Introdução
Na Roma antiga, pensava-se que todo ser independente, dispunha de um espírito guardião. Um espírito que brindava vida às pessoas e aos lugares, e que os fazia companhia desde o nascimento até o dia final. Até mesmo os deuses possuíam seus próprios genius. Esse mesmo espírito também afirmava a natureza e a essência das pessoas e dos lugares. Este é o conceito de genius loci.
Norberg-Schulz (1980 1), importante arquiteto e teórico da área, apreende esse conceito e explica que a arquitetura materializa as (in)dispensabilidades do ser humano, de maneira que possa habitar e constituir laços relacionais com o lugar e, por conseguinte, raiz existencial. Neste sentido, a conexão da pessoa com seu lugar de habitação gera sentimentos de pertencimento que implicam na constituição de sua identidade, pois são nos lugares que os acontecimentos mais marcantes, transcorrem. Os lugares se constituem como pontos de partida, escala e chegada, inúmeras vezes, não definidos ou definitivos ao longo da vida, mas cada qual, traz em si, sua intensidade de impressões no sujeito. Os lugares estão repletos de sentidos e significados construídos na história e pela cultura da humanidade, mas que para cada sujeito, a partir de suas vivências e singularidades, também são re-significados.
A presença singular do genius loci importa em acontecimento, movimento e autonomia. Entretanto, de acordo com Norberg-Schulz (1980), a estrutura de um lugar não presume uma condição imutável, perdurável ou infinda. Pelo contrário, os lugares são passíveis de transformações enquanto que o genius loci não se encontra condicionado a mudar do lugar ou desaparecer, porém, apropria-se de uma natureza de movimento plural e com uma multiplicidade de sentidos e atributos em movimento, pertencente a grupos desiguais. O genius loci sempre existe, de um modo ou de outro, em todas as culturas e atende às suas demandas sociais.
Em um movimento de apropriação da ideia de genius loci aqui presente, indagamos: qual é o lugar da diferença na educação para todos? Neste ensaio, a partir das contribuições de Gilles Deleuze, principal expoente da Filosofia da Diferença, em conexão com o pensamento libertário de Paulo Freire, tecemos um diálogo possível sobre o lugar da diferença na educação de todas as pessoas em suas mais distintas e diversas singularidades, compreendendo a diferença e a liberdade como valores humanos essenciais à humanidade.
Sentidos da diferença
Primeiramente há que compreender qual é o sentido da diferença a que nos referimos. E para haver esta compreensão é preciso gerarmos um movimento que nos force a pensar diferente sobre a diferença. Pensar sobre a diferença exige que não tenhamos respostas absolutas e prontas, forjadas em regimes de verdade que são construídos na história e perpetuados pela cultura, pois tais regimes nos aprisionam e colonizam nosso pensamento. Os regimes de verdade criam verdades que servem para o controle social por meio de estratégias de manutenção do poder e, assim, também sustentam o comando do saber-poder e da universalização do verdadeiro (Foucault, 1987). No entanto, a verdade é sempre uma interpretação enquanto a imagem produzida nunca é a realidade em si mesma, tão somente, uma distorção.
A diferença tem sido concebida, muitas vezes, de forma distorcida, como sendo um elemento desagradável, prejudicial, inferior ou um critério de anormalidade nas pessoas e, por este fato, há quem defenda sua cessação, eliminação e/ou exclusão. Em razão da existência de um padrão social estabelecido pela sociedade dominante ao longo da história, tem sido usual a comparação entre pessoas diferentes de modo a sobressaltar mais as qualidades de uma em relação a outra ou às outras. E neste círculo vicioso de acontecimentos de comparação entre seres diferentes, muitas são as consequências resultantes de atos de exclusão que se estendem às mais diversas e distintas circunstâncias sociais. E, nesta encruzilhada, a repetição de ações excludentes pautadas no paradigma hegemônico que destaca a supremacia de um grupo de pessoas sobre outras pessoas ou de um povo sobre outros povos, é que, processualmente, vamos banalizando todas as formas de exclusão social, de maneira a cristalizar nossas mentes acerca da naturalização dos problemas sociais e, por fim, decairmos em abissal processo de des-humanização.
Por meio da tradição cultural, os sofrentes sequer questionam a legitimidade da presença de dispositivos aniquiladores de sua identidade, de sua subjetividade, de sua autonomia, de sua liberdade, de sua alegria de viver intensamente. Decretando e impondo a supremacia hegemônica, os majoritários oprimem as minorias sociais, caçam e não se constrangem em usurpar aquilo que lhes pertencem por direito e justiça. Pelo desejo incomensurável de poder e ganância, bem como de sua manutenção, apoderam-se das terras dos indígenas, afugentam forasteiros, escravizam indigentes, exploram os pobres trabalhadores, fabricam guerras pelo óleo da pedra, torturam presos políticos, segregam pessoas com deficiência, desqualificam educadores críticos, ignoram os que têm fome, chacinam mendigos, vangloriam a raça e a cor da pele. Pelo costume imperativo do patriarcado, desconsideram os direitos das mulheres pela violência obstétrica, ceifam seu prazer pela mutilação nefasta, domesticam seus corpos pela religião, banalizam sua imagem como objeto, ocupam seu sexo como propriedade, menosprezam seu potencial para que não se emancipem. Enfeitiçados pelo poder e avidez, (re)produzem imagens distorcidas, inverdades ardilosas, slogans dogmáticos, plantam o ódio às diferenças e enaltecem a violência como resposta aos que lhes são oposição (Orrú, 2020).
Contudo, sendo incompreensível tamanha malevolência entre semelhantes em razão da diferença que trazem consigo, há que se recordar a indignação de Paulo Freire, por ocasião da morte do índio pataxó, Galdino Jesus dos Santos, em 1997, provocada por um grupo de jovens de Brasília que atearam fogo a seu corpo enquanto dormia,
A posição do pobre, do mendigo, do negro, da mulher, do camponês, do operário, do índio neste pensar. Penso na mentalidade materialista da posse das coisas, no descaso pela decência, na fixação do prazer, no desrespeito pelas coisas do espírito, consideradas de menor ou de nenhuma valia. Adivinho o reforço deste pensar em muitos momentos da experiência escolar em que o índio continua minimizado. Registro o todopoderosismo de suas liberdades, isentas de qualquer limite, liberdades virando licenciosidade, zombando de tudo e de todos. Imagino a importância do viver fácil na escala de seus valores em que a ética maior, a que rege as relações no cotidiano das pessoas terá inexistido quase por completo. Em seu lugar, a ética do mercado, do lucro. As pessoas valendo pelo que ganham em dinheiro por mês. O acatamento ao outro, o respeito ao mais fraco, a reverência à vida não só humana, mas vegetal e animal, o cuidado com as coisas, o gosto da boniteza, a valoração dos sentimentos, tudo isso reduzido a nenhuma ou quase nenhuma importância. Se nada disso, a meu juízo, diminui a responsabilidade desses agentes da crueldade, o fato em si de mais esta trágica transgressão da ética nos adverte de como urge que assumamos o dever de lutar pelos princípios éticos mais fundamentais como do respeito à vida dos seres humanos, à vida dos outros animais, à vida dos pássaros, à vida dos rios e das florestas. Não creio na amorosidade entre mulheres e homens, entre os seres humanos, se não nos tornamos capazes de amar o mundo. A ecologia ganha uma importância fundamental neste fim de século. Ela tem de estar presente em qualquer prática educativa de caráter radical, crítico ou libertador. Não é possível refazer este país, democratizá-lo, humanizá-lo, torná-la sério, com adolescentes brincando de matar gente, ofendendo a vida, destruindo o sonho, inviabilizando o amor. Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda (Freire, 2000, p. 65).
Ora, se espantosa naturalização da violência já se faz tão costumeira entre nós, é certo que algo de muito equivocado têm se alongado em nossa cultura sobre a percepção e a compreensão dos sentidos e do lugar da diferença na raça humana.
Todavia, Gilles Deleuze (1988, p. 8), filósofo francês, traz-nos relevante contribuição para um outro entendimento acerca da diferença: “Queremos pensar a diferença em si mesma e a relação do diferente com o diferente, independentemente das formas da representação que as conduzem ao mesmo e as fazem passar pelo negativo”. Nesta perspectiva, a diferença não é o diferente, o diverso, a anormalidade, a oposição ao que parece ser igual. A diferença não é parâmetro de comparação ou de contraposição entre normais e anormais, ricos e pobres, homens e mulheres, americanos e sul-americanos, nativos e estrangeiros, fixos e nômades, sadios e doentes, brancos e negros, cristãos e ateus. A diferença não é representação social, muito menos parâmetro para marginalização e barbáries contra grupos minoritários.
Sob esta lente, em um outro exemplo, a diferença particularizada e tipificada em indivíduos por meio do diagnóstico médico, é ação excludente, pois a diferença como categoria não tem condições de representar a pessoa em toda sua complexidade, assim como o diagnóstico médico não define quem é o aprendiz. Embora um determinado conjunto de sintomas ou uma condição genética do cromossomo possa se repetir incalculáveis vezes, as pessoas não se repetem, elas são únicas. Ou seja, o autismo, a Síndrome de Down, a surdez, a cegueira, a surdocegueira, podem se repetir em seu acontecimento, mas as pessoas nunca se reprisam, elas trazem em si próprias, diversas e distintas singularidades que as tornam seres singulares, pois elas se diferenciam sempre em sua própria diferença.
Nesta concepção, a diferença não é um traço que abaliza pessoas a uma determinada característica ou a um certo agrupamento por categorias, como o grupo dos deficientes, dos especiais, dos que têm dificuldades de aprendizagem, dos que não são normais, dos incapazes ou dos que não aprendem. Porém, a diferença é compreendida como sendo uma qualidade própria da espécie humana. A diferença está presente em todos os seres humanos, sem distinção, de modo que não somos iguais, mas sim, todos somos igualmente diferentes! Portanto, a diferença não é apenas daqueles que se desviam do modelo padrão estabelecido em nossa sociedade de base hegemônica, mas a diferença é de todos, sendo a principal, senão única, legítima identidade do Ser humano. Isto porque as demais identidades podem vir a ser construídas a partir do envolvimento e (re)conhecimento nos movimentos sociais de luta por direitos. No entanto, a diferença nos constitui desde sempre, antes de sermos no ventre, antes de nascermos no mundo.
Onde é, portanto, o lugar da diferença? O lugar da diferença é em cada um de nós. Ela habita em todos nós, ela constitui a cada um de maneira única. Assim, a diferença, segundo Deleuze (1988) é, ao mesmo tempo, ‘singular, múltipla e plural’, jamais podendo ser restrita a uma categoria de indivíduos ou servindo às políticas maiores para o apartheid de pessoas ou coletivos. Tal qual o espírito do lugar, o genius, que não muda, não abandona e não se perde do lugar, assim também é a diferença que não se aparta de nós, nem pode ser extirpada por nós mesmos ou pelos outros. Assim como não há nenhum lugar sem um gênio, não há um ser humano sem a presença da diferença em si próprio. Ainda que a diferença seja rechaçada pelo próprio sujeito ou maltratada pelos majoritários, ela permanece com sua presença inexpulsável.
À semelhança do genius loci que “[...] dava vida às pessoas e aos lugares, acompanhando-os do nascimento à morte, e determinava seu caráter e essência [...]” (Norberg-Schulz, 1980, p. 18), assim é a diferença como condição e atributo próprio do ser humano, ela o acompanha do nascimento à morte, ela é aquilo que torna a cada um, único e singular. Ela é a parte que des-prende o humano das representações de identidades fixas, pois no pensável conceito antropológico de multiplicidade, “[...] tudo é multiplicidade, mesmo o uno, mesmo o múltiplo” (Deleuze, 1988, p. 174).
A presença do ‘genius Diferença’ no ser humano, conduz-nos à compreensão de que não há identidades fixas ou pré-estabelecidas que possam justificar o apartheid, a humilhação, a opressão, a segregação, a exclusão, a perseguição, o cárcere ou a morte de outros seres humanos por suas diferenças, sejam elas, físicas, cognitivas, de credo, naturalidade, gênero, sexo, raça, etnia ou qualquer outro elemento constitutivo da subjetividade humana.
Quando a diferença é preterida e fulgura sentimentos e atos de violência e negação do outro, dilacera-se a natureza de nossa humanidade cujos pilares se sustentam na ação cônscia da generosidade, solidariedade, benevolência, respeito, aceitação do próximo e, por conseguinte, amorosidade e liberdade, tão notórias na obra e legado do educador brasileiro Paulo Freire que afirmou: “[...] eu sou um intelectual que não tem medo de ser amoroso, eu amo as gentes e amo o mundo. E é porque amo as pessoas e amo o mundo, que eu brigo para que a justiça social se implante antes da caridade” (Freire, 2007, p. 1).
O ‘genius Diferença’ demanda uma capacidade e habilidade permanentes de olharmos atentamente para nós mesmos e para os sistemas sociais que temos criado, desenvolvido e alimentado ao longo da história da humanidade. Olharmos não no sentido da contemplação, mas tomados pelo espírito do pensamento crítico que nos incomoda, constrange e nos desperta a re-inventarmos nossos modos de Ser e estar no mundo, com o mundo e com os outros.
A diferença que em nós habita e que nos constitui como espécie humana, desestabiliza as justificativas ultraconservadoras para o subjugo de outros seres humanos às façanhas sinistras de um sistema global pautado no capitalismo, no colonialismo e no patriarcado, e estes, no que lhes concerne, dilatadores de dispositivos que servem como mecanismos de exclusão muitas vezes desapercebidos e desconhecidos por suas vítimas, porém, empregados por meio do biopoder e da biopolítica (Foucault, 2008).
Dessarte, uma vez compreendida a Diferença como um genius ocupante e constituinte de todos os seres humanos, cabe-nos compelir nosso pensar com vistas a nos posicionarmos inteiramente contrários a todas as formas de opressão, violência, aprisionamento e exclusão social estribadas na diferença. Para tanto, faz-se urgente e emergente conhecermos e compreendermos a extensão da força disposta nos mecanismos produzidos para exclusão social, bem como acerca das desigualdades e desvantagens históricas e sociais que eles (re)produzem. Igualmente, é preciso repudiar a ambição colossal trazida pela cultura imperiosa da lucratividade desmedida, pela cultura do confisco colonial e do poderio patriarcal que nos envolveram e nos amoldaram conforme o conservadorismo de suas bases e que, ainda hoje, com distintos trajes, perdura. Resistir ao ódio e a fatal indiferença quanto às condições de vida de outros seres humanos, indiferença como produto da naturalização dos problemas sociais e de um processo agudo de des-humanização, só é possível por meio da constituição de um pensamento crítico e rompimento com todas as formas de apoio às opressões aos menos favorecidos, por conseguinte, ruptura com a permissividade e a omissão social. Neste sentido, em tempos sombrios, ‘o amor mundi’ é ato revolucionário.
Para mim é imprescindível a afetividade e o amor. Eu tenho aliás, recebido muitas críticas, sobretudo da América Latina, porque eu falo muito de amor e amor segundo essas críticas é um conceito burguês. Em primeiro lugar eu não admitiria que foram os burgueses que inventaram o amor. Eles podem ter a propriedade das fábricas, mas do amor não. O amor é uma dimensão do ser vivo e que ao nível do ser humano alcança uma transcendência espetacular. Nesse sentido é que eu digo que a revolução é um ato de amor (Ceccon, 1978, p. 11).
A ciência, a tecnologia e a religião como criações da humanidade, não têm se mostrado suficientes para convencer e transformar os humanos todos de suas civilizações em pessoas altamente amorosas que primam pelo bem-estar e dignidade de todos os povos e zelam pela diferença e a liberdade como valores humanos. Isto porque essa importante tríade não possui o poder ou a magia de ascender nos humanos a fonte da socialização humana, a saber, o amor. Quando há a ausência do amor, responsável pela amorosidade que deseja que o outro exista e viva bem em dignidade e alegria, consequentemente, não há respeito à sua existência, tampouco, sede de justiça social para todos, pois ele é a fonte da socialização humana. Nas palavras de Humberto Maturana,
O amor é a fonte da socialização humana, e não o resultado dela, e qualquer coisa que destrói o amor, qualquer coisa que destrói a congruência estrutural que ele implica, destrói a socialização. A socialização é o resultado do operar no amor, e ocorre somente no domínio em que o amor ocorre (Maturana, 1997, p. 185).
Entretanto, vale-nos o ensaio de uma possível conjugação entre o ‘genius Diferença’ e o amor como fonte da socialização humana. Enquanto o ‘genius Diferença’ está em todos os seres humanos e os constitui de maneira singular, o amor, por sua vez, implica em uma escolha individual. Serve-nos frisar que esta conotação de amor não se refere a sentimentos de romance ou de afeto às pessoas próximas como filhos, pais ou irmãos, muito menos a triviais ânimos provenientes de comoções e consternações emergidas de sensacionalismos. Sem dúvida, diz respeito ao amor que transborda à condição humana, amor que se compromete em cuidar do mundo, claramente, cuidar das liberdades, dos direitos, da dignidade humana. É muito mais que desejar que o outro esteja bem, mas se desvelar para que o outro se encontre bem. Também é preciso ressaltar que não se trata de uma escolha voluntariosa, mas daquela decorrente do que nos forçou a pensar para além das (in)verdades estabelecidas pelos sistemas de controle social pela manipulação de massas. Uma escolha constituída a partir de nosso processo de conscientização e de constituição de um pensamento crítico acerca da condição humana e das abismais maquinarias de exclusão produzidas e reproduzidas na sociedade. É decursiva, principalmente, de um movimento cônscio sobre qual é o nosso papel na sociedade da qual fazemos parte, no mundo em que vivemos e junto às pessoas com quem compartilhamos este mesmo mundo, esta Casa Comum de todos nós, tal como nos alumia Leonardo Boff.
Cuidar da Terra é cuidar de sua melhor produção que somos nós seres humanos, homens e mulheres especialmente os mais vulneráveis. Cuidar da Terra é cuidar daquilo que ela através de nosso gênio produziu em culturas tão diversas, em línguas tão numerosas, em arte, em ciência, em religião, em bens culturais especialmente em espiritualidade e religiosidade pelas quais nos damos conta da presença da Suprema Realidade que subjaz a todos os seres e nos carrega na palma de sua mão. Cuidar da Terra é cuidar dos sonhos que ela suscita em nós, de cujo material nascem os santos, os sábios, os artistas, as pessoas que se orientam pela luz e tudo o que de sagrado e amoroso emergiu na história. Cuidar da Terra é, finalmente, cuidar do Sagrado que arde em nós e que nos convence de que é melhor abraçar o outro do que rejeitá-lo e que a vida vale mais que todas as riquezas deste mundo. Então ela será de fato a Casa Comum do Ser (Boff, 2015).
Enquanto o genius do lugar (a Diferença) não se arreda e não se perde do humano, o amor, por sua vez, pode ser suprimido, apagado, ignorado. Mantê-lo vivo em nós em tempos em que a banalização do mal e as manifestações de ódio às diferenças e às liberdades nos tripudiam, é divergir insurgindo, de maneira que o próprio fato de permanecermos existindo já é em si mesmo, um modo de resistir ao mal.
O lugar da diferença na educação para todos
O termo ‘educação’ tem sido um sinônimo comumente vinculado ao ensino, ou seja, à instrução, à didática, à pedagogia. Em vista disso, tem sido relacionado diretamente ao contexto escolar e universitário. A palavra ‘educação’ também diz respeito aos hábitos, tradições e valores que uma comunidade entrega à geração porvir. Não obstante, conota o sentido de civilidade, amabilidade, atenção, cortesia, gentileza, afabilidade. É conceito que contém o nível de capacidade que uma pessoa tem de se socializar com as outras de maneira cortês e em bom-tom. Etimologicamente,
Educação é a forma nominalizada do verbo educar. [...] Educare, no latim, era um verbo que tinha o sentido de ‘criar (uma criança), nutrir, fazer crescer’. Etimologicamente, poderíamos afirmar que educação, do verbo educar, significa ‘trazer à luz a ideia’ ou filosoficamente fazer a criança passar da potência ao ato, da virtualidade à realidade (Martins, 2005, p. 33, grifo do autor).
Válido, igualmente nos é, conhecer a etimologia da palavra escola,
Este vocábulo já era usado pelos gregos. Na língua dos helenos, o vocábulo skholê, ês significava ‘descanso, repouso, lazer, tempo livre; estudo; ocupação de um homem com ócio, livre do trabalho servil, que exerce profissão liberal, ou seja, ocupação voluntária de quem, por ser livre, não é obrigado a; escola, lugar de estudo’; para comentários do ponto de vista semântico (Martins, 2005, p. 35, grifo do autor).
Educação, portanto, amarra-se a ideia de criar e nutrir como também de revelar ao aprendiz o que mais existe para além dele mesmo. Enquanto que a palavra ‘escola’ é acompanhada da noção de liberdade. Uma liberdade que abraça o entendimento de ser um Ser livre. Nesse caminho etimológico, seria possível considerar que uma geração que se preocupa e se dedica a educar suas crianças, suas gentes, fortalecidas na ciência da liberdade, é uma geração que prima pelo permanente desenvolvimento da capacidade de inter-relacionar-se com os outros que estão no mundo em um pensamento e ação libertadores. Nesta perspectiva de educar desvelando e anunciando ao aprendiz aquilo que existe e se encontra para além de seu micro contexto, enxergar e compreender o outro em sua complexidade de forma afável e atenciosa, (re)conhecendo-o como seu próximo, constitui-se responsabilidade e compromisso tenaz.
Uma nação que se aprimora em oferecer e favorecer às próximas gerações uma educação fundamentada nos princípios da liberdade em que todos têm acesso ao conhecimento e aos valores mais nobres de civilidade para serem livres, é progenitora de direitos sociais e oportunidades de acesso ao mundo do trabalho nos contextos sociais, econômicos, culturais e políticos, tendo a dignidade humana e as liberdades democráticas como parâmetro fulcral de sua sociedade. Nesta perspectiva, a educação se constitui algo preciosíssimo e libertador, pois por meio dela as pessoas alcançam os níveis mais elevados de ensino não sendo escravos da ignorância, constituem-se seres autônomos, compreendem quais são os preceitos totalitários que embasam um domínio caudilho, rejeitam o absolutismo que origina os fascismos, permanecem atentos aos movimentos opressores que legitimam preconceitos, discriminações e barbáries. E, sobremaneira importante, preservam a civilidade como eixo preeminente do ato de educar as pessoas para se tornarem sujeitos humanizados, pessoas amorosas que fazem total diferença no cuidado com os outros seres, humanos ou não, cuidado com nossa Casa Comum.
Por este ângulo, compreender e aceitar a diferença como constituinte dos seres humanos, é crucial para a promoção de uma educação libertadora, um ato de educar que educa na e para a liberdade. Uma educação libertadora cujo propósito se alcança na própria liberdade da participação livre e crítica dos aprendizes enquanto sujeitos históricos, a partir da emergência de suas próprias e diferentes realidades. Uma educação compromissada com a transformação social do indivíduo e da própria sociedade para que tenham possibilidades sociais, políticas e econômicas orientadas à liberdade, de maneira que o indivíduo não seja um mero expectador dos muitos acontecimentos sociais, sem embargo, seja protagonista de sua história e de suas lutas contrárias a todas as formas de opressão (Freire, 1967). O lugar da diferença na educação libertadora está em cada pessoa que constitui o corpo social e que, por sua vez, também constitui comunidades de aprendizagem onde a educação para todos é compreendida como direito fundamental e social.
Desejar um mundo melhor para si mesmo e para os outros, não é suficiente para que possamos viver e conviver neste possível mundo melhor. As ignorâncias e brutalidades praticadas em nossa contemporaneidade chegam a contrair corações que se vêem desesperançosos e com medo do futuro. Acontecimentos marcantes de genocídios, movimentos de conservadorismo político e social, manutenção dos sistemas coloniais e patriarcais, geração de trabalhos servis com salários tão miseráveis que não permitem as pessoas saírem da linha da pobreza, racismo, misoginia, sectarismo, xenofobia, exploração do trabalho infantil, pedofilia, domínio da razão pela implantação do medo, são feitos plenamente evitáveis cuja materialização se dá por via de escolha de quem as incita e as pratica como forma de controle social e manutenção do poder hegemônico. São ações nocivas ao corpo social e pivôs do alargamento dos abismos das desigualdades sociais, resultado de um processo lamentável de des-humanização onde a indiferença quanto ao bem-estar do outro, passa a ser algo comum e natural.
No entanto, à luz da educação como ação da liberdade e a partir do princípio de civilidade, ou seja, uma educação que se arreda das concepções opressoras do liberalismo e resiste às barbáries, é possível educarmos a geração presente e a vindoura para serem protagonistas históricos mais amorosos e, portanto, sujeitos sociais melhores do que temos sido até então (Freire, 1967). Uma educação possível, mas que demanda que as próprias instituições educacionais atentem aos princípios das legislações e políticas nacionais e internacionais que resguardam os direitos humanos e sociais (Organização das Nações Unidas [ONU], 1948). E, não apenas isso, mas que também (re)criem possibilidades da (re)existência perene do movimento de uma educação inclusiva.
Ao destacarmos o movimento da educação em uma perspectiva inclusiva, não nos referimos, por exemplo, a tão somente colocarmos para dentro da escola o indivíduo com deficiência. Mas sim, acolher as pessoas em suas distintas e diversas singularidades, todas as crianças, adolescentes, jovens, adultos ou idosos, independentemente de sexo, gênero, raça, etnia, religião, pessoas que se encontram na condição de migrantes ou refugiados. Diz respeito a muito mais que tolerar aquele que se difere de nós, não obstante, aceitá-lo em suas diferenças. Neste sentido,
Entendemos, inclusive, que tolerar as diferenças não é a mesma coisa que compreender e aceitar as diferenças. Tolerar, em português, na cultura brasileira, está mais relacionado a suportar, a se conformar, a se sentir, inclusive, sofrido por ter que se submeter a uma situação de transigência. Compreender com plenitude que a diferença é de todos e não apenas de alguns, transcende à fragilidade de tão somente tolerar o outro com sofrimento ou esforço. Tal convicção excede à aceitação do outro. Eu não apenas tolero o outro que é diferente de mim, mas eu o (re)conheço e o aceito como pessoa. Eu o compreendo como ser digno de respeito e consideração, bem como cidadão de direitos sociais (Orrú, 2020, p. 84).
E ainda, educar tendo a liberdade e a civilidade como princípios fundamentais e a diferença como valor humano, implica também em compreendermos que, se as pessoas são diferentes, elas também possuem capacidades, inteligências e interesses diferentes, portanto, aprendem de forma diferente. De modo que a escola e/ou a universidade, esse espaço de compartilhar saberes e de criar, nutrir e fortalecer a aprendizagem do ser livre, precisa ser este lugar de acolhimento e cuidado do ‘genius Diferença’ com intenso empenho e competência.
Nesta lógica, faz-se necessário um (re)pensar acerca de como as instituições de ensino têm sido organizadas. Se sobrelevamos a diferença e a liberdade como valores humanos e concebemos a educação como um direito de todas as pessoas, sem exceção, na mesma sintonia, urge re-inventarmos as formas de ensinar. Caso contrário, o que se há é uma contradição com relação aquilo que se deseja e que se defende, a saber, uma educação libertadora, portanto, democrática e inclusiva. Em outras palavras: não é possível se educar para a liberdade e ser coerente com o paradigma inclusivo se perpetuamos um modelo de ensino homogêneo em toda sua extensão, baseado em um padrão médio de rendimento para todos os alunos. É preciso que todas as diferenças sejam potencializadas, bem como todas as culturas sejam valorizadas.
Para tanto, o lugar da diferença na educação para todos também se faz a partir da (re)invenção da própria inclusão a partir da (re)criação de novas metodologias de ensino, onde o saber possa ser compartilhado por todos, de maneira que seja compreendido que todos os aprendizes têm algo a aprender na mesma medida em que todos têm algo a ensinar. Valorizar uma educação intercultural e potencializar as possibilidades de aprendizagem de cada um também se traduz em investir em metodologias que valorizem os eixos de interesse de todos os alunos, de forma que não sejam supervalorizados apenas alguns conhecimentos em detrimentos de outros, mas que todos os conhecimentos sejam (re)conhecidos como relevantes à formação humana.
É oferecer a todos os aprendizes a possibilidade de participação nos planejamentos de suas próprias aprendizagens, como também na construção das normas sociais e autonomia em suas próprias ações realizadoras tendo o professor como um mentor que lhe orientará no processo de aprendizado, mas que ao mesmo tempo não o determinará ou tolherá, um professor COM o aprendiz e não um professor para o aluno (Almeida & Orrú, 2020). É oportunizar ao aprendiz escolher aquilo que deseja aprender, valorizar seus interesses que de modo geral, estão relacionados às suas habilidades a serem cada vez mais desenvolvidas, ao invés de abafadas pelas práticas conteudistas pré-determinadas pelo ensino homogêneo. É dar vazão aos espaços de aprendizagem onde seja possível tecer conhecimentos em redes em meio a pilares inclusivos, cooperativos e solidários, ao invés daqueles competitivos e seletivos. É promover a possibilidade do aprendizado em comum, uns aprendendo COM os outros, o mais expert em um tema ajudando seu colega a compreender melhor dentro de seu próprio ritmo e possibilidade. É favorecer o aprender a aprender cada um da sua maneira, considerando sua inteligência, sua capacidade, sua habilidade, suas possibilidades de aprendizagem para a construção de conceitos e produção do conhecimento científico e assim, poder dizer a todos o quanto aprendeu. É compreender que a educação e o aprendizado ocorrem em qualquer lugar e a todo instante, logo, a sala de aula não é o único lugar de privilégio para o acontecimento desse processo. Nesta perspectiva, o centro do processo de aprendizagem não é o professor e tampouco o aluno, não obstante, o centro do processo de aprender são as relações sociais entre professores com seus aprendizes, aprendizes com seus professores, colegas com seus colegas.
Na emergência de se (re)pensar a educação para a (re)invenção de seu acontecimento sob o viés de uma educação para todos, é improtelável compreender que: apesar da escola tradicional permanecer formando estudantes a partir de conteúdos fragmentados e pré-determinados em currículos inflexíveis; continuar realizando avaliações rígidas que observam somente o que o professor espera verificar, não levando em consideração os muitos outros aprendizados construídos pelo aluno; é demandado pela a sociedade atual e pelas novas gerações de aprendizes, outras formas de aprender, e aprender mais do que aquilo que tem sido imposto pela escola.
Elas precisam aprender a articular saberes, a conhecer domínios que recobrem as esferas de conhecimentos, uma teia de saberes que se conectam. Construir junto com o aprendiz seu percurso de aprendizagem por meio de projetos que tenham como raízes seus eixos de interesse; é possibilitar a imersão do aprendiz no âmbito individual e coletivo o prazer pelo aprender. Similar, é favorecer a troca de experiências, a articulação dos saberes, o confronto de ideias, a curiosidade, a criatividade no expor o que está sendo aprendido; a cooperação; a solidariedade entre os colegas e o desenvolvimento de diversas competências. [...]. Penso que os eixos de interesse são caminhos possíveis para todos os aprendizes, de maneira a trazer para os espaços de aprendizagem aquilo que dá alegria em aprender, que desperta curiosidades sem fim, que pode ser infinitamente mais útil para aquele que se constitui um aprendiz, e aqui estão o aluno com seu professor, ambos aprendizes. Julgo que seja uma alternativa ao ensino massificado, apostilado, aos conteúdos impostos por uma escola que precisa repensar sua prática, que precisa pensar nas demandas de seus aprendizes e romper com as tradições de ensino fundamentadas na repetição, na memorização, na competitividade, na lógica de mercado, na mensuração do que não pode ser mensurável, pois o saber e a inteligência não se mensuram (Orrú, 2016, p. 167, p. 12).
Valorizar os espaços e os momentos de aprendizagem opostos à proposta dominante, é abraçar o ‘genius Diferença’ junto à educação para todos. Uma educação que se traduz libertadora não apenas para os aprendizes, mas com igualdade, também aos professores que se libertam da ação opressora de controlar e docilizar corpos, de enformar e moldar alunos dentro da lógica hegemônica e homogênea presentes no corpo social. Uma educação democrática que se constrói e se constitui a partir do respeito às diferenças de cada um, a partir da capacidade de dar à luz a uma escuta e percepção sensíveis quanto ao outro, a começar pelo ato consciente de acolher a voz do outro em seus próprios contextos sociais, sem nenhuma pretensão imperiosa de aspirar dar voz a esse outro ou ser seu porta-voz, longe de todas as formas de preconceito e discriminação. Isto porque a voz é do outro, a voz é o próprio outro. Nas palavras de Freire,
Não é difícil perceber como há umas tantas qualidades que a escuta legítima demanda do seu sujeito. Qualidades que vão sendo constituídas na prática democrática de escutar. Deve fazer parte de nossa formação discutir quais são estas qualidades indispensáveis, mesmo sabendo que elas precisam de ser criadas por nós, em nossa prática, se nossa opção político-pedagógica é democrática ou progressista e se somos coerentes com ela. É preciso que saibamos que, sem certas qualidades ou virtudes como amorosidade, respeito aos outros, tolerância, humildade, gosto pela alegria, gosto pela vida, abertura ao novo, disponibilidade à mudança, persistência na luta, recusa aos fatalismos, identificação com a esperança, abertura à justiça, não é possível a prática pedagógico-progressista, que não se faz apenas com ciência e técnica. Aceitar e respeitar a diferença é uma dessas virtudes sem o que a escuta não se pode dar. Se discrimino o menino ou menina pobre, a menina ou o menino negro, o menino índio, a menina rica; se discrimino a mulher, a camponesa, a operária, não posso evidentemente escutá-las e se não as escuto, não posso falar com eles, mas a eles, de cima para baixo. Sobretudo, me proíbo entendê-los. Se me sinto superior ao diferente, não importa quem seja, recuso-me escutá-lo ou escutá-la. O diferente não é o outro a merecer respeito é um isto ou aquilo, de tratável ou desprezível (Freire, 2002, p. 45).
No horizonte revolucionário e esperançoso dos que escolhem defender e lutar por uma educação libertadora para todas as pessoas, o ‘genius Diferença’ nos convida à resiliência e ao empoderamento de cada educador para que faça a diferença na constituição humana daqueles que chegam às suas mãos como seus aprendizes. Desta maneira,
É necessário re-inventar a educação para não se abortar na estagnação da tradição. É preciso re-inventar a inclusão na diferença e pela própria diferença. É urgente se re-inventar a si próprio com ciência e com amor. É momento (a todo momento) de se re-inventar os modos de superação das dificuldades históricas no tempo presente. É vital sair dos guetos e re-inventar modos de vida e popularização da ciência na coletividade do Ser e Estar comunidade. É imprescindível primar pelo significante e re-significar os significados. É hora de arrebentar os grilhões das representações e identidades fixas e imutáveis, e rejeitar a repetição universal do igual, pois todos somos diferentes e as pessoas não se repetem (Orrú, 2020, p. 110).
Fazer a diferença para que aquilo que pode haver de melhor em cada pupilo não seja sufocado pela obstinação conteudista do ensino tradicional, ao revés, toda sua capacidade, inteligência e potencial de aprender a Ser, transborde em empatia, solidariedade e amorosidade com o próximo tanto quanto em saberes científicos para um mundo melhor, portanto, cada vez menos excludente.
Considerações finais: ponderações no espírito do ‘genius Diferença’
Por fim, deve ser o propósito de todo educador determinado a transformar o mundo em lugar melhor para todos viverem, o cultivo do pensamento crítico e a consciência sobre a importância de rompermos com práticas hegemônicas e homogêneas na instituição de ensino e caminharmos para a construção sólida de uma educação que potencialize a aprendizagem por meio do diálogo entre as diferentes culturas, ou seja, uma educação intercultural em prol do cuidado, da preservação, da continuidade e da guarda da democracia e do respeito à vida e a dignidade de todo ser humano. Um educar onde o poder do conhecimento é para a promoção do bem comum a todos, longe de ser manobra para exercer poder de tirania e opressão hierárquica à existência do outro. E, não somente isso, mas perceber que comunidades de aprendizagem constroem em coletividade a materialização de sua educação, de maneira que as relações sociais dialógicas e genuínas sejam base para a construção dos processos interdependentes de ensinar e aprender, bem como do exercício das liberdades democráticas onde o ‘genius Diferença’ é o próprio espírito desse lugar que em permanente movimento enuncia: há braços por uma educação para todos!