Catherine L’Ecuyer é canadense e reside na Espanha. Graduada em Direito, possui especialização pelo IESE Business School e título de Mestre Europeu Oficial em Pesquisa. É doutora em Educação pela Universidad de Navarra e publicou o artigo “The Wonder Approach to Learning”, pela revista Frontiers in Human Neuroscience, em que apresenta sua teoria sobre aprendizagem. L’Ecuyer é autora de Educar en el asombro, traduzido ao português como Educar na curiosidade: a criança como protagonista de sua educação e Educar en la realidad, traduzido ao português como Educar na realidade, do qual trata a presente resenha.
L’Ecuyer assessorou o Governo do Estado de Puebla, no México, para uma reforma da Educação Infantil, formou parte de um grupo de trabalho para o Governo da Espanha sobre o uso das novas tecnologias pelas crianças e participou da elaboração de um relatório sobre leitura digital para o Centro Regional para a promoção do Livro na América Latina e Caribe (Cerlac) (Unesco). Recebeu o Prêmio Pajarita da Associação Espanhola de Fabricantes de Brinquedos. Ministra palestras sobre Educação em diversos países, mantém um blog educativo com mais de 1 milhão de visitas e escreve artigos sobre Educação para o jornal El País. Catherine L’Ecuyer também é colaboradora do grupo de pesquisa Mente-Cerebro da Universidad de Navarra, Espanha.
A perspectiva de L’Ecuyer parte da concepção aristotélica de que “todos os homens desejam conhecer por natureza”, lançando luz sobre uma manifestação do ser humano marcadamente presente na natureza infantil e que tem sido esquecida: o assombro diante da realidade. O assombro, inato na criança, é um desejo interno de aprender, que aguarda expectante o contato com a realidade para despertar-se, ou seja, trata-se de um desejo inato de conhecer, investigar e entender o mecanismo natural de tudo o que nos rodeia. Segundo a autora, este impulso interno está na origem de uma consciência baseada na realidade e, portanto, está na origem da própria aprendizagem com sentido. A autora defende que a verdadeira educação se diferencia da instrução ou do adestramento, pois implica o conhecimento do sentido que move o sujeito a descobrir.
Uma das principais questões abordadas por L’Ecuyer é a destruição do sentido do assombro nas crianças, através da antecipação de estímulos que não estão de acordo com as necessidades naturais da criança, como são as telas digitais. Interpretações fragmentadas da neurociência têm produzido ideias equivocadas que se vendem sob a etiqueta de “educação baseada na neurociência”, inspiradas na concepção cientificamente errônea de que a aprendizagem das crianças depende de um ambiente carregado de estímulos. Essas crenças têm reforçado a proliferação de posturas condutivistas na educação, tanto em casa quanto na escola, o que tem contribuído para aniquilar o sentido do assombro na infância e conduzido frequentemente a um estado de desmotivação e apatia, à ansiedade ou a comportamentos compulsivos e aditivos, durante a adolescência.
Em Educar na realidade, Catherine L’Ecuyer propõe uma reflexão sobre a educação e o lugar que ocupam, ou deveriam ocupar, as chamadas Novas Tecnologias no processo educativo de crianças e adolescentes. Segundo a autora, educar na realidade corresponde a educar conciliando os seguintes aspectos: 1) educar para o mundo atual e em que vivemos, em que as chamadas Novas Tecnologias são onipresentes e avançam em ritmo frenético; 2) educar as crianças no sentido da curiosidade (assombro) por tudo o que as rodeia, principalmente em contato com a natureza; e 3) educar com realismo, ou seja, considerando a perfeição de que a natureza de cada pessoa é capaz. A argumentação do livro se desenvolve em 22 capítulos que contribuem para compreender a proposta de educar preparando crianças e jovens para a realidade atual, protegendo a curiosidade inata e considerando o que é adequado à natureza humana em cada etapa de crescimento.
O século atual é caracterizado pela proliferação das Novas Tecnologias e por sua presença em todos os âmbitos de nossa vida, o que dá lugar a dilemas educativos que não existiam anteriormente. Frequentemente, acredita-se na necessidade de aprender a utilizá-las o mais cedo possível, para não perder o trem do futuro. Por outro lado, surgem questionamentos a respeito da idade adequada para o uso de dispositivos tecnológicos, sobre quais seriam os efeitos de sua utilização por crianças pequenas e, principalmente, sobre os riscos a que crianças e adolescentes estão expostos, ao consumirem o conteúdo transmitido pelas telas digitais e qual o procedimento adequado para controlar o acesso dos filhos a conteúdos impróprios e para evitar maiores riscos. No livro, a autora desenvolve esses temas, ajudando pais e professores a ampliarem a perspectiva e formular critérios sobre como educar no mundo atual e tecnológico.
No início o livro apresenta um breve panorama da realidade tecnológica atual, baseado em estudos científicos sobre o uso da tecnologia por parte de crianças. Os tópicos iniciais indicam que o uso das Novas Tecnologias por parte de crianças e adolescentes vem crescendo de modo assustador, se observarmos a quantidade de horas dispendidas diante de diferentes dispositivos com telas digitais, somadas, ultrapassa o número de horas do dia. Esse fenômeno se torna possível devido à multitarefa tecnológica. Outro fenômeno que se observa é que dispositivos tecnológicos como tablets e smartphones são entregues a crianças de idade cada vez mais tenra, geralmente com o objetivo de distrai-las ou torná-las mais independentes. Nesse aspecto, o livro traz informações as quais o público dificilmente tem acesso, como a relação entre o consumo de telas na infância e a diminuição da capacidade de atenção, a dificuldade de consolidação das funções executivas, e a apatia ou ansiedade na etapa da adolescência.
A autora adverte para a existência de crenças acerca do funcionamento cerebral, fundamentadas em compreensões insuficientes ou equivocadas, denominadas “neuromitos”, que estariam fomentando posturas favoráveis ao uso das tecnologias na educação. Os principais “neuromitos”, segundo a autora, seriam os seguintes: 1. “A criança tem uma inteligência ilimitada”; 2. “Só usa 10% de seu cérebro”; 3. “Cada hemisfério é responsável por um estilo de aprendizagem distinto”; 4. “Um entorno enriquecido aumenta a capacidade do cérebro de aprender”; 5. “Os três primeiros anos são críticos para a aprendizagem e, portanto, decisivos para o desenvolvimento posterior”.
Para amenizar os efeitos da propagação desses mitos, L’Ecuyer menciona estudos que demonstram: que as crianças não têm capacidade infinita, mas possuem limitações evidentes; que os hemisférios cerebrais funcionam em conjunto e não existe dominância de um hemisfério sobre o outro nos seres humanos; que não é necessário bombardear as crianças com estímulos sensoriais externos dos quais não necessita, pois é a relação de vínculo com um cuidador o que media e dá sentido às aprendizagens na infância; que embora os primeiros anos se caracterizem por uma maior sensibilidade cognitiva, a plasticidade do cérebro possibilita o desenvolvimento em qualquer etapa de crescimento.
Quanto ao uso da tecnologia por crianças e adolescentes, a autora questiona a ideia de que os “nativos digitais” contariam com poderes especiais, como se pertencessem a uma raça diferente, citando estudos que revelam que o uso de dispositivos tecnológicos por parte de crianças não garante melhor desempenho que as que não os utilizam, isso porque a abundância de informação consumida, na verdade, gera um empobrecimento da atenção focalizada e continuada. Diferente do que se difunde, “nativos digitais” não são capazes de realizar simultaneamente tarefas que implicam processamento da informação e o resultado de se dedicar a multitarefas tecnológicas é a dispersão. Tampouco é imprescindível que as crianças tenham acesso à tecnologia para aprender a utilizá-la desde cedo, pois, apesar de encontrar-se em constante avanço, seu uso é cada vez mais intuitivo, de modo que não é necessário conhecimento prévio ou prática para aprender a utilizá-la.
Quanto à motivação oferecida por tablets e smartphones, consiste em atração fugaz por entretenimento fácil, não se tratando de motivação autêntica, mas de um tipo de motivação que não desperta desejo interno de conhecer e que, na verdade, fomenta a dependência de recompensas imediatas e intermitentes, provindas de estímulos externos. Contrariando o discurso propagandístico que exalta a presença das Novas Tecnologias nas escolas, como um fator de motivação que potencializa a aprendizagem, a autora adverte que a motivação provocada pelo uso de dispositivos tecnológicos não promove a aprendizagem, mas sim a adesão passiva ao conteúdo transmitido. Para aprender verdadeiramente, é necessário despertar a motivação interna, que é baseada na curiosidade e na responsabilidade, e a motivação transcendente, que conduz à busca do que vale a pena conhecer e na realização daquilo que realmente tem sentido para a pessoa.
Ao acostumar-se a depender de estímulos sensoriais externos e cada vez mais intensos, as crianças desenvolvem a predisposição à diversão, não à aprendizagem, não desenvolvem a capacidade de tomar iniciativas ou decisões, de estabelecer metas próprias e esforçar-se por alcançá-las e de lidar com as situações imprevistas, mas tendem a comportar-se de maneira passiva e sem criatividade. Desse modo, as crianças desenvolvem não reconhecem o sentido do que fazem, acreditando que sempre é de outros a responsabilidade pelo que lhes ocorre, e acabam tornando-se adolescentes desmotivados. Crianças ou adolescentes que possuem o locus de controle interno, ou seja, que reconhecem a si mesmos como origem de suas ações, por outro lado, conseguem ser criativos, valorizando o esforço e a responsabilidade, sabem que são responsáveis pelos seus próprios atos e compreendem que suas ações têm impacto sobre os demais.
Tópicos abordados pela autora contribuem para compreender a importância de promover um estilo educativo que aproxima o educando daquilo que é bom, belo e verdadeiro para sua natureza, de acordo com sua etapa de crescimento e realidade. Nesses tópicos, L’Ecuyer contribui para recuperar noções esquecidas sobre aprendizagem e a estabelecer relações significativas entre aspectos importantes na educação, como são o esforço, a atenção, os vínculos, a sensibilidade e o pensamento. Por outro lado, além de não corresponder às necessidades reais da criança, a exposição à tecnologia digital na infância está relacionada com o surgimento de problemas de déficit de atenção e hiperatividade e, mais tarde, ao desenvolvimento de uma atitude marcada pela conformidade, que é o oposto da criatividade.
É nas relações interpessoais, e não diante das telas digitais, que se constrói o sentido de identidade pessoal e também a memória biográfica, a qual o sujeito recorre na busca de soluções para as situações que enfrenta durante a vida. Na falta de registros de experiências reais na memória biográfica explícita, que é formada pelas imagens plasmadas em relações humanas e com sentido, tendemos a recorrer automaticamente à memória implícita, que é formada por imagens fragmentadas e desconexas, provenientes de clipes musicais, jogos eletrônicos, postagens em redes sociais, apelos comerciais e outros atrativos. Na falta de elementos da realidade, que dão sentido à aprendizagem, a criança acumula conhecimentos desconectados da realidade mesma, produzindo uma brecha entre o real e o ilusório. Este “déficit de realidade” também está relacionado com o “déficit de pensamento” e com o “déficit de humanidade”, que estão relacionados à falta de sensibilidade e empatia, ambas resultantes da ausência de relações interpessoais com qualidade na mediação do conhecimento da realidade, durante a infância.
Assim como são necessários conhecimentos prévios para aceder ao uso de qualquer tecnologia, a criança deve desenvolver certas virtudes, como a capacidade de discernir o que é relevante, o sentido de autocontrole e as competências sociais, antes de ingressar no mundo virtual. Por isso, diferentemente da postura dominante, L’Ecuyer sugere: reduzir os estímulos externos que demandam continuamente a atenção e bloqueiam a sensibilidade natural; atrasar a gratificação para ajudar a desenvolver o locus de controle interno; buscar o sentido das aprendizagens a partir de motivações autênticas; favorecer as relações que consolidam o apego seguro e o sentido de identidade; proporcionar alternativas para que as crianças aprendam a reconhecer o que é valioso. A autora também sugere evitar a multitarefa tecnológica, que dispersa e torna crianças e adolescentes propensos ao consumo passivo de conteúdo irrelevante.
Em Educar na realidade, a proposta de L’Ecuyer não consiste em ignorar a valiosa contribuição da tecnologia em nossa vida, mas em considerar a necessidade de tomar distância da empolgação com a tecnologia para poder pensar “com serenidade, sem preconceitos nem interferências”, sobre o lugar que as Novas Tecnologias devem ocupar, ou não, na educação de crianças e jovens, considerando que a educação verdadeira visa a busca da perfeição de que é capaz a natureza humana. Se a promessa de que a tecnologia revolucionaria a educação não está acontecendo, talvez seja devido a que “a educação não é verdadeira por ser revolucionária, é revolucionária por ser verdadeira”, como afirma a autora. Para ser original, é preciso “voltar às origens” e, para inovar, é preciso “repensar ideias que não nos atrevemos a colocar em questão e sacudir paradigmas intocáveis”. Por isso, L’Ecuyer sugere pensar em alternativas para proporcionar mais oportunidades de “estrear a vida ao vivo e direto”, atraindo o olhar do educando para o esplendor da realidade, porque “a melhor preparação para o mundo digital é o mundo real”.