1 Introdução
As investigações estabelecidas no presente artigo abordam, como ponto de discussão, a importância do ensino de filosofia africana em países afrodiaspóricos, especialmente no Brasil. A intenção, aqui, é abordar o apagamento da Filosofia Africana no processo de construção da educação brasileira. Assim, alguns questionamentos são importantes para dar forma à nossa discussão: O que compreendemos por filosofia africana? Qual é sua importância para nós? O objetivo não é deslegitimar a história da filosofia ocidental, mas apresentar uma breve abordagem histórica sobre essa e sua influência no processo de construção do conhecimento científico.
A antropóloga e filósofa Lélia Gonzaléz acredita que existe uma axiologia dos saberes que está atrelada à classificação social, ou seja, dentro da esfera do campo científico, o que é explicável através da “seguinte equação: quem possui o privilégio social, possui o privilégio epistêmico, uma vez que o modelo valorizado e universal de ciência é branco” (apud RIBEIRO). De acordo com a autora, o racismo constitui uma “ciência da superioridade eurocristã (branca e patriarcal)” (2017, p. 16).
Assim, como afirma Audre Lorde (1979), as ferramentas do mestre não vão desmantelar a casa-grande, ou seja, são necessárias perspectivas que tenham como base outras filosofias, invisibilizadas pela filosofia ocidental. Tem-se, então, a descolonização do pensamento, que surge como um possível caminho para desmantelar a casa-grande.
Para compreender os pressupostos que levaram à universalização do conhecimento tendo o continente europeu como único referencial, é imprescindível deslocar a centralidade do pensamento do eurocentrismo. Dessa forma, selecionamos autores e autoras não eurocêntricos, que darão suporte teórico para esta pesquisa, trazendo uma teoria crítica à filosofia ocidental e ao modelo de sociedade estabelecido ao longo de cinco séculos, refletindo sobre a importância da filosofia africana no processo de construção das ciências na diáspora brasileira. Acreditamos na necessidade de trazer uma breve explicação acerca da filosofia africana ubuntu neste artigo, com o propósito de apresentar a existência de uma filosofia diferente da que nos é ensinada há séculos, nas escolas.
Portanto, objetivamos com este artigo compreender, através de uma revisão bibliográfico-qualitativa, como a falta de reconhecimento dos povos diásporos acarretou o silenciamento da filosofia africana, articulando os estudos em Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS) como possível aliada no processo de descolonização do conhecimento. O artigo está divido em três partes: em um primeiro momento, as discussões giram em torno da concepção do conhecimento científico através da filosofia ocidental, apresentada por Luis Thiago Freire Dantas (2018) e Katiúscia Ribeiro (2017). Em seguida, articulamos o conceito de descolonização, investigado pelo filósofo Frantz Fanon (1968) e os estudos da CTS, a partir de Renato Dagnino (2008, 2014), como um novo espectro a descolonização do conhecimento. Por fim, nas considerações finais, apontamos os desafios e as perspectivas da educação brasileira sobre o ensino de filosofia africana.
2 O processo de construção do conhecimento científico e suas bases filosóficas
Desde sua gênese histórica na Grécia Antiga, a filosofia e os filósofos1 acreditavam que os seres humanos africanos não possuíam epistemologias, ou que não eram relevantes (sociedades a-históricas) para a construção do conhecimento científico. Ao nos debruçar sobre o referencial teórico-filosófico, não é difícil identificar quem foram seus precursores: Tales de Mileto, Sócrates, Aristóteles, todos os filósofos gregos, nomes que, de modo recorrente, surgem quando buscamos alguma referência sobre a origem do pensamento filosófico. O encontro com esses teóricos reproduz a ideia de uma filosofia universal, com uma determinada localização geográfica. “Tal universalidade é sustentada por uma suposta origem geográfica que, como tal, promoveu a abstração do conhecimento universal” (DANTAS, 2018, p. 17).
Para compreender os pressupostos que levaram à universalização do conhecimento, tendo o continente europeu como único referencial teórico, é necessário deslocar a centralidade do pensamento dos países eurocêntricos. Para isso, selecionamos autores pós-coloniais e decoloniais que apresentam uma teoria crítica à filosofia ocidental e ao modelo de sociedade estabelecido ao longo de cinco séculos. As discussões aqui apresentadas são de Ribeiro (2017), Dantas (2018), Noguera (2014, 2012), Ramose (2011), Carneiro (2005) e Quijano (2005, 2009). Esses pensadores e serão utilizados para desenhar o processo de ausência dos povos africanos na construção do conhecimento, tendo como ponto de partida o epistemicídio e a colonialidade.
De acordo com o filósofo jamaicano Charles Mills (1997), é possível afirmar que a filosofia ocidental é a mais branca de todas as humanidades, como ele denomina whitetest – mais branca2 – ela exclui e não legitima outros saberes. Diante disso, temos um processo de construção do conhecimento científico racista-estrutural-epistêmico.
Afirmou isto o filósofo alemão Immanuel Kant:
Dentre todos os povos, pois, os gregos foram os primeiros a começar a filosofar. Pois eles foram os primeiros a tentar cultivar os conhecimentos racionais, não tomando as imagens por fio condutor, mas in abstrato; ao invés disso, era sempre in concreto, através de imagens, que os outros povos procuravam tornar compreensíveis os conceitos
(1992, p. 44).
É possível identificar, através das palavras de Kant, que a filosofia grega tem um referencial pautado pela razão. De acordo com o pensador, a filosofia universal in abstrato é um conhecimento especulativo da razão, e o conhecimento in concreto estaria ligado a um conhecimento comum (KANT, 1992, p. 44). Assim, a racionalidade seria o fio condutor para definir o berço da filosofia, estabelecendo a ideia de hierarquia e colocando a filosofia ocidental no centro e as demais na periferia.
A filosofia surge através da busca e do amor pela sabedoria, concebendo a sabedoria dentro da experiência humana. A existência da vida humana se dá por todos os continentes, e se há vida em todos os lugares, consequentemente, existem experiências humanas e filosóficas em todos os lugares. “Ela seria onipresente e pluriversal, apresentando diferentes faces e fases decorrentes de experiências humanas particulares” (RAMOSE, 2011apud OBENGA, 2006, p. 49). Um caminho para essa mudança de paradigma eurocêntrico seria não usar o conceito de universalidade, mas de pluriversalidade, que possibilita a multiplicidade de saberes filosóficos presentes em lugares e tempos diversos. Essa perspectiva é fundamental para superar a categoria de lugar geográfico e dialogar com outras epistemologias e filosofias.
De acordo com Katiúscia Ribeiro (2017), o caráter eurocêntrico da filosofia se manteve intacto desde o século XX até o início do século XXI. A heterogeneidade presente no cânone filosófico-europeu tornou-se referência para os povos ao redor do mundo (RIBEIRO, 2017, p. 17). Nesse sentido, Dantas afirma que a filosofia pode “inviabilizar conhecimentos locais em detrimento de uma sistematicidade global” (2018, p. 20). Essa sistematicidade global apresentada por Dantas nos leva a pensar nas correntes epistemológicas hegemônico- eurocêntricas que são calcadas no campo filosófico universal, utilizada para balizar modelos universais e civilizatórios, econômicos, culturais e educacionais de sociedades ao redor do mundo.
Durante séculos, povos africanos foram compreendidos como povos a-históricos, que não tinham capacidade racional para cunhar outras epistemologias e filosofias. O processo de negação do negro africano pela filosofia ocidental encontra-se baseado na inferiorização do negro, colocando-o em uma categoria de animal, retirando sua humanidade. Esse processo é responsável pelo deslocamento/distanciamento do negro ao longo da história da humanidade.
O filósofo brasileiro Renato Noguera define esse processo de animalização, como “zoomorfização” dos povos africanos. O projeto colonial fragmentou os povos “em raças e desqualificou todos os povos não europeus [...] E, sem dúvida, os povos africanos foram designados pelo eurocentrismo como menos desenvolvidos” (NOGUERA, 2014, p. 25). A zoomorfização pode ser compreendida no sentido de balizar o processo de epistemicídio e escravização dos povos negros africanos.
Ramose define o epistemicídio como o “assassinato das maneiras de conhecer e agir dos povos africanos conquistados” (2011, p. 6). Partindo de premissas foucaultianas de poder e biopoder, Carneiro (2005) compreende o epistemicídio como uma “tecnologia de poder” criada para tentar suprimir outras formas de conhecimento e cultura que não fossem brancas. Para a autora o epistemicídio vai além de anular, apenas, práticas de conhecer e agir; ele acontece também
pela negação ao acesso à educação, sobretudo de qualidade; pela produção da inferiorização intelectual; pelos diferentes mecanismos de deslegitimação do negro como portador e produtor de conhecimento e de rebaixamento da capacidade cognitiva pela carência material e/ou pelo comprometimento da auto-estima pelos processos de discriminação correntes no processo educativo
(CARNEIRO, 2005, p. 97).
A questão do epistemicídio é central para compreender os desdobramentos sociais, culturais, educacionais e econômicos, em que se encontra a maioria da população negra brasileira. “O epistemicídio fere de morte a racionalidade do subjugado ou a sequestra, mutila a capacidade de aprender, etc.” (CARNEIRO, 2005, p. 98). Ainda assim, o epistemicídio não foi capaz de suprimir totalmente as maneiras de conhecer e agir dos povos africanos conquistados, mas introduziu, entretanto, – e numa dimensão muito sustentada através de meios ilícitos e justos – a tensão subsequente na relação entre as filosofias africana e ocidental na África (RAMOSE, 2011, p. 9).
O epistemicídio pode desqualificar outros saberes que fogem do centro epistêmico, colocando a filosofia ocidental dentro de uma epistemologia hegemônica quase intocável. A epistemologia hegemônica tenta, a todo custo, invisibilizar outros saberes “o que está em jogo é a colonialidade e o epistemicídio sistemático que a acompanham, desqualificando o que podemos denominar de territórios epistêmicos colonizados” (NOGUERA, 2012, p. 68). De acordo com o filósofo peruano Aníbal Quijano, a colonialidade diz respeito às diversas ferramentas de dominação, exploração e subordinação a que foram submetidas populações nativas, sustentadas por uma classificação étnico-racial. Ela é entendida como “uma construção mental que expressa a experiência básica da dominação colonial e que, desde então, permeia as dimensões mais importantes do poder mundial, incluindo sua racionalidade específica, o eurocentrismo” (2005, p. 1).
É importante ressaltar que, por mais que haja uma ligação entre o colonialismo e a colonialidade, os termos situam-se em contextos históricos e temporalidades diferentes. O colonialismo, baseado na ideia de dominação/exploração, não precisa, necessariamente, estar ligado à classificação étnico-racial. Já a colonialidade existe, pelo menos, há cinco séculos e se mundializa com a colonização das Américas tendo como principal base a classificação étnico-racial (QUIJANO, 2009).
Intentamos, então, apresentar afroperspectivas (NOGUERA, 2011) que caminham na contramão do conhecimento universal determinado por um território geográfico. Pensar no ensino, no sentido da afroperspectiva, significa pensar/ter um olhar pluriversal, reconhecendo que todas as perspectivas devem ser válidas (NOGUERA, 2012).
A disseminação de pensamentos como os de Abdias do Nascimento (1980, 1995), Cheikh Anta Diop (1974), George G. M. James (1954), Amadou Hampâté Bâ (1981), Renato Noguera (2011, 2012, 2014, 2016), entre outros, demonstram a pluriversalidade presente no continente africano, inserindo possibilidades de novas perspectivas filosóficas na educação brasileira. Nessa perspectiva, optamos por dialogar com os estudos CTS, que abordam, de maneira crítica, o desenvolvimento da ciência e da tecnologia, colocando os atores sociais como agentes conscientes no que diz respeito à construção do conhecimento, tornando-os sujeitos de suas práticas sociais.
3 Os estudos em CTS: um novo espectro para a descolonização do pensamento
O marco teórico de onde emergem os estudos em CTS remontam ao final da década de 40 e início da década de 50, após as atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial, questionando a suposta neutralidade da ciência e as consequências de seus aparatos tecnológicos e na sociedade. Os estudos em CTS visam a romper o paradigma da ciência moderno-hegemônica e supostamente neutra, defendendo uma maior participação social no processo decisório da ciência e tecnologia, na contramão do determinismo tecnológico.
Em nossa análise, é a partir dessa lógica intermultitransdisciplinar que podemos romper com uma ciência hegemônica que nos foi imposta, pois se trata de uma revalorização de outras formas possíveis de se fazer ciências a partir de múltiplas bases teóricas e de sujeitos epistêmicos que nos levem a uma horizontalização de relações e não àquela hierarquização rígida de uma única via. Como apontado em outro momento, não estamos negando uma ciência europeia e toda sua contribuição, mas mostrando que existem muito mais possibilidades e realidades.
Assim, os estudos em CTS permitem pensar no uso da ciência e tecnologia para promover a igualdade, o bem-estar e a inclusão social (DAGNINO, 2008, 2014). De acordo com Dagnino (2008), a tecnociência não pode ser entendida como uma simples ferramenta; mais do que isso, ela é entendida como suporte para vários estilos de vida possíveis. Para tanto, “abre-se, assim, um longo espectro de possibilidades para pensar esse [sic], tipo de escolha, questioná-las e submeter sua tradição em projetos e desenvolvimento a controles mais democráticos” (2008, p. 145).
O filósofo e médico psiquiatra Frantz Fanon (1968) dedicou parte de seus estudos analisando o modus operandi dos processos científico e tecnológico que os franceses estabeleceram com o povo argelino, identificando a relação de poder entre o colonizador e o colonizado. Seus escritos e sua presença influenciaram no processo de independência de países africanos e abriram caminhos para um novo espectro sobre a descolonização. O professor Ivo Pereira de Queiroz (2013) dedicou sua tese3 de doutorado a estabelecer a descolonização da ciência e da tecnologia pelo olhar de Fanon, colocando o autor como central dentro dos estudos em CTS.
De acordo com Fanon (1968), a relação de superioridade entre colonizador e colonizado, na Argélia, poderia ser vista na relação entre médico e paciente, por exemplo. Ao perceber essa relação, observou que as comunidades autóctones desconfiavam que os benefícios decorrentes do desenvolvimento científico-tecnológico desenvolvido pelos franceses, no fundo, eram apenas mais uma armadilha colonialista.
Fanon mostra que os avanços da ciência e da tecnologia não eram assimilados da mesma maneira que eram pelos franceses. Na relação médico/paciente, sobressaía a posição hierárquica entre colonizador e colonizado, e a população autóctone renunciava aos serviços médicos, mesmo que os riscos pudessem ser radicais. “O princípio de se manter afastados dos franceses governava as atitudes dos argelinos para com os médicos, engenheiros e quaisquer outros representantes da dominação colonial” (QUEIROZ, 2013, p. 99). A relação médico/paciente para os argelinos, em um sentido freireano,4 seria como colocar o opressor ante o oprimido.
O pensamento de Fanon está fundamentado no anticolonialismo, pois mostra como a violência colonial (presente nos processos científicos e tecnológicos) sustentava a inferioridade do negro no contexto argelino, evidenciando que não existe neutralidade no processo técnico-científico estabelecido pela ciência universal. É possível, então, articular o pensamento de Fanon aos estudos em CTS, pois ambos trazem a ideia de romper com a não neutralidade na ciência (DAGNINO, 2008).
Na visão de Fanon, romper com o sistema colonial inserido na ciência e na tecnologia seria possível por meio da descolonização, não apenas territorial, mas também uma descolonização de mentes e corpos. No Brasil, por exemplo, a independência ocorreu ainda no século XIX, mas no sentido prático seríamos um país descolonizado? Qual é o contexto técnico-científico brasileiro? Constatamos que vivemos um momento em que nossas mentes e práticas, em sua grande maioria, encontram-se colonizadas.
Partimos do conceito de descolonização apresentado por Fanon como o fio condutor para desmantelar a casa-grande, articulando o campo de estudos em CTS, de modo a romper com a hegemonia científico-tecnológica presente até os dias atuais. Reforçamos: nosso intuito não é rejeitar os avanços científico e tecnológico propostos pela filosofia ocidental, mas abrir novos horizontes para pensarmos além do eurocentrismo.
De acordo com Fanon (1968), a descolonização propõe mudar a ordem do mundo na sua forma e conteúdo. Entendemos que isso não é um processo simples, haja vista que necessita de engajamento e abertura para novas possibilidades, inclusive a de se fazer ciência e de praticá-la a partir de múltiplas metodologias que deem conta da diversidade.
Nessa linha, podemos elencar vários estudos, como os de Porto-Gonçalves (2017) e seus textos sobre a Amazônia. Em linhas gerais, o autor mostra a imagem que nos passam desse território, meramente como o lugar de uma flora e fauna diversificadas e ricas. De fato, é isso também, mas temos ainda uma diversidade de povos/comunidades que coevoluíram com a floresta e que são responsáveis por essa riqueza.
Lembra o autor que há cerca de 10 mil anos, o que tínhamos ali era algo que lembrava uma savana e não essa exuberância toda.
Estamos falando, ao menos, de 180 idiomas falados, além daqueles impostos pelos colonizadores, e de práticas e saberes que geram riqueza. Isso é muito diferente de uma ação antrópica pautada pela exploração de gado, soja e garimpo. Ao não enxergarmos a floresta como ela é, com seus povos, comunidades e culturas, estamos cometendo o epistemicídio, conceito que o autor também utiliza e que tem como referencial, dentre outros, Boaventura de Sousa Santos.
Milton Santos (2013) já vinha chamando a atenção à necessidade de produzirmos conhecimento a partir dos países subdesenvolvidos desde os anos 60, muito antes de termos, por aqui, a propagação, em larga escala, das ditas “Epistemologias do Sul”, que tratam dessa diversidade de ciências, técnicas e tecnologias. Para Santos é fundamental uma base científica bem-consolidada, com métodos claros e resultados que contribuam com as sociedades, portanto, olhar a partir de nossas realidades seria o primeiro passo.
Isso fica evidenciado em trabalhos como aquele que mostra os impactos na globalização, os quais resultam numa heterogeneidade de espaços/modos de vida, contrariando uma possível homogeneidade espacial via globalização. Segundo o autor, os pobres e a classe média, cientes de seu papel transformador, seriam fundamentais para rompermos com essas imposições, seja da ciência opressora, seja da concentração de renda e do monopólio das informações (SANTOS, 2020).
Tanto para Santos (2013) quanto para Fanon (1968), o processo de independência dos países subdesenvolvidos não muda a estrutura colonial à qual foram impostos durante séculos. De acordo com Fanon, o Terceiro-Mundo não está excluído, ele é o centro da tormenta. Nesse sentido, países colonizadores continuam a manter o tom de violência, mesmo depois da independência desses países. Em outras palavras, podemos ter conquistado a independência, mas não conquistamos a descolonização.
Como apresentado na introdução deste artigo, nosso objetivo é abrir novos caminhos para a inserção do ensino de filosofia africana, no processo da educação brasileira, e descolonizar a ciência e a tecnologia é essencial para rompermos com o epistemicídio e a colonialidade ainda presente em nosso processo educacional, caminhando em direção a uma educação emancipadora e mais justa.
Pensar em filosofia africana é pensar de maneira pluriversal, em afro-perspectividade, visto que tais conhecimentos são de suma importância em países como o Brasil, que recebeu o maior número de pessoas escravizadas do mundo e que tem sua população constituída, em sua maioria, por pretos e pardos. A cidade de Salvador – BA é considerada uma pequena África, por conter o maior número de negros fora do continente africano. O ensino de filosofia africana, na diáspora brasileira, seria necessário para compreender nossas verdadeiras raízes, despertar nossa ancestralidade, conhecer e reconhecer elementos culturais, técnicos, científicos, linguísticos e religiosos de nossos antepassados negros.
É importante salientar que houve alguns avanços sobre essa temática no Brasil, mas isso só se deu após longos anos de luta do “Movimento Negro e Indígena”. No âmbito das políticas públicas, podemos destacar duas importantes leis que alteram a Lei n. 9.394/1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que são: a Lei n. 10.639/2003, que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional para incluir, no currículo oficial da rede de ensino, a obrigatoriedade do ensino de história e cultura africanas e afro-brasileira; e a Lei n. 11.645/2008, que insere a obrigatoriedade do ensino de História e da cultura dos povos indígenas.
A aplicação dessas leis é válida em todos os níveis educacionais e em todas as modalidades de ensino (NOGUERA, 2012, p. 70). Dessa maneira, é possível trazer, para o centro do debate, conhecimentos até então periféricos, recusados e subalternizados pela estrutura colonial. A inclusão social não pode ser desassociada do conhecimento técnico-científico, afinal, “a proposta da inclusão supõe a geração de conhecimento que seja coerente com os valores e interesses dos excluídos” (DAGNINO, 2014, p. 167).
A instituição da Lei n.10.639/2003 abre a possibilidade para inclusão da filosofia africana bantu ubuntu nos currículos das escolas e universidades brasileiras.
De acordo com Noguera,
ubuntu pode ser traduzido como o que é comum a todas as pessoas. A máxima Zulu e Xhosa, umuntu ngumuntu ngabantu (uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas) indica que um ser humano só se realiza quando humaniza outros seres humanos
(2011, p. 148, grifo nosso).
Diferentemente do eurocentrismo – que tentou desumanizar povos africanos – a inserção da filosofia ubuntu, no processo educativo brasileiro, pode reconfigurar a noção de humanidade e desconstruir a imagem negativa da África e do negro, em especial, dos povos diásporos submetidos à escravização. Dentro de uma perspectiva em CTS, o ensino de filosofia africana colabora para o processo de democratização técnico-científico, retirando o continente europeu como único referencial teórico, proporcionando aos sujeitos a condição de sair do lugar de colonizados.
Essa ideia de humanização é fundamental justamente porque todas as atrocidades cometidas com os povos/comunidades/culturas latino-americanas e africanas vieram a partir do não reconhecimento desses como humanos. Tornar-se humano foi uma das primeiras conquistas em relação ao colonizador. É assim que Fanon (1968) alude a possibilidade de resistirmos ao avanço do capital e de conquistarmos a nossa independência de fato. Por isso pensarmos na constituição de estados nacionais que valorizem seus povos/comunidades e que criem estruturas para a valorização da diversidade é fundamental.
Comecemos pela valorização das ciências (no plural mesmo), pela criação de políticas públicas inclusivas e pela capitalização de tudo, pois, como apontou Milton Santos (2020), o dinheiro não pode ser o centro de tudo.
4 Considerações finais
Pensar nos estudos em CTS, por meio da afro-perspectiva, é uma maneira de colocar, no centro do debate, povos e comunidades excluídos ao longo de cinco séculos. É descolonizar nosso corpo, nossa mente e nosso sistema de ensino; é tirar a independência da teoria e colocá-la em prática. Pensar em uma afro-perspectiva em CTS consiste em descolonizar o principal aparato tecnológico utilizado nas salas de aulas: o livro didático, que narra a história do negro e do índio ainda como subalternos. É descolonizar a formação de professores, incluindo a filosofia africana nos currículos dos cursos de licenciatura, entre outros.
Ao longo deste artigo, apresentamos possibilidades de romper com o cânone estabelecido no processo de ensino e aprendizagem brasileiro, destacando que existem outras possibilidades de se fazer ciência, a exemplo da filosofia pluriversal ubuntu.
O projeto colonial, mesmo apoiado no epistemicídio e na colonialidade, não foi capaz de aniquilar saberes e conhecimentos dos povos africanos, e os elementos da filosofia africana encontram-se presentes nas mais diferentes formas dentro do território brasileiro, por meio da capoeira, das religiões de matriz africana, das comunidades quilombolas. Todos esses elementos estão ligados, de alguma maneira, ao continente africano, podendo servir como base filosófica para reformular e ampliar currículos, livros didáticos, formas e maneiras de pensar.
A exemplo da filosofia africana, outras epistemologias surgem na contramão da lógica ocidental, e, de acordo com Acosta (2016), a possibilidade de mudarmos o mundo é pelo buen vivir ou pelos bons viveres, já que falamos da diversidade de povos/comunidades e de seus modos de vida. Portanto, é necessário um olhar pela cosmovisão de populações autóctones e povos e comunidades tradicionais, como as remanescentes de quilombos, que contestam estilos de vida baseados no consumismo e na mercadologização de tudo, até da vida humana.
Assim, Acosta defende que uma das tarefas fundamentais reside no diálogo permanente e construtivo de saberes e conhecimentos ancestrais com a parte mais avançada do pensamento universal, em um processo de contínua descolonização da sociedade.
O que une todos os autores citados é o apontamento de caminhos possíveis para a descolonização e que devemos unir forças para combater a exploração que assola nossa vida desde sempre. Como afirma Milton Santos, “agora que estamos descobrindo o sentido de nossa presença no Planeta, pode-se dizer que uma história universal verdadeiramente humana está, finalmente, começando (SANTOS, 2020, p. 174).