias experiências, pessoais e profissionais, de experimentações estéticas a partir da formação teatral, de momentos de apreciação e fruição artísticas, de ampliação de nosso repertório cultural, etc. ao longo da vida. Vimos dilatada nossa sensibilidade estética no exercício dessas experiências e, consequentemente, detectamos a ampliação de nossa percepção sobre o mundo. Nesse sentido, guiamos nossos estudos e intervenções educativas, criando possibilidades aos alunos tanto no sentido de vivenciarem como de refletirem sobre experiências estéticas, focalizando, particularmente, o caminho das artes. Por perceber que tais experiências são transformadoras e, por isso, também educativas, é que defendemos esse conjunto de saberes.
Friedrich Schiller (1759-1805), poeta, filósofo e historiador alemão é considerado, ao lado de Goethe, um dos grandes literatos do século XVIII, sendo representante do Romantismo alemão e do Classicismo de Weimar.3 Em suas obras literárias e filosóficas, são referendados valores iluministas de cunho humanista, racionalista e de certa exaltação da classe burguesa. Apesar desse contexto em que sua produção se situa, e que, consequentemente, guia suas concepções, não se pode diminuir a relevância e a potência de algumas de suas ideias a respeito de educação estética, o que o torna, ainda hoje, tão vivo, dada a necessidade premente de criação de uma cultura estética, através de um projeto educativo aliado às artes – sob pena de se ver ampliado o estado de barbárie em que se encontram as sociedades atuais, principalmente num contexto em que vivenciamos uma crise de consciência e de ética. Como também nos alerta Adorno,
em cada situação em que a consciência é mutilada, isto se reflete sobre o corpo e a esfera corporal de uma forma não-livre e que é propícia à violência. Basta prestar atenção em certo tipo de pessoa inculta como até mesmo a sua linguagem – principalmente quando algo é criticado ou exigido – se torna ameaçadora, como se os gestos da fala fossem de uma violência corporal quase incontrolada
([2003], p. 125-126).
A noção de barbárie vivenciada hoje remete, pois, a uma lógica irracional, inconsciente, sendo que é somente por meio de uma educação estética que se conseguiria avançar socialmente e constituir um contexto sociocultural mais humanizado.
A nosso ver, as proposições de Schiller ainda respondem a algumas de nossas indagações e anseios. Mas como se efetivaria a contribuição de um filósofo alemão do século XVIII para reflexões sobre educação estética numa universidade do Brasil, no século XXI? Buscando dar conta desse questionamento, apontamos às noções schillerianas de artista-pedagogo e político, impulsos sensível-formal-lúdicos, estado estético, cultura estética, professor orador e poeta e ainda espírito nobre como ideias tão importantes quanto imprescindíveis ao processo de reflexão sobre a formação das pessoas e à transformação cultural na atualidade.
1. Schiller e o constructo de Impulsos lúdicos: tentativas de transposição de suas ideias aos dias atuais
O legado de Schiller é permeado por uma lógica de interligação e equilíbrio contínuos entre elementos distintos como: sentir e pensar; matéria e forma; sentimento e princípios. Para o filósofo, esses elementos constituem o homem em igualdade e medida.4 Nessa direção, o belo e a arte interligam-se intimamente no homem físico e moral; os impulsos sensível (natural) e formal (racional) equilibram-se no impulso da beleza (estético), o que ele chama de “impulso lúdico”. Com base nesse impulso, os impulsos vitais – sensível e formal – implicam-se e se entrelaçam tanto no ânimo como no pensamento. A constituição estética, que se dá com esse processo, tende a gerar conquista de autonomia e de liberdade no fazer-se humano.
Especialmente as obras de Schiller intituladas Cultura estética e liberdade (2009) e A educação estética do homem (2011),5 que são compostas de uma série de cartas, estão aqui apresentadas em meio às discussões sobre a emergência de um aprofundamento na formação de pedagogos no que diz respeito à sua educação estética. As referidas cartas foram escritas por Schiller em meio ao seu forte sentimento de decepção e revolta com o andamento da Revolução Francesa,6 que degenerou em violência e barbárie. Para ele, com seu olhar imerso num espírito burguês, esse movimento sociocultural e político era dotado de grandes ideais, porém, encontrou um povo “pequeno”, sem capacidade para fazer valer tais ideais. Com essa visão, Schiller faz a crítica ao contexto político-cultural de sua época, construindo um contraponto baseado na ideia de se atingir um estado estético para a humanidade.
Em sua defesa da necessidade de criação de outra cultura, é preciso que se construa um projeto permeado por princípios estéticos capazes de gerar o enobrecimento do caráter, para que se atinja, a partir daí, a liberdade no seio da sociedade. É que, para Schiller, para se chegar a tal estado de liberdade, são necessárias a formação e a conquista de um caráter nobre, belo, e isso requer um processo de educação estética das pessoas, sendo nobre “[...] toda a forma que imprime o selo da autonomia àquilo que, por natureza, apenas serve (é mero meio). Um espírito nobre não se basta com ser livre; precisa pôr em liberdade tudo o mais à sua volta, mesmo o inerte” (2011, nota, p. 111). É, pois, a educação estética que nos ensina a desejar nobremente, proporcionando o refinamento do gosto. Essa educação tem como elemento propulsor imprescindível a arte. Além do que, é com um estado de liberdade que a arte é criada. Nessa direção, ele afirma que “a arte é uma filha da liberdade” (2009, p. 71).
Sobre as consequências para os homens da degeneração da cultura, ele enfatiza: “Quando uma cultura degenera, ela transita a uma corrupção de espécie bem mais maligna do que a barbárie jamais poderá experimentar. O homem sensível não pode precipitar-se a um nível mais baixo que o animal [...]” (SCHILLER, 2009, p. 76).
Schiller atribui à totalidade de caráter a ideia de belo, que representa um estado de liberdade atingido pelo homem: “É preciso, portanto, encontrar totalidade de caráter no povo, caso este deva ser capaz e digno de trocar o Estado de privação pelo Estado de liberdade” (2011, p. 31). Junte-se a isso o fato de que Schiller enfatiza a necessidade de formação de um espírito nobre que, para ele, tende a proporcionar melhoria política:
Toda melhoria política deve partir do enobrecimento do caráter – mas como o caráter pode enobrecer-se sob a influência de uma constituição estatal bárbara? Para esse fim seria preciso encontrar um instrumento que o Estado não fornece, e abrir fontes que se conservem limpas e puras apesar de toda a corrupção política [...] este instrumento são as belas-artes; estas fontes nascem em seus modelos imortais
(SCHILLER, 2011, p. 47).
Com isso, em Schiller, temos que o desenvolvimento cultural é imprescindível à constituição de um estado estético. A cultura tem dupla incumbência: a de resguardar a sensibilidade das intervenções de liberdade, cultivando a faculdade sensível; e a de defender a personalidade contra o poder da sensibilidade, pelo cultivo da faculdade racional. O impulso sensível constitui casos (singulares) e o impulso formal fornece leis (de caráter universal). Para ele, o impulso sensível precede ao formal na atuação. É preciso haver uma ação recíproca entre esses dois impulsos, uma inter-relação de equilíbrio, “[...] em que a eficácia de cada um ao mesmo tempo funda e limita a do outro” (SCHILLER, 2011, p. 69), sendo tal reciprocidade tarefa da razão. A ação recíproca entre os dois impulsos resulta no impulso lúdico. Esse impulso expressa a consciência da liberdade e capacidade de sentir a existência. Proporciona ao homem perceber-se como matéria e se conhecer como espírito. O exercício do impulso lúdico, em que os impulsos formal e sensível atuam juntos, “[...] imporá necessidade ao espírito física e moralmente a um só tempo; pela supressão de toda contingência ele suprimirá, portanto, toda necessidade, libertando o homem tanto moral quanto fisicamente” (SCHILLER, 2011, p. 70). Esse impulso de energia unificadora
[...] tornará contingentes tanto nossa índole formal quanto a material, tanto nossa perfeição quanto nossa felicidade; justamente porque torna ambas contingentes, e porque a contingência também desaparece com a necessidade, ele suprime a contingência das duas, levando forma à matéria, e realidade à forma. Na mesma medida em que toma às sensações e aos afetos a influência dinâmica, ele os harmoniza com as ideias da razão, e na medida em que despe as leis da razão de seu constrangimento moral, ele as compatibiliza com o interesse dos sentidos
(SCHILLER, 2011, p. 70-71).
Em linhas gerais, temos que o objeto do impulso sensível é a vida; o objeto do impulso formal é a forma; o objeto do impulso lúdico é a forma viva, representada pela beleza. A forma viva é, assim, “[...] um conceito que serve para designar todas as qualidades estéticas dos fenômenos” (SCHILLER, 2011, p. 73). O belo, tido como forma viva em Schiller, constitui-se como jogo ou impulso lúdico: “A beleza realmente existente é digna de impulso lúdico real; pelo ideal de beleza, todavia, que a razão estabelece, é dado também como tarefa um ideal de impulso lúdico que o homem deve ter presente em todos os seus jogos” (2011, p. 75). Nessa direção, a criação e a fruição artísticas são um forte elemento de estímulo aos impulsos lúdicos no homem, pois ela busca o belo na conjunção dos impulsos formal e sensível.
O desenvolvimento do impulso lúdico dá-se com o estímulo dos sentidos humanos; é pela sensação em relação, ou em jogo com a realidade, que esse emerge: “Tão logo comece a fruir com o olho e o ver alcance para ele um valor autônomo, ele é já também esteticamente livre, e o impulso lúdico se desenvolveu” (SCHILLER, 2011, p. 125). Esse impulso se apraz na aparência e tem o impulso mimético como a sequência de seu desenvolvimento, sendo esse gerador de capacidade de captar e imitar o que é tido como belo. Dentro da perspectiva retrocitada, tem-se que serenidade, liberdade de espírito, força e energia são elementos elencados por Schiller que, combinados entre si, proporcionam verdadeira qualidade estética, sendo que, para ele, esses elementos podem ser fortemente estimulados pela arte.
2. Educação estética na formação universitária de pedagogos
Tomando como base o olhar schilleriano, tecemos algumas considerações sobre a necessária investida da universidade na formação inicial de docentes, voltada à educação estética dos mesmos. Iniciamos com a assertiva de que, no referente à educação estética, a experiência é algo imprescindível para a composição de saberes e a aprendizagem dos signos artísticos que, com os constantes processos de apreciação, fruição e criação, exerce-se a chamada experiência estética, uma progressiva apreensão dos símbolos presentes nas obras, representando “[...] sentidos, sentimentos e vivências pertinentes ao nosso acervo de experiências vitais” (DUARTE JÚNIOR, 2010, p. 43). A universidade, como espaço de formação pessoal e profissional, configura-se como um locus formativo bastante fértil para possibilitar uma educação estética, seja no âmbito do ensino, seja no da pesquisa e/ou da extensão. Para tanto, essa instituição precisa refletir e elaborar um projeto pedagógico que traga tal intenção educativa ao exercício cotidiano de suas ações, visando a desenvolver a criação de uma cultura estética.
A formação inicial de pedagogos, realizada no contexto universitário, tem a possibilidade de oferecer um repertório ampliado de saberes (MORAES; THERRIEN, 2018) no processo formativo desses, pois a própria composição da política de Ensino Superior estabelece, em suas legislações educacionais,7 uma multiplicidade de componentes curriculares envolvendo o ensino, a pesquisa e a extensão e é no exercício de atividades integradas desse tripé que muitas experiências estéticas envolvendo artes, podem se desenvolver. Em tais legislações, aponta-se a necessidade de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão como ação imprescindível ao processo de formação profissional, pois esse tripé universitário, quando bem-articulado, pode proporcionar aprendizagens significativas nos diferentes sujeitos do processo ensino e aprendizagem. Com isso, “[...] a pesquisa e a extensão, em interação com o ensino, com a universidade e com a sociedade, possibilitam a relação entre teoria e prática, a democratização do saber acadêmico e o retorno desse saber à universidade, testado e reelaborado” (DIAS, 2009, p. 39-40). Observamos que a extensão e a pesquisa universitárias tendem a mobilizar saberes e aprendizagens diversas e até diferenciadas do que comumente é feito nas atividades de ensino em sala de aula, pois, nas duas primeiras, há uma inclinação maior para as realizações de intercâmbio com outros agentes e instituições fora da universidade, bem como para a criação e a formação artísticas, políticas, etc. Com isso, vê-se o quanto as ações integradas entre pesquisa, extensão e ensino são essenciais, pois ampliam as possibilidades formativas dos estudantes e tendem, assim, a gerar um processo de educação integral, o que abrange também a educação estética. E, para os pedagogos, a educação integral precisa ser assegurada, pois esses irão exercer ações pedagógicas diversas e precisam adquirir um amplo e denso repertório de saberes (MORAES; THERRIEN, 2018).
As Diretrizes Curriculares Nacionais Para o Curso de Pedagogia (BRASÍLIA/CNE, 2006), em seu art. 3º, apontam como informações e habilidades a serem assimiladas pelo estudante de Pedagogia, na sua formação inicial, saberes que envolvem, dentre outros aspectos, as sensibilidades afetiva e estética. E, ao tratar do que precisa conter no Núcleo de Estudos Básicos de cada currículo de curso, o art. 6º (itens e; k), inciso I desse documento também faz referências a respeito de uma base estética na formação do pedagogo. Analisando as diretrizes, tem-se que elas exigem que o Projeto Político-Pedagógico (PPP) de todos os cursos de Pedagogia do País se adequem às novas determinações para a formação docente dos professores; apontam, ainda, a elementos norteadores, imprescindíveis à implementação de um projeto permeado de intenções claras de uma educação estética dos pedagogos. As referidas diretrizes propõem saberes que privilegiam a educação estética, o que expressa um grande avanço no que tange à possível valorização desse campo de conhecimento na formação universitária. Junte-se a isso a intenção da atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996, que traz a obrigatoriedade do ensino de arte (como dispositivo mobilizador e essencial à formação estética) na Educação Básica, como continuidade da presença desse campo no currículo escolar desde a LDB de 1971. Para que isso ocorra, é necessário, entretanto, que haja profissionais (professores formadores) com um nível de formação capaz de perceber a importância da educação estética e artística no âmbito do Ensino Superior – lócus primordial de formação de professores – bem como um investimento financeiro e material, aliado a um contexto político-pedagógico favorável a esta efetivação.
As citadas proposições abrangem uma série de saberes que podem fazer parte de um projeto de educação estética, caso seja realmente pensado e realizado na universidade. Com esse empreendimento educativo, as possibilidades de estímulos criadores dos impulsos lúdicos das pessoas tenderão a se ampliar.
3. Formação universitária de pedagogos e estímulos a impulsos lúdicos
Os saberes gerados na universidade, comumente, enfatizam aspectos racionais em detrimento de outras dimensões humanas. Constatamos, entretanto, que esse monopólio da razão não é tão absoluto ou estático, pois há algumas ações e sujeitos que transgridem o lugar da mera racionalidade. A dimensão poética (apreendida como o ato de alguém produzir ou realizar algo de modo criativo, singular e livre) vem – mesmo que às vezes de modo pontual – sendo exercida, na universidade, como ações informais, como atividades extensionistas ou mesmo disciplinares, apesar de que esse exercício ainda ocupa um espaço muito reduzido se comparado com o conjunto de saberes científicos, de caráter objetivista e racionalista.
No referente à formação inicial do pedagogo, a atuação polivalente, nos anos iniciais do Ensino Fundamental que lhe é exigida precisa, também, ser minuciosamente problematizada tanto no que se refere às possíveis lacunas deixadas por essa formação inicial – podendo ser sentidas quando esse profissional se depara com as diversas demandas socioeducativas – quanto pela perspectiva generalista que o currículo do curso de Pedagogia exerce nessa formação inicial, ocasionando, muitas vezes, a posterior busca por habilitações em disciplinas específicas. O pedagogo, no âmbito de sua atuação polivalente, nos anos iniciais do Ensino Fundamental poderá ministrar, dentre outras, a disciplina de “Arte”. Acreditamos ser imprescindível a universidade pensar a respeito disso ao exercer o processo de formação de pedagogos, pois esses terão que responder também a demandas de ensino na escola no referente ao universo de saberes e práticas artísticas. Nessa perspectiva, a universidade, como locus de formação de pedagogos, não pode negligenciar seu papel no que tange à formação estético-artística desses profissionais, que atuam diretamente na escola. O pedagogo, entretanto, não precisa, necessariamente, se tornar um artista, mas deve possuir conhecimentos – amplo repertório – artístico e cultural por meio de experimentações, apreciações e análises estéticas e históricas sobre obras de arte. Com esse repertório, ele terá mais apropriação de elementos para mobilizar saberes referentes às artes na escola e em outros espaços educativos.
Sabendo que estudantes universitários trazem consigo um repertório de saberes, é válido reforçar a necessidade de valorização desse repertório nos processos de ensino e aprendizagem, na direção de um ensino contextualizado, dotado de sentidos para os estudantes. Mas é necessário que ele seja ampliado no sentido de se proporcionar o estímulo à formação equilibrada entre os impulsos formal e sensível. Para tanto, a receptividade dos conhecimentos do mundo precisa estar em estado ativo, e isso requer autonomia. A respeito dessa necessária busca de ampliação do repertório de saberes, Schiller (2011, p. 64) ressalta: “Quanto mais facetada se cultiva a receptividade, quanto mais móvel é, quanto mais superfície oferece aos fenômenos, tanto mais mundo o homem capta, tanto mais disposições ele desenvolve em si [...]”. E acrescenta que “[...] quanto mais força e profundeza ganha sua personalidade, quanto mais liberdade ganha sua razão, tanto mais mundo o homem concebe, tanto mais forma cria fora de si”. O filósofo sugere que, para aperfeiçoar seu nível cultural, o homem precisaria abrir-se aos
mais multifacetados contatos com o mundo e elevar ao máximo a passividade do sentimento; [...] conquistar para a faculdade determinante a máxima independência com relação à receptiva e ativar ao extremo a atividade da razão. Quando as duas qualidades se unificam, o homem conjuga a máxima plenitude de existência à máxima independência e liberdade, abarcando o mundo em lugar de nele perder-se e submetendo a infinita multiplicidade dos fenômenos à unidade de sua razão
(2011, p. 64).
Compreendemos que a formação estética de estudantes de Pedagogia é essencial para seu futuro exercício docente, pois aguçar as sensibilidades criativa, artística e sensorial desses através da arte, tende a possibilitar a criação de um arsenal amplo de ações pedagógicas e percepções diversas sobre as coisas que os envolvem, gerando, assim, educadores mais antenados e sensíveis ao desenvolvimento de crianças e adolescentes. Vale lembrar, ainda, que, com a existência da obrigatoriedade legal do ensino de Arte nas escolas, a aprendizagem e o consequente domínio do campo das artes na educação é mais uma exigência ao pedagogo, o que espera dele uma postura flexível e, ao mesmo tempo, complexa; uma maleabilidade pedagógica nos termos de Moura.
Junto com uma abordagem mais integrativa do corpo nos processos de ensino-aprendizagem, a arte também possuiria um papel importantíssimo na construção dessa maleabilidade pedagógica. As vivências em arte e com diversos materiais e texturas junto aos estudantes das várias licenciaturas, não somente com os estudantes das quatro linguagens artísticas (Dança, Teatro, Música, Artes Visuais), têm o duplo papel de sensibilização do corpo para produção de calor corporal e para sua abertura ao outro
(2012, p. 164).
O autor ressalta, ainda, que a apreensão da arte como linguagem e também como recurso didático “[...] provoca nos estudantes insights ou ideias sobre como podem produzir táticas, estratégias, experimentos e práticas pedagógicas e culturais a partir do uso do corpo, dentro de suas áreas específicas de ensino ou em parceria com colegas de outras [áreas]” (MOURA, 2012, p. 164).
Nessa direção, investimos na discussão e na criação de ações proponentes de uma educação estética no âmbito da formação de pedagogos, além, é claro, da construção contínua de uma autoformação. Assim, ao realizarmos um trabalho docente, no âmbito da universidade, vamos nos constituindo, no sentido formativo atribuído por Freire (1996), com a ideia de que, quando educamos, também nos educamos numa relação contínua e recíproca. Além disso, temos claro que o espaço universitário foi para nós, e precisa ser para nossos alunos, um lugar de riqueza de saberes, valorização de singularidades humanas, além de precisar ser dotado de uma forte alegria cultural – nos termos de Snyders (1995) – necessária à receptividade no processo de ensino e aprendizagem. A alegria cultural expressa uma energia necessária ao ânimo para a busca do saber, no âmbito da formação inicial. Na concepção de Snyders, ela é: “Alegria de progredir, de sentir que se está progredindo, de se superar, de compreender melhor, de alcançar realizações cada vez mais difíceis, cada vez mais pessoais” (SNYDERS, 1995, p. 25). Sua preocupação com a alegria do estudante, no meio universitário, diz respeito às alegrias advindas do estudo, do conhecimento, da pesquisa, bem como do relacionamento com professores e colegas, pois as mesmas tenderão a proporcionar ao estudante motivações e mobilizações imprescindíveis à sua formação humana e profissional. Para o referido autor, o espaço universitário precisa seduzir e envolver o estudante na busca do conhecimento, evitando-se que ele caia nas armadilhas da apatia e da desistência: “[...]. A universidade pode oferecer o admirável aos estudantes, mesmo que eles estejam às voltas com a precariedade de seu destino” (SNYDERS, 1995, p. 11). Snyders ressalta, ainda, que a universidade é um espaço formativo importante tanto no sentido de profissionalização como também afetivo, estético, cultural; “[...] para muitos jovens esses poucos anos de Universidade constituem um período crucial, e a expectativa e, depois, a descoberta dessa cultura, desses ensinamentos, desses colegas marcaram uma das reviravoltas decisivas de sua vida – e não raro um período de alegria” (SNYDERS, 1995, p. 8).
Valorizar o cotidiano do estudante dentro da universidade, em seu processo formativo, é ao que Snyders busca dar visibilidade:
[...] que ele não seja vivido como simples passagem, muito menos como sensaboria, enfadonha necessidade que se justificaria unicamente pela obrigação de pensar no futuro, na preparação profissional; a época da faculdade não pode ser reduzida a vários anos fazendo ante-sala: o estudante seria uma larva recém-nascida à espera do momento de metamorfosear-se em brilhante inseto de cinquenta anos”
(SNYDERS, 1995, p. 9).
Na universidade e em qualquer outro espaço social, a arte é fundamental, pois traz as imagens primeiras, dá visibilidade à capacidade de imaginação humana e materializa o que Schiller (2011) intitula de “forma viva”, por meio do jogo – exercido pela relação emoção-razão. Para Barbosa (2011, p. 37-38), a percepção dessa relação intrínseca entre razão e emoção, que subsidia o ato imaginativo, representa um grande mérito de Schiller: “Um dos maiores méritos filosóficos de Schiller foi o de ter tentado mostrar como essas faculdades remetem umas às outras no interior das diferentes esferas e como tais esferas se articulam num todo.”
O mundo contemporâneo está encharcado de imagens prontas que não favorecem o exercício da imaginação, o que pode comprometer a criatividade, a originalidade. Como a universidade vem respondendo a essa problemática? Será que a arte, na universidade, vem repetindo a lógica muitas vezes presente nas escolas, de apreender as produções artísticas como mero produto de consumo, para enfeitar ou alegrar eventos? Cabe aos professores universitários, principalmente os que exercem atividades artístico-formativas, refletirem sobre as concepções existentes na universidade acerca desse campo do conhecimento. A valorização do processo de criação e de aprendizagens artísticas precisa ser percebido como o essencial, o mais importante, pois é na complexidade de tal processo que as pessoas se dilatam, crescem em relação à apreensão de saberes, à percepção sensível das coisas, à autoconsciência corporal, ao desenvolvimento, portanto, do senso estético. Toda essa experiência estética constitui-se como um processo que envolve elaboração, sublimação e fruição.
Temos a compreensão de que todo docente precisa sentir-se e vivenciar continuamente a experiência de ser discente, para referir-se às ideias de Freire (1996), no sentido da dimensão investigativa e crítica que ele precisa assumir na construção de saberes essenciais para suas ações pedagógicas:
Ensinar inexiste sem aprender e vice-versa e foi aprendendo socialmente que, historicamente, mulheres e homens descobriram que era possível ensinar. [...] Quando vivemos a autenticidade exigida pela prática de ensinar-aprender, participamos de uma experiência total, diretiva, política, ideológica, gnosiológica, pedagógica, estética e ética, em que a boniteza deve achar-se de mãos dadas com a decência e com a seriedade
(1996, p. 23-24).
Para os professores universitários essa prerrogativa é fundamental, pois, como contribuir na formação de pedagogos sem uma boa educação estética? Nesse rumo, Freire (1996) defende a necessidade de criação de uma cultura estética a favor da constituição de uma cultura ética (TREZZI, 2011). Essa defesa nos remete a uma aproximação das ideias do referido educador com Schiller; esse, por sua vez, acredita que, se a educação estética,
[...] por um lado [...] desarma a rude violência da natureza e relaxa a animalidade, se por outro lado desperta a força auto-ativa da razão e torna veraz o espírito, então (e também somente então) está apta a servir de instrumento para a formação ética. Este duplo efeito é o que exijo incansavelmente da cultura bela e para o qual ela encontra também no belo e no sublime os instrumentos necessários
(2009, p. 105-106).
Consideramos de grande relevância a figura do artista-pedagogo e político, conceito utilizado por Schiller (2011) e que designa o educador que cuida de sua matéria, o homem, tanto objetiva como subjetivamente, via processos educativos, com a intenção de promover uma educação estética. É o artista-pedagogo e político, “[...] que faz do homem ao mesmo tempo seu material e sua tarefa” (p. 30). Esse precisa cuidar de sua matéria – sua especificidade e personalidade, “[...] não apenas subjetivamente, para um efeito ilusório sobre os sentidos, mas objetivamente e para a essência interna” (2011, p. 30-31). Nessa direção, ele defende a necessária formação estética e integral do homem, ressaltando: “Se o homem interior é uno consigo, ele salva sua especificidade mesmo na mais alta universalização do seu comportamento, e o Estado será apenas o intérprete de seu belo instinto, a fórmula mais nítida de sua legislação interna [...]” (2011, p. 31). A ideia de ser uno consigo remete à presença de autonomia e singularidade no perfil desse homem. E, como atingir esse estado de singularidade? Pela educação dos sentidos, ou educação estética, reforça o filósofo. O artista-pedagogo e político, sendo um mediador da educação estética das pessoas, teria a atribuição de colaborar com a formação delas, tendo em vista a criação de estímulos que potencializem os impulsos lúdicos ou impulsos estéticos, que dão sentido às formas, ou, para utilizar os termos schillerianos, criam forma viva com a integração entre o impulso sensível (vida) e o impulso formal (forma) (SCHILLER, 2011). Esse artista-pedagogo e político precisa, pois, exercer ação contínua em seu trabalho de educação estética, com o intuito de contribuir para o aperfeiçoamento dos homens e impulsionar seus impulsos lúdicos. Nessa direção, Schiller elabora, ainda, a imagem do mestre na boa apresentação, o que nos remete à ideia de um professor dotado de senso estético:
Um mestre da boa apresentação tem, pois de possuir a habilidade de transformar a obra da abstração instantaneamente numa matéria para a fantasia, converter conceitos em imagens, dissolver conclusões em sentimentos e esconder a rigorosa conformidade à lei do entendimento sob uma aparência de arbitrariedade
(2009, p. 129-130).
Ele classifica ainda, três perfis de professor diante da produção de conceitos e ao trabalho pedagógico: 1) o Dogmático: que impõe seus conceitos; 2) o Socrático: que os tira de nós; 3) o Orador e Poeta: dão-nos a oportunidade de criá-los com aparente liberdade a partir de nós mesmos (SCHILLER, 2009, p. 132). Interessante é essa ideia de professor Orador e Poeta, em que o professor torna-se dispositivo para estimular a capacidade criadora dos educandos. É essa postura que buscamos defender e exercer, pois, a nosso ver, ela se aproxima mais da perspectiva de educação estética aqui discutida. Schiller trata, ainda, da importância do ânimo em prol da conquista de sabedoria: “Anime-se a ser sábio. Força e energia de decisão são, pois, necessárias para vencer os impedimentos que em parte a indolência natural do espírito e em parte a covardia do coração opõem à recepção da verdade” (SCHILLER, 2009, p. 96). Para ele, a indolência dos homens situa-se num lugar de comodismo, e isso é um grande inimigo da sabedoria. Tal ânimo a que Schiller se refere traduz-se ainda no que ele chama de “virilidade do espírito”, que se fortalece por uma cultura prática: “Esta virilidade do espírito é o objeto da cultura prática, e na medida em que a energia de decisão é, pois necessária para transitar do estado dos conceitos confusos aos conhecimentos mais claros, o caminho à cultura teórica tem de ser aberto pela cultura prática” (SCHILLER, 2009, p. 99). Esse ânimo a que Schiller se refere pode ser bastante estimulado no seio da universidade, espaço afeito ao exercício de uma diversidade de saberes que pode ser apreendida de formas variadas nos âmbitos do ensino, da pesquisa e da extensão. E esse ânimo é também resultado da citada alegria cultural, aclamada por Snyders (1995).
Considerações finais
Schiller delimita historicamente os sinais do advento da humanidade no homem selvagem a partir do momento em que ele passa a cultivar a beleza e a sentir a presença da “alegria com a aparência” e a “inclinação para o enfeite e o jogo” (2011). Essa transformação se aperfeiçoa com o desenvolvimento da cultura que possibilita o despertar de experiências estéticas. O aprofundamento dessas experiências pode ser ampliado na universidade, desde que haja intenções claras que vislumbrem um projeto de educação estética na formação dos pedagogos, intenções essas que já são sinalizadas nas atuais Diretrizes Curriculares Nacionais Para os Cursos de Pedagogia (2006) e em outras proposições já citadas neste texto.
No caso da formação desses profissionais, o documento é essencial para a construção de saberes que mobilizem tanto sua própria percepção estética como a dos educandos com que os pedagogos irão exercer atividades docentes. Na proposta formativa em foco, a figura do artista-pedagogo e político é tomada de Schiller como elemento referencial importante na formação dos pedagogos. Além da ideia de impulso lúdico, que precisa ser estimulado pela universidade, no exercício articulado do tripé ensino-pesquisa-extensão.
Cabe insistir na ideia de que as instituições educativas de Ensino Superior tem o potencial de promover a formação estética das pessoas, mas isso dependerá de suas intenções curriculares presentes nos PPPs e nas ações cotidianas efetivas, visando ao estímulo da percepção e experimentação sensíveis delas. Nessa direção, é importante que professores- formadores (universitários) reflitam, continuamente, sobre a fragmentação e a mortificação do corpo na universidade e sua necessária mobilização, tendo em vista uma intenção séria de educação integral: educar o corpo inteiro. Esse parece ser um trabalho árduo e desafiante que os sujeitos que compõem a universidade precisam abraçar, sob pena de se continuar centralizando os esforços formativos no foco da razão instrumental, esquecendo-se que o ser humano transcende essa dimensão racional e se totaliza no conjunto que envolve também sensações, emoções, espiritualidade.
Na artesania do saber e na constituição do ser docente, muitas vezes, é preciso ousar, exercer o ato de criar, de se contrapor ao instituído. Mas, para tanto, é preciso estudar, apropriar-se do conhecimento; é preciso adquirir repertório no que toca aos fundamentos ou saberes (TARDIF, 2007), sejam eles de experiências e de teorias, sejam eles de sensações, de afetos, etc. E a universidade não pode se omitir de realizar tão nobre empreendimento educativo integral.