Introdução
No dia 28 de dezembro de 1895, em Paris, na primeira exibição pública de cinema, Lumière afirmou que o cinematógrafo não tinha futuro como espetáculo, sendo apenas um instrumento científico que reproduzia movimentos. Mais de um século depois, é indiscutível que Lumière se equivocou, afinal o cinema constitui um dos mais importantes meios de comunicação de massa da atualidade e uma linguagem com diversas contribuições para o ensino e, especificamente, para o ensino de história.
O cinema é uma arte da memória individual, coletiva e histórica. Ele ritualiza em imagens, visuais e sonoras, uma percepção de mundo. Por meio do cinema, as pessoas podem conhecer sociedades do passado, do presente e do futuro. Ele pode ajudar a denunciar, a calar, a distorcer, a não convencer, a alienar. Qualquer que seja a abordagem, tornou-se uma das grandes fontes inspiradoras e modeladoras de valores de vida, anseios e desejos (Reali, 2007; Vasques, 2011). A experiência estética que o cinema proporciona nos faz repensar atitudes, reavaliar valores, questionar conivências com posturas antes inquestionadas. Essa possibilidade de reflexão e de mudança serve como expressão das possibilidades educativas e éticas do cinema (Silva, 2007).
O século XX pode ser caracterizado como o ‘século da imagem’, especialmente pelo protagonismo e pela crescente importância que as imagens adquiriram na vida cotidiana, e constata-se que, nesse início do novo século, o campo do audiovisual atravessa diretamente os debates sobre cidadania e educação. Conforme os apontamentos de Angel Luís Huesto Montón (2009), o campo é marcado por dois aspectos significativos: a extensão e a profundidade. A extensão remete aos âmbitos geográficos e sociais, expressa no fato de as manifestações audiovisuais envolverem locais e grupos sociais de todo tipo, permitindo que um mesmo filme seja acessado por pessoas de ambientes, culturas e gerações os mais distintos. A profundidade, como consequência, resulta na presença das imagens em todos os momentos da vida do potencial espectador. Ainda segundo o autor, torna-se necessário, na atualidade, um conhecimento, mesmo que rudimentar, que ensine a ler as imagens, visto que permanecemos dando atenção especial ao texto e, por vezes, mantemos um ensino concentrado na palavra escrita, ao passo que o conhecimento das imagens e uma postura crítica perante elas permanecem em segundo plano e distantes do ambiente escolar.
No mesmo quadro de problemáticas, Maria Setton (2004) enfatiza que a linguagem midiática (som, imagem, narrativas, gêneros ficcionais etc.) nos transmite um conjunto de saberes carregados de sentidos e juízos de valor, os quais servem como importantes agentes socializadores, ora servindo como fonte de informação e referências de comportamentos, ora cumprindo papel de instrumento ideológico. Acrescenta-se que a relevância alcançada pela imagem ao longo do século XX faz dela o espaço no qual se travam disputas que vão da transformação dessa imagem em capital, passando pela cultura, até a pedagogia pela imagem, o que implica a necessidade de encarar a esfera da mídia como campo pedagógico estratégico do presente (Ravanello, 2007).
Desse modo, o cinema é um meio de comunicação de massa e entretenimento que influencia a maneira como o mundo é percebido, e, por essas características, desde os primeiros passos da sétima arte a relação com o ensino foi posta em discussão. Nos primórdios da arte, educadores iniciaram a reflexão sobre o uso do cinema como recurso didático baseado na ideia de repassar os fatos da maneira mais sucinta e objetiva possível. No caso brasileiro, Jonathas Serrano, professor do Colégio Pedro II, por exemplo, advogava em prol da aprendizagem pelos olhos já em 1912, defendendo a temática que foi amplamente investigada nos EUA na primeira metade do século e alvo das propostas da Escola Nova no Brasil (Abud, 2003).
As obras cinematográficas acabam por construir uma visão de passado influenciada por diversos fatores, como valores, estereótipos, visões de mundo e ideologias. Dessa maneira, nem sempre o que é exibido no cinema coincide com o conhecimento histórico produzido pelos historiadores. Esse aspecto, por vezes, limitou a relação entre história e cinema; todavia, existe um novo mundo visual do passado que é resultado, entre outros fatores, do discurso fílmico, perspectiva que amplia significativamente as potencialidades do uso do cinema no ensino. A história não é ensinada e apreendida apenas no espaço escolar, existindo inúmeros outros focos de saberes históricos. Nesse contexto, pode-se afirmar que, em nossa sociedade, uma sociedade com predominância de elementos visuais, as imagens se tornaram fonte de conhecimento histórico.
Os filmes e, em especial, os filmes com temática histórica constituem meio privilegiado para a construção de discursos sobre o passado, formando, juntamente com outros discursos, a consciência histórica. Como argumenta Robert Rosenstone (2015), filmes, minisséries e documentários são gêneros cada vez mais importantes em nossa relação com o passado e para nosso entendimento da história. Os filmes permitem inventar fatos, isto é, elaborar vestígios do passado. Eles têm o poder de produzir o efeito de real, efeito tão forte no espectador que possibilita tomar a representação pela coisa real (Rossini, 1999).
Em que pese a importância da produção fílmica, tanto no ensino quanto no meio acadêmico da história, as imagens cinematográficas demoraram a conseguir sua inserção. Relativamente aos historiadores, o apreço pela documentação escrita parece explicar o desprezo pela arte de Lumière, situação que conheceu mudanças significativas exatamente a partir da ampliação da noção de documento por parte dos seguidores de Clio. A exploração das fontes visuais, entre elas a iconografia cinematográfica, teve impulso em torno dos anos 1960 e 1970, especialmente com os trabalhos de Marc Ferro e Pierre Sorlin, evidenciando que a imagem não reproduz a realidade, mas a reconstrói com base em uma linguagem própria, produzida em determinado contexto histórico.
Apesar disso, permanece o conservadorismo em relação ao uso de filmes no ambiente escolar, restringindo-se ao conteúdo e pouco explorando a linguagem imagética ou a obra fílmica como expressão de determinada imagem do mundo. Do mesmo modo,
[…] persiste a ideia da existência de um mundo positivo, real, que pode ser captado pelas imagens, daí a permanência da valorização dos documentários que teriam um compromisso maior com a realidade. O documentário e os filmes de época ou históricos têm, para a maior parte dos professores que utilizam a filmografia em sala de aula, o mesmo valor didático de um texto de um livro de História. O filme é mais utilizado como um substituto do texto didático ou da aula expositiva, ou é ainda considerado uma ilustração que dá credibilidade ao tema que se está estudando (Abud, 2003, p. 189).
Como ressaltam Caparrós-Lera e Rosa (2013, p. 199), é preciso compreender que o discurso fílmico, seja ele presente no filme histórico, no documentário ou em uma obra de ficção, está sempre tomado pela subjetividade. Ao considerar esse pressuposto, o professor não deve cometer o erro de buscar nas produções cinematográficas a verdade histórica, porque não a encontrará. Para os autores:
[…] o cinema assume um duplo papel no ensino de história: agente e documento. Agente da história uma vez que transmite conceitos e valores do seu tempo, sendo um produtor de sentidos. Neste caso, é preciso associar a produção cinematográfica com o mundo que a produziu para entender como ele atua repassando valores e conceitos. Documento, porque os filmes auxiliam a construir a história, através da pesquisa, e a compreender o mundo.
Partindo desses pressupostos, propõe-se uma reflexão sobre cinema e ensino de história, dando especial atenção aos conteúdos de história medieval e ao gênero cinematográfico animação, especificamente aos desenhos animados.
Desenhos animados no ensino de história
Em linhas gerais, entende-se por animação uma sequência de imagens que cria a ilusão de movimento, distinguindo-a do cinema convencional, do ponto de vista técnico, pelo fato de as imagens serem registradas fotograma a fotograma1, e não de forma contínua. Essa característica faz com que o gênero se aproxime da noção de irrealidade, abarcando temas como o sonho, a fantasia e outras abstrações, dando ainda ânimo e vitalidade a entidades que não os possuem (Nogueira, 2010).
Os trabalhos pioneiros da animação radicam em finais do século XIX e inícios do século passado, em especial com as produções de Georges Méliès, Stuart Blackton, Émile Cohl e Winsor McCay. Este último iniciou a prática de conferir personalidade e forma humanas aos personagens, o que levaria ao sucesso do gênero. Essa característica da obra de McCay é percebida em ‘Little Nemo’ (1911), ‘How a Mosquito Operates’ (1912) e ‘Gertie the Dinosaur’ (1914), precursores do gênero. Na sequência dessas produções, os anos 1920 viram surgir expoentes como os irmãos Fleischer, criadores dos personagens Betty Boop e Popeye, e Walt Disney, que se tornaria referência estética e industrial no campo da animação.
Foi com Disney que a animação atingiu sua maturidade e ingressou no que muitos veem como sua época de ouro, os anos 1940 (Nogueira, 2010). Nesse contexto, foi lançado o primeiro longa-metragem de animação, ‘Branca de Neve e os Sete Anões’ (1937), seguido de ‘Pinóquio’ (1940), ‘Fantasia’ (1940), ‘Dumbo’ (1941) e ‘Bambi’ (1942), as bases da animação clássica.
Ao problematizar a produção da Disney, Reali pontua que vários estudos têm revelado a ‘pedagogia cultural’ promovida pelos estúdios, e, nesse sentido, a programação da Disney:
Assume a postura de ‘pedagogia cultural’. Ela ensina, portanto, coisas às crianças e aos adultos. Assim, meninas e meninos vão encontrando nas histórias, nos personagens, nos cenários uma fonte de informações tanto sobre seus modos de agir no grupo ao qual pertencem quanto formas de olhar o outro. Vibram, defendem ou condenam as ações de um ou de outro personagem, tecem comentários, opinam, se posicionam, se envolvem emocionalmente (Reali, 2007, p. 103, grifo do autor).
Os apontamentos de Reali, por mais que se direcionem ao universo Disney, oferecem elementos para a reflexão acerca de uma das variações do gênero animação: os desenhos animados.
O desenho animado é uma das modalidades do cinema de animação que se popularizaram entre as décadas de 1950 e 1980, podendo ser caracterizado como animação sem câmera, animação de objetos, animação de bonecos/stop motion e animação em papel, afirmando-se, nos últimos anos, a animação computadorizada, sendo os principais exemplos ‘Shrek’, ‘Toy Story’ e ‘Procurando Nemo’.
Os desenhos animados, tal como os filmes, brinquedos, jornais, revistas e outros artefatos culturais, difundem uma gama importante de significados. Ao longo do século XX, eles se consolidaram como uma linguagem direcionada especificamente ao público infantil; assim, ocupam papel relevante na educação e na formação dos sujeitos, colocando em circulação discursos que formam e subjetivam os sujeitos, carregando sugestões de como ser, como pensar, como se vestir, como se relacionar etc., sendo, desse modo, produtores de cultura e criadores de padrões sociais (Ignácio, 2015). Contudo, diferentemente dos filmes, que conquistaram seu lugar como fonte histórica e como recurso para o ensino em diferentes disciplinas, os desenhos animados ainda são pouco utilizados no ambiente escolar e como documento de investigação histórica, sendo comum encontrar trabalhos das áreas de artes e psicologia sobre a temática, ao passo que se observa a escassez de estudos da área de história.
Dito isso, alguns elementos justificam a escolha pelo gênero para abordar o ensino de história. Primeiramente, a relação entre o gênero cinematográfico e a faixa etária. O conteúdo de história medieval é tradicionalmente estudado no 7o ano do Ensino Fundamental e no 1o ano do Ensino Médio2, tal como se apresenta em grande parte dos livros didáticos disponíveis no mercado editorial brasileiro e nos currículos de história vigentes. Todavia, com a aprovação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o referido conteúdo passa a se concentrar exclusivamente no 6o ano do Ensino Fundamental. Desse modo, projeta-se que, em um futuro próximo, a história medieval seja abordada apenas para alunos inseridos em uma faixa etária média entre 10 e 12 anos, isto é, no primeiro contato deles com o segundo segmento do Ensino Fundamental e com diferentes professores para as disciplinas. Por esse motivo, as animações são mais adequadas ao trabalho escolar com a referida faixa etária, posto que, em geral, são obras de indicação etária livre e, consequentemente, apropriadas para educandos menores de 12 anos; ao passo que outros gêneros cinematográficos, como drama, comédia, epopeia, documentário, entre outros, comuns no ensino de história, por vezes estão distantes dessa fase de desenvolvimento da criança/adolescente e são voltados para outra faixa etária.
Em segundo lugar, a duração. Os considerados filmes históricos, comumente escolhidos pelos docentes da disciplina para o trabalho em sala de aula, caracterizam-se por serem filmes de longa-metragem e com duração superior a 90 min. Tal aspecto cria, inicialmente, a dificuldade de planejamento do professor, pois o longa-metragem costuma ultrapassar a hora-aula, obrigando o docente a selecionar trechos da obra ou a passar um mesmo filme em diferentes aulas, que, por vezes, são dadas em diferentes dias ou semanas. Além disso, ao associar duração e faixa etária, é possível indagar sobre a capacidade de concentração do aluno em filmes de longa-metragem de cunho histórico e as consequências disso para a compreensão da obra e o alcance dos objetivos propostos pelo professor. Afastando-se desse duplo problema, os filmes de animação se caracterizam por serem, em geral, curtas-metragens, portanto mais adequados ao dia a dia da sala de aula pela duração e por mobilizarem uma linguagem mais próxima da faixa etária do estudante do Ensino Fundamental.
Diante dos elementos expostos até o momento, propõe-se discutir os possíveis usos dos desenhos animados para o ensino de história, concentrando a atenção nos conteúdos de história medieval. A Idade Média está na moda; todavia, apesar das décadas de investimento historiográfico, o medievo continua sendo associado a uma série de estereótipos, principalmente aos que associam a época medieval à Idade das Trevas, e mesmo entre os historiadores dedicados a outras temporalidades ainda é necessário disputar os sentidos acerca da expressão Idade Média e da relevância do estudo do período nas salas de aula. Ademais, como argumentam Chepp, Masi, e Pereira (2015), existe uma Idade Média contada na escola, que ainda remonta à ‘leitura iluminista e preconceituosa do medievo’, e outra, eivada de fantasia, aventura e imaginação, que permanece distante dos bancos escolares. Essa Idade Média fantasiada está presente no cinema, nos desenhos animados, nas séries de TV, nas músicas e nos jogos, na literatura, nas histórias em quadrinhos etc. Sem se renunciar à pesquisa histórica sobre o medievo, isso demonstra um significativo potencial para a aprendizagem histórica acerca da Idade Média. Nesse sentido, Nilton Mullet Pereira (2012), por exemplo, problematiza as abordagens acerca da história medieval na cultura escolar e propõe a incorporação das discussões sobre os usos do passado nas salas de aula, elemento amplamente presente na cultura de massa.
Partindo desses apontamentos, selecionamos para análise dois episódios de dois desenhos animados: ‘Torneios de Mágicas’ (no original ‘The Wizard and Sir Rock’), de ‘Gato Félix’ (no original ‘Felix the Cat’), lançado em 1960; e ‘Presas na Idade Média com você’ (no original ‘Stuck in the Middle Ages with you’), de ‘Três Espiãs Demais’ (no original ‘Totally Spies’), lançado em 2001.
Criado em 1919, na época do cinema mudo, ‘Gato Félix’ é um dos desenhos mais famosos da história da animação. Tem como personagem principal um gato preto antropomórfico de olhos brancos e grande sorriso. As histórias de aventura do gato foram publicadas em quadrinhos, tiras de jornais e exibidas no cinema e na TV. Como assinala Álvaro de Moya (1986), ‘Gato Félix’ foi o primeiro desenho animado sonoro e o primeiro filme de animação a ser apresentado em televisão, em 1930, adquirindo tanto sucesso que, à morte de seu criador, já tinham sido produzidos mais de cem curtas-metragens. No Brasil, ‘Gato Félix’ foi inicialmente exibido pela TV Tupi, ainda nos anos 1960, e, posteriormente, fez parte da programação da TV Gazeta de São Paulo e da Rede Globo, na qual ficou até a década de 1980. Na década de 1990, a TV Record resgatou o desenho, que também esteve na programação da Rede Brasil, do Cartoon Network e do Boomerang.
Interessa-nos, em especial, a fase do desenho a partir dos anos 1950, quando recebe novos traços, cores e são agregados novos personagens: o jovem Poindexter, principal amigo e parceiro do gato; o professor e seu assistente, Rock Bottom, os vilões do desenho. Nesse período, em 10 de março de 1960, foi lançado o episódio ‘Torneios de Mágicas’ (c. 7 min.), no qual Félix e Poindexter estão na Idade Média e decidem participar do torneio que dá título ao episódio, disputa que, na verdade, consistia em uma armadilha do professor e de Sir Rock. O episódio se resolve com a astúcia e o conhecimento de Félix e Poindexter diante das atrapalhadas dos vilões.
‘Três Espiãs Demais’ é um desenho animado recente, inspirado nos animes e centrado em três personagens femininas: as espiãs Sam, Alex e Clover. Elas moram em Beverly Hills, Los Angeles, e trabalham para a agência WOOHP (Centro de Serviços Secretos da Organização Mundial de Proteção Humana), que as envia a diversos lugares (e épocas) em missões secretas. A animação foi produzida em seis temporadas, entre 2001 e 2014, somando 156 episódios, e resultou ainda em um filme. No Brasil, foi exibida na TV aberta, na Rede Globo, em canais de TV a cabo e, desde 2017, passou a integrar o catálogo nacional da Netflix, além de ter diversos episódios disponíveis na plataforma de compartilhamento de vídeos YouTube.
Do conjunto de episódios do desenho, selecionou-se o episódio 8 da primeira temporada, intitulado ‘Presas na Idade Média com você’ (c. 21 min.), no qual as espiãs investigam sequestros de cientistas. O responsável pelos raptos é um cavaleiro, e, ao verem outro cientista sendo capturado, elas seguem o criminoso através de um portal que as leva à Idade Média. O episódio segue a estrutura narrativa-padrão do desenho. Inicia-se com cenas do cotidiano, em que aparece o conflito que se desenrolará no episódio - no caso específico, o ambiente escolar e a disputa na festa de fantasia do Halloween -, seguido da aparição de Jerry, o chefe da WOOHP e responsável por orientar a missão das espiãs. Ademais, também expressa características comuns do gênero desenho animado, como a dualidade bem e mal, personagens fixos, a resolução de conflitos ao final, entre outras.
Antes de enveredar especificamente sobre a imagem da sociedade medieval presente nos desenhos e como eles poderiam ser explorados em sala de aula, convém destacar outros elementos específicos da produção ‘Três Espiãs Demais’. O tema da espionagem é ambientado na vida de três mulheres adolescentes que expressam hábitos ocidentais e partilham o universo escolar, namoros, compras e aventuras. O desenho não aborda o ambiente familiar das protagonistas, enfatizando as atividades fora de casa. De certo modo, contribui para a valorização da mulher e a promoção do protagonismo feminino, em especial pela inserção profissional/funcional, a espionagem, função comumente ocupada por homens no universo cinematográfico. Em ‘Três Espiãs Demais’, as jovens são resolutivas e competentes tanto no universo profissional quanto no educacional, protagonismo pouco comum para os desenhos animados.
Apesar disso, como demonstra Ignácio (2015), as personagens são jovens, bonitas, inteligentes e consumistas, estando enredadas pelas teias do consumo e capturadas pelas tramas da moda, sendo comum cenas em que elas percorrem shopping centers à procura de produtos aleatórios que reafirmam a identidade social das personagens. Para a autora, “[…] as necessidades das jovens meninas, frequentemente, transitam entre três focos: consumo de objetos, consumo de aparências e consumo de relacionamentos” (Ignácio, 2015, p. 165). Do mesmo modo, Machado (2010) demonstra que a representação visual do desenho ‘Três Espiãs Demais’ acentua a importância da beleza e da juventude, com as protagonistas sendo magras, altas, malhadas, com traços harmoniosos, deveras preocupadas com a beleza e, por vezes, envergando biquínis que desvelam um físico impecável. Podem-se ainda acrescentar outros elementos recorrentes nos episódios, como a competição entre as mulheres, os comportamentos tolos e fúteis das protagonistas, a constante ironia do chefe em relação às espiãs, as armas em formato de acessórios femininos, elementos que podem ser identificados como símbolos de vaidade, futilidade e fragilidade - no caso do episódio 8: bolsa, sandálias de saltar, ferro quente a laser, guarda-chuva, pranchas deslizáveis, escova de cílios e luvas de luta de gato com garras etc. (Figura 1; Machado, 2006). Dessa maneira, o desenho insere a questão do protagonismo feminino, mas dissemina o discurso do consumo e do padrão de beleza, constituindo uma importante pedagogia que instrui o comportamento do espectador e, especificamente, ensina o que é próprio ou impróprio ao comportamento feminino.
A Idade Média nos desenhos animados
Em paralelo a tais aspectos e tendo como foco a Idade Média representada pelos desenhos, é importante estabelecer as críticas interna e externa dos materiais (Langer, 2004). Assim, observa-se que, ao longo dos vídeos, o conteúdo explícito, isto é, cenários, indumentária, gestos e estrutura arquitetônica, oferece uma série de possibilidades para o uso no ensino de história.
Apesar do traço simples e caricato, ‘Gato Félix’ oferece uma interessante representação de um vilarejo medieval (Figura 2). O desenho demarca a proximidade campo-cidade, a predominância do ambiente rural, construções próximas umas das outras e de tamanhos diferentes, além de um castelo em pedra3. Ademais, outros elementos se mostram interessantes, como a referência à figura do rei, a presença de cavaleiros e brasões perto do monarca, e o personagem do arauto, que prega em público o anúncio do torneio.
Em relação ao cenário, por exemplo, ‘Três Espiãs Demais’ traz com mais detalhamentos a adequada ambientação do vilarejo e do castelo (Figura 3); das vestimentas dos camponeses, dos cavaleiros e do rei; e a preocupação com a cultura material em geral - expressa na construção das casas, do poço, dos utensílios e armas, por exemplo -, fazendo com que o desenho seja verossímil em relação ao período histórico.
A partir dos episódios, o professor pode abordar e ilustrar uma série de aspectos da vida social e material do período medieval, criando referências por meio de uma linguagem acessível e próxima da experiência dos estudantes do Ensino Fundamental. Paralelamente - elemento mais acentuado no caso de ‘Três Espiãs Demais’, pelo fato de as espiãs estarem na Idade Média com roupas e objetos da sociedade contemporânea (bolsas, celular, entre outros) -, ainda é possível ao professor estimular a percepção da passagem do tempo, expressa no contraste entre o vestuário e a tecnologia (Figura 4).
Ademais, em um dos diálogos de ‘Três Espiãs Demais’, Jerry, o chefe da agência de espionagem, diz: ‘Só um minuto, eu estou dando uma busca global para localizar a sua posição. Isso não me parece correto, meus dados dizem que vocês estão na Inglaterra medieval por volta do século XIII’. Esse é o único trecho de ambos os desenhos que estabelece com clareza uma referência temporal, possibilitando ao professor usar essa datação para introduzir reflexões junto aos alunos sobre diferentes temas relacionados com a sociedade medieval inglesa, como a assinatura da Magna Carta, em 1215, que limitava o poder dos reis, e o desenvolvimento dos campos ingleses.
Dessa maneira, a referência visual constitui elemento que, por si só, justifica os possíveis usos dessas animações no ensino de história, permitindo ao docente problematizar tais imagens com os estudantes, posto que “[…] um bom filme é interessantíssimo para introduzir um novo assunto, para despertar a curiosidade, a motivação para novos temas. Isso facilitará o desejo de pesquisa nos alunos para aprofundar o assunto do filme e da matéria” (Moran, 2006, p. 19).
Contudo, como se assinalou até o momento, esses seriam usos iniciais, limitados e superficiais do material. Os desenhos animados em questão, assim como todo documento, oferecem elementos mais complexos para análise, em especial em seu conteúdo implícito.
O roteiro dos episódios, centrados na Idade Média, estrutura-se em torno de um discurso enraizado no senso comum e na cultura de massa, apesar de profundamente criticado pela historiografia, que é a referência da Idade Média como temporalidade irracional, época do atraso, a Idade das Trevas. Os desenhos se afirmam, então, como representações contemporâneas do medievo, e quiçá resida nesse aspecto a principal contribuição do material para o ensino de história. Compreende-se que a concepção atual sobre a Idade Média se associa mais às apropriações do medievo presentes na literatura, nos jogos, no cinema, nos desenhos animados etc. do que na produção historiográfica dos meios universitários, produção textual por vezes limitada ao meio acadêmico, que pouco consegue concorrer com a cultura de massa. Nas palavras de José Rivair Macedo (2009, p. 14): “O que está em discussão é a necessária distinção entre uma Idade Média propriamente histórica, objeto de estudo dos medievalistas, e uma Idade Média vista em retrospectiva, isto é, uma certa ideia do passado medieval visto pela posteridade”.
A partir dessa perspectiva, os desenhos animados em questão se mostram especiais por permitirem ao docente problematizar junto aos alunos os episódios como um registro da época atual sobre o passado medieval, introduzindo a questão das diferentes maneiras de representação do passado, tema deveras relevante para o ensino de história, e não limitado ao medievo. Do mesmo modo, o professor pode indagar os estudantes sobre quais são as referências utilizadas pelos criadores dos desenhos para construir os episódios, com a questão abrindo a possibilidade de reflexão acerca dos estereótipos da representação sobre a Idade Média.
Em ‘Torneios de Mágicas’, ao iniciar o desenho, o espectador é informado, no diálogo entre Gato Félix e Poindexter, que o episódio se passa na Idade Média, sem que qualquer referência específica (data e local) seja apresentada no decorrer do capítulo. A cena usa como recursos de verossimilhança o ambiente rural e, em segundo plano, um alto castelo com uma ponte levadiça (Figura 5).
Mais importante que os elementos visuais, já ressaltados anteriormente, é o fato de o torneio de mágicas ser disputado entre feiticeiros do reino, terminologia presente tanto na versão brasileira quanto na norte-americana do desenho animado4. Ao final do episódio, o rei chega a nomear Félix e Poindexter como magos da corte, expressando uma possível normalidade da prática mágica/feitiçaria no ambiente cortesão do medievo. No entanto, seriam tais referências adequadas para o período medieval?
Como afirma Richard Kieckhefer (2014), a corte medieval, sobretudo desde o século XIII, foi um ambiente fértil para a magia, no qual abundavam especialistas em adivinhação, astrologia e outras práticas mágicas. A priori, deve-se ter em perspectiva que a sociedade medieval se preocupou em diferenciar a ‘magia natural’, aceitável, dirigida à investigação do universo, da ‘magia cerimonial’, caracterizada pelo emprego de diferentes meios para invocar espíritos. Inicialmente, ambas, seja na percepção erudita, seja no senso comum, diferenciavam-se da bruxaria, considerada vulgar, terrena e diabólica, mas, desde o século XIV, uma série de crenças mágicas foram condenadas e passaram a estar associadas à bruxaria, e esta, ao mal (Cardini, 1996). Desse modo, o episódio de ‘Gato Félix’ não está plenamente equivocado em inserir práticas mágicas no ambiente cortesão medieval. Todavia, o tema pode mostrar-se deveras complexo ao professor durante a discussão em sala, considerando o tempo de aula, a idade do público, a ideia generalizada que associa a magia ao mal e o grau de especialização que o debate acadêmico no tema demanda.
Se, por um lado, a referência presente em ‘Gato Félix’ é aceitável historicamente, convém questionar os possíveis motivos de o episódio ter associado a Idade Média à feitiçaria. Tal construção discursiva não é particular dessa animação ou dos desenhos animados em geral, podendo ser percebida em diferentes produtos da cultura de massa ao longo do século XX e do atual, como cinema, literatura, quadrinhos etc. Assim, ao pensar os estereótipos imputados ao medievo, constata-se que um dos primeiros caracteriza o período como uma Idade da Fé e da superstição, padrão que se expressa nos desenhos analisados. Desse falso conceito, por exemplo, deriva a ideia de que a sociedade medieval foi tomada pela feitiçaria e pela caça às bruxas (Obermeier, 2008), elementos amplamente mobilizados no segundo desenho selecionado.
O episódio ‘Presas na Idade Média com você’ inicia com a menção ao concurso de fantasia na festa do Halloween e finaliza com o desfecho do concurso. O eixo das bruxas oferece coerência ao episódio como um todo, posto que, ao chegarem à Idade Média, as espiãs são consideradas feiticeiras e perseguidas por camponeses, retratados como ‘loucos’, ‘irracionais’ ou ‘fanáticos’ (Figura 6).
O diálogo se apresenta nestes termos:
Camponês: Socorro! Fui roubado por feiticeiras do mal!
Espiãs: Hã?!
Camponeses: Vejam, temos que pegar as feiticeiras! Rápido, vamos!
Sam: Feiticeiras? A gente é de Beverly Hills!
Camponesa: É nosso dever a nosso amado rei livrar o império de feiticeiras do mal!
Camponês 2: Nós nunca ouvimos falar desse lugar que vocês disseram.
Camponeses: Queimem! Para a fogueira!
[…]
Clover: Jerry, onde a gente está?
Jerry: Só um minuto, eu estou dando uma busca global para localizar a sua posição. Isso não me parece correto, meus dados dizem que vocês estão na Inglaterra medieval por volta do século XIII.
Clover: O quê? Não, espera aí… Cavaleiro encapuzado, feiticeira, um bando de gente que nunca ouviu falar de Beverly Hills… É claro! Estamos presas na Idade Média!
Jerry: Oh, céus!
Clover: Jerry, como é que vamos voltar? Eu nem sei como a gente chegou até aqui.
Jerry: Estou trabalhando nisso.
Clover: Por favor, depressa, Jerry! Queremos sair desse pesadelo de alvos e dragões logo! Dê um jeito!
[…]
[Bosque, ouvindo som de muitos passos]
Alex: Esses loucos não desistem nunca?
Sam: Depressa, se esconde!
(Chalvon-Demersay & Michel, 2001, 00:05:15-00:05:35, 00:06:30-00:07:03, 00:08:10-00:08:15)
Durante o episódio, os camponeses aparecem em diferentes momentos carregando seus instrumentos de trabalho agrícola e perseguindo as espiãs como bruxas. O conteúdo das falas de ambas as partes, as espiãs e os camponeses, expressa a dificuldade em lidar com o diferente, resultando em ações discriminatórias, com o povo medieval perseguindo as jovens por trajarem roupas exóticas, portarem objetos estranhos e falarem de um lugar desconhecido, e as espiãs criticando os camponeses por não conhecerem Beverly Hills e chamando-os de loucos.
O trecho também é interessante por outros três elementos. Primeiramente, o desenho faz referência ao apreço dos camponeses pelo rei, com eles se mobilizando em sua defesa e na do reino na perseguição às feiticeiras. Tal aspecto é retomado ao longo do desenho pelo personagem idealizado do rei bondoso, que serve de contraponto ao vilão do episódio, caracterizado pela ganância e pela maldade. Em segundo lugar, na fala de Clover: ‘Queremos sair desse pesadelo de alvos e dragões logo!’, nota-se a dupla relação Idade Média/pesadelo e Idade Média/dragões, expressando tanto a percepção negativa do período e das circunstâncias pela personagem quanto a visão fantasiada do período histórico. Essa dupla relação se confirma ao considerar as versões em francês e inglês do episódio, pois nesses casos os termos usados são ‘cauchemar moyenâgeux’ (pesadelo medieval) e ‘ramenez-nous à la civilisation’ (leve-nos de volta à civilização) para a língua francesa, e ‘dungeons and dragons’ (masmorras e dragões) para a inglesa.
Observa-se que, em ambos os episódios dos desenhos animados, apesar de terem sido produzidos em países distintos e com quase meio século de diferença, cria-se a associação entre Idade Média e os termos magia e feitiçaria (‘Gato Félix’), e bruxaria, feitiçaria, irracionalidade e fanatismo (‘Três Espiãs Demais’). Em contraste com a narrativa de ‘Gato Félix’, o episódio de ‘Três Espiãs Demais’ faz uso abundante da noção de Idade Média como tempo da superstição, da intolerância, da irracionalidade etc., uma época que representa o contraponto da modernidade. Esses elementos permitem ao docente, com mais clareza e, quiçá, segurança discutir com os estudantes uma série de estratégias discursivas que ainda hoje enunciam a ideia de uma Idade Média como Idade das Trevas, estratégias que Pereira (2012) classificou como ‘dispositivo de medievalidade’.
Por fim, sublinha-se que, além das problemáticas específicas da história medieval, os elementos citados até então podem contribuir para o trabalho com as habilidades previstas pela BNCC para o 6o ano do Ensino Fundamental no componente curricular História. Por exemplo, o docente pode explorar a dimensão da habilidade EF06HI16 da BNCC, que trata da relação entre senhores e servos: “Caracterizar e comparar as dinâmicas de abastecimento e as formas de organização do trabalho e da vida social em diferentes sociedades e períodos, com destaque para as relações entre senhores e servos [...]”; ou abordar a habilidade EF06HI18: “Analisar o papel da religião cristã na cultura e nos modos de organização social no período medieval” (Brasil, 2017, p. 419). Isso desmistifica a associação entre cristianismo medieval e intolerância. Ademais, também é possível associar o episódio às competências da área de ciências humanas da BNCC, como a capacidade de comparar eventos ocorridos simultaneamente e promover o acolhimento e a valorização da diversidade.
Considerações finais
Os desenhos animados ‘Gato Félix’ e ‘Três Espiãs Demais’ devem ser encarados como documento e como recurso para o ensino de história. Eles estão eivados de elementos que ultrapassam a simples ideia de entretenimento infantil. O desenho animado ensina, primordialmente às crianças, sobre comportamentos, sobre o corpo, sobre ser adolescente, e tais elementos foram percebidos e investigados por psicólogos e pedagogos; todavia, os desenhos também ensinam sobre sociedades históricas, personagens e acontecimentos, dimensão ainda pouco explorada pelos pesquisadores de Clio.
Os episódios analisados demonstram, por meio das imagens, a preocupação em apresentar objetos, figurino e cenário, em geral fidedignos, sobre o período medieval. Apesar disso, como acontece em ‘Três Espiãs Demais’, por meio das falas e dos gestos, criam um ambiente psicológico, marcado pela intolerância, pela perseguição ao diferente, pela fé irracional e exacerbada, pela violência, entre outros aspectos que reforçam a noção de Idade Média como Idade da Fé e Idade das Trevas.
Diante da crescente demanda de recursos de diversas linguagens para o uso em sala de aula, da importância das mídias na educação e considerando tanto a proximidade dos desenhos animados com o público infantil quanto a adequação do material ao tempo de uma aula, compreende-se que os desenhos animados devem ser mais incorporados ao ambiente escolar da Educação Básica. Do mesmo modo, em termos específicos do ensino de história e dos conteúdos de história medieval, concentrados após a BNCC no 6o ano do Ensino Fundamental, entende-se que os desenhos selecionados oferecem diferentes maneiras de abordar tal conteúdo, aproximando o estudante de uma Idade Média rica, midiática e, por vezes, desvalorizada.