A tradição cristã afirma que o primeiro milagre de Jesus foi constatado, com surpresa, por um mestre-sala que, ao beber um vinho, que antes era água, chama o noivo e o elogia, pois deixou o melhor vinho para o final. Nos livros de filosofia, muitas vezes, acontece a mesma coisa que aconteceu nesse casamento em Caná da Galileia, ou seja, lemos muitas páginas e, no final, quase como um espanto, somos brindados com o mais profundo da originalidade filosófica de um autor. É isso que acontece, por exemplo, em O continente e a ilha: duas vias da filosofia contemporânea, de Ivan Domingues. Nesse sentido, na presente resenha, queremos ser apenas convidados e temos como intenção indicar novas pessoas, nossos leitores, para esse banquete filosófico. Assim sendo, começaremos nossa breve análise pelo final do livro e tentaremos reconstruir alguns de seus caminhos argumentativos, para mostrar a importância que tal obra possui para o estudo da história da filosofia contemporânea.
Na conclusão de O continente e a ilha, podemos encontrar uma avaliação das tradições filosóficas predominantes na contemporaneidade, de um lado, a tradição anglo-americana, de outro, a tradição continental. Ambas as tradições, segundo Domingues, apresentam sua própria força e não devem se transformar em certos radicalismos. Desse modo, apresentamos tais forças. A força da tradição anglo-americana está na coragem de seu pensamento:
A força da tradição anglo-americana está na coragem do pensamento, verificada na decisão de fazer tábula rasa da história e pensar os problemas com os meios do pensamento, meios lógicos como nos experimentos mentais, e não factuais ou empíricos, como na história da filosofia
(DOMINGUES, 2017, p. 150).
Porém, essa coragem pode ser uma fraqueza, pois, através de seu texto, o filósofo pode pensar que está parindo um elefante, quando, na verdade, está parindo apenas um ratinho.2 Nesse sentido, a força dos continentais apontaria para certa prudência que evitaria cair em tal equívoco, já que a força do continente estaria no uso que ele faz da história da filosofia:
A força da tradição continental está no uso da história da filosofia capaz de dar o contexto dos problemas, fornecendo os meios para o estudioso adquirir a familiaridade, afastando as ilusões da originalidade e preparando a mente para realizar as verdadeiras descobertas e reconhecer as intuições seminais
(DOMINGUES, 2017, p. 149).
No entanto, essa força também tem certa fraqueza, pois ela pode levar tanto a apologias, quanto a repetições. Por isso, Ivan Domingues defende que não fiquemos nem no continente, nem na ilha, mas em um barco, isto é, em um espaço de reflexão que busque originalidade para responder a problemas, como na ilha, mas que, ao mesmo tempo, dialogue com a história da filosofia como no continente. Assim, podemos destacar a grande contribuição de Domingues para o debate filosófico-contemporâneo:
De minha parte eu ficaria com o espaço da reflexão, na companhia de Canguilhem, com a expectativa de o filósofo o preencher com sua experiência pessoal e com elementos da própria realidade que o rodeia. Trata-se, pois, de um espaço ao mesmo tempo existencial, real e virtual, consistindo em quadros abstratos e conceptualizáveis, voltados para as coisas mesmas, remetidas à experiência, compartilháveis e comparáveis, e, por isso, abertos ao diálogo e caindo em discussão. E o que é importante: um quadro onde importam o problema e o fio do argumento do discurso, construído com ajuda de exemplos (reais ou imaginários, históricos ou atuais, pouco importa), conferindo ao exemplo o papel de controle do argumento e meio de prova
(DOMINGUES, 2017, p. 152).
A questão que fica é a seguinte: Que caminho Ivan Domingues trilhou para defender a ideia desse espaço de reflexão, que estaria aberto tanto ao continente quanto a ilha? Seu caminho foi longo. Domingues fez seu doutorado na Sorbonne, Paris I, na França, e um dos seus pós-doutorados na Universidade de Oxford, na Inglaterra. Sendo assim, ao longo de sua trajetória intelectual, o filósofo mineiro refletiu sobre as duas maneira de filosofar com as quais teve contato tanto a francesa quanto a americana e como essas ocupam o cenário da história da filosofia contemporânea (DOMINGUES, 2017, p. 9). Continente, que são as escolas francesa e alemã, e ilha, que são as escolas inglesa e americana, são rótulos que ele encontrou para organizar suas ideias e demarcar seus objetos estudados, que têm como base o contexto e o quadro da filosofia contemporânea. A metodologia que Domingues utilizou para apresentar suas reflexões, que culminaram na aposta de um espaço de reflexão que conciliasse o melhor das duas tradições, pode ser expressa no seguinte quadro:
Disciplinas/Tradições | Da ilha | Do continente |
---|---|---|
Metafísica | Timothy Williamson (1955-) | Hans Jonas (1903-1993) |
Epistemologia | Edmund Gettier (1927-) | Michel Foucault (1926-1984) |
Ética | Phillippa Foot (1920-2010), Kwame Anthony Appiah (1954-) e Marc Hauser (1959-) | Paul Ricoeur (1913-2005) |
Fonte: Elaborado pelo autor.
Alguns pontos devem ser destacados. Primeiro, as escolhas das disciplinas filosóficas. Ivan Domingues trabalha com recortes temáticos, o que permite que sua reflexão não se perca em meio a abstrações ou faça uma comparação leviana das tradições. Tal estratégia, além de ser prática, é louvável, uma vez que esses autores contemporâneos estão sempre em contato com o fazer filosófico-acadêmico, que implica tanto em ensino quanto com certa afinidade deles com essas disciplinas; segundo, seu foco está voltado totalmente à contemporaneidade, abarcando, dentro de suas possibilidades, as nações que compõem as tradições, como a americana, representada por Edmund Gettier e Marc Hauser, a inglesa representada por Timothy Williamson, Phillippa Foot, Kwame Anthony Appiah, a alemã representada por Hans Jonas e a francesa representada por Michel Foucault e Paul Ricoeur. Dito isso, passemos a uma explanação rápida acerca da análise de Domingues.
A primeira avaliação é feita da tradição anglo-americana e de seus experimentos mentais:
Enquanto a via da ciência moderna constituiu na associação da experiência e da matemática (como no caso de Newton), a filosofia pensa seus problemas usando a lógica como instrumento e – não podendo, como as ciências, experimentar diretamente as coisas – experimenta pensamentos e pensa experimentos mentais ou intelectuais. O resultado é a fusão da lógica e da experiência (intelectual) e a convicção de que esses experimentos mentais, ainda que mentais ou intelectuais, cumpram a mesma função dos experimentos científicos: meios de argumentação e de prova dos vaticínios e, portanto, instrumentos de atestação da verdade
(DOMINGUES, 2017, p. 41).
Mas por que os experimentos mentais devem ser avaliados? A estratégia de Domingues, como podemos ver na citação acima, se dá porque tais experimentos se adequam ao método lógico, ou seja, ao método analítico. Com isso, podemos perceber uma coisa: as demarcações tanto de ilha quanto de continente não são taxativas, mas estratégicas, para que o autor possa avaliar a riqueza que essas escolas possuem em suas maneiras de filosofar. Nesse sentido, Domingues é mais um arqueólogo, que busca artefatos preciosos, do que um juiz do pensamento e, por isso, colocamos em primeiro lugar em nossa resenha aquilo que ele faz com as coisas descobertas em sua empreitada. Dito essas coisas, podemos resumir a análise dos autores da ilha da seguinte maneira: Domingues determina, através do pensamento de Timothy Williamson, a análise conceitual como uma característica pós-analítica da ilha. Em seguida, avalia epistemologicamente essa corrente, por meio de Gettier e, eticamente, por meio de Foot, Appiah e Hauser.
A segunda avaliação é da tradição continental com sua história da filosofia:
A via da história da filosofia e seu papel estratégico, prosseguindo a comparação com a tradição anglo-americana, podem ser vistos tanto como um avatar da tradição humanista quanto um modo de dar à filosofia o contexto para colocar e situar os problemas e também o modo de resolvê-los e dar-lhes a expressão filosófico-literária. Por um lado, mostrando suas conexões ao longo do tempo e relativizando-os como fatos, acontecimentos, ou aspectos da realidade: história das ideias, doutrinas e das opiniões (gêneses, filiações, sobrevivências, transformações). Por outro lado, provendo os meios para proporcionar-lhes os lustros e as credenciais das artes, com ajuda da retórica naquelas vertentes mais afeitas à tradição literária, ou as credenciais da ciência, com a ajuda dos meios empíricos nas vertentes mais filológicas e positivistas
(DOMINGUES, 2017, p. 78-79).
O recorte espacial desta análise se dá através da Alemanha e da França. Porém, outro recorte ainda se faz mais fundamental: o temporal, tendo como modelo o pensamento de Hegel, que sempre é apresentado por Domingues com a seguinte expressão: “Danem-se os fatos!” (DOMIN-GUES, 2017, p. 81). Hegel mostra o quanto a história da filosofia filosófica é uma história conceitual, diferente daquela feita pelo historiador, por isso, danem-se os fatos! Embora existam características que distingam o filósofo contemporâneo francês do filósofo contemporâneo alemão, uma coisa permanece: a habilidade que ambos possuem para lidar com os problemas filosóficos invocando a tradição. Sendo assim, Jonas, Foucault e Ricoeur são analisados nos mesmos moldes que os da ilha, porém como pensadores que buscam atualizar ou superar a tradição.
Tudo isso permite a Ivan Domingues identificar as forças e os perigos dessas tradições. Além disso, permite a ele postular uma posição própria, oferecendo, assim, seu melhor vinho, como apresentamos no início de nossa resenha. Com isso, temos uma importante ferramenta para enfrentar duas coisas, que não foram tratadas diretamente em seu livro: “Por um lado, a perspectiva e o cenário dos anos que virão, tendo por quadro a filosofia contemporânea em face do embate de duas tradições, e, por outro lado, a inserção da filosofia brasileira neste cenário” (DOMINGUES, 2017, p. 26). Ademais, ainda permite a afirmação, na contemporaneidade, inclusive no cenário nacional, daquilo que ele entende como quem é o filósofo contemporâneo, que estaria próximo da concepção de Montaigne:
Como Montaigne, penso que o filósofo – livre da tirania do dado e do fato consumado, que avassala o pensamento do historiador e do cientista – se ocupa com maior proveito mais do mundo possível do que do mundo real, e tanto faz que os exemplos sejam reais ou imaginários e as coisas sejam verdadeiras ou falsas: desde que sejam pensadas...
(DOMINGUES, 2017, p. 154).
Desse modo, podemos dizer sem medo: com O continente e a ilha temos um excelente guia da história da filosofia contemporânea e do filosofar, pois temos, por um lado, um diagnóstico rigoroso da filosofia feito da história da filosofia contemporânea e, por outro, várias possibilidades investigativas sobre o cenário atual da filosofia, como a análise da filosofia brasileira, que o próprio Ivan Domingues explorou em Filosofia no Brasil: legados & perspectivas (2017). Sendo assim, resta-nos dizer que temos um livro que nos inspira, instrui e revela frutuosos horizontes, principalmente para nós que somos pesquisadores brasileiros.