Introdução
O objetivo central deste artigo pauta-se pela discussão acerca do processo de violência que envolve a população transgênera no Brasil, explorando a complexa e histórica relação entre gênero e violência e os desafios que esse grupo enfrenta nas diversas instâncias sociais, notadamente no contexto educacional.
Considerando que as questões de transgeneridade e sexualidade estão caminhando a passos lentos nas escolas, são enormes os obstáculos que os transexuais vivenciam para acessar seus direitos e ter sua dignidade respeitada nesse ambiente, sendo recorrentes as manifestações de violência de gênero no cotidiano escolar.
Cabe ressaltar que a violência de gênero é um tipo de violência física, psicológica ou moral exercida contra qualquer indivíduo sobre a base do seu sexo ou gênero e que impacta, negativamente, na sua sociabilidade e identidade. Sua existência e reprodução é fruto da construção de papéis de gênero no âmbito da sociedade capitalista, patriarcal e conservadora. Com base em uma visão biologicista e reducionista, os papéis de gênero foram utilizados para funcionar como um mecanismo de controle sobre os corpos, formas de vida e hierarquias, de modo que, a partir de suas diferenciações, fossem criadas posições que estabelecessem superioridade do homem em relação à mulher e os comportamentos de cada sexo como práticas reguladoras da dinâmica social. Com efeito,
esses discursos legitimam a ordem estabelecida, justificam a hierarquização dos homens e do masculino e das mulheres e do feminino em cada sociedade determinada. São sistemas de crenças que especificam o que é característico de um e outro sexo e, a partir daí, determinam os direitos, os espaços, as atividades e as condutas próprias de cada sexo
(GARCIA, 2011, p. 19).
Nesses termos, os papéis de gênero e a violência que atravessa essa construção perpassam por questões econômicas, sociais e culturais da sociedade burguesa com vistas à manutenção do status quo, à dominação dos homens sobre as mulheres e à continuidade das normas morais e sexuais, inclusive, pela via do casamento heterossexual e da monogamia, sob a premissa de interesses econômicos e de alegações de que os problemas da sociedade moderna resultam das relações familiares tidas como “desestruturadas”. Nesse caso, segmentos conservadores defendem a existência de uma estrutura adequada para a família, isto é, um modelo de sociedade no qual predomina uma ordem patriarcal de gênero, cuja hierarquia e estrutura de poder atravessam as relações sociais. Para Saffioti (2004, p. 122) “nem mesmo homossexuais masculinos e femininos, travestis e transgêneros ficam fora do esquema de gênero patriarcal”.
Nesse contexto, tanto mulheres quanto gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transgêneros ficam à mercê das diferentes formas de violência presentes na sociedade capitalista, muitas vezes camuflada, invisibilizada ou mesmo ignorada por setores massivos da sociedade, ampliando processos de opressão, humilhação e discriminação contra essa população e de forma ainda mais cruel sobre as pessoas trans.
Tendo por base essas reflexões, o presente artigo foi construído por meio de revisão teórica com o fito de reunir informações e aprofundar conhecimentos acerca do objeto estudado. Como esclarece Gil (1999, p. 162), a revisão teórica objetiva esclarecer os pressupostos que fundamentam o trabalho e as contribuições das investigações realizadas sobre o tema estudado, devendo se constituir em uma “discussão crítica do ‘estado atual da questão’”.
Diante disso, este texto situa historicamente o debate em torno de questões de gênero, buscando compreender essas formas de violência e suas manifestações nas instituições, sobretudo no ambiente da família e da escola. Nessa perspectiva, apresenta-se, inicialmente, a evolução histórica em torno da compreensão do conceito de gênero tanto o plano teórico quanto as repercussões no movimento feminista. Destacam-se, no debate teórico, as contribuições de Stoller (1968) e de Butler (2009) distinguindo sexo e gênero e mostrando ambos carregados de uma performatividade, com manifestações distintas em diferentes contextos e épocas. Ao tratar o gênero não mais como um atributo fixo, mas como uma variável fluida, abre-se espaço para uma análise da cisnormatividade e as consequentes manifestações de violência contra a comunidade trans na atualidade, a começar no próprio ambiente familiar. Finalmente, se prioriza a análise de situações de violência contra a comunidade trans nas instituições escolares, realçando, a partir das contribuições da sociologia da educação de Bourdieu (2003), a ambiguidade da escola, como locus privilegiado de desenvolvimento do sujeito e da sociedade, mas também carregado de mecanismos de reprodução e legitimação de uma cultura cisnormativa. Portanto, o objetivo da reflexão proposta é chamar a atenção para a problemática da cisnormatividade, sobretudo no espaço escolar, ponto de partida para a construção de práticas e ambientes mais acolhedores.
1 Gênero e as faces da violência contra a população trans no Brasil
As discussões acerca do conceito de gênero vêm sendo impulsionadas pelo movimento feminista a partir dos anos 70, passando por importantes revisões e mudanças conforme as transformações sociais em curso e os avanços do próprio movimento feminista. Tais discussões apresentam o capitalismo e o patriarcado como molas propulsoras da opressão sobre a mulher e como mecanismos reprodutores de desigualdades, sobretudo as de gênero e, como consequência, da violência contra a população transgênera.
O psicanalista norte-americano Robert Jesse Stoller foi o primeiro teórico a criar um conceito de gênero, em 1968, em sua obra Sex and gender. Nesse livro, apresenta um estudo de casos de pessoas intersexo, considerados, à época, hermafroditas ou que tinham os genitais escondidos, evidenciando como eram desenvolvidas as intervenções cirúrgicas com essas pessoas, no intuito de adequar a anatomia genital ao gênero desejado, isto é, ao grupo com o qual se identificavam. Para Stoller (1968) a complexidade não estava em mudar o sexo, mas em compreender o gênero humano. Assim, voltava-se também a estudos antropológicos, para analisar como as identidades sexuais se constituíam e como se dava a expressão dos diferentes papéis de gênero em outras culturas. Após suas contribuições, as feministas passaram a utilizar esse conceito de gênero no desenvolvimento de teses, debates e posições.
Anteriormente aos seus estudos, as pesquisas e produções nessa área apresentavam o conceito de sexo vinculado, eminentemente, a componentes biológicos, referindo-se ao sexo masculino ou ao feminino e aos caracteres fisiológicos que os distinguiam. Contudo, Stoller (1968, s.p.), opõe-se a essa concepção ao enfatizar que essa “definição não abarca certos aspectos essenciais da conduta – a saber, os afetos, os pensamentos e as fantasias – que, mesmo estando ligados aos sexos, não dependem de fatores biológicos”. Daí a utilização do termo gênero,
[...] para designar alguns destes fenômenos psicológicos: assim como cabe falar de sexo feminino e masculino, também se pode aludir à masculinidade e à feminilidade sem fazer referência alguma à anatomia ou à fisiologia. Desse modo, mesmo que o sexo e o gênero se encontrem vinculados entre si de modo inexpugnável na mente popular, este estudo propõe, entre outros fins, confirmar que não existe uma dependência biunívoca e inelutável entre ambas as dimensões (o sexo e o gênero) e que, ao contrário, seu desenvolvimento pode tomar vias independentes
(STOLLER, 1968, s. p.).
Nesse sentido, estava claro para Stoller (1968) que era preciso ampliar a discussão biologicista de sexo, abarcando as dimensões culturais, psicológicas e sociais da sexualidade humana, o que demandava conceitos diferentes. A partir de então, as reflexões sobre gênero, levantadas por ele, foram levadas adiante pelo movimento feminista, diferenciando gênero de sexo e apreendendo o gênero não como determinismo biológico, mas como construção social, visto que “existe uma diferenciação básica entre esses dois atributos, defendendo-se rigorosamente a dimensão social, política e histórica do gênero” (LANZ, 2015, p. 54). Ademais, passou-se a utilizar o termo mulher em oposição ao vocábulo universalizado homem.
Avançando no debate sobre gênero, Judith Butler (2009), em sua obra Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade, traz o conceito de performatividade de gênero e da teoria queer. A autora afirma que gênero nada mais é que uma performance criada ao longo da história da sociedade, em que os indivíduos agem de acordo com o papel que lhe foi designado no nascimento. Assim, segundo a autora,
[...] como estratégia de sobrevivência em sistemas compulsórios, o gênero é uma performance com consequências claramente punitivas. Os gêneros distintos são parte do que “humaniza” os indivíduos na cultura contemporânea; de fato, habitualmente punimos os que não desempenham corretamente o seu gênero. Os vários atos de gênero criam a ideia de gênero, e, sem esses atos, não haveria gênero algum, pois não há nenhuma essência que o gênero expresse ou exteriorize [...]. Assim, o gênero é uma construção que oculta normalmente sua gênese
(BUTLER, 2009, p. 199).
Para essa autora, o sexo, assim como o gênero, não existe fora de seus significados sociais e culturais, já que os padrões de comportamento humano são impressos nos corpos normativamente. Assim, segundo ela, a ânsia de definir o sexo como um sexo em vez de outro advém da “organização social da reprodução sexual, através da construção de identidades e posições claras e inequívocas dos corpos sexuados em relação uns aos outros” (BUTLER, 2009, p. 161).
A demarcação masculino-feminino explicita, nas palavras da autora, a “remodelação da matéria dos corpos como efeitos de uma dinâmica de poder, de tal forma que a matéria dos corpos será indissociável das normas regulatórias que governam sua materialização” (BUTLER, 2003, p. 155). Desse modo, o sexo não se refere a um conjunto de características que alguém possui, mas a uma das normas pelas quais esse alguém é produzido. Seu papel social será definido pelo seu sexo. Ao mesmo tempo que o gênero não deve ser visto como um atributo fixo de uma pessoa, mas como uma variável fluida, que se movimenta temporalmente, apresentando distintas configurações em contextos e épocas diferentes.
Com essa discussão, Butler (2009) questiona o próprio conceito de sexo no seu pressuposto de naturalidade e objetividade, apontando a reflexões críticas acerca da separação de sexo e gênero, indicando uma desnaturalização da diferença sexual pela interrogação do conceito de sexo.
Com esses avanços, esperava-se enfrentar alguns estigmas envolvendo a pessoa trans, pois ciente de que a construção de sua identidade de gênero ocorre socialmente, independentemente de seu sexo biológico, a tese de patologização dessas identidades tornou-se falaciosa.
Contudo, o cenário atual revela que a cisnormatividade é um fator presente e dominante nas relações sociais. Salienta-se que a cisnormatividade refere-se ao comportamento/poder vigente na sociedade de regulamentar e idealizar o gênero, o sexo e a sexualidade baseando-se, exclusivamente, em estruturas corporais biológico-genéticas, o que estigmatiza indivíduos sob marcos discursivos morais. Ao priorizar os fatores biológicos, desconsidera-se que masculino e feminino sejam, também, construções históricas e culturais. Assim, busca-se a formação e a manutenção de uma identidade humana que dialogue linearmente com o sexo, repetindo-se permanentemente ritos que legitimam a masculinidade ou a feminilidade, pautados por uma genitália supostamente natural. Noutras palavras: o normal para essa sociedade é ser heterossexual e cisgênero.4 Aqueles que escapam desse protótipo são rotulados e desrespeitados, quando não cerceados de viver.
Dessa forma, em que pese à existência de documentos, leis e tratados como a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948), que se constitui em uma referência mundial ao estabelecer valores universais como a liberdade, a democracia e a justiça – nem sempre esses valores são efetivados e incorporados socialmente. Como bem esclarece Vieira, há uma distância entre as
declarações de direito e a sua real efetivação, pois ainda em cada esquina do mundo, ouve-se um sujeito de boa vontade desfiar a celebrada lista de direitos, que começa no direito à vida e à dignidade moral da pessoa e termina nos direitos econômicos
(2004, p. 33).
Diante disso, a população transgênera é alvo direto do descaso do Estado que se omite quanto ao necessário investimento em serviços e políticas públicas que atendam às suas demandas (uma vez que o setor econômico é priorizado em detrimento do social), violando seus direitos e ampliando processos de marginalização e preconceito.
A população trans carrega um estigma por fugir de padrões sociais estabelecidos como normais e/ou naturais, confrontando, dessa forma, a cisnormatividade imposta pela sociedade, o que a expõe a situações de preconceito desde muito cedo. A primeira forma de violência geralmente acontece dentro da própria casa, quando a família não reconhece sua identidade de gênero, menosprezando sua condição, negando-lhe um tratamento adequado ao seu gênero, como, por exemplo, chamá-la pelo nome escolhido. Quando a forma de tratamento é essa, a começar por quem poderia acolhê-la, a pessoa trans já é posta numa situação de exclusão pelo simples fato de manifestar sua transgeneridade, e essa exclusão tende a se refletir nos demais espaços de sua vida social.
Portanto, ao refletirmos sobre os elementos que constituem a origem da violência contra pessoas de gênero divergente, nos remetemos às relações historicamente construídas em uma sociedade fundada sob estruturas patriarcais e machistas. Em razão dessas circunstâncias, os papéis de gênero foram claramente determinados e distintos entre os sexos. Conforme Graciano (1978), antes mesmo do nascimento de uma criança, criam-se expectativas sobre ela e se projeta sua maneira de viver: as cores e tipos de roupa, os modelos de brinquedo, as formas de se comportar e até mesmo seus sentimentos.
Na medida em que esses papéis são aceitos e naturalizados, seu desvio gera repulsa mesmo no âmbito familiar. Como é na própria infância que se manifestam as primeiras curiosidades e explorações acerca do corpo, e isso naturalmente envolve sexualidade, já na infância, a criança divergente é reprimida. Se um garoto passa a se interessar por brincadeiras ditas de menina ou a se identificar menos com outros meninos no comportamento ou na aparência, por exemplo, a própria família tenderá a corrigi-lo e reprimi-lo como uma intervenção corretiva. A esse respeito, esclarece Connell:
Os organismos de socialização não podem produzir efeitos mecânicos numa pessoa em crescimento. O que se faz é convidar a criança a participar de práticas sociais dentro de certos limites e condições. Talvez o convite seja coercitivo – como geralmente é – uma vez que é acompanhado de forte pressão para sua aceitação, sem oferecer nenhuma outra alternativa
(1987, p. 33-34).
Esse tipo de reação coercitiva por parte da família provoca a perda de espontaneidade da criança, impactando a subjetividade e a identidade, causando, até mesmo, certo bloqueio de sua criatividade, uma vez que seus objetos de interesse e desejo são negados. Conforme explica Lanz (2015, p. 234), é no meio familiar que ocorrem as primeiras formas de violência, discriminação e estigmatização das pessoas trans, sendo a família “a primeira instância social de contenção, repressão e dissuasão da livre expressão de identidade de gênero”. Infelizmente, esse tipo de reação preconceituosa por parte da família é recorrente, pois predomina a cultura sexista e conservadora.
Em toda a minha infância e adolescência fui sistematicamente “desaconselhada” (leia-se impedida, bloqueada, reprimida e interditada) de assumir minha condição de pessoa transgênera como uma manifestação absolutamente normal e espontânea do meu “ser no mundo”. Ao contrário, ensinaram-me a ver minha identidade de gênero como algo vergonhoso e a me sentir culpada por querer desrespeitar as normas
(LANZ, 2015, p. 232).
Em um contexto heterossexual e cisnormativo, a criança transgênera é submetida a um ambiente hostil e excludente, já que ela não pode se comportar como prefere, pois, assim, será desaprovada. Essa violência persistirá em outras áreas de sua vida, pois seu ambiente familiar é apenas um reflexo da sociedade. Ou seja, a pessoa gênero-divergente sentirá não só dentro de casa o preconceito e a exclusão, mas os vivenciará fora também.
Não faltam pesquisas que apontem ao processo de marginalização e violência em que são expostas. A Transgender Europe (TGEU, 2015), instituição que monitora casos de assassinato de pessoas transgêneras pelo mundo, apresentou um gráfico em que indica os países com maior número de casos entre 2008 e 2014. Nele, o Brasil ocupa o primeiro lugar com mais que o triplo do número de mortes do México.
Além da violência brutal contra pessoas trans, outra problemática enfrentada deve-se à dificuldade de inserção no mercado formal de trabalho. Dados do ano de 2018 da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) revelam que cerca de 90% dessa população tem a prostituição como única fonte de renda, em decorrência da discriminação e dos obstáculos para sua formação profissional somados à exclusão familiar e escolar. E é justamente dentro desse cenário que se encontra a maioria das vítimas, que, expostas e vulneráveis socialmente, são impelidas para a prostituição, contribuindo, ainda mais, para reforçar uma visão pejorativa sobre esse grupo (ANTRA, 2018).
Assim, as diferentes formas de violência contra a população trans estão presentes em grupos de convivência social e de formação de identidade, e suas manifestações são visíveis na escola, na família, no ambiente de trabalho, na mídia e nas instituições em geral, traduzindo-se em reiterados processos discriminatórios. Como lembra Ianni (2004, p. 8), a “violência é um evento heurístico de excepcional significação. Revela o visível e o invisível, o objetivo e o subjetivo, no que se refere ao social, econômico, político e cultural, compreendendo o individual e o coletivo, a biografia e a história”.
Desse modo, pode-se falar em muitas faces da violência, pois ela contém uma linearidade na vida do indivíduo trans, começando, geralmente, no ambiente familiar e seguindo pelos diferentes espaços cisnormativos por onde venha a circular.
Os muitos casos de violência física noticiados (ou não) acabam por ser apenas a ponta de um iceberg. Fugindo dos padrões socialmente estabelecidos, a construção de sua identidade passa a acontecer em uma tensão entre suas disposições individuais e a expectativa social. A diferença causa estranhamento, e a experiência da diferença não é tranquila para o próprio sujeito que a realiza. É um caldo cultural de muitas faces, com dificuldades no ambiente familiar, na vida educacional, nas relações de amizade e na inserção no mundo do trabalho. Nesse contexto, qual é o papel da instituição escolar?
2 Desafios da população trans nas instituições educacionais
Não de modo diferente do ambiente familiar, a escola também é palco de marginalização da população transgênera. Nela, se reafirma a cisnormatividade, o que contribui com a repressão a esse grupo. Em pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro Trans de Educação, no ano de 2018 (CANTELLI et al., 2019), envolvendo 250 estudantes trans, evidenciou-se uma série de violações produzidas pela própria escola. Na pesquisa, metade dos entrevistados afirmou ter abandonado a escola tendo como principal queixa a transfobia, seguida de depressão e de problemas financeiros.5
No tocante à pergunta relacionada aos obstáculos encontrados no ambiente escolar, os entrevistados mencionaram preconceito, agressões físicas e verbais, assédio moral e dificuldade de aprendizagem. Tais violências foram provocadas, em grande parte, pelos próprios colegas, somando 37% das respostas. Na sequência, 27% vieram dos professores, 20%, dos gestores e, por fim, 16%, da equipe pedagógica.
Em relação aos encaminhamentos dessas ocorrências, os entrevistados pontuaram que elas foram destinadas, majoritariamente, à direção escolar e à Secretaria de Ensino, mas, infelizmente, não foram tomadas atitudes assertivas quanto às suas queixas, pois, na maioria das vezes, a violência partiu da própria escola.
Ainda foram elencadas outras formas de negação de direitos no ambiente escolar: 39% do grupo pesquisado relatou o impedimento do uso do banheiro adequado ao seu gênero, o que é bastante grave, pois, além de ter sua identidade desrespeitada, a pessoa pode ter complicações de saúde por reter a urina, como: infecção urinária ou pedra nos rins, por exemplo. Varella (2016) adverte que os constrangimentos vivenciados pelos transexuais quanto à questão do banheiro, além de violar os direitos civis, interferem em funções biológicas essenciais à manutenção da saúde, aumentando, também, os riscos de obstipação crônica e hemorroidas, impedindo a hidratação adequada, uma vez que muitos evitam beber água para conter a urina.
A segunda maior violação refere-se ao desrespeito ao nome social ao qual a pessoa trans tem garantia. O direito ao uso do nome social é, além do direito de autoafirmação de sua identidade, uma mediação para o reconhecimento da pessoa trans, que, por tanto tempo, esteve invisível atrás de um nome que não a representava.
Sendo assim, não diferente dos ambientes anteriormente citados, a escola também é palco de marginalização. Apesar de ser um lugar privilegiado para tratar da diversidade, discutir questões que envolvem papéis de gênero, instigar a pluralidade e acolher todos, permanece com traços conservadores e práticas excludentes, pois, no ambiente escolar, também se reafirma a cisnormatividade, o que só contribui para aumentar as atitudes de discriminação e violência a alunos transgêneros. A esse respeito, Lanz recorda, com base em suas próprias vivências, que
ao reprovar, por inúmeras vezes, os meus atos infantis de brincar de boneca, andar de salto ou “rebocar” a boca de batom, a ordem social estava me dizendo, através da instituição família e da instituição escola, que essas coisas não tinham a aprovação e muito menos o reconhecimento e o aplauso da sociedade
(2015, p. 232).
Embora o respeito à diversidade humana seja um compromisso precípuo da escola e possa demonstrar seu empenho com o direito social do qual todos os sujeitos são portadores, tais princípios são incompatíveis com um tecido sociocultural embebido de preconceitos e intolerâncias, substratos de relações hostis e assimétricas.
Bons projetos, carregados das melhores intenções não são suficientes para superar esse caldo cultural cisnormativo, construído há séculos, sob a égide da superioridade tradicional, de um lado, em detrimento das manifestações culturais da diferença. Avança-se em um discurso politicamente correto, o qual afirma e tolera a diversidade, propõe o diálogo, o multiculturalismo, mas ele não se efetiva na prática cotidiana. Duschatzky e Skliar (2001, p. 118) denominam esse processo de travestismo discursivo, que parece ser uma das marcas mais habituais dessa época. Com a mesma agilidade na qual se processam “as mudanças tecnológicas e econômicas, os discursos sociais se revestem com novas palavras, se disfarçam com véus democráticos e se acomodam sem conflito às intenções dos enunciadores do momento”.
Uma das estratégias e expressão desse processo é a amplitude da incorporação do discurso da diversidade. Cabe em qualquer lugar e não gera tensões. Entretanto, ao mesmo tempo, a diferença causa estranhamento. Sua presença incomoda, gera desconforto, traz insegurança. Assim, no politicamente correto do discurso, reconhece-se o diferente, não o ignora, tolera-o e o coloca no seu lugar. A simples tolerância abre espaço às manifestações de uma indiferença pura e insensível. Duschatzky e Skliar (2001, p. 123) ressaltam, inclusive, que “necessitamos do outro, mesmo que assumindo certo risco, pois, de outra forma, não teríamos como justificar o que somos”. Essa necessidade de um outro que não se enquadra nos padrões é destacada por Louro no interior de uma prática educacional voltada à maioria:
[...] os sujeitos que, por alguma razão ou circunstância, escapam da norma e promovem uma descontinuidade na sequência sexo/ gênero/sexualidade serão tomados como minoria e serão colocados à margem das preocupações de um currículo ou de uma educação que se pretenda para a maioria. Paradoxalmente, esses sujeitos marginalizados continuam necessários, pois servem para circunscrever os contornos daqueles que são normais e que, de fato, se constituem nos sujeitos que importam
(2004, p. 27).
Nessa direção, podemos compreender melhor as muitas faces da violência e a amplitude dos obstáculos enfrentados pela população trans. Não se trata, simplesmente, de um ato deliberado. As atitudes de discriminação e preconceito perpassam por todos os grupos da comunidade escolar, de colegas, de professores e do corpo administrativo.
Como poderá, então, a escola, nesse ambiente cisnormativo, desenvolver práticas acolhedoras e respeitosas da diferença? Partimos de uma convicção antropológica: é possível. O homem é capaz para tanto. Não faltam experiências pessoais e institucionais que fizeram e fazem da diversidade não apenas um discurso elogioso, mas a concretizam no cotidiano.
Apontando para essa possibilidade e suas dificuldades, afirma Bauman (2001, p. 123) que a capacidade “de conviver com a diferença, sem falar da capacidade de gostar dessa vida e beneficiar-se dela, não é fácil de adquirir e não se faz sozinha. Essa capacidade é uma arte, que, como toda arte, requer estudo e exercício”.
Seria a instituição escolar um lugar privilegiado para o desenvolvimento da arte de acolher e respeitar a diferença? Sendo a escola, na opinião de Bourdieu (2003), o locus principal da manutenção e legitimação da desigualdade, a resposta à questão acima, em um primeiro momento, só pode ser negativa. Ou seja, o ambiente escolar é lugar propício para a reprodução do preconceito e de discursos discriminatórios, como a chamada prática do bullying e de outras ações excludentes, mas a escola é também lugar de reflexão, de construção do conhecimento, espaço onde as práticas podem ser refletidas e ressignificadas.
Consideremos, primeiramente, que crianças e adolescentes seguem muito cedo os caminhos da escola e nela permanecem muito tempo de sua vida. Para muitos a pessoa adulta de maior convivência e, às vezes até mesmo de maior proximidade, é a figura do(a) professor(a). Então, ao lado da família, é nesse lugar que acontece a descoberta e a construção de sua identidade, inclusive, a sexual. Nesses espaços, experimentam acolhida, respeito, tolerância, estranhamento, hostilidade, violência.
Estamos falando de escola, lugar do conhecimento. Retomando Bauman (2001), a arte da capacidade de conviver com a diferença requer estudo e exercício. Se nos projetos político- pedagógicos da escola a temática da diversidade é pressuposto e perpassa pelo currículo, a efetivação de um ambiente acolhedor será consequência de “estudo e exercício”.
Portanto, esse processo requer um trabalho de formação continuada, não apenas dos professores, mas de toda a equipe escolar, incluindo os funcionários, uma vez que estamos tratando de um caldo cultural que atravessa toda a sua estrutura. Entre os elementos dessa formação, destacamos o diagnóstico da cisnormatividade presente, o reconhecimento das manifestações da diversidade, a sensibilização para a diferença e, consequentemente, a construção de práticas significativas no sentido do exercício de conviver com a diferença.
A instituição escolar é um espaço resistente à mudança. Sua estrutura e prática atravessam os séculos. Porém, como notabilizou Bauman (2001), estamos na modernidade líquida. Nada resiste ao movimento de liquidificação. Não é diferente com a escola. As ventanias da mudança batem à porta, e as estruturas ficam abaladas. As instituições estão sendo reinventadas, a direção do processo cabe aos protagonistas. A escola poderá continuar sendo um locus privilegiado de manutenção da cisnormatividade, mas também reúne condições para se abrir às demandas do tempo e se tornar espaço acolhedor.
Evidenciando tais demandas e afirmando que pessoas trans também necessitam de cotas, Jesus comenta sobre a importância de ações afirmativas no espaço escolar, mediante
[...] o acréscimo de pontuação, em determinadas provas seletivas, para pessoas oriundas de grupos ou regiões desprivilegiadas; ou ainda, entre outras iniciativas possíveis a reserva de vagas para grupos sociais específicos (cotas), em instituições das quais são historicamente apartados
(2016, s. p.).
Essas ações afirmativas, juntamente com o direito do uso do nome social, possibilitam à pessoa trans afirmação e visibilidade de sua identidade. São conquistas importantes, mas, para que não incorram em mais discriminação e violência, precisam estar ancoradas em ambientes que tenham como preocupação precípua o reconhecimento e o respeito à diferença. Espaços nos quais a afirmação do outro não desemboque em sentimentos de ódio, mas na convicção de que todos ganham e crescem quando cada qual pode ser intenso no seu modo de ser, pensar e agir.
Em síntese, se podemos falar de uma universalidade do acesso, as garantias de permanência em uma educação de qualidade para grupos historicamente desfavorecidos e pouco valorizados no ambiente escolar, é um processo que passa por políticas públicas de inclusão e uma instituição escolar acolhedora das mais diversas necessidades de seu corpo discente, em especial, daqueles que mais necessitam.
A formação continuada é ponto de partida para um processo reflexivo acerca das práticas, construindo indignação no lugar da indiferença, reconhecimento e respeito no lugar da tolerância pura e fria, e, finalmente, a hostilidade cedendo espaço à hospitalidade.
3 Considerações finais
As reflexões, ao longo deste artigo, permitem-nos afirmar que a violência de gênero tem como alicerce relações sociais historicamente construídas na sociedade capitalista sob estruturas patriarcais, machistas e sexistas. Nos papéis definidos para o homem e para a mulher, se atravessam interesses econômicos e sociais, normas reacionárias e excludentes que buscam selar padrões de comportamento humano nos corpos e nas mentes.
Nesse sentido, a cisnormatividade e a heteronormatividade presentes no cotidiano social, sustentadas por uma visão de mundo altamente conservadora, têm corroborado práticas violentas, desqualificadoras e, muitas vezes, letais contra a população trans, pois, conforme demonstrado, além de sofrer opressão e marginalização social, essa população também é vítima de agressões, humilhações e violência física simplesmente por expressar sua condição humana, sua identidade de gênero.
Sem o apoio da família, do Estado e da sociedade, muitas vezes, essas pessoas são levadas a viver em situação de rua, suscetíveis a crimes de ódio, precisando recorrer à prostituição como única fonte de sobrevivência. Tal situação contribui para ampliar a violência contra esse grupo e aumentar o estigma que atravessa sua realidade de vida.
Outra problemática que a população trans enfrenta deve-se à dificuldade de inserção no mercado formal de trabalho pela discriminação e pelos diferentes entraves para sua capacitação profissional. Não de modo diferente, a escola também tem se constituído em um espaço de exclusão e de reiteração da violência cotidiana. São muitos e complexos os obstáculos encontrados no âmbito escolar, desde preconceito, agressão física e verbal, assédio moral, desrespeito ao nome social, até as dificuldades de aprendizagem associadas também à violência psicológica e ao processo de marginalização vivenciado.
Embora a população transgênera tenha alcançado conquistas importantes na sociedade, como a legalização do casamento gay, do nome social, da adoção por casais homossexuais, da cirurgia de redesignação sexual, além da visibilidade midiática e da inserção na cena política, etc., são enormes os desafios que ainda enfrenta, sobretudo pelo preconceito vigente. Para enfrentar esse quadro, é necessário investir, em todos os setores da sociedade, em políticas que fortaleçam uma cultura de respeito à diversidade sexual e de gênero.
Considerando, segundo Machado (2013, p. 108), que a construção social de gênero “se faz arbitrariamente em relação à diferenciação de sexos de homens e mulheres”, é fundamental desconstruir esse imaginário, visto que o gênero é uma construção social. As ideias do que é ser masculino e feminino são constructos histórico-culturais moldados pela cisnormatividade e heternormatividade.
Mudar esse cenário conservador e violento é um enorme desafio, o que exige a construção de olhares respeitosos e generosos, além de políticas públicas para o atendimento efetivo das demandas da população trans.
Exige, ainda, escolas abertas, dialógicas e humanizadoras que estimulem práticas educativas para as sexualidades e identidades de gênero, apoiadas na compreensão dos direitos humanos, dos direitos de igualdade, de ser e viver como se quer.