1 Introdução
Este texto,3 que ora compartilho com os interessados em Hegel, sobretudo com aqueles estudiosos voltados à formação do homem, é fruto um pouco mais refletido do Mestrado defendido no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais. No ensejo, em conjunto com alguns alunos do curso de Psicologia da Universidade Federal de Catalão (UFCat), a partir da leitura da Fenomenologia do espírito [Phänomenologie des Geistes] (1807), em particular, do texto da Introdução, busca-se elaborar os pressupostos do trabalho4 de formação da consciência.
Ao pensar no trabalho de formação com apoio nos pressupostos hegelianos, desenvolvidos, sobretudo, na Introdução da obra supracitada, nota-se, no percurso da consciência, seu dissolver e edificar tal como uma instabilidade em sua educação para alcançar a congruência entre o seu saber e a verdade do objeto. Com isso, a formação [Bildung] da consciência se inicia quando essa, em seu “estado natural” (consciência natural), dirige-se à ciência [Wissenschaft], princípio do sistema hegeliano que articula diversos conhecimentos, valendo-se do desdobramento de si própria. Uma vez iniciado seu processo de formação, a consciência percorrerá vários estágios, um a um, permanecendo, em cada um deles, passando ao seguinte somente após adquirir novo saber, ou seja, sua formação.
Na Introdução, a consciência desvencilha-se da representação, passa à apresentação e segue seu trabalho de formação científico a partir do surgimento do fenômeno que ocorre entre ela (consciência) e o objeto. Nesse percurso, cada momento de aprendizagem se completa até a identificação do saber da consciência com a verdade do objeto, o que exige da consciência paciência nesse trabalho de forjamento.
Esse trabalho da consciência é inaugural, pois traz nova forma de procedimento de formação da consciência do período moderno. A consciência inicia essa nova formação porque parte de sua liberdade para fazer experiências5 e, nesse processo, exercita uma crítica do saber, tanto em si quanto na verdade do objeto, até sua transformação – ou trans-versão6 – em ciência.
Desse modo, a ciência não é apenas um agregado de conhecimentos, tampouco uma afirmação arbitrária que garante a verdade em um objeto externo. Como assinala Hegel,
a formação inteligível da ciência é o caminho para Ela, a todos aberto e igual para todos. A justa exigência da consciência, que aborda a ciência e que chegue, por meio do entendimento, ao saber racional, já que o entendimento é o pensar, é o puro Eu, em geral. O inteligível é o que já é conhecido, o que é comum à ciência e à consciência não-científica, a qual pode, através dele, imediatamente, adentrar-se na ciência. [...] A ciência que recém começa, e assim não chegou ainda ao remate dos detalhes nem à perfeição da forma, está exposta a [sofrer] crítica por isso. Caso porém tal crítica [...] [atinja] a essência mesma da ciência, seria tão injusta quanto seria inadmissível não querer reconhecer a exigência do processo de formação cultural
(1992, p. 27-28).
Por isso, a Bildung, ou a Paideia da consciência, não se faz sem experiência e sem o trabalho de negação. Uma vez que se colocou a caminho do seu trabalho de formar, ao adquirir novo conhecimento, por ter feito uma experiência, a consciência natural vê-se atacada pela dúvida, pelo desespero e pela dor, porquanto está agarrada à formação da representatividade.
A consciência precisa exercer o trabalho de negação (do seu saber positivo, até então, unilateral, e da sua verdade) para passar a outro estágio. Dessa maneira, paulatinamente, a consciência executa esse trabalho de formação (Bildung), fazendo a transição de um saber simples, imediato, para outro mediato, até alcançar a congruência entre saber e verdade, conceito e objeto, ou seja, visando a alcançar o saber real, despido de ilusões, de um único ponto de vista e de preconceitos, quando, então, verifica que o Em-si e o Para-si correspondem um ao outro, tendo, dessa forma, a capacidade de efetivar nova cultura a partir de um saber que se sabe de si, como mostra Hegel no caminho do trabalho de formação da consciência, na Introdução da Fenomenologia do espírito. Posteriormente, na obra supramencionada, há, em detalhes o processo de formação [Formieren] da consciência de si, que não é trabalhada neste artigo.
2 A resistência da consciência natural no trabalho de formação (Bildung)
Para efetivar o trabalho de formação (Bildung), é necessário que a consciência rompa, antes de tudo, com o medo de errar, porquanto esse medo a amarra e a prende a uma educação unilateral, impedindo-a de ver a faísca do brilho do fenômeno do objeto que a toca e de penetrar em si para julgar seu próprio saber. A consciência natural, sem coragem de enfrentar a si mesma – com esse medo de errar – vê o mundo como se usasse uma viseira, enxergando somente um lado dele, como se sentindo atada aos grilhões que obstaculizam seu movimentar-se no saber e se mostra predisposta a aceitar um discurso que sustente a separação entre saber e verdade, impedindo o saber real. No entanto, o trabalho de formação da consciência, por meio do exercício do pensamento na experiência, por mais doloroso que seja, impele a consciência para outro momento de seu formar. Conquanto seja doloroso e até mesmo desesperador, a consciência, em seu processo de trabalho de formação, dissolve a forma educativa do conhecer representativo e inicia o esforço hercúleo de apresentação com o surgimento do fenômeno que o conduzirá à educação da ciência, que já está na consciência, mas, por ser ingênua, não tem consciência desse saber. Esse é o momento basilar da cultura filosófica inaugurada por Hegel na modernidade. Vê-se, então, que o caminho da transição da Formação Representativa para o saber real dá-se no processo de trabalho de formação da consciência. Passa-se pela representação, pela apresentação e segue a luz do fenômeno, fazendo a experiência e o exame de si mesma e da verdade do objeto e, dando continuidade a esse formar, passa pelo ceticismo amadurecido até o saber real, último estágio de formação, em que a consciência chega à ciência e alcança esse saber. Portanto, há identificação do conceito com a verdade do objeto, ou seja, a ilusão torna-se análoga à essência, havendo uma congruência da ciência fidedigna do espírito, segundo os fundamentos hegelianos desenvolvidos na Introdução da Fenomenologia do espírito (HEGEL, 1992).
Arraigada ao temor e à desconfiança de outra formação que não seja a sua própria, a consciência predispõe-se a representar um saber que lhe é externamente apresentado. Prefere a cristalização das verdades que também lhe são externas, e, internalizada mediante a imagem de suas formas – elaborando a representação abstrata do seu saber – justifica-as apenas com intuições e repetições de palavras soltas, como: absoluto, conhecer e, também, objetivo e subjetivo, como se essas, por si sós – sem o esforço de efetivar a experiência – estivessem carregadas de conteúdo.
Ao escolher esse modelo de formação representativo e grudada nele – com medo de cair num terreno movediço – a consciência natural não é capaz de realizar a desconfiança em sua própria confiança, por temor de nova verdade que possa emergir tanto dela quanto do objeto e desestruturar o discurso que lhe dá sustentação: “[...] suposição pela qual se dá a conhecer que o assim chamado medo do erro é, antes, medo da verdade”. (HEGEL, 1992, p. 64).
Quando a consciência dispõe-se a enfrentar, mediante o trabalho, nova formação (Bildung), ela sai do seu conhecer para o saber, nega os pressupostos da representação e fundamenta a apresentação cujo princípio está no seu relacionar-se com o objeto. Nesse processo de educação, busca a verdade de seu saber no objeto. Isso ocorre quando a consciência volta a ela, passando pelo objeto. Dessa relação haure uma instabilidade entre o seu saber da consciência ingênua com a verdade do objeto a impulsionar outro estágio de formação. Desse modo, a consciência começaria a se desagarrar de uma cultura representativa, constituída no pensar, cuja fundamentação solipsista de seus conceitos separados dos objetos era o princípio da educação da modernidade, pois esse pressuposto tinha a pretensão de afirmar o conteúdo sem passar pela experiência que, agora, ocorre dando lugar ao trabalho de formação pela apresentação.7
Esse alicerce educativo se concretiza com o trabalho de formação dialética, o qual elege o experienciar da consciência que, desde seu início, nota uma assimetria entre saber e verdade. Desse modo, doravante, a experiência da consciência a faz se livrar de uma verdade não verdadeira – que ela, antes, asseverava como ser verdade. Nesse processo de trabalho dialético do formar, o fenômeno – essa centelha de brilho do objeto – fica a luzir num caminho para o forjamento de nova cultura da modernidade, cuja articulação dessa cultura se fará sobre a inter-relação da consciência com o Em-si do objeto. Daí, faz emergir nova verdade verdadeira, que nasce do ser do objeto que aparece e do ser da consciência. Mudando-os recíproca e continuamente, tem-se a instabilidade do saber e da verdade, ou seja, ao colocar o aparecer do aparecer e a verdade verdadeira não se está fazendo uma redundância dos termos, mas querendo mostrar que do próprio ser do ser do objeto e da consciência surgem o fenômeno e a verdade verdadeira desse momento – que será negado posteriormente – a qual nega um aparecer aparente tal como uma verdade aparente. Assim, esse itinerário formativo vê ruírem, em seu caminho, a cada momento, os alicerces de uma etapa de sua formação, e a consciência hesita, inicialmente, em assumir novos princípios como verdadeiros.
Agora, a consciência busca, nela mesma, na experiência de seu saber com seu objeto, um outro ser dela mesma. Presa aos seus limites, ela não deseja se desprender do saber natural. No entanto, o novo fenômeno de seu formar faz aparecer a luz que, cada vez mais, recrudesce em seu ser e tem a força para dilatar seus limites e fixar, em seus propósitos, novo paradigma de educação. A consciência, nesse momento, não é o saber natural nem real, mas ambos estão nela para produzir a modificabilidade de seu ser. Todavia, com medo de se perder em relação ao outro saber que, inevitavelmente, sucedera esse unilateral, prefere estabelecer, para si, novos limites. Seu desejo é manter tudo bem e do modo que está. Isso lhe proporciona uma segurança estática. Mas o pensamento, contrário a essa condição, não aceita ficar estagnado do modo que a consciência natural deseja, pois, desse modo inerte, o formar é o temor da verdade que, novamente, a ataca. No entanto, o pensamento impele a consciência de sair de sua estagnação e seguir, mesmo que seja de forma dolorosa, sua formação. Ou seja, embora a consciência a todo custo tente se manter inerte, o pensamento impulsiona-a a quebrar uma estrutura de educação arraigada em seu ser.
Apesar disso, para impedir o desenvolvimento do formar, a consciência toma por dogma sua opinião; assim, ela não se põe a duvidar do seu próprio saber e passa a duvidar do saber do outro. Se, por um lado, essa desconfiança do outro, e não de si, tem o intuito, por parte da consciência, de mostrar certo zelo por seu saber, por outro lado, significa não aceitar a interferência de um outro, por se achar possuidora de melhor formação.
A atitude de mostrar certo zelo, certo cuidado com seu saber, dissimula a verdade e promove a vaidade. Ela cai no ufanismo, que revela e esconde, ao mesmo tempo, uma atitude individualista, voltada somente para si e utiliza o discurso megalomaníaco para dar sustentação ao seu conhecer. Esse conhecer, porém, não é rigoroso o quanto é necessário porque não possui a coragem suficiente para enfrentar a si próprio. Por conta disso, procura refúgio no absoluto ordinário, que justifica o saber por meio de verdades sem conteúdo. E resiste a aceitar outra formação que esteja fora das dualidades, conhecer e verdade, sujeito e objeto, conhecimento e ignorância, absoluto e relativo, ordinário e não ordinário, que ratificam as determinações abstratas.8
No entanto, o pensamento, cujo trabalho de formação é ininterrupto por natureza, não suporta a estagnação nem a carência de si. Esse é o momento trágico no qual a violência dela mesma, como aquela sofrida quando a consciência se enfrentou e arrancou para fora de si seu ser-aí imediato de antes que ameaçava sua satisfação – que, agora, sabe, é limitada. E se o conhecer natural lhe era exterior, essa violência não o é, pois o que há é o desequilíbrio do trabalho de formar da consciência quando, com sua experiência, faz surgir o desvelamento dela e do objeto.
Portanto, essa violência que a consciência sofre – de se lhe estragar toda a satisfação limitada – vem dela mesma. No sentimento dessa violência, a angústia ante a verdade pode recuar e tentar salvar o que está ameaçada de perder. Mas não poderá achar nenhum descanso: se quer ficar numa inércia carente-de-pensamento, o pensamento perturba a carência-de-pensamento, e seu desassossego estorva a inércia
(HEGEL, 1992, p. 68).
O medo de prosseguir na busca da verdade, por conta dos sofrimentos pelos quais tem de passar e por falta de coragem, leva a consciência a “[...] tentar salvar o que está ameaçada de perder” (HEGEL, 1992, p. 68) – um saber que, nesse momento, já tentou romper sua breve relação com a verdade. Ou, o que ela tenta salvar é ela própria para poder chegar ao ir-além do limitado, pois, conforme Hegel (1992, p. 68, grifo no original), “[...] a consciência é para si mesma seu conceito; [...] [ela] é imediatamente o ir-além do limitado, e – já que este limite lhe pertence – é o ir além de si mesma”.
Ainda condicionada à separação entre saber, de um lado, e verdade, de outro – ou seja, o conceito separado do objeto – antes de se pôr a caminho do trabalho de se formar, é um não saber de si. Ela representa um conhecimento que não lhe pertence, que não vem de seu próprio ser. É, assim, consciência ingênua, condicionada ao saber de um objeto externo a ela, representando, desse modo, a formação de um saber separado da verdade. “A consciência natural vai mostrar-se como sendo apenas [um] conceito do saber, ou saber não real” (HEGEL, 1992, p. 66).
Em busca do saber real, a consciência, em sua formação, realiza o trabalho de negação, tanto de si quanto do objeto; volta-se contra o saber natural, não real, que possui. Contudo, o medo da verdade leva a consciência a continuar procurando subterfúgios para permanecer no estágio em que estava, e ela passa a se ver, então, como saber real, o que ainda não alcançou.
Mas enquanto [...] [a consciência natural] se toma imediatamente por saber real, esse caminho tem, para ela, significação negativa: o que é a realização do conceito vale para ela antes como perda de si mesma, já que nesse caminho perde sua verdade. Por isso, esse caminho pode ser considerado o caminho da dúvida [Zweifeln] ou, com mais propriedade, o caminho de desespero [Verzweilflung] [...]
(HEGEL, 1992, p. 66, grifo no original).
Duvidando das verdades anteriormente cristalizadas nela, a consciência, tocada pelas suas incertezas, é impulsionada a percorrer o caminho que, paulatinamente, esboroa o saber e as verdades constituídos e conceitos irrealizados para seguir, mediante o sinal da centelha de luz do fenômeno, outra formação (Bildung). Isso a coloca na dúvida; não é uma dúvida negar por negar, mas é uma dúvida que lança para dentro de si e vê estremecerem-se suas certezas nesse chão movediço. Sem nada a sustentá-la, a consciência entra em desespero: não mais reconhece como reais e verdadeiros o saber e a verdade precedentes, entretanto, nesse círculo sai de um eu para um objeto e retorna a esse eu como meio de conhecer e negar tanto o saber do eu quanto do objeto.
Nesse círculo do eu ao objeto, a consciência traz consigo a negação, a conservação e a superação de um saber e de uma verdade e, nesse círculo espiral de ida e vinda, segue realizando concretamente as etapas do trabalho de sua formação (Bildung). Com esse procedimento pedagógico, a consciência alicerça-se para entrar em novo saber e em nova verdade arrancada tanto dela quanto do objeto, sem alcançar, ainda, o saber real e verdadeiro. No entanto, a consciência natural adquire outro saber sem reconhecê-lo como seu, pois ainda não é capaz de concatenar toda a sua formação. Tem-se, assim, o dissolvimento de formas de saber e de verdade a fazer a revolução em seu processo de trabalho formativo. A verdade do saber ingênuo não é mais a garantia de continuidade no processo de trabalho de educação.
Agora, a consciência natural duvida não apenas de um saber determinado, mas, também, de sua própria formação. Tal dúvida não tem nenhuma relação com o princípio cartesiano, em que a dúvida é condição necessária para se confirmar uma verdade existente ou suspender um saber preexistente para, posteriormente, reafirmá-lo. Descartes não duvidou da própria dúvida, bem como Kant não fez crítica da crítica. Todos eles permaneceram em uma formação representativa, ou seja, numa educação, cujos pressupostos estão somente na formulação do sujeito tanto pensante quanto transcendental.
3 O trabalho presente na formação da consciência
Para Hegel a verdade haurida do processo pedagógico da dialética da consciência não está pronta e acabada em si mesma. A ciência dessa verdade entra em cena e desperta a consciência a dar continuidade ao seu processo de trabalho de formação (Bildung), cultivando nova experiência com o objeto, com a intenção de gestar nova etapa de cultura. Mesmo que seu formar tente mantê-la estática, o pensamento desestrutura essa forma, nega-a e conduz a outra. Por conseguinte, a consciência, nesse itinerário de experiência, faz a relação do seu saber com a verdade do objeto. Embora tenha de passar pela dúvida e pelo desespero, abalando os esteios que lhe davam sustentação, faz a experiência do saber por intermédio das mediações em si mesma e no objeto. Agora, incólume somente da exterioridade ou da subjetividade, ela (a consciência) realiza sua nova educação na modernidade; quando, com o trabalho negativo do seu formar, faz o exame de experiência da verdade do objeto em sua imanência.
Assim, a consciência, com seu trabalho formativo, conduz-se com o rigor necessário para se desagarrar de uma não verdade e encontrar outra verdade. Desse modo, sem o medo, que servia de nebulosidade, enfrenta seus próprios limites para enxergar a diferença entre uma formação firmada na asseveração e outra que nasce do esforço do trabalho negativo para conhecer tanto o seu saber quanto o objeto por meio da experiência que ela – a consciência – realiza nos limites entre o saber da consciência e da verdade do objeto. De acordo com Hegel,
é possível porém tomá-la [a ciência], desse ponto de vista, como o caminho da consciência natural que abre passagem rumo ao saber verdadeiro. Ou como o caminho da alma, que percorre a série de suas figuras como estações que lhe são preestabelecidas por sua natureza, para que se possa purificar rumo ao espírito, e através dessa experiência completa de si mesma alcançar o conhecimento do que ela é em si mesma
(1992, p. 66).
Para Hegel, no trabalho de formação (Bildung) da consciência, há um concrecere, isto é, crescer juntos a consciência natural e o objeto. A dúvida, nesse desenvolvimento, vem de um ceticismo amadurecido, que é diferente daquele que nega tudo e permanece apenas na negação estática em relação ao saber, sem nada a acrescentar-lhe, a não ser somente negá-lo. Desta feita, afirma o filósofo:
Esse cepticismo, que atingiu a perfeição, não é, pois, o que um zelo severo pela verdade e pela ciência tem a ilusão de ter aprontado e aparelhado para elas, a saber: o propósito de não se entregar na ciência à autoridade do pensamento alheio, e só seguir sua própria convicção; ou melhor ainda: tudo produzir por si mesmo, e só ter o seu próprio ato como [sendo] o verdadeiro
(1992, p. 66-67, grifo no original).
Desse modo, o ceticismo, mesmo quando atinge a perfeição, não leva a consciência a produzir, nesse momento, sua ciência e verdade verdadeira. O que um zelo severo pela verdade e pela ciência faz, realmente, com elas mesmas, é levá-las a realizar a crítica da crítica de si próprias. O ceticismo imaturo é inútil, uma vez que mostra apenas o recrudescimento da vaidade e a megalomania; não tem conteúdo, embora o arrogue para a consciência que possui formação mais cristalina. Mas ela, na verdade, soçobra-se em seus preconceitos. O ceticismo útil, diferentemente, faz a consciência natural realizar a crítica do seu saber mediante a experiência dela com o objeto, leva-a a penetrar em si mesma e no objeto, possibilitando-lhe alargar sua capacidade de conhecer. Dessa maneira, a consciência natural vai dissolvendo sua vaidade e, gradativamente, desloca-se da representação das imagens de seu pensamento e vai se tornando uma consciência fenomenológica, o que não ocorre sem desespero.
[...] o cepticismo que incide sobre todo o âmbito da consciência fenomenal torna o espírito capaz de examinar o que é verdade, enquanto leva a um desespero, a respeito de representações, pensamentos e opiniões pretensamente naturais. É irrelevante chamá-los próprios ou alheios: enchem e embaraçam a consciência, que procede a examinar diretamente [a verdade], mas que por causa disso é, de fato, incapaz do que pretende empreender
(HEGEL, 1992, p. 67, grifo no original).
Em desespero e se vendo incapaz de examinar diretamente a verdade, a consciência passa a sofrer a dor. Em busca de alívio, a consciência, mediante seu trabalho de formação, promove a negação do saber anterior. No entanto, a princípio, ela nega só por negar e não porque julgue que a negação possa levar à verdade. Se a consciência permanecer na negação pela negação, acabará pensando que seu saber é o único possuidor da verdade. Contudo, ultrapassando o temor de assumir nova verdade, a consciência passa com o trabalho de negação em si para uma negação determinada9 e que tem conteúdo.
Para fazer inteligível esse ponto, pode-se notar previamente, de maneira geral, que a apresentação da consciência não verdadeira em sua inverdade não é um movimento puramente negativo. A consciência natural tem geralmente uma visão unilateral assim, sobre este movimento. Um saber, que faz dessa unilateralidade sua essência, é uma das figuras da consciência imperfeita, que ocorre no curso do itinerário e que ali se apresentará. Trata-se, precisamente, do cepticismo, que vê sempre no resultado somente o puro nada, e abstrai de que esse nada é determinadamente o nada daquilo de que resulta. Porém o nada, tomado só como o nada daquilo donde procede, só é de fato o resultado verdadeiro: é assim um nada determinado e tem um conteúdo
(HEGEL, 1992, p. 67, grifos no original).
Na passagem de um saber de uma verdade para outros, quando no trabalho de formação (Bildung) da consciência, ocorrem a dúvida, o desespero e a dor, existem afirmação e negação, deformação e formação. Isso caracteriza, também, o trágico da formação, do que não se deve ter medo. Sem sequer enfrentá-lo, a negação suscita um processo de formação, cujo princípio seja a própria incondicionalidade da consciência em relação ao objeto.
Assim, no processo de trabalho de formação (Bildung) da consciência, o medo, a dúvida, a experiência, o ceticismo, o desespero, a dor, a negação – cada qual com uma ou mais qualidades – são necessários no desenvolvimento da consciência. Segundo Hegel,
a série de figuras que a consciência percorre nesse caminho é, a bem dizer, a história detalhada da formação para a ciência da própria consciência. Aquele “propósito” [propósito de não se entregar, na ciência, à autoridade do pensamento alheio] apresenta essa formação sob o modo simples de um propósito, como imediatamente feita e sucedida. Frente a tal inverdade, no entanto, esse caminho é o desenvolvimento efetivo. Seguir sua própria opinião é, em todo o caso, bem melhor do que abandonar-se à autoridade [...].
(1992, p. 67, grifos no original).
Ainda que não havendo uma formação (Bildung) imediata, pronta e acabada da consciência – visto que seu formar é um processo de trabalho da consciência – é possível prosseguir na busca da verdade; caso não prossiga, a consciência torna-se a autoridade do discurso da verdade externa. No entanto, mesmo não tendo ultrapassado completamente um estágio, dá-se início à procura da verdade, ocorrendo o processo tanto de deformação quanto de formação do discurso até alcançar o saber real, ou seja, a superação do fenômeno vindo do objeto e alcançando a luz da experiência em sua própria consciência. Esse é o momento em que a consciência é consciência de si, ou seja, sabe de si e do objeto, há uma identificação do seu saber com a verdade do objeto.
O processo do trabalho de formação da consciência faz ruminar a dor, o preconceito e os prejuízos, que antes queriam impedir o movimento do pensamento. No entanto, a força desse, sendo muito superior, foi capaz de fazer a transformação do ser do em-si para ser o ser-para-ela desse em-si e transformá-lo em verdadeiro impulsionador, com o intuito de arrancar a consciência da nebulosidade do seu saber e, com isso, dissipar a obnubilação para que a luz do raio do fenômeno, alojada em seu interior, ponha a luzir, cada vez mais, em seu pensamento, forçando a superação dos estágios de sua educação.
Portanto, a consciência no desespero e na dúvida passou pela negação e pela experiência para conhecer, em cada figura, o ser do em-si, por meio do para-ela. A mudança ocorre nesse itinerário tanto no saber da consciência quanto no objeto, até culminar no momento da congruência do saber com a verdade, quando a consciência passa à ciência na última esfera do círculo de formação realizada em si mesma. Isso aconteceu ao se pôr livremente a seguir a luz de seu interior e, passo a passo, fez ruir as ilusões do saber e, simultaneamente, efetivou as mudanças necessárias no em-si, para alcançar a unicidade da forma com o conteúdo.
Aqui a aparência se torna igual à essência, de modo que sua exposição coincide exatamente com esse ponto da ciência autêntica do espírito. E, finalmente, ao apreender sua verdadeira essência, a consciência mesma designará a natureza do próprio saber absoluto
(HEGEL, 2002, p. 82).
Desse modo, o trabalho de formação (Bildung) da consciência impeliu a luz do raio a desalojar-se do ser da consciência para luzir como a gênese de nova ciência, de nova cultura e, também, como não dizê-lo, de nova civilização para a modernidade.
Considerações finais
A reviravolta presente, no trabalho de formação (Bildung) da consciência, é o início do itinerário de rompimento sucessivo com as ilusões, promovendo a elaboração de outro conceito, que tem a fundamentação no Em-si, a partir da sistematização das mudanças ocorridas com as experiências originadas no ceticismo amadurecido. Conforme Hegel (1992, p. 68), “[...] o processo em direção a essa meta não pode ser detido, e não se satisfaz com nenhuma estação precedente”. Nesse processo, o trabalho de formação da consciência pela negação chega ao nada de si, não é a recusa de todo o conhecimento anterior, mas a trans-versão, dentro de si mesmo, do que havia de essencial no conhecimento anterior e foi encontrado pela negação. Desse modo, a consciência educada liberta-se do saber unilateral, afirmado externamente, a cuja alteridade ela obedecia. Como cita o autor, “o que está restrito a uma vida natural não pode por si mesmo ir além de seu ser-aí imediato, mas é expulso-para-fora dali por um Outro: esse ser-arrancado-para-fora é sua morte” (HEGEL, 1992, p. 68).
A consciência natural, nesse processo de trabalho formativo em que as experiências resultaram em mudanças tanto em si quanto no objeto, faz a suprassunção – quer dizer, ela negou, conservou e acrescentou novo saber (Aufhebung). Por isso, a consciência, em seu interior, alcança a consciência de si e traz o objeto exterior para dentro de si, isto é, o objeto se identifica com o conceito, e o conceito, com o objeto. O saber, nesse estágio, é a identidade da identidade na diferença, efetivamente, pelo trabalho de formar; têm-se, então, o formar-se e o formar da consciência, como ilustra Lukács (2018) na obra O jovem Hegel e os problemas da sociedade capitalista. Agora, com a experiência que a consciência faz com seu objeto, enfrenta em si a mudança de seu formar; destarte, descortina-se o objeto e se evidencia a consciência que se ocultava nele. Ela, nesse estágio de formação (Bildung), percebe que o conceito de saber passa a ser para si momento cultural, de acordo com Hegel, tem-se a afirmação do homem pelo trabalho da consciência e, com essa mudança da consciência para a consciência de si, consegue-se iniciar a concretização do saber real. Com esse princípio, a consciência, desnudada de sua ingenuidade, irá efetivar sua formação. Não pode transferir para outro e nem o culpar, deve, sim, ressonar nos fios do tecido social o eco de uma cultura realizada mediante a experiência que se concretiza desde sua singularidade até a universalidade. Assim, o eu e o nós se efetivam no processo educacional e se tem o início do absoluto em nós, que, a princípio, não conhecíamos, porém, no processo de trabalho formativo do concrecere – crescerem, juntos, saber e verdade – toma consciência de si, ou seja, o saber que se sabe alcança seu formar no mundo.
Consequentemente, ela já alcança o Espírito em si, como diz Bernard Bourgeois em seu livro Hegel: os atos do espírito: “Desse modo, as determinações ‘antropológicas’ e ‘fenomenológicas’ só existem ligadas às determinações ‘psicológicas’ e – é verdade, se considerarmos o espírito não apenas segundo sua existência formal, mas também em seu conteúdo essencial – às determinações ético-políticas e religiosas” (BOURGEOIS, 2004, p. 31-32, grifos no original).